UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO PÚBLICO TÉCIO SPÍNOLA GOMES A APLICAÇÃO ADEQUADA DA FLUID RECOVERY NA LIQUIDAÇÃO E EXECUÇÃO DE AÇÕES COLETIVAS SOBRE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS Salvador 2013 TÉCIO SPÍNOLA GOMES A APLICAÇÃO ADEQUADA DA FLUID RECOVERY NA LIQUIDAÇÃO E EXECUÇÃO DE AÇÕES COLETIVAS SOBRE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia como requisito final para a obtenção do grau de Mestre em Direito Público, sob orientação do Prof. Dr. Wilson Alves de Souza. Salvador 2013 G633 Spínola Gomes, Técio, A aplicação adequada da fluid recovery na liquidação e execução de ações coletivas sobre direitos individuais homogêneos / Técio Spínola Gomes. -- Salvador, 2013. 126 f. Orientador: Wilson Alves de Souza. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2013. 1. Processo civil coletivo. 2. Direitos individuais homogêneos. 3. Fluid recovery. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Direito. II. Souza, Wilson Alvez de. III. Título. CDU : 347.9 CDD : 347 TERMO DE APROVAÇÃO TÉCIO SPÍNOLA GOMES A APLICAÇÃO ADEQUADA DA FLUID RECOVERY NA LIQUIDAÇÃO E EXECUÇÃO DE AÇÕES COLETIVAS SOBRE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito. Aprovada em ____ de _______________ de 2013. Banca Examinadora __________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Wilson Alvez de Souza Professor da Universidade Federal da Bahia Doutor em Direito pela Universidad Del Museo Social Argentino ___________________________________________ Prof. Dr. Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho Professor da Universidade Federal da Bahia Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ____________________________________________ Prof. Dr. André Alves Portella Professor da Universidade Católica do Salvador Doutor em Direito pela Universidad Complutense de Madrid AGRADECIMENTOS Ao professor Wilson Alves de Souza, orientador do mestrado e paraninfo da minha turma de graduação, pela influência decisiva em minha vida acadêmica e por ser um grande referencial de atuação ética. A ele cabem os méritos de ter instigado o meu interesse pelo processo civil e de ter proporcionado a minha iniciação na docência. Ao professor Rodolfo Pamplona Filho, pelo amparo no momento de desânimo. Seus métodos inusitados, porém eficientes, me cativaram e foram essenciais para que este trabalho fosse concluído. Ao professor Antonio Gidi, que, mesmo fora do país, enviou material de pesquisa e incentivo para esta dissertação. À egrégia Faculdade de Direito, por ser palco de incontáveis alegrias. A meus professores, pelo exemplo e conhecimento proporcionados. Aos servidores da faculdade, pela amizade e suporte constantes. Aos amigos e familiares, por terem compreendido as minhas ausências. "Se o homem falhar em conciliar a justiça e a liberdade, então falha em tudo." Albert Camus RESUMO O presente trabalho aborda a técnica da fluid recovery utilizada para a liquidação e execução de ações coletivas em defesa de direitos individuais homogêneos. Objetiva-se estudar como esta técnica pode servir para a ampliação do acesso à justiça e concretização do direito à tutela executiva, que é corolário do princípio do devido processo legal. O microssistema da tutela coletiva é utilizado como referencial normativo do processo coletivo brasileiro. A fluid recovery é abordada, desde a sua origem, nos Estados Unidos da América, sendo também observado o desenvolvimento do instituto nos países da tradição da common law. Diante da previsão da fluid recovery no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, indaga-se como esta técnica deve ser aplicada para a máxima efetivação de direitos. PALAVRAS-CHAVE: Acesso à justiça. Ações Coletivas. Fluid recovery. Direitos individuais homogêneos. Execução coletiva. ABSTRACT This paper discusses the fluid recovery technique that is used for damages evaluation and enforcement of Brazilian class actions in defense of individual homogeneous rights. This study focuses on how this technique can serve to increase access to justice and implement the right to effective enforcement, which is a corollary of the principle of due process. The microsystem of collective protection is used as a reference standard of the Brazilian class actions. The fluid recovery is addressed, from its origin in the United States of America. The development of this law institute in the countries of the common law tradition is also observed. Given the fluid recovery system in the Brazilian Code of Consumer Protection, this paper analyzes how this technique should be applied for maximum realization of rights. KEYWORDS: Access to justice. Class actions. Mass litigation. Fluid Recovery. Collective enforcement. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Art – Artigo CC – Código Civil CDC – Código de Defesa do Consumidor CFRB – Constituição da República Federativa do Brasil CPC – Código de Processo Civil EC – Emenda Constitucional FDD – Fundo de Direitos Difusos FRCP – Federal Rules of Civil Procedure Inc – Inciso LACP – Lei da Ação Civil Pública LAP – Lei da Ação Popular STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça Resp – Recurso especial SUMÁRIO 1. 2. 2.1. INTRODUÇÃO ............................................................................................... 11 A ESTRUTURAÇÃO DOS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS NO BRASIL .......................................................................................................... 14 DIREITOS COLETIVOS OU TUTELA COLETIVA DE DIREITOS INDIVIDUAIS? ................................................................................................ 15 2.2. TITULARIDADE .............................................................................................. 19 2.3. TUTELA DE SITUAÇÕES JURÍDICAS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEAS NO BRASIL ........................................................................................................... 20 3. 3.1. ASPECTOS PROCESSUAIS GERAIS DOS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS NO MICROSSISTEMA DA TUTELA COLETIVA ............... 26 COMPETÊNCIA ............................................................................................. 27 3.2. LEGITIMIDADE NA FASE COGNITIVA.......................................................... 28 3.3. REFLEXÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DE CONCILIAÇÃO...................... 29 3.4. SENTENÇA GENÉRICA................................................................................. 31 3.5. REGIME JURÍDICO DA COISA JULGADA COLETIVA.................................. 32 3.6. PRESCRIÇÃO ................................................................................................ 32 3.7. AÇÕES PSEUDOCOLETIVAS ....................................................................... 34 4. LIQUIDAÇÃO E EXECUÇÃO DAS SENTENÇAS QUE ENVOLVEM DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ..................................................... 37 TIPOS DE EXECUÇÃO .................................................................................. 42 4.1. 4.1.1. Execução de pretensão individual proposta pela vítima ................................. 44 4.1.2. Execução de pretensão individual proposta por legitimado extraordinário coletivo............................................................................................................ 46 4.1.3. Execução de pretensão coletiva ..................................................................... 47 4.2. PROBLEMAS DA LEGITIMIDADE EXTRAORDINÁRIA NAS EXECUÇÕES INDIVIDUAIS .................................................................................................. 49 4.3. EXECUÇÃO DA COISA JULGADA IN UTILIBUS .......................................... 52 4.4. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA ........................................... 53 5. 5.1. A NOTIFICAÇÃO ADEQUADA NO PROCESSO COLETIVO BRASILEIRO 56 DEFINIÇÃO DE NOTIFICAÇÃO ..................................................................... 57 5.2. EXIGÊNCIA DA NOTIFICAÇÃO ADEQUADA ................................................ 58 5.3. NOTIFICAÇÃO ADEQUADA COMO GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA . 59 5.4. A NOTIFICAÇÃO ADEQUADA E O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL COLETIVO ......................................................................................... 60 5.5. A NOTIFICAÇÃO NAS CLASS ACTIONS FOR DAMAGES NORTEAMERICANAS ................................................................................................ 62 5.6. O ATUAL SISTEMA BRASILEIRO DE NOTIFICAÇÃO NAS AÇÕES COLETIVAS.................................................................................................... 63 5.7. A NOTIFICAÇÃO ADEQUADA E A O TRANSPORTE DA COISA JULGADA IN UTILIBUS ................................................................................................... 65 5.8. CRÍTICA AO MODELO DE NOTIFICAÇÃO INDIVIDUALIZADA PARA OS MEMBROS IDENTIFICÁVEIS DO GRUPO .................................................... 67 5.9. A NOTIFICAÇÃO ADEQUADA E OS ANTEPROJETOS DE CÓDIGO DE PROCESSO COLETIVO ................................................................................ 69 5.10. CADASTRO NACIONAL DE PROCESSOS COLETIVOS.............................. 71 5.11. O PROCESSO DIGITAL COMO CONCRETIZAÇÃO DA NOTIFICAÇÃO ADEQUADA.................................................................................................... 73 5.12. O SISTEMA DE NOTIFICAÇÕES NO ANTEPROJETO DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL COLETIVO DE ANTONIO GIDI ....................................... 74 5.13. POSIÇÃO SUSTENTADA NESTE TRABALHO ............................................. 77 6. 6.1. A FLUID RECOVERY NA TRADIÇÃO DA COMMON LAW .......................... 79 ORIGEM, TERMINOLOGIA E EVOLUÇÃO DO INSTITUTO ......................... 81 6.2. PANORAMA DA APLICAÇÃO DA TÉCNICA NAS AÇÕES COLETIVAS DAS JURISDIÇÕES DA COMMON LAW ............................................................... 85 6.2.1. Canadá ........................................................................................................... 86 6.2.2. Austrália .......................................................................................................... 88 6.2.3. Estados Unidos ............................................................................................... 90 6.2.4. Notícias sobre a utilização da técnica em outros países ................................ 92 6.3. TÉCNICAS ALTERNATIVAS DE DISTRIBUIÇÃO DOS RECURSOS ORIUNDOS DAS AÇÕES COLETIVAS.......................................................... 93 6.3.1. Rateio entre as vítimas ................................................................................... 93 6.3.2. Reversão para o réu ....................................................................................... 94 6.3.3. Expropriação da verba para o Estado............................................................. 95 6.4. PRECEDENTES RELEVANTES DE APLICAÇÃO DA TÉCNICA DA FLUID RECOVERY NOS ESTADOS UNIDOS .......................................................... 95 6.4.1. Caso do Agente Laranja utilizado na Guerra do Vietnam ............................... 97 6.4.2. Caso dos trabalhadores mexicanos contra os produtores de frutas cítricas do Arizona............................................................................................................ 98 7. 7.1. O USO DA TÉCNICA DA FLUID RECOVERY DO DIREITO BRASILEIRO PARA A EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ........................................................ 100 DENOMINAÇÃO DO INSTITUTO ................................................................ 102 7.2. FLUID RECOVERY E ACESSO À JUSTIÇA ................................................ 103 7.3. REQUISITOS DA DISTRIBUIÇÃO FLUIDA.................................................. 104 7.3.1. Requisito temporal ........................................................................................ 104 7.3.2. Gravidade do dano incompatível com o número de liquidações ................... 105 7.4. RELAÇÃO ENTRE AS EXECUÇÕES INDIVIDUAIS E A EXECUÇÃO COLETIVA .................................................................................................... 107 7.5. É POSSÍVEL DISPENSAR O PRAZO DE UM ANO? ................................... 108 7.6. NATUREZA RESIDUAL OU PUNITIVA? ...................................................... 108 7.7. FLUID RECOVERY COMO GARANTIA DE EXECUÇÕES INDIVIDUAIS ... 109 7.8. POSSIBILIDADE DO USO DA FLUID RECOVERY EM ACORDOS COLETIVOS ................................................................................................. 110 7.9. A FLUID RECOVERY NOS ANTEPROJETOS DE CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL COLETIVO APRESENTADOS PELA DOUTRINA BRASILEIRA........ 111 8. CONCLUSÃO ............................................................................................... 112 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 117 11 1. INTRODUÇÃO A técnica da fluid recovery é um meio singular de liquidação e execução da tutela de direitos individuais homogêneos, possibilitando a reparação coletiva de danos individuais. O instituto tem origem na jurisprudência norte-americana e o Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8078/1990 incluiu uma forma peculiar de sua aplicação, marcada pela originalidade brasileira, no seu art. 100. Trata-se de mecanismo ainda pouco utilizado, cujo desenvolvimento pode ter impacto significativo por estar situado no contexto de uma mudança de paradigma do processo civil, que, em busca da ampliação do acesso à justiça, procura meios mais eficientes de tutela de direitos. O tema central da pesquisa deste trabalho se reveste de especial relevância na atualidade por auxiliar na resolução de conflitos que aparecem nas relações de massa, típicas da sociedade contemporânea, para as quais o direito ainda busca soluções. É uma realidade ainda muito recente, que gera várias perplexidades, demandando estudo e desenvolvimento de respostas criativas e flexíveis para os novos problemas que se impõem. O processo coletivo afigura-se como um meio eficiente de tutela de direitos e a doutrina encontra-se em franca expansão no país. Ainda são poucos os doutrinadores que se debruçam com profundidade sobre os problemas inerentes à execução da tutela coletiva e um grupo ainda mais restrito quanto aos problemas específicos relacionados aos direitos individuais homogêneos. Em relação à fluid recovery especificamente, existem poucos artigos e trechos de livros, não havendo nenhum trabalho mais denso sobre o tema. Na sociedade contemporânea, é comum a ocorrência de violações em massa que causam danos diminutos a uma grande quantidade de pessoas. Sob a perspectiva individual, por mais que estas situações incomodem, não geram qualquer interesse em buscar o judiciário ou meios alternativos de solução, em face da insignificância dos danos sofridos e das dificuldades que teriam de enfrentar. Ocorre que, em muitos casos, estas violações são perpetradas de modo proposital. A ideia subjacente é que a imposição de pequenos danos a muitas pessoas gera um grande benefício global para o agente e este tem a garantia da impunidade pelo fato de poucas pessoas reclamarem. Isto gera insatisfação cotidiana e litigiosidade 12 reprimida em face da burocracia estatal. A fluid recovery é uma das possíveis soluções para evitar este tipo de problema. Apesar de a técnica da fluid recovery ter aplicabilidade restrita a situações bastante específicas, reveste-se de grande importância por ser um instrumento preventivo e repressivo de ilícitos de massa, que normalmente afetam um grande número de pessoas e tem uma enorme repercussão social. O desenvolvimento deste instituto possibilita o acesso à justiça de pretensões que, muitas vezes, seriam inviáveis por meio da tutela individual. Mesmo no contexto da execução de sentenças coletivas, a utilização exclusiva de execuções individuais é insuficiente. Esta dissertação apresenta uma estrutura dividida em oito capítulos, sendo a introdução, seis capítulos de desenvolvimento e a conclusão. O primeiro capítulo de desenvolvimento apresenta um estudo sobre a estruturação dos direitos individuais homogêneos no Brasil. Analisa em que contexto esta classe de direitos foi introduzida no país, qual é a sua utilidade prática e tece considerações a respeito da titularidade destes direitos. Também são evidenciadas formas pelas quais situações jurídicas individuais homogêneas são tuteladas pelo ordenamento jurídico nacional sem envolver ações coletivas. No capítulo subsequente, são traçados os aspectos processuais gerais dos direitos individuais homogêneos. Para isto, utiliza-se o recurso ao microssistema da tutela coletiva, que é explanado no início deste capítulo. São analisados de forma panorâmica os institutos mais relevantes na condução de uma ação coletiva na defesa desta categoria de direitos. Também é analisada a prescrição dos direitos individuais homogêneos, fazendo críticas pontuais à jurisprudência do STJ sobre o tema. Por fim, são suscitadas situações em que a ação coletiva na verdade veicula pretensões meramente individuais, caracterizando-as como ações pseudocoletivas. O terceiro capítulo de desenvolvimento trata da liquidação e execução das sentenças que envolvem direitos individuais homogêneos. São explanados os tipos possíveis de liquidação e execução, sendo definido que a sua classificação mais consistente deve ser feita pelo duplo critério na natureza da pretensão veiculada e da identidade do exequente. São analisados ainda os problemas da legitimidade extraordinária nas execuções individuais e a questão da coisa julgada in utilibus. O capítulo é encerrado pelo exame crítico da prescrição da pretensão reparatória nestes casos, levando em consideração o recente julgamento do Resp 13 1273643/PR, pelo Superior Tribunal de Justiça no procedimento previsto no art. 543C do CPC. O quarto capítulo de desenvolvimento trata da necessidade de haver notificação adequada no processo coletivo brasileiro. É apontado que a deficiência da comunicação institucional do judiciário com os beneficiários das ações coletivas e com outros protagonistas deste tipo de tutela gera graves transtornos. Demonstra-se que, muitas vezes, as ações coletivas são ajuizadas e julgadas procedentes sem o conhecimento da maior parte dos interessados. É feita a análise comparativa do sistema de notificação do processo coletivo brasileiro com a notificação nas class actions norte-americanas. São analisadas propostas de solução desta deficiência e expostas medidas de lege lata e de lege ferenda que poderiam ser adotadas para o enfrentamento do problema. O penúltimo capítulo de desenvolvimento trata da fluid recovery na tradição da common law. Inicia-se com a explicação das razões da abordagem sob a perspectiva específica do grupo de países pertencentes a uma mesma tradição jurídica, definindo o sentido deste termo. Daí parte-se para a análise da origem, da terminologia e da evolução do instituto. É feito um panorama da aplicação da técnica pesquisada nos diferentes países que fazem parte desta tradição jurídica. São demonstradas alternativas em relação à distribuição das verbas nos casos em que não é adotada a fluid recovery em sentido estrito. O capítulo é encerrado com a exposição de dois precedentes relevantes sobre o tema que mostram o contraste com o instituto do art. 100 do CDC. O sexto e último capítulo de desenvolvimento aborda o uso da técnica da fluid recovery no direito brasileiro para a efetivação de direitos. São tecidos comentários sobre a denominação do instituto, suas relações com o acesso à justiça e os requisitos de aplicação desta técnica. A seguir, são apresentadas reflexões específicas sobre cada um dos requisitos e são feitas considerações sobre a sua flexibilização em casos especiais. É apresentada a ideia de fluid recovery enquanto garantia de execuções individuais. Encerra-se o capítulo com a análise da possibilidade de aplicação do instituto em acordos e a análise das previsões encontradas nos anteprojetos doutrinários de Código de Processo Civil Coletivo. 14 2. A ESTRUTURAÇÃO DOS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS NO BRASIL A tutela processual coletiva de direitos é um tema fascinante. Desperta acesos debates no direito nacional e estrangeiro. Variadas são as controvérsias suscitadas em torno dos seus contornos legais e doutrinários, bem como sobre as justificativas políticas e sociológicas que sustentam este mecanismo institucional. Seu delineamento é extremamente diversificado nos diferentes países que admitem as ações coletivas, o que torna o exame de direito comparado imprescindível para a correta abordagem e compreensão dos problemas enfrentados nesta pesquisa. O processo coletivo brasileiro foi estruturado precipuamente com base na experiência das class actions norte-americanas. Os juristas que auxiliaram na produção legislativa sobre o tema tiveram a preocupação de adequar os institutos norte-americanos à nossa cultura jurídica, no esforço de criar um sistema próprio. Ada Pellegrini, na conclusão de relatório sobre o tema, apresentado ao XIII Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Processual, sustentou que, após mais de trinta anos da experiência legislativa em países da civil law neste campo, é seguro dizer que a situação atual aponta para a elaboração de um regime de processos coletivos próprio, que atende melhor as peculiaridades de nosso sistema jurídico e se afasta em vários pontos das class actions norteamericanas.1 Na construção de nosso processo coletivo, os estudiosos brasileiros se valeram tanto de fontes indiretas, como o trabalho de processualistas italianos sobre o tema, quanto de fontes diretamente provenientes daquele sistema, como precedentes dos tribunais e trabalhos de juristas norte-americanos.2 No que concerne ao direito comparado, neste trabalho foi utilizada a metodologia de Marc Ancel, de forma a não restringir a análise à simples justaposição das regras de direito de diferentes países, mas sim realizar um esforço 1 GRINOVER, Ada Pellegrini. Relatório geral – civil law. In: ______; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos Paises de Civil Law e Common Law. 2 ed. São Paulo: RT, 2011. P. 248. O relatório referido foi finalizado em março de 2007. 2 Para um aprofundamento sobre o tema, que extrapola os limites deste trabalho, remete-se o leitor ao ponto 1.3 “As fontes das ações coletivas brasileiras” de GIDI, Antonio. Rumo a um código de processo civil coletivo. A codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 30-38. 15 pela apreensão global dos diferentes sistemas.3 É importante esclarecer que a experiência norte-americana do processo coletivo não é a única existente entre os países que adotam a common law. Por muitas vezes, existem diferenças substanciais entre as diferentes jurisdições deste sistema, o que torna valioso o estudo de seus contrastes. Para isso, será utilizada a metodologia proposta por Rachel Mulheron na obra “The class action in common law legal systems – a comparative perspective”, na qual sustenta a conveniência da abordagem comparatista para, dentre outras razões, demonstrar que existem outros sistemas de processo coletivo operacionais e eficazes, que não apenas o norte-americano4. A possibilidade de defesa dos direitos individuais homogêneos por meio de ações coletivas foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro por intermédio do Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8078/90. Sem esta previsão, seria impossível a “tutela coletiva de direitos individuais com natural dimensão coletiva em razão de sua homogeneidade, decorrente da massificação/padronização das relações jurídicas e das lesões daí decorrentes”5. Didier e Zaneti comentam que este instrumento serve para atender ao imperativo do direito de realizar com efetividade a justiça face às necessidades da vida contemporânea. 2.1. DIREITOS COLETIVOS OU TUTELA COLETIVA DE DIREITOS INDIVIDUAIS? Para alguns autores, como Teori Albino Zavascki6 e Érica Barbosa e Silva7, os direitos individuais homogêneos são direitos individuais tratados coletivamente. Outra corrente, na qual se inserem Fredie Didier Jr. e Hermes Zannetti Jr., entende que os direitos individuais homogêneos são estruturalmente coletivos, em razão de exercerem função notoriamente mais ampla que os 3 ANCEL, Marc. Utilidades e Métodos do Direito Comparado. Tradução: Sergio José Porto. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1980.P. 108-111. Nesta passagem, Ancel ensina que uma vez que a análise de um jurista formado num determinado páis que examine o direito estrangeiro, necessariamente será influenciada por sua formação, fica atenuada a distinção clássica e rigorosa entre direito estrangeiro e direito comparado. 4 MULHERON, Rachael P. The class action in common law legal systems: a comparative perspective. Oxford: Hart Publishing, 2004. P. 19-20. 5 DIDIER JR., Fredie; Zaneti Jr., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. 8 ed. Vol. 4. Salvador: JusPODIVM, 2013. P. 80 6 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo - Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 4 ed. São Paulo: RT, 2009. P. 146 7 SILVA, Érica Barbosa e. Cumprimento de Sentença em Ações Coletivas. São Paulo: Atlas, 2009. P. 88-89. 16 individuais8. Ambas as correntes concordam com a grande importância instrumental deste tipo de tutela para a efetivação dos direitos. A conveniência da existência da categoria jurídica dos direitos individuais homogêneos é patente. É bem representada pela metáfora utilizada tanto por Antônio Gidi quanto por Kazuo Watanabe de que se trata da possibilidade de uma proteção coletiva (molecular) que impede a pulverização de “demandas-átomo”, propiciando a efetivação do acesso à justiça e evitando decisões contraditórias.9 A imagem do tratamento molecular de “demandas-átomo” é extremamente ilustrativa, pois determinados tipos de demanda, mesmo que repetitivas, dificilmente são adequadamente resolvidas por processos individuais em razão de múltiplos fatores. Algumas demandas envolvem valores tão insignificantes para as vítimas singulares que o ajuizamento de uma ação individual redundaria num custo mais elevado do que o dano sofrido. Desta forma, caso não houvesse as ações coletivas, bastaria que atores sociais de grande poder econômico perpetrassem danos pequenos a múltiplas pessoas para obterem um preciso que enriquecimento ilícito, garantido pela certeza de impunidade. Para a correta exposição desta controvérsia, é compreendamos o direito à efetiva tutela jurisdicional como um direito fundamental. Luiz Guilherme Marinoni, em lição lapidar, explica que a norma constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF) tem entre suas implicações o direito do autor ao meio executivo capaz de dar plena efetividade à tutela jurisdicional perseguida.10 Baseado nesta mesma premissa, Aluísio de Castro Mendes ressalta que: “A eventual falta ou deficiência dos instrumentos processuais adequados para os chamados danos de “bagatela”, que, considerados globalmente, possuem geralmente enorme relevância social e econômica, estimula a repetição de práticas ilegais e lesivas [...] De pouca ou nenhuma valia passam a ser as normas de direito material, que estabelecem direitos para os lesados se a referida 8 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op cit. P. 85. GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência nas ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995. P.30 e WATANABE, Kazuo. Do processo individual de defesa do consumidor In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - Comentados Pelos Autores do Anteprojeto. Vol II. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. P. 4 10 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 2 ed. São Paulo: Editora RT, 2007. P. 224. No mesmo sentido: DIDIER JR., Fredie et al. Curso de Direito Processual Civil. 2 ed. Vol. 5. Salvador: JusPODIVM, 2010. P. 47 9 17 proteção não encontra, também, amparo efetivo nos meios processuais disponíveis”. 