Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura
São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 de maio de 2012.
ISSN: 2175-4128
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A QUESTÃO MEMORIALÍSTICA EM SÃO BERNARDO
Patrícia de Souza Fraga (UFS)
A pesquisa em questão discorre sobre um dos pontos mais importante da
obra São Bernardo de Graciliano Ramos: a memória. No entanto, faz-se necessário
compreender que o ponto memorialístico aqui estudado não é a do autor e sim a do
personagem-protagonista Paulo Honório. Um matuto fazendeiro que se torna com o
decorrer da obra um personagem-escritor, autor de sua própria biografia.
Assim, faz-se preciso notar que o personagem principal tecerá suas
lembranças ao longo do romance, vendo-se no momento real e, descrevendo as
próprias histórias vividas, busca concretizar um objetivo que vai sendo descrito com
o decorrer da narrativa. Portanto, esta questão em São Bernardo é para o Paulo
Honório (personagem-escritor) uma base para a concretização de um plano. Com
isso, é notória a relevância da memória no romance do Graciliano Ramos, em que o
personagem se baseia nas suas próprias lembranças para elaborar um livro que,
decidido a concretizar o objetivo, apresenta-se como um narrador decidido, direto e
concentrado. Far-se-á através da busca do conhecimento do personagem Paulo
Honório que se transforma em personagem-autor na obra São Bernardo, a análise em
busca da função da memória dentro da narrativa.
Faremos um mergulho na vida do narrador-escritor Paulo Honório, não
deixando, no entanto, de observar o objetivo que o levou a tal situação, e a forma que
ele utiliza para reelaborar através da memória o passado no presente.
A priori falemos sobre a memória. Alguns teóricos trazem a concepção da
memória como revisão de acontecimentos passados, que, segundo Maurice Halbwachs
cada homem possui uma testemunha principal a qual pode se apoiar, tendo como
finalidade orientar e reorganizar as lembranças dantes esquecidas. A testemunha
citada é a própria pessoa que traz em si todos os fatos de sua vida, no entanto, nem
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sempre consegue lembrar e dizer o que especificamente aconteceu em determinados
momentos.
Frequentemente, consideramos a memória como uma faculdade
propriamente individual, isto é,que aparece uma consciência
reduzida a seus próprios recursos, isolada dos outros, e capaz de
evocar, quer por vontade, quer por oportunidade, os estados pelos
quais ela passou antes. (MAURICE, 1968, p. 56)
A memória, como pudemos observar na citação acima, é apresentada como o
ponto que buscamos para saber um pouco mais do próprio passado. No entanto, ele
revela que, para lembrarmos de fatos anteriores precisamos ter contato com
ambientes, pessoas ou algo que provoque, ou que nos auxilie a ter relapsos que nos
faça lembrar um dado momento vivido. Sendo que, a memória dos outros pode ou
não nos ajudar. Isto se deve ao fato de que nem sempre continuamos no mesmo
grupo social de tempos atrás, ou seja, as pessoas desse grupo poderiam tentar formar
a imagem que está clara em sua memória, mas como não mantivemos ligação com
elas, as lembranças delas acabam sendo meros fatos soltos para a nossa recordação.
Percebemos inicialmente que o personagem-autor, no caso, Paulo Honório
manteve contado com o mesmo grupo social do início até o final da sua narração. Até
mesmo a dona Margarida, senhora que o ajudou quando criança, ele conseguiu tê-la
por perto, ou seja, na própria fazenda. Com relação aos ‘amigos’ ele os manteve até
os últimos momentos, quando estava escrevendo o livro, após o suicídio da esposa,
todos se dispersaram. A única dificuldade que teve foi com relação à escrita, pois
por manter tanto contato com o mesmo grupo social, demonstrou tanta facilidade
nas recordações. Quanto a isso nos fala o autor Maurice Halbwachs: “Um homem,
para evocar seu próprio passado tem frequentemente necessidade de fazer apelo às
lembranças dos outros. Ele se reporta a pontos de referência que existem fora dele, e
que são fixados pela sociedade.” (MAURICE, 1968, p. 53)
O autor nos demonstra
que, todo ser tem o chamado estado de consciência puramente individual
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(MAURICE, 1968, P. 35) que o faz distinguir as próprias lembranças das sociais.