11 Esta perplexidade se soma à análise econômica feita por Richard Posner12, que conclui pela inconveniência da litigância individual neste tipo de problema, em razão de seus elevados custos de processamento e da baixa eficiência global. Este autor norte-americano demonstra que as ações coletivas sobre situações jurídicas, que no Brasil seriam enquadradas como direitos individuais homogêneos, mesmo que em uma perspectiva estritamente econômica, são mais eficientes para a solução do problema do que a via das ações individuais. Na sociedade contemporânea, o crescimento vertiginoso de contratos padrão, que afetam múltiplos consumidores e eventos danosos que envolvem por vezes centenas de vítimas, extrapolando até fronteiras nacionais, faz com que alguns autores identifiquem como tendência atual no mundo jurídico o fenômeno da “massificação” de demandas. Neste sentido, recentemente, a inglesa Jenny Steele e o holandês Willem van Boom sustentaram que os juristas devem pensar sobre os desafios da “Justiça de Massa”, que se impõe como fenômeno global no direito contemporâneo, em artigo conjunto sobre o tema que inicia uma valiosa coletânea de estudos por eles organizada sobre esta questão13. Na prática, pela ausência de uma cultura consolidada de processo coletivo no País, por vezes algumas situações que se repetem no cotidiano e se configuram ilícitas, como cobranças excedentes indevidas em contas de telefone e taxas bancárias equivocadamente cobradas, ficam impunes. O agente causador do dano é beneficiado pelo fato de que apenas uma parcela inexpressiva das pessoas afetadas irá procurar o judiciário para resolver danos de pequenas monta. Sobre a caracterização da figura jurídica em estudo, é interessante o posicionamento de Zavascki de que “Homogeneidade não é sinônimo de igualdade, mas de afinidade. Direitos homogêneos não são direitos iguais, mas similares” 14. Para este autor, é sempre possível identificar neles elementos comuns (núcleo de homogeneidade) e outros elementos peculiares, que os individualizam (margem de 11 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. 2 ed. São Paulo: RT, 2010. P. 28 12 POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. 7 ed. NYC: Aspen Publishers, 2007. P. 613-621 13 STEELE, Jenny; VAN BOOM, Willem H. Mass justice and its challenges. In Mass Justice: challenges of representation and distribution. ______; ______ (coords.). Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2011. P. 1-2. 14 ZAVASCKI, Teori Albino. Op. cit. P. 146. 18 heterogeneidade). Por isto, sustenta que se trata de direitos individuais coletivamente tratados. Elton Venturi também sustenta que se trata da tutela coletiva de direitos individuais, dizendo que estes são considerados indivisíveis apenas no que diz respeito à tutela jurisdicional coletivamente buscada. Entretanto, chama a atenção para o fato de que esta categoria foi concebida para incentivar a justiciabilidade de pretensões que, caso não houvesse a via coletiva, jamais ou dificilmente seriam sequer levadas à apreciação jurisdicional.15 Este é um forte argumento para a existência da categoria dos direitos individuais homogêneos. O posicionamento adotado por este trabalho é que os direitos individuais homogêneos são direitos coletivos e não direitos individuais coletivamente tratados. Eles vão além da soma de pretensões individuais de origem comum. Se não fosse assim, não haveria como admitir a possibilidade de aplicação da fluid recovery prevista no art. 13 do CDC e reverter valores para o Fundo de Direitos Difusos criado pelo art. 13 da LACP. A previsão normativa só pode ser aplicada nos casos em que não ocorreu a habilitação de indivíduos interessados em número compatível com a gravidade do dano, o que desvela a faceta coletiva que o ordenamento conferiu ao instituto. Fredie Didier Jr. e Hermes Zanneti Jr. sustentam esta linha de raciocínio e arrematam a questão de modo preciso, afirmando que “Ao contrário do que se afirma com foros de obviedade, não se trata de direitos acidentalmente coletivos, mas de direitos coletivizados pelo ordenamento para os fins de obter a tutela jurisdicional constitucionalmente adequada e integral”16 Ademais, como também expuseram os professores em seu Curso17, o Supremo Tribunal Federal também parece ter-se afiliado expressamente a essa linha de pensamento no julgamento unânime do RE nº 163.231-SP, que tratava de uma ação coletiva proposta pelo Ministério Público do Estado São Paulo sobre mensalidades escolares. Na ementa, o pleno do STF destacou em ponto específico que 15 VENTURI, Elton. O problema conceitual da tutela coletiva: A proteção dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos segundo o projeto de lei nº 51130-2009. In: Em defesa de um novo sistema de processos coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. Mirna Cianci, Petrônio Calmon e Rita Quartieri (coords.). São Paulo: Saraiva, 2010. P. 194-195. 16 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op cit. P. 85. 17 Ibid. P. 85. 19 “4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas.”18 No ponto 4 da ementa deste julgado de 1997 consta a afirmação categórica de que os Direitos Individuais Homogêneos constituem-se “ subespécie de direitos coletivos”. Tal entendimento parece ser o único constitucionalmente adequado e consentâneo com o desenho institucional desta categoria de direitos no ordenamento nacional. 2.2. TITULARIDADE A titularidade dos direitos individuais homogêneos é uma questão extremamente curiosa. Por um lado, verifica-se que os indivíduos são os titulares dos direitos subjetivos singularmente considerados e poderiam deduzir pretensões individuais em juízo. Entretanto, dada a homogeneidade das questões e a repercussão social causada pelo ilícito, é possível verificar um nítido direito de grupo em toda ação que versa sobre direitos individuais homogêneos. Elton Venturi19 anota que não parece correto afirmar que os direitos individuais homogêneos pertençam às pessoas integrantes de um grupo, pois, para ele, na verdade referem-se a indivíduos que não mantém necessariamente vínculos, entre si, ou com a parte contrária, suficientes para que fossem reunidos elementos para definir estes direitos como metaindividuais. Esta linha de entendimento, sustentada por renomados juristas do país, já foi examinada no ponto anterior, no qual ficou delineado que este trabalho adota posicionamento diverso, sustentando a premissa de que direitos individuais homogêneos são direitos essencialmente coletivos e não direitos individuais tratados coletivamente. 18 Supremo Tribunal Federal. RE 163231, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 26/02/1997, DJ 29-06-2001 PP-00055 EMENT VOL-02037-04 PP-00737 19 VENTURI, Elton. “O problema conceitual da tutela coletiva: A proteção dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos segundo o projeto de lei nº 51130-2009.” In: Em defesa de um novo sistema de processos coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. Mirna Cianci, Petrônio Calmon e Rita Quartieri (coords.). São Paulo: Saraiva, 2010. P. 194 20 É interessante o esclarecimento de Antonio Gidi sobre o tema, sustentando que a homogeneidade dos direitos individuais aqui tratados poderia ser designada com segurança como um conceito relacional. O direito é individual homogêneo somente em relação a um outro direito individual advindo da mesma origem (comum). Dessa forma, só é possível falar em direitos individuais homogeneamente considerados e não em um direito individual homogêneo.20 Sustentando a posição de que os direitos individuais homogêneos são direitos coletivos, concorda-se com Gidi que afirma que os direitos individuais homogêneos tem status de direitos subjetivos e pertencem “a uma comunidade formada de pessoas perfeitamente individualizadas, que também são indeterminadas e determináveis”21. O professor arremata o assunto de modo extremamente claro, afirmando que “Do direito subjetivo portanto, nunca é demais repetir, só há um titular: a comunidade, a coletividade ou a comunidade de vítimas individualmente considerada, conforme seja o direito difuso, coletivo ou individual homogêneo respectivamente. As pessoas que compõem a comunidade ou a coletividade é que são várias e indeterminadas ou indetermináveis; não o titular do direito material em si”22 Deste modo, fica claro que o titular do direito material subjetivo coletivo sempre será grupo, a coletividade. Não há nenhuma razão para diferenciar os direitos individuais homogêneos desta regra geral, por maiores que sejam as peculiaridades que revistam este instituto. 2.3. TUTELA DE SITUAÇÕES JURÍDICAS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEAS NO BRASIL As ações coletivas que versam sobre direitos individuais homogêneos não constituem a única via existente no sistema nacional para tutelar as situações jurídicas individuais homogêneas. Utiliza-se esta expressão por ser mais abrangente e incluir tanto direitos quanto deveres insertos nesta categoria. É possível visualizar deveres individuais homogêneos, quando, por exemplo, um grupo de escolas viola a propriedade intelectual de determinado fotógrafo em seus módulos e apostilas. 20 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência nas ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995. P. 30. Ibid. P. 22. 22 Ibid. P. 23-24. 21 21 Apesar dos deveres de respeito aos direitos do autor serem individuais, é possível verificar o caractere da homogeneidade que possibilita a pretensão coletiva com base na relação existente entre eles. O que se pretende demonstrar é que a tutela de situações jurídicas individuais homogêneas pode ser visualizada em vários mecanismos institucionais do Estado Brasileiro fora do processo jurisdicional e é importante ter isto em mente. Tais situações jurídicas não são tuteláveis exclusivamente por via dos processos judiciais. Mesmo alguns órgãos do executivo podem fazer parte do sistema de tutela deste tipo de situação jurídica. O objetivo é tutelar estas situações da forma mais efetiva para o cidadão, o que implica, por exemplo, na criação de mecanismos administrativos adequados e na coletivização de certas soluções individuais. Mauro Cappelletti, em artigo seminal sobre a tutela coletiva publicado na Itália em 197523, cuja tradução foi veiculada na Revista de Processo em 1977, já demonstrava a percepção de que a busca real era pela efetividade da tutela dos direitos decorrentes de “violações em massa”24, fosse por meios processuais ou não. O italiano buscou possíveis soluções no direito comparado para a resolução de problemas coletivos, tendo catalogado diversas experiências interessantes ao redor do mundo, como, por exemplo, a criação da figura do ombudsman dos consumidores na Suécia, das agências reguladoras nos Estados Unidos da América e do Conselho de Proteção Ambiental em Ghana.25 Cappelletti colocava as soluções extrajudiciais ao lado dos mecanismos processuais para a resolução de demandas coletivas, tentando articulá-las da melhor forma possível em prol da efetividade. Para ele: “Delineia-se, assim, aquilo que a pesquisa comparativa parece indicar como o mais eficaz meio de solução do nosso problema: soluções compostas, articuladas, flexíveis, por si só capazes de dar uma adequada resposta a um problema assim complexo como é aquele da tutela jurídica dos novos, 26 emergentes e vitais interesses coletivos.” É justamente esta articulação entre os possíveis meios de tutela dos direitos de grupo em prol da efetividade que é buscada. Caso o ordenamento jurídico impusesse a via das ações coletivas como único meio de tutelar os direitos 23 CAPPELLETTI, Mauro. Formazioni sociali e interessi di gruppo davanti alla giustizia civile. Rivista di Diritto Processuale, Padova, n. 30, p. 361-402, 1975. 24 CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Traduzido por Nelson Campos. Revista de processo, São Paulo, n. 05, 1977. P. 130. 25 Ibid. P. 141 e 142. 26 Ibid. P. 143. 22 de grupo, o sistema seria altamente ineficiente, notadamente nos casos em que os danos sofridos por cada vítima singular fossem pequenos. Haveria uma violação do direito fundamental de acesso à justiça, pois o Estado não estaria conferindo ao cidadão o meio adequado para fazer valer o seu direito. No Brasil, um importante mecanismo institucional que visa tutelar situações jurídicas individuais homogêneas são as agências reguladoras, como a ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar e a ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações. Existem, atualmente, dez agências reguladoras no país. Todas foram implantadas entre dezembro de 1996 e setembro de 200127, durante a gestão do Presidente Fernando Henrique Cardoso e sua inspiração foram as agências norte-americanas, como a FDA – Food and Drug Administration. As agências reguladoras foram criadas para fiscalizar entidades privadas que prestam serviços públicos, como, por exemplo, as empresas concessionárias de energia elétrica e telefonia. Além de exercerem a fiscalização e o controle de qualidade dos serviços prestados, estas agências também foram incumbidas de estabelecer diversas regras para o setor. Há um processo contínuo de fortalecimento institucional destas agências no país. Atualmente, a população já tem nelas um grande referencial para a resolução de suas demandas, destacando-se nos últimos anos a atuação da ANS em relação às operadoras e seguradoras de plano de saúde e da ANATEL em relação às prestadoras de serviços de telefonia. Na estrutura do Estado Brasileiro, estas autarquias exercem um importante papel na tutela de situações jurídicas individuais homogêneas. Além da fiscalização, muitas delas intermedeiam a resolução de conflitos entre as empresas concessionárias e o consumidor. Muitas vezes, estes mecanismos são suficientes para compor os conflitos. Tais soluções contribuem, tanto para evitar a proliferação de demandas judiciais desnecessárias, quanto para permitir a solução de pequenos problemas do cidadão, que, pelo valor ou importância diminuta, não seriam judicializados, porém permaneceria a insatisfação e a litigiosidade reprimida. 27 BRASIL. Estrutura do Estado: Agências Reguladoras. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/sobre/o-brasil/estrutura/agencias-reguladoras/>. Acesso em 10 mar 2013. Neste site consta a relação e descrição de todas as agências reguladoras brasileiras. 23 Exemplo concreto desta atuação na composição de conflitos por parte das agências é a solução de demandas por corriqueiros erros nas cobranças de contas telefônicas com a intervenção da ANATEL. As reclamações podem ser feitas perante a agência por telefone ou mesmo por intermédio da internet. As operadoras tem prazo para responder aos cidadãos e estes são cumpridos rigorosamente, diante da possibilidade de sanções administrativas por parte da agência, como a imposição de multas. Além de intermediar os conflitos entre os consumidores e as prestadoras de serviço, que muitas vezes estariam caracterizados como direitos individuais homogêneos, as agências reguladores também contribuem para que sejam cumpridos deveres individuais homogêneos por parte das empresas. Por exemplo, todo posto de gasolina está submetido à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e sua atuação garante ao consumidor o "teste da proveta", que verifica o teor de etanol na gasolina. A realização deste teste, cuja obrigatoriedade foi instituída pela Resolução ANP nº 9, de 7 de março de 2007, constitui um dever individual homogêneo de todos os postos de combustível. A atuação da ANS também merece destaque na tutela de situações jurídicas individuais homogêneas. Além de auxiliar nos direitos individuais dos consumidores, a exemplo da solução de negativas de cobertura por parte das operadoras e seguradoras, esta agência também toma medidas para tutelar direitos coletivos, inclusive de quem ainda nem mesmo faz parte do rol de consumidores, quando ocorre, por exemplo, a suspensão da comercialização de planos de saúde por irregularidades reiteradas28. Além das agências reguladoras, o PROCON - Programa de Proteção e Defesa do Consumidor, que integra o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, por força do art. 105 do CDC, também contribui para a tutela de situações jurídicas individuais homogêneas. Nos Estados e Municípios em que ele foi instituído, o cidadão muitas vezes encontra em sua atuação a solução de muitos de seus problemas nas relações de consumo. 28 Exemplo desta atuação foi noticiado pelo jornal Folha de São Paulo na edição de 10.07.2012 na reportagem “ANS suspende a comercialização de 268 planos de saúde”. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1117973-ans-suspende-a-comercializacao-de-268-planos-desaude.shtml>. Acesso em 20 fev 2013. 24 Além dos mecanismos administrativos, também é possível visualizar mecanismo judiciais, que não as ações coletivas, para a tutela de situações jurídicas individuais homogêneas. Algumas destas soluções, que partem de processos individuais, são amplamente conhecidas e utilizadas no Brasil. Entretanto, raramente são abordadas pela doutrina sobre o enfoque de constituírem mecanismos para a solução de demandas coletivas. A instituição do procedimento para julgamento uniforme de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça pela Lei nº 11.672, de 8 de maio de 2008, que acresceu o art. 543-C ao CPC, é um dos exemplos mais contundentes de tutela judicial de situações jurídicas individuais homogêneas fora do campo das ações coletivas. Este procedimento viabilizou, no âmbito do STJ, o julgamento em massa de recursos especiais que tratem da mesma questão de direito. Evitam-se gastos desnecessários de tempo e de verba para julgar individualmente cada um destes recursos, que, por um imperativo de coerência, deveriam ser julgados de forma uniforme. Este procedimento contribui em muito para desafogar o Poder Judiciário. Entretanto, deve ser executado com grande cautela, sob as orientações das normas gerais do processo civil coletivo. É preciso ter a consciência de que, no julgamento de recursos especiais repetitivos, na realidade estão sendo tutelados direitos individuais homogêneos. Por isto, deve ser respeitado o princípio do devido processo legal coletivo29, sem descuidar de nenhum de seus consectários, como o exame da legitimidade e da notificação adequados. A prova de que o procedimento do art. 543-C do CPC tutela direitos individuais homogêneos é que, dificilmente, uma ação coletiva que verse sobre um assunto já decidido pelo STJ neste procedimento seria julgada em sentido diverso. Por exemplo, no julgamento do Resp 1199782/PR30 por este procedimento, o STJ consolidou entendimento de que há responsabilidade civil das instituições bancárias por inclusão indevida do nome de consumidores em cadastros de proteção ao 29 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. 8 ed. Vol. 4. Salvador: JusPODIVM, 2013. P. 115 e ss contém excelente análise sobre este princípio. 30 REsp 1199782/PR, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 24/08/2011, DJe 12/09/2011. Trecho relevante da ementa “1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: As instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos causados por fraudes ou delitos praticados por terceiros - como, por exemplo, abertura de conta-corrente ou recebimento de empréstimos mediante fraude ou utilização de documentos falsos -, porquanto tal responsabilidade decorre do risco do empreendimento, caracterizando-se como fortuito interno.”. 25 crédito, em decorrência de fraude praticada por terceiros. Tal matéria também poderia ter sido veiculada como pretensão de uma ação civil pública. A instituição de súmulas nos tribunais é outro mecanismo judicial que contribui para a tutela de situações jurídicas individuais homogêneas. Uma vez que seja fixada uma tese abstrata no âmbito daquele tribunal, por meio da súmula, ela deve orientar a resolução dos conflitos de todo indivíduo que esteja enquadrado na mesma situação. Há que se falar ainda, especificamente, das súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal criadas pela EC 45/2004. Os contornos entre as antigas súmulas do STF e as súmulas vinculantes ainda são imprecisos na doutrina. Entretanto, é interessante o posicionamento de Marinoni, sustentando com acerto que a “real diferença entre as súmulas tradicionais e as súmulas vinculantes está no fato de apenas a súmula vinculante se dirigir contra a Administração Pública e abrir oportunidade à reclamação – contra atos administrativos e decisões judiciais”.31 Como último exemplo de mecanismo que também pode tutelar situações jurídicas individuais homogêneas, está o respeito aos precedentes32. Esta tese ainda permanece controversa, porém vem ganhando cada vez mais força no direito brasileiro e sua aceitação parece ser a tendência. Com o respeito aos precedentes, quem estiver enquadrado em uma situação que já foi objeto de exame e decisão por um tribunal, terá sólidas expectativas de direito. O respeito aos precedentes garante a segurança do cidadão e a manutenção da coerência da ordem jurídica. Deste modo, restou evidenciado que existem múltiplas formas de tutelar situações jurídicas individuais homogêneas e as ações coletivas constituem apenas uma delas. Apesar de este trabalho ter por objeto o exame de um meio específico de execução de ações coletivas sobre direitos individuais homogêneos, é importante esclarecer que a verdadeira busca do Direito é pela efetividade. Certamente, as ações coletivas prestam uma enorme contribuição nesta seara, mas, na reflexão do jurista, é importante ter em mente que o sistema necessita da articulação de variados mecanismos flexíveis para a efetiva tutela dos direitos, individuais ou coletivos, que é o que realmente interessa ao cidadão. 31 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: RT, 2010. P. 487 Remete-se o leitor para o exame aprofundado do tema em MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: RT, 2010. 32 26 3. ASPECTOS PROCESSUAIS GERAIS DOS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS NO MICROSSISTEMA DA TUTELA COLETIVA Neste capítulo, serão abordados elementos gerais da tutela processual coletiva dos direitos individuais homogêneos. Esta categoria de direitos tem o seu delineamento legislativo construído basicamente no Código de Defesa do Consumidor e na Lei de Ação Civil Pública. Alguns aspectos processuais relevantes também podem ser extraídos de outros diplomas normativos, a exemplo da Lei de Ação Popular. A tutela coletiva deve ser orientada sempre pela Constituição, em prol da efetivação dos direitos fundamentais, sendo nitidamente vocacionada para a ampliação do acesso à justiça e concretização do devido processo legal. A percepção da existência dos direitos coletivos rompeu com o paradigma individualista do Direito. Coletividades passaram a ser consideradas como possíveis sujeitos de direito. Na evolução da cultura jurídica, percebeu-se que algumas pretensões, como a garantia de um meio-ambiente equilibrado, não pareciam caber na esfera de titularidade de ninguém em específico. Daí a necessidade da criação da categoria dos direitos de grupo. A tutela individual, desenhada para garantir os direitos de pessoas determinadas, mostrou-se insuficiente para estes novos anseios. Por isso, “foi necessário não só rearticular conceitos e posturas pretéritas, mas também criar novas soluções e vias alternativas, ainda que abrindo mão de dogmas”.33 A tutela processual coletiva de direitos no Brasil foi significativamente ampliada a partir do meado da década de 1980. Anteriormente, existiam apenas tímidas previsões de tutela coletiva, como a Lei de Ação Popular de 1965, parcamente utilizada. Com a introdução da Ação Civil Pública em 1985 e os incrementos trazidos pelo Código de Defesa do Consumidor em 1990, ampliou-se significativamente o âmbito de aplicação deste tipo e tutela. A classe dos direitos individuais homogêneos foi introduzia neste contexto. Para a harmonização das diversas normas materiais e processuais pertinentes à tutela coletiva, utiliza-se a ideia de Rodrigo Mazzei de que é possível 33 MAZZEI, Rodrigo Reis. A ação popular e o microssistema da tutela coletiva. In: Ação popular aspectos relevantes e controvertidos. Luiz Manoel Gomes Jr e Ronaldo Fenelon Santos Filho (coords.). São Paulo: RCS, 2006. P. 400. 27 visualizar a existência de um ‘microssistema da tutela coletiva’ no Direito Nacional. Apesar de outros autores terem proposto estruturas parecidas, a construção de Mazzei merece destaque, pois elenca a Lei de Ação Civil Pública e o Código do Consumidor como tendo maior relevância, mas sustenta que outros diplomas, em rol aberto, como a Lei de Ação Popular, também compõem o microssistema. 34 Desse modo, os aspectos processuais gerais do tratamento dos direitos individuais homogêneos serão apresentados sempre com o recurso ao microssistema da tutela coletiva como fonte normativa do processo coletivo pátrio. Reconhecem-se os limites da construção jurídica de microssistema proposta originalmente pelo italiano Natalino Irti no contexto da descodificação do direito civil.35 O movimento de recodificação, que é observável no direito civil contemporâneo e objetiva “reinserir em um corpo normativo mais ou menos coeso, princípios e regras novos que se dispersaram com o evoluir da sociedade”36, também pode ser visualizado no processo coletivo. O próprio Rodrigo Mazzei explica que o recurso ao microssistema da tutela coletiva deve ser empregado como uma solução para o tempo presente, apenas até que se edite um Código de Processo Coletivo no país.37 Feitas estas considerações, passa-se à análise de alguns aspectos processuais gerais dos direitos individuais homogêneos no microssistema. 3.1. COMPETÊNCIA A competência é um dos temas mais sensíveis da disciplina do processo coletivo. O princípio da competência adequada tem aplicação vigorosa no âmbito coletivo, notadamente em razão da pluralidade de possíveis foros competentes. A matéria é regulada pelo art. 2º da LACP e art. 93 do CDC. A soma destes dois artigos define a sistemática de competência das ações coletivas. As regras sobre competência são aplicáveis a todas as espécies de direitos coletivos, indistintamente, inclusive às ações que envolvem direitos 34 MAZZEI, Rodrigo Reis. Op cit. P. 400. Por todos: Capítulo 7 ‘Natalino Irti e a era da descodificação: uma fase superada pela realidade’ de DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação do direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 254-258. 36 Idem. P. 260 37 MAZZEI, Rodrigo Reis. Op cit. P. 413. Sobre o tema, remete-se ao capitulo 1 ‘A codificação processual coletiva no Brasil’ de GIDI, Antonio. Rumo a um código de processo civil coletivo. A codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 7-40. 35 28 individuais homogêneos. Para este fim, o sistema processual coletivo brasileiro distingue as ações coletivas locais, regionais e nacionais. O art. 93 do CDC fixa no inciso I a competência da Justiça Estadual do foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano para ações de âmbito local. O inciso II deste artigo fixa a competência do foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente. Este artigo ressalva expressamente a Competência da Justiça Federal. A regra prevenção da competência na tutela coletiva é definida pelo parágrafo único do art. 2º da LACP, fixando-a no juízo em que a ação tiver sido proposta primeiro. Os limites das definições de ações locais e regionais são incertos. Em caso de dúvida, parece correto atribuir a competência ao foro da capital do Estado em detrimentos das comarcas do interior, em virtude da facilidade de transporte e de contratação de advogados no grande centro. O problema enfrentado na tutela coletiva é que, na maioria das vezes, variados serão os foros competentes. Uma ação de âmbito nacional pode ser julgada em qualquer capital do país ou no Distrito Federal. Considerando que juízos de comarcas tão distantes como Rio Branco, Porto Alegre e Brasília são competentes em simultâneo, é preciso pensar em um princípio da competência adequada. Tomando por base as peculiaridades do caso concreto, em exame de ponderação deve ser definida a competência mais adequada dentre as várias possíveis. Por exemplo, em uma ação coletiva de responsabilidade por vício de produto vendido nos Estados da Bahia, Sergipe e Alagoas, caso fique evidenciado que noventa por cento dos consumidores afetados tem domicílio em Aracaju, o correto seria a atribuição de competência para o foro da capital sergipana. 3.2. LEGITIMIDADE NA FASE COGNITIVA A legitimidade na fase cognitiva das ações que envolvem direitos individuais homogêneos segue a sistemática geral das ações coletivas. A lei confere legitimidade extraordinária ad causam concorrente aos entes previstos no art. 82 do CDC e no art. 5º da LACP. Variados serão os legitimados em tese para propositura de ações na defesa dos direitos de grupo. 29 Ocorre que um dos corolários da garantia judicial do devido processo legal é o controle judicial da legitimação (representação) adequada. Sequer é possível falar em ‘representação inadequada’, pois seria uma contradição em termos. Qualquer representante dos direitos de grupo é adequado por definição, caso contrário não há representação legítima. A legitimidade adequada faz parte do conteúdo do devido processo legal coletivo38. Diante dos múltiplos legitimados em abstrato para a propositura das ações coletivas, deve haver o controle judicial desta legitimidade, para garantir a correta condução do processo e a efetiva proteção dos direitos do grupo substituído. A ação coletiva deve ter pertinência com o âmbito de atuação do ente legitimado. Por exemplo, a Associação Brasileira de Enologia é formalmente legitimada para a tutela coletiva (art. 82, IV), porém seria absurdo conceber esta entidade como representante legítima dos interesses de um grupo de consumidores lesados pela incorreção nas balanças de uma rede de açougues. Não existe legitimado universal para qualquer tutela coletiva, nem mesmo o Ministério Público. O controle da legitimidade deve ser feito diante das peculiaridades do caso concreto. Em face da importância deste tipo de tutela, a consequência jurídica da declaração de ilegitimidade de parte nas ações coletivas não é a resolução do processo sem exame do mérito. O §3º do art. 5º, da Lei nº 7347/1985 prevê que em “caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa”. A consequência da declaração da ilegitimidade ativa no processo coletivo deve ser a assunção da ação por outro ente que seja considerado legitimado adequado. 3.3. REFLEXÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DE CONCILIAÇÃO Apesar de o tema ser cercado de controvérsias, geralmente admite-se a possibilidade de resolução de ações coletivas por transação. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, no Resp 299.400/RJ, decidiu, por maioria, admitir a 38 GIDI, Antonio. Rumo a um código de processo civil coletivo. A codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 78. 30 possibilidade de transação envolvendo direitos difusos em ação coletiva proposta pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro39. A admissibilidade da transação acontece a despeito do disposto no art. 841 do Código Civil40, em face do caráter indisponível dos direitos coletivos. Entretanto, não há qualquer razão para que deixe de ser aplicado o regramento da transação neste tipo de procedimento.41 A Lei de Ação Civil Pública, modificada pelo Código de Defesa do Consumidor, prevê no art. 5º, § 6º, a possibilidade de os órgãos públicos legitimados para a tutela coletiva poderem tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá a eficácia de título executivo extrajudicial. O instituto, conhecido por compromisso de ajustamento de conduta, tem mostrado evidente utilidade prática. Por meio dele, é possível regular o modo de proceder à reparação dos direitos coletivos (em sentido lato), o que viabiliza múltiplas possibilidades de acordo. Apenas os órgãos públicos são legitimados para a realização dos compromissos de ajustamento de conduta; entretanto deve-se ter em mente que, mesmo nas ações coletivas em que o Ministério Público não atua como parte, sua intervenção como custos legis é obrigatória por força do art. 5º, §1º da LACP. Desse modo, nas ações coletivas conduzidas por associações privadas, é possível firmar negócio jurídico processual com a intervenção do parquet. Com a consolidação do processo civil coletivo no país, a tendência parece ser a ampliação da possibilidade de acordos na tutela coletiva. Apesar da existência de precedentes em relação a esta possibilidade quanto aos direitos transindividuais, os tribunais superiores ainda não enfrentaram a questão da transação envolvendo direitos individuais homogêneos. Sustenta-se que não existe qualquer razão para a sua diferenciação. A hipótese carece de extremada cautela, em face das possíveis pretensões executórias individuais, porém deve ser admitida a conciliação em ações que envolvam direitos individuais homogêneos, principalmente quando estes acordos forem controlados pelo Ministério Público e pelo Judiciário. 39 REsp 299.400/RJ, Rel. Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, Rel. p/ Acórdão Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/06/2006, DJ 02/08/2006, p. 229. 40 Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação. 41 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. cit. P. 339. 31 3.4. SENTENÇA GENÉRICA A sentença das ações que envolvem direitos individuais homogêneos apresenta significativas diferenças em relação às decisões quanto à defesa de direitos transindividuais. Em caso de procedência, o juiz proferirá sentença genérica que reconhece apenas o dever de indenizar. O propósito geral da tutela de direitos individuais homogêneos é fixar uma tese jurídica que abarque todos os membros do grupo substituído. Para Teori Albino Zavascki: “Ela fará juízo apenas sobre o núcleo de homogeneidade dos direitos afirmados na inicial, ou seja, apenas sobre três dos cincos principais elementos da relação jurídica que envolvem os direitos subjetivos objeto da controvérsia: o an debeatur (=a existência da obrigação do devedor), o quis debeat(=a identidade do sujeito passivo da obrigação) e o quid debeatur (=a natureza da prestação devida). Tudo o mais (o cui debeatur=quem é o titular do direito e o quantum debeatur= qual é a prestação a que especificamente faz jus) é tema a ser enfrentado e decidido por outra sentença, proferida em outra ação, a ação de cumprimento.”42 Este tipo de decisão, previsto no art. 95 do CDC, é fruto de exceção à regra geral prevista no art. 286 do CPC de que o pedido deve ser certo. O pedido deste tipo de ação em regra é genérico, pois é o requerimento apenas da fixação de uma tese jurídica que aproveite aos membros do grupo. Por este motivo, o momento de liquidação e execução das sentenças genéricas é cercado de peculiaridades. As liquidações podem ser feitas de forma individual ou coletiva, como será explicado no primeiro item do próximo capítulo. Com a evolução do direito processual coletivo brasileiro, já é possível verificar a possibilidade de a sentença nas ações que envolvem direitos individuais homogêneos ser líquida. Não há razão para que, nas situações em que isto for possível, o juiz profira uma sentença genérica apenas para atender à literalidade do art. 95 do CDC.43 Existem casos em que é possível que o magistrado identifique individualmente os interessados, a partir de algum banco de dados, e os danos sejam uniformes. Desta forma, não haverá necessidade de liquidação da sentença que envolva direitos individuais homogêneos. 42 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo - Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 4 ed. São Paulo: RT, 2009. P. 153-154. 43 GIDI, Antonio. Op. Cit. P. 158. 32 3.5. REGIME JURÍDICO DA COISA JULGADA COLETIVA O regime jurídico da coisa julgada nas ações que versam sobre direitos individuais homogêneos é descrito no inciso III do art. 103 do CDC: “III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81”. Apesar do emprego da expressão erga omnes, o real alcance subjetivo da coisa julgada nestes casos ocorre em relação aos membros do grupo substituído. As pessoas que não fazem parte da coletividade prejudicada não são afetadas pelo comando jurisdicional. A maior parte dos doutrinadores sustenta a aplicação literal desta previsão, que não menciona a exceção da coisa julgada no caso de insuficiência ou falta de provas, prevista no inciso I deste artigo. Neste trabalho, sustenta-se a opinião da corrente minoritária em relação ao modo de produção da coisa julgada, no sentido de que em relação aos direitos individuais homogêneos, quando a ação coletiva “for julgada procedente ou improcedente por ausência de direito, haverá coisa julgada no âmbito coletivo; se julgada improcedente por falta de provas, não haverá coisa julgada no âmbito coletivo”44. Esta parece ser a solução que mais se harmoniza com o microssistema brasileiro da tutela coletiva. 3.6. PRESCRIÇÃO A prescrição das ações coletivas para a defesa de direitos individuais homogêneos é um tema intrigante. Suscita intensas polêmicas que, muitas vezes, baseiam-se em equívocos ao diferenciar a prescrição dos direitos individuais envolvidos e o direito coletivo tratado na ação coletiva por direitos individuais homogêneos. Como se demonstrou, o objetivo deste tipo de ação coletiva é a fixação de uma tese jurídica que contemple todos os membros do grupo, que estão unidos em razão da origem comum de seus direitos. A tutela de direitos individuais 44 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit. P. 391 33 homogêneos é uma ficção legislativa45 para tratar de forma mais eficaz estes direitos. Neste ponto, é importante o esclarecimento de Agnelo Amorim Filho, 46 em artigo clássico sobre o tema, que asseverou que a prescrição ataca a pretensão, que é o poder de exigir de outrem uma prestação. Os direitos subjetivos são compostos por uma faculdade de agir, que é a licitude e o poder de exigir, que é a pretensão. Agnelo deixou claro que o instituto da prescrição ataca a pretensão e não o direito de ação, como sustentavam importantes setores da doutrina. Nas conclusões do paraibano, ficou claro que só se fala de prescrição das ações de forma indireta, isto é, em virtude da prescrição da pretensão a que correspondem. Deste modo, é possível concluir que os prazo prescricionais estão sempre vinculados ao direito material. Neste mesmo sentido, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., comentando sobre a prescrição da tutela coletiva de direitos individuais homogêneos, afirmam que “é relevante notar que este prazo é vinculado ao direito material tutelado, não existe no ordenamento brasileiro, em princípio, nenhum prazo prescricional puramente processual”.47 Torna-se evidente que o prazo prescricional das ações coletivas sobre direitos individuais homogêneos é o mesmo prazo das ações individuais, haja vista que só falamos de prazo prescricional das ações de forma indireta, pois a prescrição verdadeiramente atinge as pretensões dos direitos subjetivos nelas versados. Não há nenhuma boa razão para diferenciar estes prazos. Logo, a prescrição da tutela de direitos individuais homogêneos deve ser igual à prescrição das ações individuais que poderiam ser propostas. O Superior Tribunal de Justiça apreciou esta questão no ano de 2010, em um julgamento que sofreu fortes críticas de vários setores da doutrina do processo coletivo. No REsp 1070896/SC, oriundo da segunda seção do STJ, relatado pelo Ministro Luís Felipe Salomão, julgado em 14/04/2010, cujo acórdão foi publicado no DJe 04/08/2010, foi aplicado por analogia o prazo quinquenal de prescrição da ação popular, fixado no art. 21 da Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965. A decisão de 45 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. cit. P. 309. AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Processual Civil, v. 3, p. 95-132, jan./jun. 1961. 47 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit. P. 310. 46 34 aplicar o prazo de cinco anos em uma ação coletiva, cujas pretensões individuais eram de vinte anos, supostamente estaria baseada no recurso ao microssistema da tutela coletiva. O posicionamento, data venia, é insustentável. Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr se pronunciaram em relação ao julgado, que tratava de expurgos inflacionários, afirmando que “produziu o STJ uma decisão absurda e, por isso, lamentável: ao impedir a tutela coletiva, estimulou o prosseguimento [...] ou a propositura de processos individuais, pois as pretensões individuais, no caso, não estão prescritas.”48 A decisão, de fato, não tem sentido. Diante da proliferação de milhares de ações individuais questionando as diferenças por expurgos inflacionários no país, a ação coletiva deveria ter sido admitida e julgada, pois seria extremamente útil para desafogar diversos órgãos judiciais e garantir ao cidadão uma prestação jurisdicional mais célere e com a minimização dos riscos de decisões contraditórias. Feitas esta considerações, sustenta-se, portanto, que a prescrição das ações para a tutela de direitos individuais homogêneos é a mesma das ações individuais. Não há motivo para diferenciação, salvo se ocorrer alguma hipótese de impedimento, suspensão ou interrupção do prazo prescricional. Parece que, tecnicamente, somente nestes casos é possível afirmar que ações individuais sobre o mesmo tema poderão ser admitidas depois da prescrição da ação coletiva para a tutela de direitos individuais homogêneos. 3.7. AÇÕES PSEUDOCOLETIVAS As ações coletivas para a defesa de direitos individuais homogêneos exigem a verificação cautelosa de seu objeto por parte do magistrado no exame de admissibilidade. Por vezes, é difícil distinguir as fronteiras entre a simples soma de ações individuais, que geraria um litisconsórcio ativo, da existência real de direitos individuais homogêneos, que abre a possibilidade da tutela por ação coletiva. Luiz Paulo Araújo Filho sustenta a existência das chamadas ações pseudocoletivas. Para ele, a mera soma de ações individuais não configura uma ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos. Este tipo de ação 48 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit. P. 310. 35 coletiva apenas está caracterizado quando “a pretensão do legitimado concentra-se no acolhimento de uma tese jurídica geral, referente a determinados fatos que pode aproveitar a muitas pessoas”.49 De fato, são duas situações absolutamente diversas. Sua confusão pode ensejar sérias consequências processuais, conferindo uma tutela inadequada aos direitos. Caso ações pseudocoletivas sejam admitidas utilizando-se do procedimento das ações coletivas sobre direitos individuais homogêneos, o processo terá uma série de equívocos. Em primeiro lugar, não haverá um legitimado adequado para representar o grupo, uma vez que não será possível sequer visualizar uma coletividade no polo ativo da ação. Se as ações são estritamente individuais, os legitimados corretos seriam os próprios indivíduos. Segundo, a publicação do edital prevista no art. 94 do CDC claramente seria insuficiente, pois os reais interessados dificilmente tomariam conhecimento da existência da ação por um simples edital publicado no Diário Oficial. Por fim, o regime da coisa julgada aplicável à ação coletiva para direitos individuais homogêneos é completamente inadequado para a veiculação de pretensões individuais. Fredie Didier e Hermes Zaneti, ao expor sobre a questão das ações pseudocoletivas, apontam o problema que é “identificar pretensões veiculadas de forma conjunta, ora com conteúdo metaindividual, ora com conteúdo meramente individual”.50 Apontam, acertadamente, como possível solução, o art. 10, 10.5 do Anteprojeto de Antonio Gidi, que elenca como um dos poderes do Juiz: 10.5 O juiz poderá limitar o objeto da ação coletiva à parte da controvérsia que possa ser julgada na forma coletiva, deixando as questões que não são comuns ao grupo para serem decididas em ações individuais ou em uma fase posterior do próprio processo coletivo Em decisão fundamentada, o juiz informará as questões que farão parte do processo coletivo e as que serão deixadas para ações individuais ou para a fase posterior do processo coletivo.51 Sobre o objeto do processo coletivo, Gidi sustenta que uma inovação interessante trazida pelo seu anteprojeto “é o rompimento com a vetusta teoria de que o objeto do processo é rigidamente delimitado pelo pedido feito pelo autor em sua primeira manifestação nos autos, quando a controvérsia e suas consequências 49 ARAÚJO FILHO, Luiza Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro: Forense, 2000. P. 114. 50 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit. P. 99. 51 GIDI, Antonio. “Código de processo civil coletivo: um modelo para países de direito escrito”. Revista de Processo, v. 111. São Paulo: RT, 2003. p. 199. 36 estão imaturas”.52 De fato, observando o devido processo legal, é possível flexibilizar o objeto do processo, em prol de uma melhor prestação jurisdicional para o cidadão. A proposta de atribuição de poder ao juiz contida no item 10.5 do anteprojeto é uma boa solução para o problema das ações pseudocoletivas. O magistrado poderá separar o que deve ser aproveitado como ação coletiva do que deveria ser considerado pretensão individual. É interessante notar o cuidado do anteprojeto ao dispor que a questões também podem ser deixadas para “fase posterior do próprio processo coletivo”, já que, por vezes, algumas questões colocadas na inicial sobre determinados indivíduos podem integrar a fase de liquidação ou execução da ação coletiva. Nem tudo será veiculado por ações individuais autônomas e é importante separar o que vai ser objeto de cognição em cada momento processual. 52 GIDI, Antonio. Rumo a um código de processo civil coletivo. A codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 46 37 4. LIQUIDAÇÃO E EXECUÇÃO DAS SENTENÇAS QUE ENVOLVEM DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS A liquidação e a execução das ações coletivas que envolvem direitos individuais homogêneos assumem diversas peculiaridades a depender do caso que esteja sendo tratado, principalmente diante das características da sentença condenatória genérica, já analisada neste trabalho. Não há um procedimento único para a sua realização e múltiplas são as questões que devem ser avaliadas durante a condução da liquidação e execução da sentença deste tipo de ação. É interessante a percepção de Érica Barbosa e Silva, que dissertando sobre a defesa de direitos individuais homogêneos, asseverou que “grandes inovações foram trazidas pelo CDC, com dispositivos que regularam a matéria revelando franca posição vanguardista. A polêmica sobre diversos institutos decorre, sobretudo, desse seu caráter inovador”53. Realmente, mesmo após mais de vinte anos de vigência do CDC, as inovações introduzidas por este código ainda fascinam os juristas, suscitando variadas dúvidas que persistem mesmo após a certificação dos direitos. Por vezes, as etapas de liquidação e execução serão as mais difíceis de todo o processo. Após a prolação da sentença que envolve direitos individuais homogêneos, surge uma nova série de questões que devem ser enfrentadas no caminho da efetivação do comando jurisdicional para o plano da vida. Inicialmente, é preciso atentar para o fato de que a reforma legislativa promovida pelas Leis nº 11.235 de 2005 e nº 11.382 de 2006 modificou substancialmente a sistemática de liquidação e execução do direito processual civil brasileiro.54 Antes, a regra era a existência de um processo autônomo de liquidação, existindo basicamente três espécies: (i) por artigos, (ii) por arbitramento e (iii) a liquidação das sentenças coletivas. Além do processo autônomo, em certas situações existia a liquidação incidental, cuja denominação já revela que nesta 53 SILVA, Érica Barbosa e. Cumprimento de Sentença em Ações Coletivas. São Paulo: Atlas, 2009. P. 88. Esta obra foi originada como dissertação de mestrado da autora, sob a orientação do professor Kazuo Watanabe e defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Trata-se de vigorosa reflexão sobre a execução das ações coletivas em geral, não se limitando aos direitos individuais homogêneos e sua leitura é recomendada para os interessados no tema. 54 Sobre o tema, ver BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Observações sobre a estrutura e a terminologia do CPC após as reformas das leis nº 11.235/2005 e nº 11.382/2006. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 11, n. 41, p. 19-31, 2008. 38 modalidade, a liquidação era realizada no bojo do próprio processo, por meio de incidente processual55. Depois da reforma processual, a regra geral é que a liquidação e a execução sejam apenas fases do mesmo processo. Com a introdução da Lei nº 11.235/2005, não resta dúvida que o processo tornou-se sincrético. Não há quaisquer intervalos entre o processo de conhecimento, liquidação e execução. O processo foi unificado e atende aos variados propósitos de certificação do direito, liquidação e efetivação material do comando judicial. Ao que parece, a intenção da lei era a unificação das fases processuais em todos os processos. Entretanto, ainda subsistem no direito brasileiro hipóteses de processos autônomo de liquidação e execução, bem como permanece no sistema a liquidação incidental. No que concerne às ações que envolvem direitos individuais homogêneos, as sentenças genéricas, permitidas pelo art. 95 do Código de Defesa do Consumidor, fogem à regra geral instituída pelo art. 286 do CPC de que todo pedido deve ser certo ou determinado. Neste tipo de ação, a regra é oposta. A maioria destas ações coletivas culminará na prolação de sentenças genéricas, que simplesmente fixam uma tese jurídica para um grupo de pessoas que estão ligadas pela origem comum de seus direitos. Depois da sentença, a atividade cognitiva do juízo ainda poderá ser intensa. Deverão ser quantificados os danos individuais e decidido se eventuais requerentes fazem de fato parte do grupo de vítimas beneficiados pela ação. Na sequência da sentença genérica, há a individualização da mesma. Marcelo Abelha e Rodrigo Klippel comentam que caberá a cada membro pertencente ao grupo demonstrar o nexo entre a situação genericamente decidia e a sua própria situação. “Essa ‘individualização’ é que recebe o nome de liquidação. Trata-se de liquidação ‘imprópria’, porque foge, sensivelmente, à regra do incidente de liquidação do art. 475-A e ss. do CPC...”56. 55 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. 8 ed. Vol. 4. Salvador: JusPODIVM, 2013. P 404-405. 56 RODRIGUES, Marcelo Abelha; KLIPPEL, Rodrigo. Comentários à tutela coletiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P. 146. No mesmo sentido, Teori Albino Zavascki sustenta que o grau de generalidade da chamada sentença genérica é muito mais acentuado do que o das sentenças ilíquidas do art. 475-A do CPC. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo - Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 4 ed. São Paulo: RT, 2009. P. 154. 39 Poder-se-ia argumentar que o volume de cognição, após a certificação de direitos individuais homogêneos, é tão grande que torna inútil este tipo de ação coletiva. O argumento, entretanto, não procede. A utilidade das ações que envolvem direitos individuais homogêneos reside justamente na fixação da tese jurídica para todas as vítimas do grupo, fazendo com que a questão seja decidida com a força preclusiva da coisa julgada. Uma ação de âmbito nacional, por exemplo, tem o potencial de evitar milhares de ações individuais sobre o mesmo objeto. Os debates sobre a questão jurídica de fundo, que seriam repetidos por todo o país com as possíveis instruções probatórias que os acompanham, são evitados. Na liquidação da ação coletiva, somente caberá ao magistrado quantificar o dano individual e julgar se o requerente fazia parte do grupo afetado ou não, o que é nitidamente mais fácil do que decidir toda a questão jurídica de fundo. A liquidação e a execução de direitos individuais homogêneos são regidas pelos artigos 97 a 100 do Código de Defesa do Consumidor. Elas divergem sobremodo das regras do processo individual e mesmo das regras atinentes às ações coletivas que veiculam pretensões de direitos difusos ou coletivos em sentido estrito. As lacunas da sentença genérica, já explicadas em ponto próprio, são bem sintetizadas por Teori Albino Zavascki: “Ela fará juízo apenas sobre o núcleo de homogeneidade dos direitos afirmados na inicial, ou seja, apenas sobre três dos cincos principais elementos da relação jurídica que envolvem os direitos subjetivos objeto da controvérsia: o an debeatur (=a existência da obrigação do devedor), o quis debeat(=a identidade do sujeito passivo da obrigação) e o quid debeatur (=a natureza da prestação devida). Tudo o mais (o cui debeatur=quem é o titular do direito e o quantum debeatur= qual é a prestação a que especificamente faz jus) é tema a ser enfrentado e decidido por outra sentença, proferida em outra ação, a ação de cumprimento.”57 Sendo assim, na liquidação e execução da sentença genérica, será necessário, na maioria das vezes, definir quem foi efetivamente vítima do evento danoso (sentenças genéricas são subjetivamente ilíquidas58) e quanto é devido para cada pessoa. É importante salientar que, com a evolução do processo coletivo brasileiro, atualmente é possível visualizar alguns casos em que a configuração de 57 ZAVASCKI, Teori Albino. Op. Cit. P. 153-154. Cf. ARAÚJO FILHO, Luiza Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro: Forense, 2000. P. 123. 58 40 sentenças em ações que envolvem direitos individuais homogêneos apresentará uma carga muito menor de generalidade59. Por exemplo, o magistrado algumas vezes poderá identificar os membros do grupo utilizando as informações constantes de um banco de dados, tal como o cadastro dos consumidores de determinada empresa ré. Da mesma forma, haverá situações em que as indenizações individuais sejam uniformes ou possam ser reduzidas a uma formula matemática, como, por exemplo, o julgamento de um banco que cobrou uma taxa mensal ilícita. Na liquidação, a única variável a diferir as liquidações individuais seria a quantidade de meses que cada consumidor teve contrato com o banco durante o período de cobrança indevida. O informativo nº 499 do STJ noticiou o julgamento do REsp 1.187.632DF60 que tratou da forma de liquidação de ação civil pública em que uma empresa de arrendamento mercantil foi condenada a restituir aos consumidores, em dobro, os valores referentes às multas cobradas em percentual superior a 2% decorrentes do inadimplemento contratual. O tribunal decidiu, por maioria, pela utilização da fluid recovery do art. 100 do CC, tendo consignado que a liquidação nestes casos, em que os beneficiários são identificados, e a obrigação objeto da decisão é passível de individualização, deve ser realizada por arbitramento. O art. 25 do código modelo de Antonio Gidi é muito útil para auxiliar a compreensão do tema em pauta. Salvo o prazo decadencial previsto no item 25.361, sua sistemática é plenamente aplicável ao direito processual em vigor. O artigo deste anteprojeto doutrinário serve de roteiro pedagógico para o procedimento do cálculo dos danos individuais: Art. 25. Cálculo dos danos individuais 25. Sempre que possível, o juiz calculará o valor da indenização individual devida a cada membro do grupo na própria ação coletiva e a execução da sentença coletiva será feita na forma coletiva. 25.1 Quando o valor dos danos individuais sofridos pelos membros do grupo for uniforme, prevalentemente uniforme ou puder ser 59 Remete-se o leitor para o ponto 3.4 “Sentença genérica”, para tratamento mais abrangente do tema. 60 REsp 1.187.632-DF, Rel. originário Min. João Otávio de Noronha, Rel. para acórdão Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 5/6/2012. 61 No ordenamento vigente, o prazo decadencial de dois anos só seria aplicável às ações que versam sobre a responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários, por força do art. 2º, § 2º da Lei nº 7913/89. 41 reduzido a uma fórmula matemática, a sentença coletiva indicará o valor ou a fórmula de cálculo da indenização individual. 25.2 O membro do grupo que considerar que o valor da sua indenização individual ou a fórmula para seu cálculo é diverso do estabelecido na sentença coletiva, poderá propor ação individual de liquidação. 