Segundo ele, nunca lembramos totalmente do que aconteceu, reconstruímos mais do
que recordamos. Isto acontece porque nossa memória fixa somente os momentos
mais marcantes, seja pela reação das pessoas que estavam próximas ou pelo
acontecimento em si. Paulo Honório, por sua vez, ao falar da infância destaca a
lembrança de viver com a dona Margarida, que vendia doces, e fala de um cego que
sempre lhe beliscava. Por fim lembrava que era órfão, ou pelo menos não conhecia os
pais. “Possuo a certidão, que menciona padrinhos, mas não menciona pai nem mãe.
Não posso, portanto, festejar com exatidão o meu aniversário.” (RAMOS, 2007, p. 15)
E por que lembrou somente disso? Devido à pobreza em que vivia, a situação de
miséria fortemente cotidiana, que o fez trabalhar com enxadas recebendo alguns
poucos tostões. Para o autor na maior parte das vezes reconstruímos mais do que
lembramos: “Sem dúvida, reconstruímos, mas essa reconstrução se opera segundo
linhas já demarcadas e delineadas por nossas outras lembranças ou pelas lembranças
dos outros.” (MAURICE, 1968, p. 77)
Notamos na obra do autor Maurice Halbwachs que ele divide a memória em
dois tipos: uma interior ou autobiográfica e outra que é a memória exterior ou
histórica. A primeira corresponde à memória pessoal e a segunda da social. Na obra
em questão, trata-se de memória interior ou autobiográfica em que o personagem
descreve sua própria trajetória, sendo levado pela nostalgia que se agrava com a
presença de paisagens como: a fazenda, o quarto no qual dormia com a esposa, agora
falecida, a criança com a qual não tinha aproximação, as corujas que cantam na torre
da igreja desde o momento em que Madalena estava na casa, entre outros fatores,
trata-se, portanto, da Memória Individual.
Portanto, é perceptível que São Bernardo não se caracteriza como uma obra
autobiográfica de Graciliano Ramos, mas que estamos diante de um romance em que
notamos no conteúdo uma autobiografia: a do personagem Paulo Honório. Este,
como nos diz Guimarães J. Ubireval, transforma-se de ‘personagem-fazendeiro em
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personagem-escritor’. Um personagem memorialista que descreve sua vida desde a
infância até a conquista da fazenda e o suicídio da esposa. Já com relação à parte
filosófica do livro, o autor nos diz que Paulo Honório esteve entre ‘a dialética do bem
e do mal que faz parte de um jogo de interesses cujos fins justificam quaisquer meios’
(GUIMARÃES, J. Ubireval, 1987, p. 235), percebemos, portanto, que a vida do
personagem que nunca conheceu os pais, criado por dona Margarida, ajudando-a a
vender doces, que depois passou a fazer qualquer serviço para conseguir dinheiro,
entre tantos outros fatores que falaremos posteriormente, Paulo Honório nunca
soube a diferença do bom para o mau como podemos perceber na citação a seguir:
“A verdade é que nunca soube quais foram os atos bons e quais foram os maus. Fiz
coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro.” (RAMOS,
2007,p. 48) Após se transformar em dono da fazenda São Bernardo, o personagem
passa a dominar tudo e a todos até casar-se com Madalena que o confronta neste
sentido.
A questão memorialística é o fator que desenvolve a narrativa da obra, tudo
começa a partir do momento em que o personagem percebe que está só e, que devido
a alguma falha anterior o seu presente está sendo um fracasso em todos os sentidos,
tanto pessoal como social e econômica. Encontrando-se em apuros ele se transforma
em personagem-escritor em busca do momento em que errou e que o levou a
situação atual como percebemos com a citação: “A idéia gorou, o que já declarei. Há
cerca de quatro meses, porém, enquanto escrevia a certo sujeito de Minas, recusando
um negócio confuso de porcos e gado zebur, ouvi um grito de coruja e sobressalteime.” (RAMOS, 2007, p. 215) Utilizando a memória o autor Graciliano Ramos, não
apenas em São Bernardo, mas em outras obras a exemplo de Infância e Memórias do
Cárcere (sendo que estas possuem traços da memória autobiográfica), colocava forte
teor crítico a sociedade. “A arte para ele é uma forma de denúncia e de protesto, é a
sua maneira de reagir às atrocidades de um mundo visto como opressor.”
(GUIMARÃES, J. Ubireval, 1987, p. 249) Quanto a isto nos fala também o autor
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Alfredo Bosi, Graciliano Ramos ‘via em cada personagem a face angulosa da
opressão e da dor’, por isso há no romance São Bernardo a confusão de ser um
romance social ou psicológico.
“O foco narrativo em primeira pessoa mostrará a sua verdadeira
força na medida em que seria capaz de configurar o nível de
consciência de um homem que, tendo conquistado a duras penas um
lugar ao sol, absorveu na sua longa jornada toda a agressividade
latente em um sistema de competição.” (BOSI, 2006, p. 403)
A questão memorialística, portanto, é um ponto desencadeador de várias
outras questões na obra São Bernardo. Ela é trabalhada no romance como uma
revisão feita pelo personagem Paulo Honório com relação à própria vida. É notório
que o narrador só inicia as recordações após o suicídio da esposa Madalena, que ‘o
fez pensar sobre os próprios atos’ (OLIVEIRA, 2011). A partir deste momento de
viuvez, transforma-se o personagem-fazendeiro em personagem-escritor, como já foi
comentado anteriormente.
A memória, neste sentido, estaria dentro do campo do conhecimento,
desencadeadora de um processo auto-consciente. Não se
caracterizando como um relembrar utilitário de fatos esquecidos, mas
como uma grande incursão nos atos do passado, nos caminhos
percorridos de antanho. (JAPIASSÚ, 2007, p. 25)
Segundo o autor Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz, o personagem se
apresenta como um ser em ruínas, que se sustenta nas recordações do passado para
sobreviver no presente, apesar de todas as dificuldades que encontra em continuar.
A memória, nesse caso, transforma-se para o personagem Paulo Honório num
refúgio do real, um ambiente seguro em que mergulha para reencontrar-se, rever-se
através das ações anteriores, das conquistas e das lutas vencidas. Para ele, a busca
das lembranças seria uma forma de fugir do que chamamos realidade, após
conquistar ‘quase tudo’ (posteriormente será explicado o porquê de não ter
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conseguido tudo) começar a perder. E, somente após essa perda querer rever e
analisar as ações passadas, os fatos anteriores e as falhas cometidas.
Só o passado é visível, e, através da memória, pode-se resgatá-lo,
invadindo-o, tornando-o presente, já que o presente mesmo não mais
existe. Pois, mergulhar na história do que passou é se ver novamente,
rever-se. E, vendo-se quem era, os passos e caminhos seguidos, podese, no agora, reencontrar-se, redimensionando-se historicamente no
desvelar de um auto narrativa. (JAPIASSÚ, 2007, p. 24)
Assim podemos dizer que, ao falar de Paulo Honório, precisamos saber que
este personagem não conheceu os pais, foi criado pela dona Margarida. Inicialmente
ajudando-a a vender os doces, passando em seguida a fazer tudo o que fosse
necessário para conseguir dinheiro.
Ou seja, a partir daqui conhecemos a
característica desencadeadora de toda situação do personagem: fazia tudo para
conseguir o que queria. No entanto, como já foi citado, ele não sabia distinguir o
bem do mal, por isso, notamos que de acordo com a história dele todas as suas ações
eram formas de não ser mais um ser passivo dominado e sim o dominador.
Por sua vez, o fato de o próprio Paulo Honório narrar os fracassos,
vitórias, usurpações e perdas de sua vida, revela um tanto de seu tom
mandatório. Não é à toa, nesse sentido, que a decisão inicial de
compor uma narrativa a muitas mãos se perde justamente por sua
incapacidade de trabalho coletivo. (OLIVEIRA, 2011)
O autor Fábio José nos diz que o personagem-escritor é uma figura solitária
que, ao se ver só procura através das recordações forma de preencher o vazio
causado pela solidão e pelo não entendimento. Paulo Honório percebeu tudo a seu
redor, a fazenda que estava perdendo território, as plantações morrendo, os preços
baixos, a política se voltando contra ele, e, sozinho começou a se analisar, a pensar
nos atos, inclusive com o filho com o qual não havia aproximação. Então, com as
memórias ele resolveu (agora sim é revelado o porquê das recordações) buscar o
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momento exato em que fracassou, qual o motivo, a falha, e, apoiando-se nela procura
uma existência para o presente já tão fragmentado. Notamos, então, um personagem
já não tanto dominador, até porque todos aqueles que ele dominava já não estavam
por perto. As recordações revelam o maior conflito que o narrador teve em toda sua
vida (sendo este o motivo central do romance): Madalena. A professorinha da cidade
não aceitou se submeter ao marido, o que fez com que Paulo Honório imaginasse
várias coisas, inclusive uma possível traição, que o levou a desconfiar da esposa até a
sua derrota final: o suicídio de Madalena.