25.3 Se o juiz da ação coletiva não puder calcular o valor dos danos individualmente sofridos pelos membros do grupo, a condenação coletiva será genérica, fixando a responsabilidade civil do réu pelos danos causados e o dever de indenizar, deferindo a liquidação dos danos individuais a processo individual promovido por cada membro do grupo. (Vide art. 26) Os membros do grupo lerão o prazo de dois anos, a contar da notificação da decisão transitada em julgado, para iniciar suas ações individuais de liquidação e execução contra o réu (Vide art. 27). Outro ponto importante do Código Modelo de Gidi sobre o tema é o art. 26 que trata da distribuição destes recursos após a liquidação, dispondo que, depois do trânsito em julgado, o réu deve adimplir as suas obrigações de forma voluntária assim que houver prova suficiente (item 26.1) e que isto deve ser feito de forma rápida, econômica e eficiente (caput). Na sistemática deste anteprojeto, a distribuição ganha evidência, podendo ser feita até por “uma ou mais comissões de árbitros que avaliarão os casos duvidosos, com recurso para o juiz da ação coletiva” (item 26.2). Infelizmente, esta ainda não é a realidade legislativa brasileira e atualmente apenas magistrados é que poderiam conduzir a distribuição dos recursos. O título III do Código Modelo de Antonio Gidi é denominado “Tutela coletiva das pretensões indenizatórias individuais dos membros do grupo” e nele está inserido o mencionado art. 26, que é epigrafado como “distribuição do dinheiro”. Além de ser uma sólida proposta legislativa, a menção foi proposital para evidenciar algo que usualmente passa despercebido pelos juristas brasileiros, que é a distribuição dos recursos oriundos das ações sobre direitos individuais homogêneos. Por uma questão cultural da processualística brasileira, dificilmente o problema da distribuição é enfrentado diretamente pela doutrina nacional. Geralmente, a questão apenas é tangenciada como um tema menor em trabalhos que versam sobre a execução das ações coletivas. Esta abordagem metodológica parece inadequada. Mesmo que a questão normalmente não seja posta em termos claros, umas das preocupações centrais do processo civil coletivo deve ser a distribuição eficiente dos recursos oriunda das sentenças genéricas, de forma a trazer o maior benefício possível aos membros do grupo. 42 A distribuição adequada de recursos oriundos das ações coletivas é essencial para o correto enfrentamento jurídico dos problemas da justiça de massa, tão comuns na sociedade contemporânea. A questão ultrapassa fronteiras nacionais e vem sendo debatida por vários juristas ao redor do globo, mesmo considerando as peculiaridades que o processo coletivo assume em cada país. A inglesa Jenny Steele e o holandês Willem van Boom, em artigo recente, identificaram a representação (legitimação) e a distribuição com os focos centrais do estudo sobre os desafios para o aperfeiçoamento da justiça no enfrentamento das questões emergentes da “massificação” das demandas62. Richard Nagareda, em comentário sobre os desafios das soluções coletivas das demandas em massa no Estados Unidos e no futuro global, enfatizou que o grande problema é o delineamento de um arranjo institucional eficiente para a resolução destas questões. O jurista, que foi um estudioso do processo coletivo em âmbito internacional, propôs a seguinte questão: Que tipos de arranjos institucionais podem ser úteis para este tipo de litigância, de modo que reúnam legitimidade aos olhos da lei e garantam resultados úteis63? Adotando a diretriz de Nagareda, este trabalho aborda um mecanismo específico de liquidação e execução de direitos individuais homogêneos, conhecido como fluid recovery. Pretende analisar a eficiência deste arranjo institucional para o enfrentamento das demandas massificadas da contemporaneidade e como deve ser feita a sua aplicação adequada. O problema específico da distribuição eficiente do dinheiro das condenações é uma das questões norteadoras da pesquisa. Para isto, esta introdução ao tema se fazia essencial, para demonstrar os aspectos gerais da liquidação e execução dos direitos individuais homogêneos no país. 4.1. TIPOS DE EXECUÇÃO A execução das sentenças que tratam de direitos individuais homogêneos, compreendida de modo amplo, incluindo a liquidação que pode lhe 62 STEELE, Jenny; VAN BOOM, Willem H. Mass justice and its challenges. In Mass Justice: challenges of representation and distribution. ______; ______ (coords.). Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2011. P. 2. 63 NAGAREDA, Richard A. Mass resolution of mass torts: emerging issues in the United States and the global future. In Mass Justice: challenges of representation and distribution. STEELE, Jenny; VAN BOOM, Willem H. (coords.). Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2011. P. 27. 43 preceder, pode ser feita por três modos. Pode ocorrer (i) a execução da pretensão individual proposta pela vítima; (ii) execução da pretensão individual proposta por legitimado extraordinário coletivo e (iii) a execução da pretensão coletiva. Neste trabalho, é utilizada como base a divisão conceitual proposta por Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr64. Estes autores estabeleceram a classificação com base na natureza das pretensões e da identidade dos exequentes. Por isso, considera-se como individual a execução proposta por um legitimado coletivo em proveito de um determinado membro do grupo. Esta parece ser a melhor forma de classificação, por evitar equívocos entre o que é individual e o que é coletivo. Existe outro modo de classificação, utilizado de forma mais ampla, que está baseado no texto do CDC. O art. 98 dispõe que “A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação....”. A grande maioria dos autores, como, Zavascki65, Ada Pellegrini66 e Érica Barbosa e Silva67 utiliza esta classificação. A redação do artigo, entretanto, parece imprecisa. Pode levar a sérios equívocos conceituais, pois está baseada somente na identidade do exequente e não na natureza da pretensão. Na sistemática do CDC, é coletiva toda execução proposta por legitimado coletivo. Só é individual a execução proposta pela vítima. Neste mesmo sentido, Marcelo Abelha Rodrigues comunga da crítica à redação do art. 98 do CDC, afirmando que, ao contrário do que o dispositivo preconiza, “nem a liquidação nem a execução da norma jurídica concreta referida no parágrafo anterior será coletiva, ainda que o legitimado [...] seja ente coletivo, pelo simples fato de que o direito tutelado é individual puro”.68 A despeito da autoridade dos juristas que utilizam a classificação trazida pelo CDC, prefere-se a classificação baseada no duplo critério da natureza da pretensão veiculada e da identidade do exequente. Facilita a compreensão do tema 64 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. cit. P. 420. ZAVASCKI, Teori Albino. Op. cit. P. 185. 66 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - Comentados Pelos Autores do Anteprojeto. Vol II. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. P. 160. 67 SILVA, Érica Barbosa e. Cumprimento de Sentença em Ações Coletivas. São Paulo: Atlas, 2009. P. 127. 68 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ponderações sobre a fluid recovery do art. 100 do CDC. Revista de Processo, São Paulo, v. 116, p. 325-333, 2004. P. 327. 65 44 e evita equívocos conceituais e, por isto, será aqui adotada. Desta forma, esclarecese que as expressões “execução individual” e “execução coletiva” serão empregadas neste trabalho em referência à natureza da pretensão veiculada. Considerando que a execução individual pode ser proposta tanto pela vítima quanto pelo legitimado coletivo, ela será sempre acompanhada pela informação de quem a propôs. Passemos à análise de cada um dos três tipos de execução das sentenças que versam sobre direitos individuais homogêneos. 4.1.1. Execução de pretensão individual proposta pela vítima A sentença condenatória genérica das ações coletivas que envolvem direitos individuais homogêneos podem ser liquidadas e executadas individualmente pelas próprias vítimas ou por seus sucessores, conforme previsão expressa do art. 97 do CDC. É um caso curioso, pois até esta fase, o processo é conduzido por um legitimado extraordinário coletivo, que defende o direito do grupo de que o juízo fixe uma tese jurídica geral que abarque todos os membros da coletividade em questão. Superada a fase cognitiva, que tem um caráter integralmente coletivo, a regra geral é que as liquidações e execuções sejam individuais. Cada interessado deverá provar que se enquadra no grupo e proceder a quantificação dos danos individualmente sofridos. Desta forma, fica evidente que as pretensões veiculadas neste tipo de execução são oriundas dos direitos individuais subjetivos de cada vítima singularmente considerada. Não há aqui qualquer dimensão coletiva. A legitimação ativa das execuções individuais propostas pelas vítimas é sempre ordinária. Mesmo em caso de óbito, a legitimação permanece ordinária, mesmo que possa ser caracterizada como superveniente ou derivada, pois os herdeiros ou legatários estão defendendo direito próprio, por força do direito sucessório. O art. 97 dispõe expressamente que os sucessores são legitimados para a propositura da liquidação e execução. Apesar das pretensões serem individuais e as obrigações de pagar serem transmissíveis por força do direito hereditário, a menção expressa do CDC em relação aos sucessores é importante para evitar debates vazios e cumpre importante função pedagógica. 45 Por força do art. 98, §2º, I do CDC69, a competência para as execuções individuais é do juízo da liquidação da sentença ou da ação condenatória. Neste tipo de ação, as liquidações individuais podem ser propostas pela vítima por meio de processo autônomo. A previsão, aparentemente estranha, de o indivíduo poder liquidar os seus danos individuais em juízo distinto daquele que conheceu a ação, tem ampla justificativa. Muitas vezes, as pessoas afetadas estão dispersas, distantes entre si e não seria razoável se tivessem que suportar os custos relacionados à viagem e a contratação de advogados em domicílio distinto do seu. Notadamente em relação às causas de grande abrangência geográfica, como aquelas de âmbito nacional ou regional, os custos de liquidação e execução individual em um lugar distante inviabilizariam a pretensão executiva de muitas vítimas. A título de exemplo, consideremos uma ação de abrangência nacional proposta em Salvador, no Estado da Bahia. A competência estaria correta, uma vez que, por força do art. 93, II do CDC, poderia ter sido ajuizada em qualquer capital de Estado. Caso não fosse possível que as vítimas ajuizassem liquidações e execuções em seus domicílios, imagine-se a dificuldade para a efetivação dos direitos que teriam as pessoas residentes em Estados distantes, como o Acre ou Rio Grande do Sul. Seria uma evidente negativa de acesso à justiça por parte do Estado. Deste modo, fica claro que as vítimas e seus sucessores podem ajuizar liquidações e execuções individuais fora do juízo que decidiu a ação coletiva. Caso seja necessária a propositura de liquidação individual, o juízo prevento da execução será o mesmo. A regra contida no art. 98, §2º, I do CDC deve ser compreendida neste sentido. Não cabe uma interpretação literal, restritiva de direitos, de que, caso o ente coletivo procedesse a liquidação, ou mesmo a sentença original já fosse líquida para aquela determinada vítima, a execução não poderia ser proposta em seu domicílio. Tal interpretação esdrúxula violaria o devido processo legal coletivo e negaria o acesso à justiça de muitas vítimas possivelmente beneficiadas pela ação. 69 Art. 98. A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções. (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995) § 1° A execução coletiva far-se-á com base em certidão das sentenças de liquidação, da qual deverá constar a ocorrência ou não do trânsito em julgado. § 2° É competente para a execução o juízo: I - da liquidação da sentença ou da ação condenatória, no caso de execução individual; II - da ação condenatória, quando coletiva a execução. 46 4.1.2. Execução de pretensão individual proposta por legitimado extraordinário coletivo Além do próprio indivíduo prejudicado, também é possível que um legitimado extraordinário do art. 82 liquide e execute pretensões individuais de vítimas determinadas, por expressa disposição do art. 98 do CDC. Quando isto ocorre, o ente estará procedendo em benefício direto da vítima singular. A legitimação é extraordinária. O ente coletivo pleiteará a liquidação e execução de direitos cuja titularidade é dos indivíduos. Caso se locuplete com valores obtidos por este meio sem o expresso consentimento individualizado das vítimas, o legitimado extraordinário estará incorrendo em enriquecimento sem causa, uma vez que ele não é o titular dos direitos de crédito. A execução de pretensões individuais propostas por um legitimado coletivo sempre deverá veicular dados individualizados. Em todos os tipos de execução individual será necessário provar que o sujeito faz parte do grupo e a extensão do dano que sofreu individualmente, para a devida quantificação, conforme o art. 944 do CC. As pretensões não perdem a natureza individual pelo fato de o exequente ser ente coletivo e na execução ele deve observar os mesmos requisitos. É importante esclarecer que a execução de direitos individuais “em bloco” por parte do legitimado extraordinário não torna a execução coletiva, ou seja, o legitimado extraordinário não precisa propor liquidações separadas para cada indivíduo afetado. Não há óbice para que reúna a documentação de diversos indivíduos e proponha a liquidação. O importante é que individualize cada pessoa e o dano que ela sofreu de forma minudente. Tomemos por exemplo uma ação coletiva hipotética na qual foi fixada a tese jurídica de que, no período de março de 1999 até setembro de 2007, um determinado banco cobrou indevidamente uma taxa de 70 reais mensais de todos os correntistas e deveria devolver este dinheiro com juros e correção monetária. Não há qualquer óbice para que, de posse dos extratos bancários de muitas vítimas, comprovando os meses em que elas pagaram a taxa indevida neste período, o legitimado extraordinário promova a liquidação individual “em bloco” de todos eles, desde que demonstre, de forma individualizada, a situação específica de cada uma dessas pessoas. No exemplo, uma simples tabela com os nomes dos afetados, 47 meses em que foram lesados e valor total a ser devolvido para cada um, acompanhada do lastro documental pertinente, seria suficiente para a liquidação. É preferível designar este tipo de execução proposta pelo legitimado extraordinário como individual, a despeito da previsão do art. 98 do CDC que a designa como coletiva, pois as pretensões veiculadas são efetivamente individuais. Coletivo é apenas o ente exequente. Marcelo Abelha Rodrigues e Rodrigo Kippel combatem veemente a designação de coletiva para este tipo de execução: “Portanto, diz-se coletivo de modo promíscuo, pois ainda que seja um só legitimado propondo ou representando as vítimas e seus sucessores (caso tenha legitimidade extraordinária para tanto), certamente que estaremos diante de uma soma de interesses individuais, onde será essencial a identificação, desde a petição inicial, da situação particular de cada uma das pessoas que foram identificadas na demanda”70 Desse modo, fica evidenciado que a execução das pretensões individuais tanto podem ser feitas pelas vítimas quanto pelos legitimados extraordinários. Os requisitos de individualização da situação da vítima são comuns às duas espécies. O legitimado extraordinário não tem qualquer benefício probatório quando promove este tipo de execução. O ponto sensível deste tipo de execução são os limites da legitimidade extraordinária ativa do ente para a propositura das execuções individuais. O tema será analisado em ponto próprio deste capítulo. 4.1.3. Execução de pretensão coletiva A execução de pretensão coletiva está prevista no art. 100 do CDC. Ocorre após o fluxo de um ano sem a habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano. Assim, nasce a possibilidade dos entes elencados no art. 82 CDC promoverem a liquidação e a execução do valor global da indenização devida. Por força do parágrafo único do art. 100, o valor auferido é revertido para o fundo criado pela Lei de Ação Civil Pública, n.° 7.347/1985, que é denominado Fundo de Direitos Difusos pelo Decreto nº 1306/94. Esta modalidade de execução do art. 100 é conhecida no país como fluid recovery e os questionamentos que ela enseja constituem o objeto principal da 70 RODRIGUES, Marcelo Abelha; KLIPPEL, Rodrigo. Comentários à tutela coletiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P. 150. 48 pesquisa deste trabalho. As peculiaridades serão examinadas em dois capítulos próprios sobre o tema. O que interessa neste ponto é demonstrar qual é o papel que este tipo de execução exerce e quais são as linhas gerais do instituto. A hipótese prevista no art. 100 do CDC é a única em que a liquidação e a execução da ação que envolve direitos individuais homogêneos será verdadeiramente coletiva. Não se trata da soma de direitos individuais. A pretensão é essencialmente coletiva. Atendidos os requisitos legais do decurso do prazo de um ano e a não habilitação de interessados em número compatível com o dano, abre a possibilidade aos legitimados do art. 82 de promoverem uma nova forma de liquidação e execução. O magistrado deverá fixar o valor global do dano. Este tipo de execução, a princípio parece ter caráter eventual e subsidiário, uma vez que há a prevalência da liquidação/execução individual. Para Marcelo Abelha e Rodrigo Kippel,71 a execução coletiva só acontece diante da inexistência ou da insuficiência de execuções individuais. Sua finalidade parece ser sancionatória, pois atua para evitar que alguém que praticou um ato que foi considerado ilícito em sede de ação coletiva sobre direitos individuais homogêneos saia impune por inércia dos interessados. O tribunais superiores pouco pronunciaram sobre a execução coletiva. O REsp 996.771/RN do STJ é o único precedente que enfrentou alguns aspectos da fluid recovery de forma direta: DIREITO PROCESSUAL COLETIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONDENAÇÃO CUMPRIDA PELO VENCIDO NA FASE DE CONHECIMENTO. DEPÓSITO. HABILITAÇÃO DE INTERESSADOS EM NÚMERO INCOMPATÍVEL COM A EXTENSÃO DO DANO. INCIDÊNCIA DO ART. 100 DO CDC. REVERSÃO PARA O FUNDO PÚBLICO DE QUE TRATA A LEI N. 7.347/85. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROPOR A SOLUÇÃO. INEXISTÊNCIA DE JULGAMENTO EXTRA PETITA NEM DE ALTERAÇÃO DO PEDIDO NA FASE DE EXECUÇÃO. 1. O Ministério Público é parte legítima para promover execução residual da chamada fluid recovery, a que se refere o art. 100, do CDC, com o escopo de reversão ao Fundo Público do valor residual, especialmente quando não houver interessados habilitados em número compatível com a extensão do dano. 2. A reversão para o Fundo Público dos valores não levantados pelos beneficiários é providência cabível na fase de execução da sentença coletiva, descabendo por isso exigir que a inicial da ação de conhecimento já contenha tal pedido, cuja falta não induz julgamento extra petita, tampouco alteração do pedido na fase de execução. 3. Ademais, independente de pedido na ação de conhecimento, a reversão 71 RODRIGUES, Marcelo Abelha; KLIPPEL, Rodrigo. Comentários à tutela coletiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. P. 154. 49 para o fundo é previsão legal, sujeitando-se a condições secundum eventum litis, ou seja, somente reverterá caso ocorra, em concreto e na fase de execução, as circunstâncias previstas no art. 100, CDC. 4. Recurso especial não provido. (REsp 996.771/RN, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/03/2012, DJe 23/04/2012) O tribunal decidiu que o Ministério Público tem legitimidade ativa para a propositura da execução coletiva. Outra questão importante, que pode ser verificado no ponto 2 da ementa, foi o esclarecimento de que não é necessário constar pedido expresso na inicial para a aplicação do mecanismo previsto no art. 100 do CDC após a certificação do direito. No ponto 3 foi delineado que a possibilidade de aplicação do instituto decorre diretamente da lei. Nenhuma dessas decisões atingiu polêmicas suscitadas em relação ao instituto pela doutrina A execução coletiva poderá ocorrer mesmo após diversas execuções individuais. O art. 100 do CDC insere como requisito que não haja “habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano”, o que deixa claro que, mesmo tendo sido propostas diversas liquidações/execuções individuais, a sentença poderá ser executada de forma coletiva se este requisito for atendido e houver o transcurso de um ano. Em uma única ação coletiva sobre direitos individuais homogêneos, pode haver os três tipos de liquidação/execução aqui elencados. Inicialmente, apenas serão possíveis as execuções individuais, por iniciativa das vítimas, de seus sucessores ou mesmo de legitimados extraordinários. Após o decurso de um ano, se as habilitações não forem compatíveis com a gravidade do dano, restará possibilitada a execução coletiva. 4.2. PROBLEMAS DA LEGITIMIDADE EXTRAORDINÁRIA NAS EXECUÇÕES INDIVIDUAIS A execução das pretensões individuais pelos legitimados extraordinários do art. 82 do CDC, permitida pelo art. 98 do CDC, suscita severos questionamentos na doutrina e na jurisprudência quanto à legitimidade ativa na fase executória. O tema é bastante polêmico, inclusive nos tribunais superiores. Na atual etapa de evolução do processo coletivo brasileiro, é desnecessário discutir se a legitimidade ativa na fase cognitiva dos entes elencados no art. 82 depende da autorização dos membros do grupo. A questão já foi 50 superada. Prevaleceu o entendimento de que isto não é necessário, pelo simples fato de que, se as ações coletivas dependessem da autorização dos membros do grupo substituído, seriam relegadas como sendo nada muito superior ao instituto do litisconsórcio. Há a percepção assente de que o direito coletivo não é a simples soma de pretensões individuais. Ocorre que, salvo a hipótese subsidiária de execução coletiva do art. 100 do CDC, as sentenças que tratam de direitos individuais homogêneos devem ser liquidadas/executadas de forma individual, já que tratam de pretensões individuais. Permitir que um ente que atua como legitimado extraordinário na defesa de direitos coletivos possa realizar execuções individuais de direitos subjetivos, cuja titularidade é dos membros do grupo individualmente considerados, gera receios de diversas ordens. Notadamente, com tal permissão, cria-se o perigo de que entidades promovam liquidações/execuções individuais sem o conhecimento dos titulares dos direitos, recebam os valores e estes cidadãos jamais tenham acesso ao numerário ou sequer saibam que foram lesados. No que se referem às ações coletivas propostas por entidades sindicais, a Constituição dispõe no art. 8º. II que “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;”. Este dispositivo constitucional já foi objeto de intensos debates no Supremo Tribunal Federal sobre a legitimidade ativa para as execuções individuais. Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. informam que acabou prevalecendo a tese que eles sustentam, de que os entes legitimados à tutela coletiva na fase de cognição também podem promover as execuções. Citam importante precedente sobre o tema, Recurso Extraordinário 214.668/ES, publicado no informativo nº 431 do STF, em que, por maioria, prevaleceu este posicionamento. Naquela oportunidade, a tese vencida foi liderada pelo Min. Nelson Jobim, só admitia a legitimação extraordinária para a execução, caso existisse consentimento expresso dos sindicalizados.72 O informativo nº 431 do STF é muito elucidativo para a verificação de como o tema suscitou debates intensos na corte. A admissão da legitimidade para a fase executiva prevaleceu. Entretanto, teve cinco votos em sentido contrário. Foram vencidos, parcialmente, os Senhores Ministros Nelson Jobim, Cezar Peluso, Eros 72 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. 8 ed. Vol. 4. Salvador: JusPODIVM, 2013. P. 421 51 Grau, Gilmar Mendes e Ellen Gracie. No mesmo sentido, o Recurso Extraordinário 193503/SP: EMENTA: PROCESSO CIVIL. SINDICATO. ART. 8º, III DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEGITIMIDADE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES COLETIVOS OU INDIVIDUAIS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. O artigo 8º, III da Constituição Federal estabelece a legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam. Essa legitimidade extraordinária é ampla, abrangendo a liquidação e a execução d os créditos reconhecidos aos trabalhadores. Por se tratar de típica hipótese de substituição processual, é desnecessária qualquer autorização dos substituídos. Recurso conhecido e provido.73 Talvez a nova composição do STF modifique este entendimento. Teori Zavascki, que compõe a corte desde o final de 2012, por exemplo, em livro sobre o tema demonstrou reservas a este posicionamento da corte, tendo afirmado que “é difícil, na prática, compatibilizar esse entendimento com o sistema da ação coletiva”.74 Ainda sobre o tema, é pertinente observar que o Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Resolução 119/2003, publicada no DJ de 01.10.2003, cancelou o enunciado nº 310 de sua súmula que restringia sensivelmente a atuação dos sindicatos nas ações coletivas. O fato é positivo, pois vai no sentido de ampliar a tutela coletiva, mas este enunciado trazia uma previsão interessante, que é digna de nota. No inciso VII75 deste enunciado, o tribunal previa que o sindicato poderia promover a liquidação e execução do direito dos sindicalizados, entretanto as guias de depósito deveriam ser emitidas em nome dos indivíduos e só poderiam ser levantadas pelo trabalhador ou por procurador com poderes especiais para este fim. Talvez esta seja uma solução razoável, no sentido de contemplar a tutela coletiva e ao mesmo tempo assegurar ao indivíduo que ele é quem levantará os valores por meio de alvará. 73 RE 193503, Relator(a): Min. Carlos Velloso, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2006, DJe-087 DIVULG 23-08-2007 PUBLIC 24-08-2007 DJ 24-082007 PP-00056 EMENT VOL-02286-05 PP-00771 74 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo - Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 4 ed. São Paulo: RT, 2009. P. 186. 75 VII - Na liquidação da sentença exeqüenda, promovida pelo substituto, serão individualizados os valores devidos a cada substituído, cujos depósitos para quitação serão levantados através de guias expedidas em seu nome ou de procurador com poderes especiais para esse fim, inclusive nas ações de cumprimento. (Trecho do texto revogado do enunciado nº 310 da súmula do Tribunal Superior do Trabalho). 52 As reflexões sobre a legitimidade ativa das entidades sindicais são válidas para todas as ações que versem sobre direitos individuais homogêneos. Não há razões para fazer qualquer distinção. Certamente, a tendência jurisprudencial é para uma maior aceitação do uso da tutela coletiva, mas ao mesmo tempo com a preocupação de não desamparar os direitos individuais dos cidadãos. 4.3. EXECUÇÃO DA COISA JULGADA IN UTILIBUS A sentença condenatória prolatada em ações coletivas que versem sobre direitos difusos e coletivos em sentido estrito também pode ser utilizada para a defesa de direitos individuais homogêneos. Há previsão legal neste sentido no § 3º do art. 103 do CDC, que preconiza que “...se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.” O instituto é conhecido como transporte da coisa julgada in utilibus. A coisa julgada das ações que tutelam direitos transindividuais é aproveitada para a tutela de direitos individuais, com a nítida facilitação do acesso à justiça. Kazuo Watanabe traz um exemplo interessante de sua aplicação: “Se, por exemplo, a ação civil pública que tenda à obrigação de retirar do mercado um produto nocivo à saúde pública for julgada procedente, reconhecendo a sentença os danos, reais ou potenciais, pelo fato do produto, poderão as vítimas, sem necessidade de novo processo de conhecimento, alcançar a a reparação dos prejuízos sofridos, mediante liquidação e execução da sentença coletiva, nos termos do art. 97 do Código”. 76 Reconhecida a responsabilidade do réu da ação coletiva em defesa de direitos transindividuais, caberá ao interessado apenas provar que foi efetivamente afetado pelo evento e produzir provas para que seja procedida a quantificação do dano individualmente sofrido. Mesmo que não tenha havido pedido expresso de reparação dos danos individuais, a possibilidade do transporte da coisa julgada in utilibus é considerada como um efeito secundário da coisa julgada coletiva.77 76 WATANABE, Kazuo . Capítulo II – Das ações de responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços. In ______ et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - Comentados Pelos Autores do Anteprojeto. Vol II. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. P. 205. 77 ZAVASCKI, Teori Albino. Op. cit. P. 68. 53 A tutela ambiental é um campo profícuo de aplicação do transporte in utilibus da coisa julgada. Como exemplo, ação coletiva em defesa do meio ambiente, que vise sancionar uma fábrica pela poluição ilícita que despeja em um rio. O direito envolvido é transindividual e indivisível. O direito ao meio ambiente é tipicamente enquadrado na definição dos direitos difusos do art. 81, I do CDC, pois o direito ao meio ambiente não é algo que possa ser fracionado entre os cidadãos. A titularidade é evidentemente de um grupo indivisível. Mesmo assim, em caso de procedência, todas as pessoas que foram individualmente afetadas pela poluição, como os moradores ribeirinhos, poderão ser beneficiadas pela coisa julgada. Para isto, deverão propor simples liquidações individuais e provar as suas particularidades. Poder-se-ia questionar se o transporte da coisa julgada in utilibus permitiria a execução coletiva de direitos individuais homogêneos. A resposta parece ser negativa. O § 3º do art. 103 do CDC pretende a simplificação da tutela dos direitos individuais afetados por um evento danoso, dispensando as vítimas afetadas por um evento que agrediu um direito transindividual de terem que provar a existência deste fato e seu caráter danoso. É possível admitir que execuções individuais sejam propostas inclusive pelos legitimados coletivos, entretanto a previsão do art. 100 do CDC parece inaplicável. A solução geraria bis in idem na maioria dos casos. Caso seja evidente, em um determinado caso, que um grupo de proporções significativas sofreu lesões a direitos individuais homogêneos, mas não houve pedido de tutela neste sentido, o correto é que haja uma ação coletiva com este objeto específico. A ação aproveitará a coisa julgada sobre os direitos transindividuais, não sendo discutível a materialidade do evento danoso ou a causação de danos coletivos. Nesta ação, caberá ao magistrado verificar se foram verdadeiramente configurados direitos individuais homogêneos aptos à tutela coletiva. O fato de o evento afetar alguns direitos individuais não significa automaticamente que foram afetados direitos individuais homogêneos. 4.4. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA A prescrição da pretensão executória dos direitos individuais homogêneos acompanha a regra do enunciado nº 150 da súmula do Supremo Tribunal Federal, que consolidou o entendimento de que a execução prescreve no mesmo prazo de 54 prescrição da ação (rectius, pretensão). Não há qualquer motivo para estabelecer distinções, notadamente em face de que a regra geral da execução destas ações é que as liquidações/execuções devem ser promovidas de forma individual. Em ponto específico, foram tecidas considerações sobre a prescrição dos direitos individuais homogêneos para a fase cognitiva. Chegou-se à conclusão de que, a despeito do precedente do Superior Tribunal de Justiça que decidiu pela aplicação analógica da prescrição quinquenal da Lei de Ação Popular no REsp 1070896/SC, o correto parece ser a aplicação do mesmo prazo prescricional dos direitos individuais. O instituto da prescrição ataca a pretensão, a exigibilidade dos direitos subjetivos. Considerando que os direitos subjetivos neste caso são individuais, não parece acertado o posicionamento pela aplicação de qualquer outro prazo prescricional. O sistema tornar-se-ia incongruente, pois uma pretensão, que se refere em realidade ao direito material, estaria prescrita para ser veiculada por meio do procedimento da tutela coletiva, mas não estaria prescrita para a tutela individual. Também existiriam sérias dificuldades quando ocorresse o contrário. O direito individual pode prescrever em prazo menor que cinco anos e seria absurdo pensar que determinado direito pode ser veiculado em ação coletiva, mas não tutelado de forma individual. Ratificando o censurável posicionamento do REsp 1070896/SC, o Superior Tribunal de Justiça recentemente utilizou o procedimento previsto no art. 543-C do CPC e julgou o Resp 1273643/PR como representativo de controvérsia presente em recursos repetitivos. Nesta decisão, o tribunal aplicou o entendimento da prescrição quinquenal às pretensões executórias individuais, como pode ser verificado nestes pontos da ementa: 1.- Para os efeitos do art. 543-C do Código de Processo Civil, foi fixada a seguinte tese: "No âmbito do Direito Privado, é de cinco anos o prazo prescricional para ajuizamento da execução individual em pedido de cumprimento de sentença proferida em Ação Civil Pública". 3.- Recurso Especial provido: a) consolidando-se a tese supra, no regime do art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução 08/2008 do Superior Tribunal de Justiça; b) no caso concreto, julgando-se prescrita a execução em cumprimento de sentença. (REsp 1273643/PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Segunda Seção, julgado em 27/02/2013, DJe 04/04/2013) 55 Neste julgado, o relator Ministro Sidnei Beneti fixou o entendimento de que o prazo prescricional das pretensões executórias individuais é de cinco anos. O posicionamento é absurdo e descabido. Nos casos de reparação civil comum, o cidadão terá dois anos a mais para a execução individual da ação coletiva do que dispõe para ajuizar ou executar ação individual, cujo prazo é de três anos (art. 206, § 3º, V do CC). Já nas hipóteses em que o prazo prescricional da pretensão individual é superior a cinco anos, a vítima será obrigada a ajuizar uma ação individual após o prazo quinquenal, mesmo existindo uma ação coletiva julgada procedente da qual poderia se beneficiar. Este posicionamento deveria ser revisto pela corte. Por sorte, o prazo prescricional individual da maioria das pretensões veiculadas em ações envolvendo direitos individuais homogêneos é de cinco anos, por envolverem a reparação de danos causados nas relações de consumo (art. 27 do CDC). A coincidência com o prazo da ação popular minimiza significativamente as consequências desastrosas da tese fixada no REsp 1273643/PR. Esta decisão prejudicará principalmente as ações coletivas em que as pretensões individuais envolvidas são de dez ou vinte anos pela vigência do CC 1916 na época do fato. Érica Barbosa e Silva78 traz interessante reflexão sobre a prescrição em face da execução coletiva. O art. 100 do CDC permite a reversão do valor global da indenização para o Fundo de Direitos Difusos após um ano do trânsito em julgado, entretanto este prazo jamais poderia ser considerado como preclusivo para as habilitações individuais. As vítimas poderão promover liquidações individuais enquanto as pretensões executórias não estiverem prescritas. Após o prazo de um ano, os recursos poderão ser revertidos ao Fundo apenas a título provisório. Eventualmente, este dinheiro poderá ser utilizado para o pagamento das reparações individuais, cuja preferência é expressa no art. 99 do CDC. Os valores apenas serão consolidados no fundo, sem possibilidade de reversão, após o transcurso do prazo prescricional da pretensão executória. Feitas estas considerações, resta evidenciado que a prescrição da pretensão executória individual nas ações que envolvem direitos individuais homogêneos acontece no mesmo prazo das ações individuais. 78 SILVA, Jaqueline Mielke. O Direito Processual Civil Como Instrumento de Realização de Direitos. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2005. P. 129. 56 5. A NOTIFICAÇÃO ADEQUADA NO PROCESSO COLETIVO BRASILEIRO A falta de informações acerca do ajuizamento e do resultado de ações coletivas tem sido um grave problema no Brasil. Várias ações coletivas de extrema relevância social são propostas e encerradas sem o conhecimento da maioria absoluta dos interessados. Muitas vezes, mesmo as ações vitoriosas não conseguem obter um resultado prático significativo em razão do simples fato de que poucas são as pessoas que souberam de sua existência. A obtenção de dados simples em relação às ações coletivas se afigura como uma tarefa impossível para qualquer cidadão brasileiro. Não existem mecanismos para obtenção de informações confiáveis sobre quais ações coletivas em tramitação no país são de interesse do indivíduo ou quais ações coletivas transitadas em julgado lhe podem gerar algum proveito. A falta de informações sobre ações coletivas é generalizada. Não afeta somente o cidadão, mas também atinge diretamente o próprio Poder Judiciário e a administração pública em geral. Os gestores públicos constantemente ignoram decisões que poderiam facilitar sua administração. Os órgãos do Poder Judiciário, por vezes, deixam de aplicar normas vinculativas, por completo desconhecimento, mesmo quando emanadas do Supremo Tribunal Federal79. Atualmente, quando muito, a lei considera suficiente que algumas informações sobre ações coletivas sejam veiculadas através de edital publicado no Diário Oficial, por vezes também afixado nos murais do fórum. Tais medidas constituem meras formalidades e são flagrantemente inócuas para o fim a que se destinam. Quase ninguém tem o costume de ler o Diário Oficial e, muito menos, verificar os murais do fórum. O problema é tão grave que, mesmo estes editais, tão mal divulgados, muitas vezes sequer informam de que se trata a ação ou não o fazem de modo claro. Para atingir o seu objetivo, os editais deveriam ser redigidos 79 Exemplo verificado na prática forense acontece em relação a algumas cautelares deferidas pelo STF em ações de controle abstrato de constitucionalidade, que ostentam natureza coletiva. Muitas vezes tais cautelares, que tem eficácia erga omnes, não são respeitadas em virtude de seu completo desconhecimento por parte dos envolvidos no processo. Exemplo concreto é o desrespeito cotidiano à cautelar deferida na ADIN 1931 sobre planos de saúde anteriores à Lei nº 9656/98. Apesar do desrespeito em tese ensejar reclamação constitucional, na prática, o manejo deste instrumento nem sempre é viável. 57 de forma simples e precisa, de modo que qualquer pessoa pudesse compreendê-los, prescindindo de conhecimentos técnico-jurídicos. A questão da eficiência da comunicação das informações para os interessados se apresenta como um dos maiores desafios para a efetividade das ações coletivas. Entretanto, surpreendentemente, o problema é pouco abordado pela doutrina nacional. Muitas tintas são gastas no enfrentamento de questões como a legitimação adequada no processo coletivo e, no entanto, o controle da notificação adequada, questão de igual importância, é relegado ao segundo plano. De nada adianta um processo coletivo perfeitamente conduzido em que os interessados não foram sequer informados de sua existência. Esta abordagem pretende chamar a atenção para a questão da notificação adequada no processo civil coletivo brasileiro, uma vez que ela guarda grande conexão com o estudo da fluid recovery brasileira. O problema da notificação carece de um maior desenvolvimento teórico no Brasil. Na sua análise, não é possível prescindir da análise do direito positivo, do direito comparado e dos anteprojetos de código de processo coletivo que circulam em nosso país. Só o amplo debate da questão poderá levar a uma formulação teórica sólida que sirva para conferir maior efetividade ao processo coletivo e embasar uma proposta legislativa. A discussão é extremamente importante, sobretudo devido ao papel de protagonista que o Brasil vem assumindo como modelo de processo civil coletivo para os países de direito escrito. 5.1. DEFINIÇÃO DE NOTIFICAÇÃO Para os fins deste trabalho, entende-se por notificação a comunicação aos membros do grupo sobre a existência do processo coletivo ou sobre algum de seus atos.80, A notificação concede aos membros do grupo os poderes de 80 GIDI, Antonio. Notas críticas al entrepojeto de Código Modelo de Processos Colectivos del Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal. In La tutela de los derechos difusos, coletivos e individuales homogéneos. Hacia um código modelo para iberoamérica. GIDI, Antonio; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (coords.). Cidade do México: Porruá, 2003. P. 418. 58 fiscalização, participação e controle assim como possibilita o exercício da opção de sair (opt out) da incidência da decisão coletiva81. A notificação é instituto diferente da citação. A notificação não exige as formalidades inerentes ao ato citatório. Há uma grande liberdade quantos aos meios de notificação, podendo ser esta efetivada, por exemplo, através de cartas, emails, anúncios em revistas e jornais, sites da internet, outdoors ou avisos no contracheque. Para notificar, basta informar, por qualquer meio efetivo e adequado. Tudo dependerá da amplitude e das características inerentes ao grupo representado na ação coletiva82. 5.2. EXIGÊNCIA DA NOTIFICAÇÃO ADEQUADA Há ampla liberdade de meios para realizar a notificação, porém se exige que esta seja adequada à finalidade a que se destina. Daí a necessidade de se trabalhar sempre com o conceito de notificação adequada e não simples notificação. A notificação insuficiente, para os fins do estudo de processo coletivo, pode ser considerada como ausência total de notificação83. A notificação deve sempre ser suficiente para atingir o objetivo, ou seja, informar algo aos membros do grupo representado na ação coletiva. Desse modo, é necessário sempre fazer o exame de adequação da notificação em face do grupo que se pretende informar. Variados serão os fatores analisados. Por exemplo, em se tratando de ação envolvendo somente o grupo de trabalhadores de uma empresa, a notificação por meio de aviso no contracheque será totalmente adequada e eficaz. Já uma ação de responsabilidade ambiental terá um sistema de notificação completamente diverso. Até o conteúdo e a redação devem ser cotejados no exame de adequação da notificação. A comunicação direcionada aos investidores da Bolsa de Valores, por exemplo, deve ser completamente diversa daquela direcionada a uma comunidade rural, de baixa instrução. O exame do direito comparado oferece bons parâmetros iniciais de adequação na regra 23(c)(2)(b), das Federal Rules of Civil 81 DIDIER JR., Fredie; Zaneti Jr., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. 5 ed. Vol. 4. Salvador: JusPODIVM, 2010. P. 115 82 GIDI, Antonio. Op. Cit. P. 417. 83 Ibid. P. 418. 59 Procedure norte-americanas, que obriga que a Corte dirija aos membros da classe a melhor notificação possível nas circunstâncias, devendo ser esta clara, concisa e afirmar em linguagem de fácil entendimento vários elementos da ação, como sua natureza, as especificações do grupo representado, os pedidos, o direito de inclusão ou exclusão da ação, dentre outras coisas. 84 Esta regra se aplica às class actions for damages e também exige a notificação individual de todos os membros identificáveis. Será melhor analisada adiante. 5.3. A NOTIFICAÇÃO ADEQUADA COMO GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA O conhecimento sobre os direitos que temos e como utilizá-los é ponto de partida e, ao mesmo tempo, de chegada para que o acesso à justiça esteja ao alcance de todos, como leciona Paulo Cezar Pinheiro Carneiro.85 É ponto de partida porque sem ele, uma série de direitos, notadamente no campo individual, não seriam reclamados. É ponto de chegada “na medida em que, agora no campo coletivo, eventuais direitos reclamados e obtidos fossem realidade para poucos”86. É nesta segunda perspectiva, do acesso à justiça enquanto ponto de chegada que este trabalho se justifica. A prática das ações coletivas evidencia que a falta de informações para os membros do grupo e para as entidades interessadas constitui um dos maiores entraves para a efetivação do acesso à justiça. Várias ações coletivas com enorme potencial benéfico são julgadas procedentes e poucas são as pessoas que efetivamente se beneficiam ou tem a oportunidade de influir no resultado. Os interessados não são cientificados sequer do ajuizamento das ações, quanto mais do resultado ou da forma que deveriam proceder para se beneficiarem da coisa julgada. Atualmente, não há meios para se obter este tipo de informação. Um 84 “(B) For (b)(3) Classes. For any class certified under Rule 23(b)(3), the court must direct to class members the best notice that is practicable under the circumstances, including individual notice to all members who can be identified through reasonable effort. The notice must clearly and concisely state in plain, easily understood language: (i) the nature of the action; (ii) the definition of the class certified; (iii) the class claims, issues, or defenses; (iv) that a class member may enter an appearance through an attorney if the member so desires; (v) that the court will exclude from the class any member who requests exclusion; (vi) the time and manner for requesting exclusion; and (vii) the binding effect of a class judgment on members under Rule 23(c)(3).” 85 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública: uma nova sistematização da teoria geral do processo. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. P. 57. 86 Ibid. P. 57. 60 cidadão pode ser beneficiário de diversas ações coletivas e, simplesmente, não tem como saber. Quanto ao tema, é muito pertinente a crítica do professor carioca: “Nenhuma valia terá o magnífico trabalho técnico dos juristas que sistematizaram os diversos efeitos da coisa julgada, em função dos interesses em jogo nas ações coletivas em geral, se eles não alcançam, em um grande número de casos, no mundo prático, os beneficiados, a quem se destinam”87 Por diversas vezes, a falta de notificação adequada também se revela como um problema estrutural para os órgãos envolvidos na prestação jurisdicional. Exemplo muito comum é a propositura desnecessária de ações coletivas cujo objeto já havia sido decidido em juízo. Há caso, inclusive, em que um membro do ministério público propôs ação coletiva que foi julgada extinta de plano, porque ação com o mesmo objeto já havia sido proposta e vencida meses antes por um colega.88 A tutela processual coletiva perde parte significativa de sua utilidade sem um sistema eficiente de notificação para os interessados. Neste trabalho, serão elencadas diversas medidas que podem ser adotadas para a melhoria deste sistema, de forma a garantir o acesso a um resultado justo89 para os jurisdicionados e garantir a eficiência do sistema, evitando, por exemplo, a tramitação de múltiplas ações coletivas com o mesmo objeto em órgãos jurisdicionais distintos. Como bem salienta Wilson Alves de Souza, o processo é público, portanto, o segredo, a falta de informação, principalmente em relação às partes interessadas, é incompatível com o verdadeiro acesso à justiça.90 A deficiência no sistema de notificação reduz significativamente as possibilidades de o processo coletivo atingir um resultado satisfatório para o cidadão. 5.4. A NOTIFICAÇÃO ADEQUADA E O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL COLETIVO É muito interessante a construção de alguns autores, dentre os quais Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., afirmando que é preciso adaptar o devido 87 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Op. cit. P. 221. Exemplo real, protagonizado pelo professor Sérgio Arenhart, noticiado por GIDI, Antonio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 63. 89 KALAJDZIC, Jasminka. Access to a Just Result: Revisiting Settlement Standards and Cy Pres Distributions, The Canadian Class Action Review, Toronto, Vol. 6, No. 1, 2010. P. 222. 90 SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à justiça. Salvador: Dois de Julho, 2011. P. 283. 88 61 processo legal ao processo coletivo, sendo necessário pensar em um devido processo legal coletivo, formulando um regime diferenciado para este tipo de tutela91. O processo coletivo exige um regramento próprio para diversos institutos, adaptando-os às suas peculiaridades, como competência, legitimidade, coisa julgada, etc. A construção do princípio do devido processo legal coletivo é extremamente oportuna, pois aproveita toda a base construída para o princípio do devido processo legal e insere a ótica peculiar do processo coletivo. Esta norma serve para orientar a adaptação do regramento do processo individual aos litígios coletivos. Para Didier e Zaneti, com isto nasce o que se pode chamar de garantismo coletivo “que paulatinamente deverá consolidar-se na doutrina e jurisprudência para assegurar mais eficácia e legitimidade social ao processo coletivo e às decisões judiciais nessa matéria”.92 Do princípio do devido processo coletivo podem ser deduzidos diversos princípios autônomos do direito processual coletivo, não obstante extraídos todos da mencionada cláusula geral93. Apesar de não haver um rol consensual de princípios da tutela coletiva, variando conforme o autor, geralmente há concordância na existência de alguns princípios básicos como o da representação adequada e o da competência adequada. Neste contexto, é importante inquirir a existência de um princípio da notificação adequada. Para a correta classificação da norma da notificação adequada, é necessário esclarecer que se utiliza a concepção de princípio de Robert Alexy, para quem princípios são “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentre as possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização”94. Considerando o delineamento da notificação adequada traçado nos itens anteriores, é possível verificar que a norma da notificação adequada não pode ser aplicada numa lógica binária de 91 DIDIER JR., Fredie; Zaneti Jr., Hermes. Op. Cit. P. 112 Idem. P. 112. Ideia com a qual se concorda inteiramente, notadamente face aos progressos notáveis da doutrina e da jurisprudência brasileiras que se iniciaram em meados na década de 1990 e prosseguem até hoje. 93 Idem. P. 113. 94 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011. P. 90. 92 62 satisfação/não satisfação inerente às regras95. A ampla variedade de meios e condições pelos quais pode ser realizada a notificação adequada não lhe permite uma estruturação tão rígida. Deste modo, é possível dizer que existe um princípio da notificação adequada, sendo seu conteúdo normativo o comando para realizar a notificação para os membros da classe da melhor maneira possível dentre as possibilidades fáticas e jurídicas presentes. Não se ignora que o princípio da notificação adequada aos membros do grupo pode ser extraído de outros princípios96 e também sua conexão com várias outras normas, como o contraditório. Entretanto, sustenta-se que a notificação adequada seja enunciada sempre como um princípio autônomo e basilar da tutela coletiva, de forma didática, para evidenciar sua importância no estudo de todas as instituições do processo civil coletivo: coisa julgada, conexão, litispendência, transação, execução, etc. Nenhuma destas questões prescinde do exame da notificação adequada para ser bem compreendida. 5.5. A NOTIFICAÇÃO NAS CLASS ACTIONS FOR DAMAGES NORTE- AMERICANAS Antes de adentrar ao exame e à crítica do sistema de notificação das ações coletivas brasileiras, é preciso retroceder ao exame de uma importante fonte do direito estrangeiro que inspirou o nosso sistema: a class action for damages norte-americana.97 O regramento deste tipo de class action inspirou nitidamente as nossas ações coletivas sobre direitos individuais homogêneos e seu peculiar sistema de notificação. A class action for damages é disponível para as os grupos que deduzem pedidos condenatórios por danos materiais individualmente sofridos com tratamento coletivo, sendo estes pedidos fundados em responsabilidade civil. Originalmente, somente se admitia a ação oriunda de um fato único (single-event mass-disaster), 95 ALEXY, Robert. Op. Cit. P. 91. Como fazem DIDIER JR., Fredie; Zaneti Jr., Hermes. Op. Cit. P. 115, ao considera-lo um subprincípio do princípio da informação e publicidade adequadas, sendo este extraído diretamente do devido processo legal coletivo. 97 GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. In Ação Civil Pública: lei 7347/85 – 15 anos. Edis Milaré (coord.). São Paulo:RT, 1991 96 63 porém a jurisprudência evoluiu para admitir ações deste tipo em que os fatos geradores da responsabilidade civil tenham atingido os indivíduos de modo impactante em eventos ocorridos em datas e lugares distintos (mass torts).98 Informadas por esta experiência, as ações coletivas brasileiras sobre direitos individuais homogêneos admitem as duas situações, uma vez que basta que os eventos tenham origem comum (art. 81, III da Lei nº 8078/90), não sendo requisitos a coincidência temporal ou de localização. Nas class actions for damages exige-se a notificação de todos os membros identificáveis da classe para que exerçam o direito de sair da incidência da coisa julgada coletiva (opt out) por força da Regra 23(c)(2) das Federal rules of civil procedure. Por vezes, os custos deste tipo de notificação são extremamente altos, o que gera uma série de transtornos no manejo deste instrumento e dificulta o acesso à justiça. Márcio Mafra explica que este tipo de notificação é resquício da teoria do consentimento99, em que os membros da classe precisavam assentir com a propositura da ação. O professor Márcio Mafra sustenta, com razão, que principalmente nas ações em que o dano seja reduzido, é extremamente provável que no plano individual ninguém se disporá a persegui-lo em juízo. O interesse será satisfeito sempre com pedidos indenizatórios, tornando em qualquer caso essa notificação individualizada para os membros identificáveis de pouca valia teórica e prática.100 5.6. O ATUAL SISTEMA BRASILEIRO DE NOTIFICAÇÃO NAS AÇÕES COLETIVAS A legislação brasileira é extremamente pobre no que concerne às notificações nas ações coletivas. A regra geral é da não obrigatoriedade da realização de qualquer tipo de notificação aos interessados. É impressionante que a lei não cuide da informação ao público sobre a existência da ação coletiva, mesmo admitindo em variados casos a manifestação espontânea de órgãos e entidades, como, por exemplo, na ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (art. 7º, §2º da Lei nº 9868/1999). 98 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1998. P. 159. 99 Ibid. P. 160. 100 Ibid., loc. cit. 64 Mesmo na abordagem inicial da questão, fica patente a incongruência legislativa. Ao mesmo tempo em que a lei consagra a conveniência da manifestação de entidades distintas das que conduzem o processo, não cria nenhum mecanismo para informar ao público interessado da existência da ação. Há o direito de manifestação, porém, muitas vezes este fica prejudicado em virtude da violação do direito à notificação. Por óbvio, ninguém pode intervir em um processo judicial cuja existência desconhece. A legislação brasileira parece ignorar esta simples premissa. A única previsão expressa como requisito de validade geral do processo ocorre no art. 94 da Lei nº 8078/90. Este artigo obriga que, nas ações coletivas sobre direitos individuais homogêneos, depois de proposta a ação, seja publicado edital no Diário Oficial. O artigo aduz que tal publicação ocorre “sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor”. Neste ponto é pertinente a advertência de Antonio Gidi, de que, em uma interpretação literal, se alguma entidade tiver o interesse de realizar uma divulgação ampla do processo, ela está autorizada para tanto; entretanto, se não desejar fazê-lo, não há nenhuma consequência.101 Para Gidi, esta “segunda parte do art. 94 não é sequer uma norma jurídica no sentido tradicional, porque é despida de obrigatoriedade, de sanção ou de qualquer consequência jurídica”. 102 O modelo de notificação brasileiro é claramente insuficiente. A notificação via Diário Oficial é tão restritiva que chega ao ponto de ser considerada por Gidi, com razão, como ausência completa de notificação. O professor ainda afirma que esta limitação debilita o poder político das ações coletivas e o poder de mobilização social dos membros do grupo. Sustenta, inclusive, a inconstitucionalidade de uma norma de notificação tão restritiva, face ao contraditório e ao devido processo legal.103 Na absoluta maioria dos casos, a legislação brasileira não prevê a mínima obrigatoriedade de notificação acerca das ações coletivas. Na rara hipótese em que ela existe, o art. 94 da Lei nº 8078/1990, a previsão é meramente formal e a notificação pode ser considera fictícia, uma vez que quase ninguém lerá o edital no Diário Oficial. 