Quando narra sua história, ele está consciente daquilo que ocasionou
sua ruína. O resultado disso são os devaneios e o reconhecimento de
sua brutalidade – desabafos impotentes e só surgidos depois que
Madalena, não podendo aceitar a coisificação que ele lhe requeria,
assume a desesperança do suicídio. (OLIVEIRA, 2011)
Assim, podemos notar que o narrador se encontra desesperado pelo silêncio
da esposa. No último capítulo, ao se olhar no espelho e fazer uma auto-avaliação, o
personagem-escritor se descreve como um monstro construído pelo tempo, pelo
trabalho e pela formação social. As recordações o levaram a perceber o que havia
feito, não só com a Madalena, mas com os amigos e, antes deles com todas as outras
pessoas as quais, de certa forma, coisificou. O objetivo do personagem em utilizar
suas lembranças, já foi citado anteriormente. O autor João Luíz Lafetá nos diz que
nos dois primeiros capítulos, quando Paulo Honório descreve as funções de cada
pessoa que o auxiliariam na obra, é rápida. Sem detalhes. Percebemos algumas
técnicas narrativas dele: a primeira é narrar de forma direta e a segunda define-se
como ‘enérgica é o que resume esta primeira parte do livro’ (LAFETÁ, p. 193). O
narrador é apresentado como alguém decidido, brusco, direto e concentrado no que
faz, no caso, na obra que pretende escrever. O ritmo permanece acelerado, como se a
narração estivesse atrás do objetivo do narrador. Notamos que o autor ao falar das
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ações nos diz que, apesar de estarmos observando os fatos através das memórias do
personagem-escritor, não podemos separá-lo dos atos que o próprio fez.
Seguindo para o terceiro capítulo no qual Paulo Honório retorna cinqüenta
anos no tempo para narrar sua vida antes de chegar onde está. A narração concisa,
sua forma de narrar apenas os pontos principais que são os da infância na miséria e o
do crime que o levou a ficar três anos, nove meses e quinze dias na cadeia, onde
aprendeu algumas coisas. Segundo Lafetá, faz-se necessário identificar dois modos
básicos da narração aqui presente: a cena e o sumário narrativo. O primeiro “implica
a apresentação de detalhes concretos e específicos, dentro de uma estrutura bem
determinada de tempo e lugar.” (LAFETÁ, p. 196) e o segundo trata de uma
observação geral, sem detalhes.
Quando o que interessa é o acontecimento em si, temos a cena, e
aparecem então os detalhes, mas se o que revela não é o
acontecimento, e sim a atitude do narrador, se o dominante não é o
evento, mas o tom em que é narrado, então temos o Sumário
Narrativo. (Lafetá, p. 196)
Durante a conquista da fazenda São Bernardo, a marcação temporal é feita
naturalmente, ‘a narração obsessiva do tempo que, cronometrado com precisão pelo
narrador, delimita as ações de forma clara e – no caso – produz um efeito de
crueldade’ (LAFETÁ, p. 197). Esta parte da memória chama atenção pela forma em
que é narrada, as ações do personagem-escritor chocam mais do que as próprias
recordações. “Resolvi estabelecer-me aqui na minha terra, município de Viçosa,
Alagoas, e logo planeei adquirir a propriedade São Bernardo, onde trabalhei, no eito,
com salário de cinco tostões.” (RAMOS, 2007, p. 21) Tanto fez que conseguiu as
terras.
A partir daqui surgem alguns empecilhos nos objetivos do atual fazendeiro
(Paulo Honório), no entanto são facilmente retirados, como o velho Mendonça, a falta
de crédito, a safra ruim de mamona e algodão, os preços baixos e as ameaças de
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Brito. Lafetá caracteriza esta fase como ‘a união indissolúvel do personagem e da
ação’. O narrador apresenta-se no sertão como a modernidade viva. Percebemos a
facilidade que ele possuía em livrar-se das coisas e pessoas que o impediam de fazer
algo na seguinte citação: “Violências miúdas passaram despercebidas. As questões
mais sérias foram ganhas no foro, graças às chicanas de João Nogueira.” (RAMOS,
2007, p. 49)
A objetividade do romance nasce da postura do narrador face ao
mundo: ele nada problematiza, de nada duvida, em ponto algum
vacila. Tudo que importa é possuir e dirigir o mundo. Para tanto, ele
conhece os meios. E não pensa sobre eles: aplicá-os. (LAFETÁ, p. 199)
Como percebemos até aqui, dominou a técnica da cena, cada memória trouxe
sua forma de narrar, algumas aceleradas, objetivas, outras dando mais ênfase. A
partir daqui, no capítulo nove, a tensão começa a dominar a forma narrativa. Surge
Madalena. A mudança muda também na técnica narrativa, agora, a técnica é o
Sumário Narrativo: perceberemos os diálogos prolongados, os detalhes concretos e a
caracterização mais longa dos personagens. O tom passa a ser descontraído e leve.