101 GIDI, Antonio. Notas criticas... Op. Cit. P. 416. Idem. A Class Action como instrumento de tutela coletiva de direitos. São Paulo: RT, 2007. P. 240. 103 IIbid. P. 416. 102 65 A prática de alguns magistrados de mandar afixar o edital nos murais do fórum também é de pouca valia. A maioria das pessoas não frequenta este ambiente e mesmo dentre os frequentadores poucos são os que param para ler este tipo de aviso. A lei não prevê qualquer parâmetro para o conteúdo do edital, como acontece na legislação norte-americana. Deste modo, muitos editais são elaborados com redação técnico-jurídica, o que dificulta em muito a compreensão de um cidadão leigo que eventualmente se depare com ele. 5.7. A NOTIFICAÇÃO ADEQUADA E A O TRANSPORTE DA COISA JULGADA IN UTILIBUS Uma questão bastante pertinente no exame da notificação adequada no processo coletivo ocorre em relação ao chamado transporte da coisa julgada in utilibus, previsto nos §§ 3º e 4º da Lei nº 8708/1990. Trata-se de um efeito secundário da sentença de procedência de direitos essencialmente coletivos (difusos e coletivos stricto sensu) e da sentença penal condenatória.104 O transporte in utilibus permite que a coisa julgada produzida neste tipo de demanda possa ser aproveitada para as lides individuais derivadas da mesma causa de pedir. Isto será possível quando uma mesma situação de fato gere a tutela de direitos essencialmente coletivos e de direitos individuais.105 É um mecanismo extremamente engenhoso da legislação processual e de grande utilidade prática, pois reconhecida a existência do fato gerador de dano, o cidadão só precisa propor a liquidação em relação aos danos individuais sofridos. Há o transporte da coisa julgada coletiva. Em relação ao aproveitamento da coisa julgada das ações sobre direitos coletivos, a questão da notificação adequada adquire extremo relevo em virtude do art. 104 da Lei nº 8078/1990. Este artigo dispõe que as ações sobre direitos coletivos “não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias”, contando da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva. O artigo trata do direito do sujeito excluir-se da 104 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo - Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 4 ed. São Paulo: RT, 2009. P. 67-68. 105 RODRIGUES, Marcelo Abelha; KLIPPEL, Rodrigo.Op. Cit. P. 169. 66 abrangência da ação coletiva, caso queira prosseguir com sua ação individual. É o chamado right to opt out no direito norte-americano.106 Para poder optar por prosseguir ou não no processo individual, o sujeito deve ter garantida a ciência inequívoca da existência do processo coletivo107. O texto da lei se refere à ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva; portanto, a melhor interpretação parece ser a de que se trata de um ônus do réu a comunicação da existência de processo coletivo em curso. Ônus este, que, se se não cumprido, permite que o autor individual se beneficie da ação coletiva mesmo no caso de sua ação individual ser julgada improcedente.108 Outra ponderação acerca do princípio da notificação adequada e da abrangência da coisa julgada coletiva é em relação às causas individuais em que o autor não tenha a assistência de advogado. Tal situação ocorre, por exemplo, em causas de valor inferior a 20 salários mínimos na sistemática da Lei nº 9099/95. Nestas situações, em virtude da incapacidade técnica do autor, a notificação da existência de ação coletiva pendente deve ser feita de modo extremamente claro, de sorte que o autor possa compreender os riscos inerentes à opção de prosseguir ou suspender a ação individual. Com isto se consagra a aludida garantia da ciência inequívoca da existência de processo coletivo. O juiz tem o poder/dever de controlar o conteúdo da notificação feita pelo réu e invalidá-la caso perceba que a opção do autor foi expressa por erro, em virtude da não compreensão das consequências de sua atitude. O aproveitamento da coisa julgada coletiva in utilibus para as demandas individuais também faz surgir questões acerca da necessidade de notificação adequada nas ações que versam exclusivamente sobre direitos transindividuais (difusos e coletivos stricto sensu). O cerne do problema é novamente a falta de informação para o exercício dos direitos. Mesmo existindo o direito de promover a liquidação e execução dos danos individuais sofridos nestas situações, este poder não poderá ser exercido caso o indivíduo não tenha ciência da existência da ação ou de que ela foi provida. 106 NAGAREDA, Richard. Op. Cit. P. 79. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit. P. 182. 108 Ibid. P.183 107 67 Resta evidente que não se deve pensar apenas na melhoria do deficiente sistema de notificação das ações sobre direitos individuais homogêneos. É necessário criar um sistema de notificações adequado para toda a tutela coletiva, uma vez que é inerente à própria dinâmica das ações coletivas que elas interessem a toda a comunidade envolvida. A informação adequada é condição básica para o exercício dos direitos. 5.8. CRÍTICA AO MODELO DE NOTIFICAÇÃO INDIVIDUALIZADA PARA OS MEMBROS IDENTIFICÁVEIS DO GRUPO Após constatar a insuficiência do modelo de notificação do processo coletivo brasileiro, deve-se verificar qual seria o modelo adequado. Para isto, vale a pena inquirir se seria recomendável a adoção do modelo de notificação norteamericano das class actions for damages, que além de ordenar que os membros da classe sejam notificados da melhor maneira possível, fixa a obrigatoriedade da notificação pessoal para todos os componentes do grupo que possam ser identificados por meio de razoável esforço.109 A fórmula da “melhor notificação possível” precede à edição da citada regra 23 das federal rules of civil procedure. Richard Nagareda noticia a referência a esta fórmula em uma decisão da Suprema Corte americana do ano de 1950: Mullane v. Central Hanover Bank & Trust Co., 339 U.S. 306, 314-15, em que a corte já discutia que tipo de notificação para os membros do grupo seria adequado ao devido processo legal.110 A referência histórica evidencia o fato de podermos extrair a necessidade de respeito ao princípio da notificação adequada da própria cláusula do devido processo legal. A princípio, este modelo parece ser razoável, pois todos os membros identificáveis terão ciência inequívoca da ação, sendo a notificação feita normalmente por carta. Ao mesmo tempo, providências serão tomadas para garantir a melhor notificação possível para os membros não identificáveis, o que pode ser feito, por exemplo, através de anúncios em periódicos. 109 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. 2 ed. São Paulo: Editora RT, 2010. P. 93-94. 110 NAGAREDA, Richard. Op. Cit. P. 121. 68 A regra da notificação individualizada dos sujeitos identificáveis algumas vezes gera grandes perplexidades na solução das class actions. Os tribunais norteamericanos apresentam diversos precedentes nos quais a delimitação da classe para fins de certificação e verificação da notificação adequada tornou-se uma das questões centrais da ação. Um bom exemplo é o caso Amchem Products, Inc v. Windsor, 521 U.S. 591 (1997) que trata da responsabilidade de algumas companhias pelos danos à saúde causados pelo uso de amianto. É intuitiva a dificuldade de se delimitar contornos precisos para um grupo que pleiteia direitos desta natureza. O grupo podia chegar a centenas de milhares, quiçá milhões de pessoas, agrupadas pela homogeneidade das demandas.111 A necessidade de definir com a máxima precisão os limites do grupo representado, no regramento das class actions for damages, muitas vezes constitui um fator que dificulta o manejo destas ações. Outra grande fonte de dificuldades para obediência da regra de notificação das class actions for damages são os custos envolvidos na notificação. Os altos custos deste sistema normalmente são utilizados como argumento pelos defensores do sistema da notificação por edital. Gidi informa que normalmente este setor da doutrina cita o caso Eisen v. Carlisle & Jacquelin112 como argumento para evidenciar que os custos de notificação envolvidos neste sistema são inviáveis. O professor, entretanto, explica que esta decisão da Suprema Corte de 1974 foi extremamente infeliz e é criticada por doutrinadores americanos e estrangeiros. 113 Para que se tenha ideia da dimensão da dificuldade e dos custos envolvidos na notificação do caso Eisen, considerando o preço de apenas seis cents de dólar por carta na época, a notificação individualizada para os membros identificáveis custaria centenas de milhares de dólares.114 Neste caso, o juízo de primeiro grau, reconhecendo a grande possibilidade da causa ser provida, determinou que os réus suportassem noventa por cento dos custos de notificação. Entretanto, o segundo grau e a Suprema Corte americanas foram unânimes em reverter a decisão. 111 NAGAREDA, Richard. Op. Cit. P. 95-96. Eisen v. Carlisle & Jacquelin, 417 U.S. 156 (1974). 113 GIDI, Antonio. Op. Cit. 416 114 NAGAREDA, Richard. Op. Cit. P. 273. 112 69 Stan Karas noticia outro caso curioso, ocorrido na Califórnia, que evidencia os limites do sistema de notificação norte-americano: State v. Levi Strauss & Co., 715 P.2d 564, 570 (Cal. 1986). A ação foi movida pelo Estado da Califórnia contra a fábrica de calças Levi´s, pleiteando que os consumidores californianos fossem indenizados pelo fato da Levi´s ter cobrado de trinta a quarenta centavos a mais do que poderia no começo dos anos 1970. Após muito tempo, foi certificada uma classe de mais de sete milhões de afetados. Daí foi utilizada a fluid recovery em um acordo que resultou no pagamento de 12.5 milhões de dólares. Entretanto, apenas em razão dos custos de notificação para que as pessoas soubessem que podiam receber trinta centavos pelo par de jeans, foram gastos dois milhões de dólares deste fundo. Mesmo com tanto dinheiro de notificação gasto, somente uma parcela muito pequena dos afetados requereu a reparação, em virtude da bagatela que receberia.115 O modelo de notificações americano encontra sérias limitações, sendo a necessidade de definição rigorosa dos membros da classe e o custo envolvido na notificação os fatores mais negativos. Este modelo é desaconselhável em virtude de não ser eficiente para propiciar a economia de recursos pretendida com a adoção da tutela coletiva116 e por não ser consentâneo com a maximização do acesso à justiça. A questão da notificação adequada é complexa, sendo impossível transplantar um modelo estrangeiro por inteiro para a nossa legislação. É preciso pensar com afinco os diversos matizes que a questão envolve e desenvolver um sistema de notificação intermediário, que não gere os inconvenientes do sistema americano, nem seja insuficiente como o brasileiro.117 5.9. A NOTIFICAÇÃO ADEQUADA E OS ANTEPROJETOS DE CÓDIGO DE PROCESSO COLETIVO Atualmente, existem quatro anteprojetos de código de processo civil coletivo, que alcançaram grande repercussão nacional e internacional. Existe o 115 KARAS, Stan. The Role of Fluid Recovery in Consumer Protection Litigation: Kraus v. Trinity Management Services. California Law Review, v. 90. , 2002. P. 972-973. 116 Sustentada por POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. 7 ed. New York: Aspen Publishers, 2007. P. 615-621. 117 GIDI, Antonio. Op. Cit. P. 416. 70 Código Modelo elaborado por Antonio Gidi (CM-GIDI), o Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América feito pelo Instituto Ibero-americano de Direito Processual (CM-IIDP), o Código Brasileiro de Processos Coletivos criado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (CBPC-IBDP) e o Código Brasileiro de Processos Coletivos elaborado no âmbito dos programas de pós-graduação da UERJ e UNESA (CBPC-UERJ/UNESA).118 Cada um desses anteprojetos doutrinários tem diversas peculiaridades. Para os fins deste capítulo, o que interessa é a análise dos mecanismos de notificação trazidos por eles. Neste ponto, serão analisados os aspectos gerais das notificações dos três últimos anteprojetos referidos, dada a sua semelhança. Alguns mecanismos específicos trazidos pelos anteprojetos serão examinados adiante. Em razão de suas peculiaridades, será dedicado um ponto exclusivo ao exame do sistema de notificações do Código Modelo de Gidi. Para começar, é importante salientar que o Código Modelo do IIDP, assim como os anteprojetos do IBDP e da UERJ/UNESA praticamente reproduzem a sistemática atual de notificações dos membros do grupo nas ações coletivas, já criticada por sua insuficiência. Todos os três anteprojetos restringem a ideia da notificação ao procedimento das ações sobre direitos individuais homogêneos e utilizam a mesma sistemática do edital publicado no órgão oficial de imprensa. O Código Modelo para Ibero-américa regula a questão no art. 21, sendo esta quase a reprodução do art. 94 da Lei nº 8078/1990. O anteprojeto do IBDP, apesar do avanço em trazer expressos os princípios da “participação pelo processo e no processo” (art. 2º, c) e “ampla divulgação da demanda e dos atos processuais” (art. 2º, o), também restringe as notificações ao procedimento das ações sobre direitos individuais homogêneos em sistemática igual à já existente (art. 30). O anteprojeto da UERJ/UNESA regula a matéria da mesma forma, no art. 32 e traz como novidade apenas um rol exemplificativo de “meios de comunicação social” pelos quais podem ser divulgadas as ações no art. 32, §2º, entretanto, rigorosamente, a não realização da divulgação também não gera qualquer consequência. 118 Consultados em reprodução presente no anexo do livro DIDIER JR., Fredie; Zaneti Jr., Hermes. Op. Cit. 71 Comentando o art. 21 do Código Modelo do IBDP, Teori Albino Zavascki relata, que em virtude da natureza dos direitos individuais homogêneos, a participação das pessoas interessadas não é considerada essencial, nem obrigatória, mas sim facultativa. Por isso é que não são convocadas pessoalmente, mas sim através de edital.119 Entretanto, Zavascki cita e concorda com as críticas tecidas por Antonio Gidi contra o sistema da notificação por edital, que já foram analisadas em ponto supra. Para Gidi, “uma notificação adequado é o mínimo que o processo coletivo adequado deve proporcionar ao grupo titular da pretensão coletiva”. 120 Considera a notificação ao grupo uma questão constitucional de respeito ao devido processo legal, tão importante quanto a representação adequada121. Também comentando o art. 21 do Código Modelo para Ibero-américa, o professor colombiano Martín Bermúdez Muñoz, tece a mesma crítica da insuficiência da notificação no sistema adotado e afirma como correto o art. 5º do Código Modelo elaborado por Gidi,122 que será analisado adiante. Muñoz noticia que, na Colômbia, a notificação sobre ações coletivas é ainda pior. Limita-se à inclusão de um aviso de baixo custo em um periódico, que também ninguém lê e muitas vezes este requisito não é sequer cumprido, por falta de meios de quem ajuizou a ação e em virtude do sistema colombiano dispor que este tipo de ação pode ser impulsionada de ofício, o que faz com que os juízes substituam a publicação por um aviso na própria secretaria da vara.123 5.10. CADASTRO NACIONAL DE PROCESSOS COLETIVOS. Uma das inovações mais importantes trazidas no bojo dos anteprojetos de Código Brasileiro de Processo Coletivo (art. 28 do CBPC-UERJ e art. 46 do CBPC- 119 ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao art. 21. In Comentários ao Código Modelo de Processos Coletivos. Um diálogo ibero-americano. GIDI, Antoni;. MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (coords.). Salvador: JusPodivm, 2009. P. 312. 120 GIDI, Antonio. Op. Cit. P. 417. Tradução livre. 121 Ibid. P. 417. 122 MUÑOZ, Martín Bermúdez. Comentario al art. 21. In Comentários ao Código Modelo de Processos Coletivos. Um diálogo ibero-americano. GIDI, Antoni;. MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (coords.). Salvador: JusPodivm, 2009. P. 315-316. 123 Ibid. P. 317. 72 IBDP) é o Cadastro Nacional de Processos Coletivos. A previsão também é encontrada no art. 53 do projeto da nova lei de Ação Civil Pública, PL 5139/2009. 124 Este cadastro, que deverá ser mantido e operado pelo Conselho Nacional de Justiça, é importante, pois serve para que o Poder Judiciário, o Ministério Público e todos os demais interessados tenham uma fonte confiável para saber da existência de ações coletivas e do atual estado em que elas se encontram. O ideal é que tal cadastro seja mantido na internet e acessível a qualquer pessoa. Sem nenhuma dúvida, independentemente de outras medidas que sejam eventualmente adotadas para concretizar o princípio da notificação adequada, o cadastro nacional de processos coletivos deverá figurar entre elas. Ele terá o papel de centralização das informações sobre as ações coletivas, o que será de uma utilidade evidente. O cadastro nacional evitará a propositura de mais de uma ação coletiva versando sobre o mesmo tema e com mesma abrangência geográfica. Os indivíduos terão um meio adequado para buscar ações coletivas de seu interesse, o que tornará estas ações significativamente mais eficazes e poderá diminuir a propositura de ações individuais. Até o trabalho do judiciário será facilitado pelo cadastro, uma vez que qualquer magistrado, ao verificar na prática uma demanda repetitiva, poderá buscar no sistema se já existe uma ação coletiva proposta no mesmo sentido. Outra contribuição do cadastro nacional será a facilitação da obtenção de maiores informações acerca de uma ação coletiva. O indivíduo que for notificado por qualquer outro meio sobre a existência de ação que possivelmente lhe interesse, saberá que poderá encontrar neste cadastro uma fonte fiel de esclarecimento. Uma vantagem adicional seria a possibilidade de que, criada esta base de dados, os indivíduos e organizações possam ser avisados de ações propostas em determinadas áreas de seu interesse pelo sistema informatizado. Este mecanismo atualmente é muito comum em sites da internet, inclusive governamentais, e funcionaria de forma simples. O cidadão precisaria apenas cadastrar um endereço de email e informar ao sistema sua localização e áreas de interesse, através da marcação de opções predefinidas pelo administrador do cadastro. 124 GOMES JR., Luiz Manoel; FAVRETO, Rogerio. “O projeto de lei que disciplina as ações coletivas: abordagem comparativa sobre as principais inovações”. In: Em defesa de um novo sistema de processos coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. Mirna Cianci, Petrônio Calmon e Rita Quartieri (coords.). São Paulo: Saraiva, 2010. P. 391-392. 73 O cadastro de ações coletivas certamente será um instrumento valioso de participação popular para o Brasil e colocará o país na vanguarda mundial das práticas de e-government125 no Judiciário. 5.11. O PROCESSO DIGITAL COMO CONCRETIZAÇÃO DA NOTIFICAÇÃO ADEQUADA Uma contribuição significativa do anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivo do IBDP é seu art. 10, epigrafado como “Prioridade de processamento e utilização de meios eletrônicos”. Além da prioridade do processamento das demandas coletivas sobre as individuais, que é uma ideia muito razoável, o enunciado também contém a ordem de que sejam utilizados preferencialmente os meios eletrônicos para a prática de atos no processo coletivo. Apesar da regra não obrigar a adoção exclusiva de meio eletrônicos para o processo coletivo, ela evidencia a conveniência manifesta da utilização do processo digital neste tipo de tutela, em contraposição aos autos físicos. Considerando que os direitos e deveres subjacentes à tutela coletiva são de titularidade de variados sujeitos, nada mais adequado que o processo inteiro desenvolva-se por meio digital, sendo as peças principais acessíveis por qualquer interessado através da internet. Apesar dos autos físicos serem documentos públicos, obviamente seu acesso é muito mais difícil que aos autos em meio digital. A utilização do meio digital para a prática de atos no processo coletivo sem dúvidas colabora para a concretização da notificação adequada e facilita o acesso à justiça. Faz parte da garantia do direito das pessoas de terem informações sobre a tramitação de ação coletiva. Qualquer pessoa poderá verificar o andamento dos processos de seu interesse e, eventualmente, contratar um advogado para esclarecer questões ou praticar atos necessários. É importante esclarecer que, atualmente, nada impede que as ações coletivas tramitem por meio digital no Brasil. A Lei nº 11.419/2006 permite que qualquer processo judicial se desenvolva desta forma e confere o arcabouço legal 125 Mais informações sobre e-government em DELOITTE RESEARCH. At the Dawn of e-Government: The Citizen as Customer. Disponível em < http://www.egov.vic.gov.au/pdfs/e-government.pdf>. Acesso em 21 nov. 2011. 74 necessário. A decisão política de utilização do processo digital neste tipo de tutela seria muito bem-vinda e auxiliaria na concretização do devido processo legal coletivo. O art. 10 do CBPC-IBDP evidencia esta necessidade. A adoção do meio digital para a prática de atos processuais também é uma medida fundamental, que, assim como a criação do Cadastro Nacional de Ações Coletivas, deverá acompanhar qualquer mudança que vise à melhoria do sistema de processo coletivo brasileiro. 5.12. O SISTEMA DE NOTIFICAÇÕES NO ANTEPROJETO DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL COLETIVO DE ANTONIO GIDI Após analisar os demais anteprojetos de código de processo coletivo, passemos ao exame da sistemática das notificações no anteprojeto de Antonio Gidi.126 Este foi o primeiro anteprojeto apresentado no país e é o único que traz uma modificação substancial em relação à sistemática apresentada pela legislação atual. Neste anteprojeto, a preocupação com o tema das notificações está patente desde a exposição de motivos: Uma das contribuições deste projeto é eliminar injustificadas diferenças procedimentais em ações coletivas. Tais diferenças existem no Brasil e nos Estados Unidos meramente por casualidades e equívocos históricos e esta é a oportunidade para corrigir tais deformações. Não há nada que justifique que a notificação nas ações coletivas indenizatórias americanas (class actions for damages) seja mais rigorosa do que nas demais ações coletivas...127 Em outro trabalho, em que criticava o sistema de notificações do Código Modelo para Ibero-américa, Antonio Gidi demonstrou a mesma preocupação, afirmando que aquele código deveria conter uma norma intermediária, que não fosse tão custosa e absurda como a norte-americana, nem tão insuficiente e fictícia com a brasileira. Sustentava que uma norma adequada poderia, por exemplo, informar ao grupo como um todo, através de notificação ao ministério público, aos entes públicos 126 Consultado no anexo de DIDIER Jr, Fredie. ZANETI Jr., Hermes. Op. Cit. P. 453-465 e na publicação da revista de processo GIDI, Antonio. Código de processo civil coletivo: um modelo para países de direito escrito”, Revista de Processo, São Paulo, v. 111, 2003. p. 192-208. 127 GIDI, Antonio. “Código de processo civil... Op. Cit. P. 192. 75 e privados importantes e notificar individualmente alguns membros do grupo, que seriam selecionados por amostragem.128 O professor baiano desenvolveu toda a sistemática das notificações de seu anteprojeto no artigo 5º, que é epigrafado como “notificação adequada”. A localização deste dispositivo no corpo do texto já demonstra uma modificação significativa no tratamento das notificações, pois o artigo está inserido no Título II que regulamenta o procedimento coletivo como um todo. Daí já se percebe a primeira diferença substancial em relação ao atual ordenamento: o sistema das notificações é unificado para todas as ações coletivas. Há uma preocupação evidente com a informação adequada na tutela de todos os tipos de direitos coletivos e não há nenhuma diferenciação em relação aos direitos individuais homogêneos. O caput do artigo utiliza a fórmula originária da suprema corte americana129, afirmando que, na fase inicial do processo, o juiz promoverá, com o auxílio das partes a melhor notificação possível para o grupo e seus membros, atendendo às peculiaridades do caso concreto. Entretanto, o anteprojeto não se limitou a enunciar esta regra, de interpretação tão aberta, e disciplinou as notificações de modo pormenorizado nos pontos subsequentes. O art. 5.1 enuncia as características da notificação, afirmando que esta deve ser econômica, eficiente e abrangente, direcionada a atingir o maior número possível de legitimados coletivos e membros do grupo. O enunciado também define os entes de notificação compulsória em todos os casos: o Ministério Público, o Fundo dos Direitos de Grupo, as entidades e órgãos relevantes, as associações nacionais e regionais mais representativas e uma pequena amostra dos membros do grupo facilmente identificáveis. Tal rol se demonstra adequado e extremamente representativo. O art. 5.2 confere ao juiz a possibilidade de proceder a notificação adequada através de qualquer meio eficiente em relação às particularidades do grupo. Já o art. 5.3 traz a disciplina do custeio das notificações, tema muito controvertido na jurisprudência norte-americana como demonstrado com o caso Eisen. A regra geral do anteprojeto é que o representante do grupo suporte este ônus, porém, quando o juiz verificar que a notificação é difícil e custosa para o 128 129 GIDI, Antonio. “Notas críticas... op. cit. P. 416. Comentada em ponto infra. 76 representante, mas não o é para a parte contrária ao grupo, o juiz poderá atribuir-lhe tal função. Após o exame da probabilidade de sucesso da pretensão coletiva, o juiz pode até mesmo ordenar que as despesas com notificação sejam total ou parcialmente suportadas pelo réu (art. 5.12). Um bom exemplo da necessidade da inversão aconteceria numa ação em que um sindicato atuasse contra algumas empresas, na condição de representante de seus empregados. O sindicato teria dificuldade em realizara a notificação, porém o juiz poderia determinar que as empresas incluíssem um aviso nos contracheques, que costumeiramente já tem uma parte formatada para mensagens, implicando em um custo inexpressivo para as empresas rés. Este exemplo talvez se enquadre até melhor na previsão específica do art. 5.13, que explicita a possibilidade da notificação através de alguns meios de comunicação constante que o réu mantenha com os membros do grupo, após um juízo de probabilidade de sucesso da pretensão coletiva realizado pelo magistrado. Outro exemplo enquadrado nesta previsão é a notificação de usuários de serviços continuados, como telefonia, água e luz, através da fatura mensal. Há uma preocupação evidente com o conteúdo substancial da notificação do art. 5.4 ao 5.6. O anteprojeto cria parâmetros normativos para a linguagem utilizada na notificação, define seus elementos essenciais e confere ao juiz o poder/dever de controle de seu conteúdo. O regramento é nitidamente inspirado na regra 23(c)(2)(b), das Federal Rules of Civil Procedure norte-americanas, porém se afasta da descabida necessidade de notificação individual de todos os membros identificáveis. Para não restarem dúvidas de que o anteprojeto não consagra esta regra infeliz, o art. 5.7 explicita que em determinadas situações o juiz pode até reduzir ou dispensar a notificação individual da pequena amostra dos membros do grupo. É estabelecida uma relação interessante entra a notificação e a representação adequadas no art. 5.8 do código modelo. O representante do grupo, mesmo tendo passado em um exame inicial de legitimidade, pode passar a ser considerado ilegítimo caso não mantenha os membros do grupo constantemente informados sobre os fatos relevantes da ação coletiva. Caso o magistrado entenda insatisfatória a informação periódica fornecida pelo representante, também poderá promover, de ofício, a notificação formal de qualquer evento do processo. 77 A sistemática apresentada pelo anteprojeto inclui a proteção do réu quanto às ações manifestamente incabíveis ou infundadas no art. 5.10. A notificação destas ações poderia causar prejuízos injustificáveis, portanto, o juiz não deve nem promover a notificação nestes casos. Em casos duvidosos, o juiz pode retardar a notificação mais ampla, notificando apenas os legitimados coletivos mais significativos em um primeiro momento, até formar sua convicção sobre o cabimento e a boa-fé da ação coletiva (art. 5.11). O anteprojeto ainda disciplina expressamente a possibilidade de criação e manutenção de um site na internet para facilitar a comunicação sobre a ação coletiva no art. 5.14. A sistemática da notificação adequada apresentada por Antonio Gidi em seu anteprojeto é extraordinária. Inova completamente em relação ao parco regramento atual e atende a todos os anseios relacionados às ações coletivas. Sua adoção representaria um grande salto qualitativo no processo coletivo brasileiro, garantido um efetivo acesso à justiça. 5.13. POSIÇÃO SUSTENTADA NESTE TRABALHO A notificação adequada se apresenta como um princípio basilar para o respeito ao devido processo legal coletivo. Sem a informação adequada sobre a existência das ações coletivas e seus desdobramentos, é impossível que o sistema da tutela coletiva funcione de modo eficiente e produza os resultados desejáveis. A sistemática das notificações no atual processo coletivo brasileiro é de uma insuficiência patente. Difere a notificação da tutela de direitos individuais homogêneos das demais, de forma injustificada. Quando muito, exige a notificação através de edital publicado no Diário Oficial, cujo alcance real é praticamente nulo. Apesar de a lei permitir uma divulgação mais ampla através dos instrumentos de comunicação social, não há qualquer consequência se isto não for realizado. Também não existem preocupações em relação à publicidade de demandas sobre direitos essencialmente coletivos, o que impede que indivíduos conheçam as ações de seu interesse e possam aproveitar a coisa julgada coletiva para eventualmente serem ressarcidos de danos individuais. Em um estudo de direito comparado, é possível perceber que as notificações das class actions for damages norte-americanas não constituem um paradigma adequado ao processo coletivo brasileiro. Este regramento exige a 78 notificação individualizada de todos os membros do grupo identificáveis, o que torna o procedimento de certificação extremamente complexo, notadamente quando a ação envolve uma quantidade grande de indivíduos. Além disso, esta obrigatoriedade gera custos tão elevados que tornam as demandas por vezes inviáveis e em outras diminuem significativamente seu resultado útil. Examinando as propostas doutrinárias para um código de processo coletivo, percebe-se que a maioria delas mantém a mesma insuficiência nas notificações apresentada pela legislação atual. No entanto, trazem algumas inovações interessantes, como o Cadastro Nacional de Ações Coletivas e a regra da preferência de utilização de meios eletrônicos no processo coletivo, que podem contribuir de forma decisiva para a melhoria do sistema. Diante da insuficiência da notificação na legislação brasileira, pode-se considerar que estamos diante de uma lacuna jurídica, que, segundo Karl Engisch, é a incompletude da lei contrária ao plano.130 A ausência da notificação adequada é completamente contrária às normas que orientam a tutela coletiva e o acesso à justiça. De lege lata, a melhor interpretação para a legislação atual seria que os magistrados efetivassem a notificação adequada em obediência aos princípios constitucionais do contraditório e do devido processo legal.131 O mais indicado para aperfeiçoar o sistema da tutela coletiva em relação à notificação adequada é a mudança legislativa, com a fixação de critérios normativos para sua realização. Dentre as propostas apresentadas, o regramento contido no artigo 5º do Código Modelo de Antonio Gidi é o mais completo e eficiente, tendo logrado êxito na tarefa que se propôs de criar um sistema de normas intermediário entre o insuficiente sistema brasileiro e o pesado sistema norteamericano. Esta proposta, aliada ao Cadastro Nacional de Ações Coletivas e a priorização do meio digital para este tipo de tutela, certamente contribuiriam decisivamente para a evolução do tratamento processual das situações jurídicas coletivas. 130 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 10. ed. Trad. João Baptista Machado. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008. P. 281. 131 GIDI, Antonio. Critica.. Op. Cit. P. 418. 79 6. A FLUID RECOVERY NA TRADIÇÃO DA COMMON LAW A fluid recovery é uma técnica de liquidação e execução de ações coletivas oriunda da experiência jurídica norte-americana, que faz parte da tradição da common law. Ada Pellegrini Grinover, coautora do anteprojeto do código brasileiro de defesa do consumidor, que introduziu uma forma peculiar de fluid recovery no art. 100 confirma a origem do instituto.132 A primeira menção ao termo no Brasil foi feita em artigo do italiano Mauro Cappelletti sobre a tutela coletiva, cuja tradução foi publicada em 1977 na Revista de Processo. Em estudo comparatista, o autor elencou a fluid recovery norte-americana como uma das possíveis abordagens para o enfrentamento dos problemas dos direitos de grupo133. Antes de adentrar as reflexões sobre a fluid recovery do direito brasileiro, convém analisar os aspectos gerais do instituto em sua origem. A intenção desta abordagem é verificar a procedência e o funcionamento deste mecanismo no direito norte-americano, suas transformações ao longo do tempo e sumarizar as controvérsias que o tema suscita. Estas informações são úteis para a melhor compreensão do instituto no direito brasileiro e servem também para instigar reflexões sobre o seu aperfeiçoamento na prática jurídica e na legislação nacional. O direito norte-americano faz parte da tradição jurídica da common law. A ideia de tradição jurídica traduz “um conjunto de atitudes historicamente condicionadas e profundamente enraizadas a respeito da natureza do direito e do seu papel na sociedade e na organização política” sobre a melhor forma de organizar e operacionalizar o sistema legal. A concepção é abrangente, pois ainda carrega as noções de “como o direito deve ser produzido, aplicado, estudado, aperfeiçoado e ensinado. A tradição jurídica coloca o sistema legal na perspectiva cultural da qual ele, em parte, é expressão.”134 Por isto, prefere-se o emprego do vocábulo “tradição” ao termo “sistema” jurídico, pois poderia haver confusão com o 132 GRINOVER, Ada Pellegrini. Capítulo II – Das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos. In ______ et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - Comentado Pelos Autores do Anteprojeto. Vol II. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. P. 163. Na nota 77 desta página, a autora faz referência ao artigo de Mauro Cappelletti no original publicado na Itália em 1975. 133 CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Traduzido por Nelson Campos. Revista de processo, São Paulo, n. 05, p. 128-159, 1977. P. 153 e 154. 134 MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogério. A tradição do civil law. Uma introdução aos sistemas jurídicos da Europa e da América Latina. Tradução: Cássio Casagrande. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2009. P. 23. 80 conjunto de normas, processos e instituições legais vigentes em determinado país.135 O Brasil não compartilha da mesma cultura jurídica dos Estados Unidos. Ordinariamente, é apontado como parte da outra grande família jurídica ocidental, a tradição da civil law. Trabalhar com a noção de tradição jurídica é útil para a percepção dos diferentes matizes culturais subjacentes ao Direito de determinado grupo de países. Certamente, aqueles elencados dentro de uma mesma tradição jurídica têm várias diferenças entre os seus Direitos nacionais; entretanto a noção é útil pelo fato de que é possível verificar semelhanças significativas e referenciais culturais comuns. Isto facilita a compreensão, principalmente do jurista estrangeiro. Merryman e Pérez-Perdomo estão corretos em referir que a formulação de pressupostos genéricos e os julgamentos precipitados “que as pessoas em ambas as tradições costumam fazer sobre os sistemas legais estrangeiros, são uma fonte permanente de incompreensão e irritação”136 Atualmente, com a facilitação das comunicações e o aumento dos intercâmbios comerciais e culturais entre os países, as grandes tradições jurídicas tem se aproximado significativamente. A Inglaterra e os Estados-Unidos, integrantes da common law, adotaram códigos escritos de processo civil. Ao mesmo tempo, em países como o Brasil, Alemanha e França, tradicionais integrantes da civil law, é perceptível uma gradativa institucionalização do respeito aos precedentes. No direito processual civil brasileiro contemporâneo, o princípio do devido processo legal tem destacada importância. Ademais, o respeito aos precedentes, notadamente dos tribunais superiores, é cada vez maior. Estes são exemplos da influência de caracteres oriundos da tradição da common law no país. A cultura jurídica brasileira se apropriou de diversos elementos exógenos e conferiu um caráter peculiar a eles, que confere a diversos institutos uma originalidade nacional. As influências são tamanhas, que é possível dizer que o Brasil tem uma tradição jurídica própria, que poderia ser denominada brazilian law137. A fluid recovery brasileira está inserida neste fenômeno. Não parece exagero argumentar que o 135 MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogério. Op. cit. P. 21. Ibid. P. 200. 137 A ideia é sustentada por Fredie Didier no Curso de Direito Processual Civil. 13 ed. Vol. 1. Salvador: JusPODIVM, 2011. P.41-43. A expressão brazilian law, conforme Didier explica na nota 82, é ideia de Gabriel Dourado Dias e surgiu em sala de aula que o autor deste trabalho estava presente. 136 81 Direito brasileiro, utilizando a metáfora da antropofagia preconizada por Oswald de Andrade no seu Manifesto de 1928138, por vez “devora” institutos estrangeiros e lhes confere caracteres peculiares, na construção da cultura jurídica nacional. Em face desta peculiaridade do modelo jurídico brasileiro, resolveu-se investigar a fluid recovery em sua origem. Para um estudo mais abrangente, ela será analisada no contexto geral dos países de common law e não somente nos Estados Unidos. Por vezes, os países têm diferenças significativas na aplicação dos institutos. A título de exemplo, enquanto os Estados Unidos aplica este mecanismo somente com base em precedentes, a província de Ontário, no Canadá, utiliza uma lei escrita sobre o tema. É curioso que, por razões muito semelhantes, enquanto a fluid recovery encontra reflexos no Brasil, no Canadá e na África do Sul, teve sua adoção repudiada por uma comissão de reforma legislativa da Austrália em 1988. 139 O trabalho de Rachel Mulheron na obra “The class action in common law legal systems – a comparative perspective”140 sustenta a abordagem de que o processo coletivo nos diferentes países mundo da common law encontra peculiaridades e distinções importantes, que comportam uma abordagem comparatista. É interessante extrapolar os limites da experiência do processo coletivo norte-americano, que é a referência mundial, percebendo o avançado estado de desenvolvimento de outros países de mesma tradição jurídica nesta seara, enquanto o Brasil se tornou um referencial para os países de direito escrito. 6.1. ORIGEM, TERMINOLOGIA E EVOLUÇÃO DO INSTITUTO O instituto da fluid recovery é um meio para empregar o dinheiro oriundo de ações coletivas que não tenha sido reclamado pelos indivíduos diretamente afetados pelo evento danoso, de forma a beneficiar, da melhor forma possível, o grupo de vítimas. É, nitidamente, uma forma de reparação indireta. Juristas da 138 As possíveis relações entre o Manifesto Antropófago, o anarquismo metodológico e o Direito foram exploradas em artigo criado na elevada ambiência acadêmica proporcionada pelos professores Rodolfo Pamplona Filho e Nelson Cerqueira na disciplina Metodologia da Pesquisa em Direito de 2012.2 do PPGD da UFBA: LORDELO, João Paulo. SPÍNOLA GOMES, Técio. Um jantar com Oswald de Andrade e Paul Feyerabend: seria o Direito uma refeição viável?. No prelo. 139 MULHERON, Rachael P. The modern Cy-prés Doctrine: Applications & Implications. London: UCL Press, 2006. P. 230-231. 140 Idem. The class action in common law legal systems: a comparative perspective. Oxford: Hart Publishing, 2004. P. 15-20. 82 common law, como Stan Karas141, explicam o mecanismo como sendo a aplicação dos recursos no melhor uso aproximado (next best use), nos casos em que a reparação direta mostra-se impossível ou inapropriada. A utilização destes recursos é geralmente feita pela criação de um fundo com o objetivo de financiar fins conexos ao objeto do processo ou pela ordem de redução temporária dos preços do produto do réu, até que o ganho julgado ilícito seja equiparado ao prejuízo. Rachael Mulheron142 noticia que a jurisprudência norte-americana referese ao instituto por vezes como fluid recovery e outras vezes por cy pres. A autora afirma que há uma crítica generalizada quanto ao emprego do termo fluid recovery, pois esta expressão é imprecisa e conduz a enganos conceituais. Este termo seria empregado em múltiplos sentidos nos Estados Unidos por juízes e comentadores, levando a grande confusão terminológica. A polissemia desaconselha a sua utilização naquele sistema. Mulheron afirma que o primeiro emprego da expressão fluid recovery parece ter ocorrido no caso Eisen v. Carlisle & Jacquelin143. Naquelas circunstâncias, o magistrado do caso, Juiz Tyler, estava preocupado com a possível administração de um fundo em que potencialmente quase seis milhões de vítimas poderiam se habilitar. O caso tratava de cobranças indevidas a pequenos investidores no período de 1962 a 1966. Mulheron144 informa que, naquela oportunidade, o Juiz Tyler descreveu a fluid recovery de modo um pouco obscuro, explicando apenas que se tratava da distribuição de dinheiro para um grupo de forma unitária, ao invés de adotar, como inicialmente planejado, um modelo inflexível de reparação individual para cada um dos milhões de membros do grupo afetado. Neste trabalho, preferiu-se empregar o termo fluid recovery pelo fato de que o instituto é popularmente conhecido no país desta forma, pois, como explicado no ponto anterior, esta foi a expressão empregada por Mauro Cappelletti em artigo seminal sobre a tutela coletiva, cuja influência foi notável para o processo brasileiro. 141 KARAS, Stan. The Role of Fluid Recovery in Consumer Protection Litigation: Kraus v. Trinity Management Services. California Law Review, Berkeley, v. 90, 2002. P. 961-962. 142 MULHERON, Rachael P. The modern Cy-prés Doctrine: Applications & Implications. London: UCL Press, 2006. P. 216-217. 143 Eisen v. Carlisle & Jacquelin, 52 FRD 253 (SDNY 1971). As importantes decisões de primeiro e segundo grau sobre a notificação adequada neste processo foram comentadas em capítulo anterior. 144 MULHERON, Rachael P. Op cit. P. 217. 83 A expressão não gera confusões terminológicas no país, pois só designa a aplicação peculiar deste instituto prevista no art. 100 do CDC. É interessante notar que o precedente trazido o sobre instituto por Cappelletti foi justamente o caso Eisen v. Carlisle & Jacquelin, já referido como primeira menção ao termo fluid recovery nos Estados Unidos. A fonte de pesquisa do autor para este artigo originalmente publicado em 1975, foi o periódico U.S. Law Week de maio de 1974.145 Isto demonstra que o italiano estava bastante atualizado em relação aos precedentes norte-americanos de sua época. O caso Eisen foi extremamente polêmico e atraiu a curiosidade de diversos comentaristas. Ann Taylor Schwing146 , em artigo publicado em 1974, ano da decisão final, proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, afirmou que a importância deste precedente foi expor as dificuldades encontradas no manejo de uma ação coletiva que envolve os interesses de um grande número de pessoas. Neste artigo, é interessante perceber que os juristas norte-americanos da época ainda tentavam se adequar à reforma feita poucos anos antes, em 1966, da regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure, que expandiu muito a utilização das class actions norte-americanas e definiu a maioria dos contornos atuais deste instituto. O termo cy prés atualmente é o mais utilizada para designar o instituto na tradição da common law. Richard Nagareda informa que este termo é derivado da expressão franco normanda “cy pres comme possible”, que significa “tão próximo quanto possível”.147 Rachel Mulheron afirma que as origens são duvidosas, sendo certo apenas que se trata de expressão muito antiga, sendo possível identificar na literatura inglesa precedentes de sua utilização em casos judiciais de 1481.148 Na tradição da common law, a Cy Prés é uma doutrina jurídica cuja aplicação vai muito além das ações coletivas. Sua aplicação mais comum é em relação ao direito dos trusts, que são estruturas jurídicas instituídas por ato inter vivos ou por testamento, em que o instituinte (settlor) designa bens que devem ser administrados por uma pessoa (trustee) para um determinado fim, em proveito de 145 CAPPELLETTI, Mauro. Op. cit. P. 153. SCHWING, Ann Taylor. Eisen v. Carlisle & Jacquelin: fluid recovery, minihearing and notices in class actions. Boston University Law Review, Boston, v. 54, 1974. P. 111-112. 147 NAGAREDA, Richard A. The Law of Class Actions and Other Aggregate Litigation. Eagan: Foundation Press, 2009. P. 498. 148 MULHERON, Rachael P. The modern Cy-prés Doctrine: Applications & Implications. London: UCL Press, 2006. P. 5. 146 84 um ou mais beneficiários. O instituto não é utilizado no direito brasileiro; entretanto é muito semelhante ao fideicomisso, previsto no art. 1951 e seguintes do Código Civil, e guarda com eles as mesmas raízes no direito romano. Aplicada aos trusts, a doutrina da cy prés serve de solução para os casos em que a destinação definida pelo instituidor tornar-se impossível, permitindo que uma corte judicial interprete a vontade do instituidor para um uso assemelhado.149 Por exemplo, se uma pessoa afetar bens para conferir uma bolsa de estudos anual em uma determinada universidade e a instituição fechar, a corte pode ordenar que os recursos sejam utilizados para conferir a bolsa em outra universidade. Rachel Mulheron150 informa que a utilização da ideia cy pres para afetar recursos ao “próximo melhor uso” (next best use) quando é impossível realizar a destinação original instituída é bem antiga e remonta ao direito romano. Identifica, por exemplo, opinião do jurisconsulto Modestinus do ano 240 no sentido de que se um testador havia deixado soma para auxiliar na realização de um determinado evento romano que fora considerado ilegal, após a oitiva dos herdeiros e do governo, os recursos destinados pelo testados deveriam ser empregados em um propósito próximo ao que fora instituído e que fosse lícito. A autora também explica que, em tribunais eclesiásticos, o mesmo era feito em relação aos testamentos, sob a justificativa da salvação da alma do testador que havia instituído um ato de caridade que se tornara impossível ou ilícito. Por fim, a ideia foi incorporada à common law por intermédio da Court of Chancery, que podia julgar por equidade e assimilou o instituto dos tribunais eclesiásticos. Nos Estados Unidos, já no século XX, a doutrina da cy prés passou a ser utilizada também nas ações coletivas. Com ela, os tribunais poderiam sancionar o responsável por um determinado ilícito que atingiu muitas pessoas, nos casos em que a reparação direta é impossível ou impraticável. Mesmo quando a reparação direta é possível, mas muitas pessoas acabam não se habilitando para receber as reparações individuais, é possível utilizar esta solução para os recursos não reclamados. Esta estrutura em relação ao processo coletivo, que é conhecida no 149 FISCH, Edith L. The cy pres doctrine and changing philosophies. Michigan Law Review, Ann Arbor, v. 54, 1953. P. 375. 150 MULHERON, Rachael P. Op. cit. P. 6-8. 85 Brasil, é apenas uma das suas hipóteses de aplicação da doutrina da cy pres e sequer é a mais comum. Mesmo na tradição da common law, existem poucas obras densas específicas sobre a doutrina da cy prés. Apesar de o tema ter sido enfrentado diversas vezes pelos tribunais, existindo vários precedentes que delinearam o assunto e muitos artigos que comentam estes julgados, raras foram as pesquisas mais aprofundadas com uma preocupação sistemática. Nos Estados Unidos, a única obra que sobressai data de 1950, é intitulada The cy pres doctrine in the United States e foi escrita pela professora Edit Fisch.151 No Reino Unido, até pouco tempo só se destacava a obra de Sheridan e Delany152, intitulada The cy-prés doctrine, datada de 1959. Nenhuma das duas obras trata da aplicação do instituto na impre execução das ações coletivas. Ambos os livros foram publicados antes da reforma de 1966 da regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure. Só existe um livro mais atual sobre o instituto em comento. No ano de 2006, a professora Rachel Mulheron publicou a obra The modern Cy-prés Doctrine: Applications & Implications.153 Trata-se de vigoroso estudo sobre a doutrina da cyprés que aborda em dois capítulos especificamente o problema de sua aplicação nas ações coletivas. Esta obra é o maior referencial sobre o tema na literatura jurídica internacional e foi elaborada por uma professora que tem experiência acadêmica e profissional em diversos países da common law, notadamente na Austrália, Reino Unido, Estados Unidos e Canadá. Esta obra constitui o maior referencial teórico e fonte de informação das reflexões presentes neste trabalho. 6.2. PANORAMA DA APLICAÇÃO DA TÉCNICA NAS AÇÕES COLETIVAS DAS JURISDIÇÕES DA COMMON LAW A aplicação da técnica fluid recovery nas ações coletivas dos diferentes países da common law varia significativamente. Existem ordenamentos jurídicos que admitem a utilização da técnica e outros que a repudiam de forma veemente. Entre 151 FISCH, Edith L. The cy pres doctrine in the United States. Albany: Matthew Bender & Co, 1950. SHERIDAN, L.A; DELANY, V.T.H. The cy-prés doctrine. Londres: Sweet & Maxwell, 1959. 153 MULHERON, Rachael P. The modern Cy-prés Doctrine: Applications & Implications. London: UCL Press, 2006. 152 86 os países que a admitem, é possível observar contrastes substanciais no modo de aplicação e nas circunstâncias em que é viabilizada a utilização deste instituto. Por exemplo, enquanto alguns países aplicam a fluid recovery somente com base em precedentes judiciais, outros se baseiam no direito escrito para a aplicação desta forma de tutela. Rachel Mulheron chega a afirmar que não há duas jurisdições que concordem integralmente nesta matéria.154 Diante destes acentuados contrastes, é relevante expor os aspectos gerais dos países que adotam mecanismos de fluid recovery em suas ações coletivas. Austrália, Canadá e Estados Unidos serão estudados em pontos específicos por serem os principais países da common law com experiência jurídica no tema discorrido.155 6.2.1. Canadá O Canadá é uma federação composta por dez províncias e três territórios. Estas províncias tem um grau de autonomia que possibilita diferenças internas no processo coletivo, o que difere do Brasil, pois a CFRB atribui no art. 22, I competência legislativa privativa na União sobre o direito processual. Rachel Mulheron afirma que, em geral, as jurisdições provinciais canadenses tem demonstrado grande receptividade à técnica da fluid recovery como parte da sua sistemática de ações coletivas.156 A experiência canadense é relevante para o estudioso brasileiro, pois algumas regiões do país tem forte ênfase no direito escrito, o que as aproxima da tradição do Direito pátrio. A província de Ontário é a mais populosa do Canadá. Concentra cerca de um terço da população do país e nela estão situadas Toronto, a maior cidade canadense, bem como a capital nacional, Ottawa. A província de Ontário admite a utilização da fluid recovery contra os réus nas ações coletivas. O interessante é que a previsão tem base em lei. A técnica é disposta em alguns itens da seção 26 do Class Proceedings Act de 1992: 154 MULHERON, Rachael P. Op. cit. P. 229. O panorama elaborado neste ponto restringe-se a aplicação da técnica estudada nos países de common law. Remete-se o leitor para a parte II da obra de Aluíso Gonçalves de Castro Mendes para um panorama comparatista do processo coletivo em geral em vários países: MENDES, Aluisio. Op. cit.. P. 38-188. 156 MULHERON, Rachael P. Op. cit. P. 232. 155 87 Judgment distribution 26. (1) The court may direct any means of distribution of amounts awarded under section 24 or 25 that it considers appropriate […] (4) The court may order that all or a part of an award under section 24 that has not been distributed within a time set by the court be applied in any manner that may reasonably be expected to benefit class members, even though the order does not provide for monetary relief to individual class members, if the court is satisfied that a reasonable number of class members who would not otherwise receive monetary relief would benefit from the order. (5) The court may make an order under subsection (4) whether or not all class members can be identified or all of their shares can be exactly determined. (6) The court may make an order under subsection (4) even if the order would benefit, (a) persons who are not class members; or (b) persons who may otherwise receive monetary relief as a result of the class proceeding. 157 Esta previsão legislativa é extremamente minudente. Para a boa compreensão, é importante esclarecer que no item 26.1 a referência à seção 24 é à reparação dos danos em favor do grupo e a seção 25 traz a reparação dos danos em favor dos membros do grupo individualmente considerados. A seção 26 do Class Proceedings Act de Ontário pode servir de paradigma para reformas legislativas no Brasil. Apesar de evidentes falhas, como a falta de definição das situações em que a técnica é obrigatória e dos requisitos para a sua aplicação, esta lei traz possibilidades significativas em relação ao direito nacional: (i) a definição de que a fluid recovery pode ser aplicada de modo integral ou parcial em relação à condenação; (ii) a possibilidade de fixação judicial do termo final para a distribuição individual de recursos oriundos da ação coletiva; (iii) a possibilidade de execução coletiva imediata quando a corte julgar que uma quantidade razoável de membros do grupo será beneficiada deste modo e não teria proveito com as reparações individuais; (iv) a definição de que não é preciso que os membros do grupo sejam todos identificados e suas partes exatamente quantificadas para a aplicação da técnica e (v) o esclarecimento de que é possível a 157 ONTÁRIO – CANADÁ. Class Proceedings Act. Disponível em <http://www.elaws.gov.on.ca/html/statutes/english/elaws_statutes_92c06_e.htm>. Acesso 10 fev 2013. 88 execução coletiva mesmo quando esta beneficie pessoas que são membros do grupo que poderiam ter recebido reparações individuais na ação coletiva e também indivíduos que não fazem parte do grupo atingido. Além desta importante previsão de Ontário, várias outras províncias admitem formas de fluid recovery, como Alberta, Colúmbia Britânica, Manitoba, Terra Nova e Labrador, Quebec e Saskatchewan.158 Jasminka Kalajdzic, professora da Universidade de Windsor, aduz, expressamente, que existem casos em que esta técnica é um modo eficiente para alcançar o acesso à justiça e afirma que a maior parte dos estudiosos canadenses mostra-se favorável ao instituto159. A experiência legislativa e jurisprudencial das diversas províncias canadenses é valiosa para a análise do instituto e o seu aperfeiçoamento no processo coletivo. 6.2.2. Austrália O direito processual civil coletivo australiano traz uma previsão curiosa de mecanismo de fluid recovery. Não há permissão geral para a aplicação do instituto. No entanto, o Federal Court of Australia Act de 1976, na parte IVA, divisão 4, 33ZA, itens (1) e (5) prevê um mecanismo no qual é possível formar um fundo coletivo para a reparação dos membros do grupo, sem quantificar as reparações individuais. Acontece que, após o decurso de um termo final fixado judicialmente, o resíduo não reclamado deve ser inteiramente revertido para o réu: (1) Without limiting the operation of subsection 33Z(2), in making provision for the distribution of money to group members, the Court may provide for: (a) the constitution and administration of a fund consisting of the money to be distributed; and (b) either: (i) the payment by the respondent of a fixed sum of money into the fund; or (ii) the payment by the respondent into the fund of such instalments, on such terms, as the Court directs to meet the claims of group members; and (c) entitlements to interest earned on the money in the fund. […] 158 MULHERON, Rachael P. Op. cit. P. 233. KALAJDZIC, Jasminka. Access to a Just Result: Revisiting Settlement Standards and Cy Pres Distributions. The Canadian Class Action Review, Toronto, Vol. 6, No. 1, 2010. P. 237. 