Nesta parte ele recorda de quando encontrou a dona Margarida, que estava
planejando ter uma esposa, e resolvendo o caso do Brito. “Não me ocupo com
amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito de
governar.” (RAMOS, 2007, p. 68) Portanto, percebemos mais uma vez a voz
dominadora do personagem ao classificar a mulher como “bicho esquisito de
governar”. A presença de Madalena, como nos diz Lafetá, modifica até mesmo a
sintaxe narrativa, ‘o diminutivo (mãozinhas, cabecinha) não descreve apenas,
imprime à descrição um certo grau de afetividade que a repetição do adjetivo (lindas,
linda) vem reforçar’ (LAFETÁ, p. 202).
Segundo Lafetá, o sentimento de propriedade leva Paulo Honório, após
perceber que a esposa não é submissa, a duvidar de tudo e de todos. O dinamismo,
agora, constrangido, segue até a derrota do narrador: Madalena comete o suicídio.
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“O desfecho, se elimina fisicamente Madalena, destrói por completo a
vida de Paulo Honório. Agir, mandar cultiva São Bernardo, nada
disso terá mais sentido para ele. O mundo desgovernou-se, só lhe
resta sentar e buscar, compondo a narrativa de sua vida, o significado
de tudo que lhe escapa. A composição do romance vai-se modificar
agora sensivelmente.” (LAFETÁ, p. 211)
Sendo assim, a memória no romance São Bernardo é, para Paulo Honório,
uma fuga, ainda que, momentânea da realidade. Tem por finalidade, segundo o
autor Alfredo Bosi, uma demonstração das tensões sociais, no caso a do personagemescritor que lutou de sua forma para conseguir alcançar todos os objetivos, até que
algo o fez parar por completo. Enfim, transforma-se o fazendeiro, brusco, com voz
áspera e com garra para ultrapassar tudo que o impedisse de realizar o plano
imaginado, em escritor. Um ser, agora, preso as lembranças e caracterizando-se como
um monstro. “Emoções indefiníveis me agitam – inquietação terrível, desejo doido
de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta
hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.”
(RAMOS, 2007, p. 119)
Notamos então, um personagem-escritor que está sempre
numa transição entre o passado e o presente, sendo que estes tempos tornam-se
confusos na mente do autor, fazendo-o não separar o delírio da realidade.
Totalmente preso as lembranças.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Falar da memória ultrapassa a ideia de apenas relatar meras lembranças de
um personagem, no caso, Paulo Honório. Na obra, pudemos observar que as falas
das recordações ecoavam no presente e eram tão gritantes quanto às corujas da torre
da igreja que tanto perturbavam o fazendeiro. Daí as confusões do protagonista com
relação ao presente e ao passado. Mistura esta que ocorre devido à fragilidade e a
uma busca incessante que ele tinha em recorrer às lembranças para entender o
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momento real, que demonstrava não mais ter forças ou capacidade de continuar. Ao
tecer sua história existencial o fazendeiro-autor buscava, portanto, um refúgio. Visto
que, estava passando por um momento difícil e que ainda não havia compreendido o
que ocorrera.
Com isso, notamos que a função memorialística na narrativa procede do
recordar do narrador-personagem. Ou seja, o desenvolver da narrativa depende da
ênfase dada pelo personagem-escritor, percebemos que o Paulo Honório acelerou no
início para esclarecer o momento em que começou a tensão, a partir deste ponto, a
narrativa passou a ser lenta e mais detalhada. Portanto, a memória não é um mero
fator na obra, mas sim um componente de suma importância ao reconhecimento do
personagem-escritor Paulo Honório.
BIBLIOGRAFIA
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ed. São Paulo, Cultrix, 2006. PP. 400-404.
OLIVEIRA, Fábio José Santos de Oliveira. A bolandeira do major parou. Anais
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1487-1503, jun. 2011.
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Edicult/ Secult, 1987.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2004.
LAFETÁ, João Luiz. O mundo à revelia. In: ___ A dimensão da noite. São Paulo:
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RAMOS Graciliano. São Bernardo. 84 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
CANDIDO, Antônio. Ficção e confissão: ensaio sobre a obra de Graciliano Ramos.
Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 83 p.
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