159 89 (5) On application by the respondent in the representative proceeding after the day fixed under paragraph (3)(d), the Court may make such orders as are just for the payment from the fund to the respondent of the money remaining in the fund.160 Parece evidente que o mecanismo previsto na legislação australiana serve apenas como garantia para as pretensões reparatórias individuais dos membros do grupo afetado. Trata-se de tutela cautelar, que visa assegurar a efetivação futura das pretensões individuais. Eventual execução coletiva é feita apenas de forma provisória para assegurar as execuções individuais. Recente artigo australiano, que elenca reflexões sobre as propostas de reforma do processo coletivo daquele país, denota forte resistência acadêmica em relação à admissibilidade geral do mecanismo da fluid recovery. Stuart Clark e Christina Harris161 afirmam que, para eles: “é claro que a introdução de tamanho poder [para o magistrado] constitui um afastamento radical do que foi delineado quando as ações coletivas australianas foram introduzidas. Isto [a positivação do mecanismo] levaria inevitavelmente à proliferação de ações coletivas que, na verdade, beneficiariam a ninguém diretamente senão aos advogados que ajuizaram e acompanharam as ações” O argumento dos autores não convence. A ampliação da tutela coletiva em prol do acesso à justiça parece ser uma tendência internacional. Ademais, tomar como dogmas os posicionamentos inicialmente ventilados na introdução de um instituto é de um conservadorismo injustificável. A preocupação com a efetividade da tutela coletiva em relação aos membros do grupo é pertinente; entretanto existem diversos mecanismos para garanti-la e a inadmissibilidade da execução coletiva não é um meio idôneo para assegurá-la. Ao revés, a vedação parece apenas contribuir para que violações em massa sejam perpetradas, pois os seus agentes ficarão seguros toda vez que causarem danos pequenos a muitos indivíduos. Consequentemente, a busca da reparação individual torna-se desinteressante em face da burocracia. 160 AUSTRÁLIA. Federal Court of Australia Act. Disponível em <http://www.comlaw.gov.au/Series/C2004A01586>. Acesso em 23 fev 2013. 161 CLARK, Stuart; HARRIS, Christina. The push to reform class action procedure in Australia: evolution or revolution? Melbourne University Law Review, Melbourne, v. 32, n. 3, 2008. P. 805. Tradução livre do original “Having regard to what is proposed, it is clear that the introduction of such a power would constitute a radical departure from what was envisaged at the time the Australian class action system was introduced. It would inevitably lead to a proliferation of class actions that would, in truth, benefit nobody directly other than the lawyers promoting and litigating the actions.” 90 Em síntese, a Austrália não conta com um mecanismo verdadeiro de execução coletiva e sua adoção por reforma legislativa encontra forte resistência acadêmica. Entretanto, a experiência jurídica australiana é útil para a percepção da utilidade da técnica da fluid recovery como modo de assegurar a execução futura de pretensões individuais. 6.2.3. Estados Unidos O mecanismo da fluid recovery surgiu na experiência jurídica norteamericana. Até o presente, este é o país que apresenta o mais notável desenvolvimento jurisprudencial. Vale ressaltar que o instituto surgiu como uma solução pragmática para o enfrentamento do problema da distribuição do dinheiro nas ações coletivas. Foi fruto de criatividade judicial e se desenvolveu inteiramente com base em precedentes. Não havia qualquer lei promulgada pelo Parlamento autorizando a sua utilização. Aos olhos de um brasileiro, mesmo em face do recente desenvolvimento do respeito aos precedentes no país, causa espanto a possibilidade de adoção inteiramente jurisprudencial de um instituto apto para afetar o patrimônio de modo gravoso. A evidência reforça a importância de estudar as peculiares das diferentes tradições jurídicas. Os primeiros precedentes da aplicação da doutrina da cy prés nas class actions norte-americanas, como solução criativa e flexível para os problemas de distribuição dos recursos, datam da década de 1940. Atualmente, muitas cortes federais, distritais e estaduais já aprovaram o uso do instituto nas class actions.162 Alguns Estados, como a Califórnia, promulgaram leis autorizando expressamente o emprego deste mecanismo na tutela coletiva.163 Rachel Mulheron164 noticia que, por vezes, a fluid recovery encontra certa resistência em algumas cortes de apelação norte-americanas, que atuam como a segunda instância nos processos e são extremamente rigorosas para admitir o emprego deste tipo de mecanismo. A Suprema Corte americana nunca se 162 MULHERON, Rachael P. Op. cit. P. 237. KARAS, Stan. The Role of Fluid Recovery in Consumer Protection Litigation: Kraus v. Trinity Management Services. California Law Review, Berkeley, v. 90, 2002. P. 962. 164 MULHERON, Rachael P. Op. cit. P. 238. 163 91 pronunciou sobre a validade do instituto, tendo declinado o seu exame em duas oportunidades165. A opinião acadêmica é amplamente favorável à utilização da fluid recovery nos Estados Unidos, porém setores minoritários tecem amplas críticas ao instituto, por variados motivos. Beisner, Miller e Schwartz166 integram esta linha e sustentam que o instituto representa uma ameaça ao direito do devido processo legal, tanto dos réus quanto dos membros do grupo ausentes. Para estes autores, a utilização deste mecanismo por ordem judicial infringe o direito ao devido processo legal dos réus por privá-los de uma propriedade e direcioná-la para terceiros com quem os réus não tem qualquer obrigação legal. A crítica não procede, pois há diversos modos de compatibilizar o instituto com o devido processo legal. Uma crítica pertinente, que vem sendo feita é que, por vezes, as class actions resolvidas por fluid recovery trazem maior proveito aos advogados do que para o grupo de vítimas. Esta crítica está inserida no problema geral da atual sistemática das class actions norte-americanas, que possibilita, em certos casos, que os membros do grupo afetado recebam muito pouco em comparação com o advogado. Antonio Gidi demonstra grande preocupação sobre o tema: “devemos aprender com as mazelas das class actions norteamericanas, em que os advogados recebem honorários obscenos e os membros do grupo recebem migalhas. O advogado é, em verdade, o imperador absoluto das class actions. Esse erro não precisa ser repetido no Brasil, onde o representante do grupo é uma associação e o advogado é um empregado da associação ou por ela contratado”167 O advogado deve ser muito bem remunerado nas ações coletivas, pois isto é positivo para a sociedade, ao atrair profissionais mais capacitados para a tutela coletiva. Entretanto, as ações jamais devem ser mais proveitosas para o profissional do que para o grupo de pessoas lesadas. Destaca-se que a maioria das aplicações da fluid recovery nas class actions norte-americanas ocorre por meio de transações. Dificilmente, o instituto é 165 Casos Eisen v. Carlisle & Jacquelin, 417 U.S. 156, 94 S.Ct. 2140 (1974) e Boeing Co. v. Van Gemert, 444 U.S. 472, 100 S.Ct. 745 (1980). 166 BEISNER, John H.; MILLER, Jessica; SCHWARTZ, Jordan. Cy Pres: a not so charitable contribution to class action practice. Washington: U.S. Chamber Institute for Legal Reform, 2010. P. 18. 167 GIDI, Antonio. Rumo a um código de processo civil coletivo. A codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 152. 92 aplicado coercitivamente por imposição judicial. Existe corrente acadêmica que nega a aplicabilidade deste instituto no contexto litigioso, sustentando que sua validade é restrita ao campo dos acordos.168 Sobre a aplicação prática do instituto nas class actions, é importante referir que, na ampla maioria dos casos, ela acontece sobre o resíduo não reclamado dos recursos. No entanto, por vezes, a solução é aplicada em relação ao valor integral da condenação. Nestes casos, a corte decide pela reparação coletiva indireta, vedando as execuções individuais de qualquer membro do grupo atingido que não tenha optado por se excluir da ação coletiva no período próprio. A aplicação da fluid recovery ao valor integral atrai óbvias críticas pela impossibilidade do cidadão vitimado obter a reparação direta. Esta solução foi utilizada em uma caso finalizado em 2002, no qual a Microsoft foi acusada de violação à legislação antitruste. Neste precedente, o magistrado justificou a reparação integral indireta no fato de que as reparações individuais não eram interessantes para os membros do grupo e o valor global poderia ser empregado em uso relevante.169 Em síntese, percebe-se que a experiência dos Estados Unidos com a fluid recovery, apesar de não ser única, é a mais rica. Estudando os precedentes norteamericanos e os trabalhos dos comentaristas, é possível aprender muito com a experiência daquele país. Com a reflexão crítica e utilizando-se da prática desconstrucionista170 para verificar fatores culturais, econômicos e históricos subjacente às opções político-judiciais, é possível achar soluções para os dilemas enfrentados no Brasil e evitar a repetição de alguns equívocos ocorridos na evolução do processo coletivo americano. 6.2.4. Notícias sobre a utilização da técnica em outros países A experiência de outros países da common law com o instituto da fluid recovery é parca. Na maioria deles, o contato com o instituto resume-se a estudos e 168 MULHERON, Rachael P. The modern Cy-prés Doctrine: Applications & Implications. London: UCL Press, 2006. P. 242. 169 In re Microsoft Corp. Antitrust Litigation. 185 F. Supp. 2d 519, 523 (MD 2002) 170 BALKIN, Jack M. Deconstructive Practice and Legal Theory (1987). Faculty Scholarship Series. Paper 291. Disponível em <http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/291>. Acesso em: 07 fev. 2013. 93 relatórios de comissões sobre reformas legislativas. Na Inglaterra, berço da tradição da common law, o sistema de processo coletivo é pouco desenvolvido para os padrões atuais, não havendo sequer ações coletivas com o critério opt out171 e não existe qualquer mecanismo de execução coletiva de direitos individuais. Na África do Sul e na Irlanda já existem avançados estudos de reformas legislativas propugnando a adoção de formas de fluid recovery no processo coletivo.172 6.3. TÉCNICAS ALTERNATIVAS DE DISTRIBUIÇÃO DOS RECURSOS ORIUNDOS DAS AÇÕES COLETIVAS É importante pensar sobre a destinação dos recursos oriundos das ações coletivas para reparações individuais não reclamados pelos membros do grupo, caso não fosse utilizada a técnica da fluid recovery. No caso Wells Fargo Securities Litigation173 o juízo elencou três simples perguntas que servem para conduzir a reflexão: (i) a quem pertence este resíduo?; (ii) é viável distribuir este resíduo aos seus titulares? e (iii) caso seja inviável, quem deve ser o recipiente alternativo destes recursos? Como métodos de distribuição do resíduo alternativos à fluid recovery, a jurisprudência americana tradicionalmente elenca três formas: o rateio entre as vítimas, a reversão para o réu e a expropriação da verba para o Estado.174 Analisemos a conveniência e as implicações de cada um destes métodos. 6.3.1. Rateio entre as vítimas Nesta alternativa, conhecida como plaintiff fund-sharing, propõe-se a divisão pro rata do resíduo não reclamado entre os membros do grupo que haviam se habilitado e recebido as suas indenizações individuais. Esta abordagem, sem qualquer dúvida, sanciona o réu, impedindo que saia ileso após o julgamento. 171 Dois sãos os critérios de vinculação das vítimas ao grupo substituído na ação coletiva: (i) opt out, como nas class actions americanas e nas ações coletivas brasileiras, em que o indivíduo não precisa consentir para fazer parte do grupo, mas pode sair se quiser e (ii) opt in, sistema mais antigo, ainda adotado na Inglaterra, em que os indivíduos devem expressamente manifestar a sua vontade, caso desejem participar do grupo de uma determinada ação coletiva. 172 MULHERON, Rachael P. Op. Cit.. P. 426-427. 173 Wells Fargo Securities Litigation, 991 F. Supp. 1193, 1195 (ND Cal 1998) 174 MULHERON, Rachael P. Op. Cit. P. 245. 94 O problema desta solução reside no fato de que a titularidade dos direitos dos membros dos grupos se restringe ao montante individualmente quantificado para cada um. A responsabilidade civil é uma obrigação derivada, um dever jurídico sucessivo, que nasce da ocorrência de um fato jurídico lato sensu175. A quantificação da obrigação de indenizar advinda da responsabilidade é feita de acordo com a extensão do dano, que ocorre no Brasil por força do art. 944 do CC, mas o raciocínio básico é aplicável, como ponto de partida, para qualquer sistema de responsabilização justo. Deste modo, é seguro afirmar que os membros do grupo tem a titularidade apenas do crédito decorrente dos danos que sofreram individualmente. O ganho adicional do rateio pro rata do resíduo oriundo das ações coletivas é injustificável enquanto compensação. Tal solução só é admissível caso este excedente seja distribuído a título de dano punitivo. Mesmo assim, parece mais razoável conferir outras destinações a esta sobra, de modo que beneficiem de modo indireto os membros ausentes da coletividade substituída. O acréscimo ao patrimônio dos indivíduos que haviam se habilitado anteriormente parece constituir enriquecimento sem causa. 6.3.2. Reversão para o réu Ao fim de determinado prazo, todo o dinheiro não reclamado pelos membros do grupo afetado poderia ser revertido para o réu. Na análise da sistemática de execução do processo coletivo australiano, feita no ponto 6.2.2 verificou-se que esta é a solução daquele país, de acordo com o Federal Court of Australia Act. A reversão do resíduo não reclamado para o réu parece apropriada quando a finalidade primária é compensatória e não sancionadora. Em um sistema que utilize esta alternativa, há forte probabilidade de o provimento jurisdicional da tutela processual coletiva restar inócuo em diversos casos. Adotada esta solução, as ações coletivas em defesa de direitos individuais decididas em favor do grupo apenas terão eficácia prática quando a 175 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. Vol III. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 2 95 quantia destinada para cada membro da coletividade for relevante para as execuções individuais. No caso em que os montantes individuais forem irrisórios, mesmo que o dano global seja elevado, em face da grande quantidade de pessoas atingidas, esta solução faz com que o provimento jurisdicional não tenha qualquer efetividade, pois ao cabo do prazo assinalado, o réu terá a maior parte do seu dinheiro devolvida e a quitação do pagamento da reparação. 6.3.3. Expropriação da verba para o Estado. Outra possibilidade é que o resíduo não reclamado seja revertido para o patrimônio do Estado. Esta solução traduz uma clara intenção de punir o réu. Entretanto, é questionável a mudança de titularidade de parte do dinheiro do grupo afetado apenas por força da inércia de alguns integrantes. Os recursos são de propriedade privada dos membros do grupo, mesmo que sejam enfrentadas dificuldades no procedimento de sua distribuição individualizada. A expropriação do montante residual da execução coletiva de direitos individuais pelo Estado foi a primeira solução adotada no direito brasileiro para o enfrentamento da questão. O § 2º do art. 2º da Lei nº 7.913/1989, que regula a ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários, dispõe que, após o decurso de dois anos, a quantia residual deve “ser recolhida como receita da União”. Esta não parece ser a melhor alternativa, uma vez que, com a adoção desta solução, a quantia paga pelo causador do dano perde integralmente a função reparatória. Os membros do grupo não são reparados sequer de modo indireto. A aplicação desta sistemática mais parece a cominação de uma simples multa sancionatória do que o resultado final de um processo coletivo em defesa de direitos individuais. 6.4. PRECEDENTES RELEVANTES DE APLICAÇÃO DA TÉCNICA DA FLUID RECOVERY NOS ESTADOS UNIDOS Existem diversos precedentes oriundos da jurisprudência norte-americana utilizando a técnica da fluid recovery para variadas finalidades e por diversos modos. Por ser uma construção jurisprudencial, sem maiores contornos legislativos na 96 maioria dos Estados da federação americana, há amplo espaço para a criatividade judicial176. O juiz nas class actions atua de modo protagonista no procedimento. Mesmo considerando que a maioria absoluta das soluções de fluid recovery é implantada por meio de acordos, estes estão sempre submetidos à homologação judicial. Este tipo de sentença naquele país não é mera formalidade. Pelo contrário, muitas vezes a transação judicial só é obtida depois de diversas tentativas negadas pelo magistrado, em que este demonstra a inadequação das propostas para a tutela dos direitos de grupo. Há uma forte preocupação com o controle judicial dos acordos coletivos, uma vez que os representantes das vítimas na verdade estão dispondo de direitos alheios. Neste ponto, são elencados dois precedentes importantes dos Estados Unidos, de modo a evidenciar a riqueza da experiência judicial daquele país como fonte de pesquisa para a análise do instituto. Mesmo que o art. 100 do CDC não permita uma utilização mais criativa da execução coletiva, a abordagem comparatista de casos semelhantes decididos nas class actions pode servir de guia para resolução de vários dilemas brasileiros na aplicação deste mecanismo. É interessante notar que, por vezes, algumas decisões das class actions tem impacto mundial. Stan Karas comenta a repercussão global de acordos coletivos multimilionários envolvendo direitos que no Brasil seriam categorizados como individuais homogêneos, em que foi aplicada a fluid recovery e a notificação individual era impossível. Exemplos são as class actions contra a indústria hoteleira (Colson v. Hilton Hotels Corp, 1972) e farmacêutica (State v. Chas. Pfizer & Co, 1971).177 Neste tópico, a menção aos precedentes norte-americanos é utilizada apenas como ponto de partida para a reflexão doutrinária. Não se está sustentando que um julgamento ou acordo coletivo no âmbito das class actions possa ser reconhecido ou aplicado vinculativamente no Brasil. Em recente estudo sobre o tema178, Antonio Gidi concluiu pela inadmissão desta possibilidade nos países latino- 176 Sobre este tema na tradição da civil law, recomenda-se o ensaio de Mauro Cappelletti intitulado “Reflexões sobre a criatividade jurisprudencial no tempo presente”, cuja tradução brasileira foi publicada em CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias e sociedade. Tradução: Elicio de Cresci Sobrinho. Vol. 1. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2008. P. 07-44. 177 KARAS, Stan. Op. Cit. P. 991 178 GIDI, Antonio. The recognition of U.S. class action judgements abroad: the case of latin america. Brooklyn Journal of International Law, New York, Vol. 37, N. 3, 2012. P. 955. 97 americanos, em face das peculiaridades apresentadas pelos diferentes sistemas nacionais de processo coletivo. 6.4.1. Caso do Agente Laranja utilizado na Guerra do Vietnam Um caso que se destaca na aplicação da fluid recovery e ainda serve como leading case para algumas questões nos Estados Unidos, foi o processo movido pelos veteranos e suas famílias pretendendo a reparação dos danos sofridos pela exposição ao “Agente Laranja”179 durante a guerra do Vietnam, no período de 1961 a 1971. Este composto químico era lançado de aviões e helicópteros para desfolhar ou matar a vegetação da selva e da área rural vietnamita, de modo a dificultar a ação dos guerrilheiros vietcongues. Acontece que este composto é extremamente tóxico e pode causar uma série de doenças graves em quem é exposto à sua ação. O agente laranja causou sérios danos em pessoas e contaminou extensas áreas do território vietnamita. O governo daquele país estima que por ação deste composto, 400.000 pessoas foram mortas ou mutiladas, 500.000 crianças tenham nascido com problemas variados e mais de dois milhões de pessoas tenham sofrido de câncer ou outras doenças180. Esta class action foi movida contra sete grandes indústrias químicas que forneciam este herbicida para o Governo americano, a exemplo da Dow Chemical Company. No procedimento, houve grande preocupação com a dificuldade de identificar os membros do grupo afetado. Afinal, mesmo os filhos e netos dos veteranos expostos ao composto eram vítimas. O processo foi encerrado com um acordo coletivo no qual foi utilizada a técnica da fluid recovery. Pelo acordo, foi criado um fundo em dinheiro, com administração própria, para fornecer reparações individuais ao longo de vários anos. De acordo com o Departamento de Assuntos dos Veteranos dos Estados Unidos181, a soma distribuída pelo Agent Orange Settlement Fund chegou ao 179 In re Agent Orange Prod. Liab. Litig., 818 F.2d 179, 183-85 (2d Cir. 1987). YORK, Geoffrey; MICK, Hayley. 'Last ghost' of the Vietnam War. Reportagem publicada no jornal The Globe and MAil em 12 jul. 2008. Disponível em <www.theglobeandmail.com/incoming/last-ghostof-the-vietnam-war/article1057457/>. Acesso em 10 dez 2012. 181 DEPARTMENT OF VETERANS AFFAIRS OF THE UNITED STATES. Agent Orange Settlement Fund. Disponível em <http://www.benefits.va.gov/compensation/claims-postservice-agent_orangesettlement-settlementFund.asp>. Acesso em 02 de mar 2013. 180 98 montante de mais de 197 milhões de dólares. Foram feitas cerca de 105.000 requisições ao fundo, tendo sido aprovadas cerca de 52.000 delas em prol dos veteranos do Vietnam ou de seus sucessores, que receberam em média 3.800 dólares cada um. Por ordem judicial, o funcionamento deste fundo foi encerrado em 27 de setembro de 1997, quando os recursos a ele afetados foram integralmente distribuídos. 6.4.2. Caso dos trabalhadores mexicanos contra os produtores de frutas cítricas do Arizona Em 1977, seis trabalhadores mexicanos moveram uma ação coletiva contra a cooperativa dos produtores de frutas cítricas do Estado do Arizona (ACG) e seus dois maiores integrantes, alegando repetidas violações aos direitos trabalhistas previstos em uma lei denominada Farm Labor Contractor Registration Act182. Nesta ação, houve grande dificuldade em determinar os membros da classe. Entretanto, depois de anos de litígio, foram identificados os membros do grupo e em 1989 a corte condenou os réus ao pagamento de U$ 1.846.500,00 pelas violações. Após o período de distribuição deste dinheiro em habilitações individuais, restou um montante pouco superior a cinquenta mil dólares e questionou-se qual seria a destinação deste resíduo. Por óbvio, os réus alegaram que este valor deveria ser devolvido para eles. Esta não foi a solução adotada. Em relação ao valor residual, após cuidadosa análise das alternativas, foi aplicada a solução de fluid recovery para a distribuição dos recursos não reclamados pelos trabalhadores afetados. A corte ordenou que o valor fosse dado à InterAmerican Foundation (IAF) para a distribuição no México. Isto aconteceu porque esta organização desenvolve trabalhos de ajuda humanitária nas áreas em que muitos dos trabalhadores vitimados pelo ilícito residiam. O Arizona fica situado no sudoeste dos Estados Unidos e faz fronteira com o México, razão pela qual a agroindústria de frutas da região emprega muitos trabalhadores daquele país. 182 th Six (6) Mexican Workers v. Arizona Citrus Growers. 904 F. 2d 1301 (9 Cir. 1990). Os dados referidos neste ponto são oriundos dos comentários sobre o caso de NAGAREDA, Richard A. The Law of Class Actions and Other Aggregate Litigation. Eagan: Foundation Press, 2009. P. 499-508. 99 Este caso é interessante, pois demonstra a aplicação da técnica da fluid recovery para reverter o resíduo não reclamado da condenação para uma organização que desenvolva ações que possivelmente beneficiem indiretamente os membros da class. No mesmo sentido, Richard Nagareda183 cita o precedente Power v. Georgia-Pacific Corp, no qual houve solução semelhante. Tratava-se de ação coletiva por discriminação racial nas relações trabalhistas e a corte permitiu que o restasse da condenação sem habilitações individuais fosse destinado para bolsas de estudo para negros que estudassem em escolas do ensino médio próximas à fábrica que cometeu a violação. 183 NAGAREDA, Richard A. Op. cit. P. 507. 100 7. O USO DA TÉCNICA DA FLUID RECOVERY DO DIREITO BRASILEIRO PARA A EFETIVAÇÃO DE DIREITOS Inicia-se a análise da fluid recovery brasileira após o estudo da origem do instituto e do seu desenvolvimento nos países pertencentes à tradição da common law. No Brasil, este mecanismo serve para a promoção da liquidação e execução coletiva dos direitos individuais homogêneos. Ada Pellegrini Grinover afirma que a sistemática prevista no CDC para este tipo de ação difere significativamente da prática processual coletiva norteamericana, pois naquele país o magistrado quantifica desde logo a indenização devida, enquanto “no sistema criado pelo Código, o bem jurídico objeto de tutela ainda é indivisível e a condenação é genérica, limitando-se a fixar a responsabilidade do réu e a condená-lo a reparar os danos causados”.184 O legislador não descartou a possibilidade de a sentença condenatória não ser objeto de liquidação185 pelos interessados ou que não apareçam para a habilitação vítimas em número compatível com a gravidade do dano causado. A coautora do anteprojeto do CDC afirma que “o dano globalmente causado pode ser considerável, mas de pouca ou nenhuma importância o prejuízo sofrido por cada consumidor lesado. Foi para casos como esses que o caput do art. 100 previu a fluid recovery”.186 O artigo foi promulgado com a seguinte redação: Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida. Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o fundo criado pela Lei n.° 7.347, de 24 de julho de 1985. Feito o contraste com este mecanismo na common law, percebe-se que a sua adoção no Brasil foi feita de modo bastante peculiar. A lei define os requisitos para a aplicação desta forma de execução coletiva e fixa a destinação dos recursos 184 GRINOVER, Ada Pellegrini. Capítulo II – Das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos. In ______ et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - Comentados Pelos Autores do Anteprojeto. Vol II. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. P. 163. 185 No capítulo 4 foi discutida a impropriedade do termo liquidação nestes casos. Por todos, ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo - Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 4 ed. São Paulo: RT, 2009. P. 154. 186 GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. Cit. P. 163 101 oriundos desta sistemática para o Fundo de Direitos Difusos criado pelo art. 13 da LACP. Estes elementos serão analisados em itens próprios deste capítulo. Apesar de o CDC efetivamente trazer a primeira previsão geral de um mecanismo de fluid recovery no direito brasileiro, inserido com a criação da categoria dos direitos individuais homogêneos, seu art. 100 não pode ser considerado como a primeira previsão na legislação nacional de um mecanismo inspirado neste instituto. Compreendida em sentido lato, a fluid recovery abarca qualquer forma de liquidação/execução indireta nas ações coletivas, em que os recursos reunidos não sejam destinados aos membros do grupo187. A primazia cabe a uma previsão inserida na Lei nº 7.913/1989, que regula um tipo específico de ação civil pública. Esta lei permite a liquidação e a execução coletiva de pretensões individuais oriundas da responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários. Na sua sistemática, a quantia obtida por este procedimento deverá ser depositada em conta remunerada e o investidor lesado deve ser convocado mediante edital para que se habilite ao recebimento da parcela que lhe couber. Curiosamente, esta previsão parece bastante com a sistemática das class action norte-americana, pois o juiz fixa de plano a indenização global e a utilização da fluid recovery é evidente, pois é criado um ‘fundo’ em dinheiro para proceder as reparações individuais. O § 2º do art. 2º desta lei dispõe que, após o decurso de dois anos, a quantia que restar deve “ser recolhida como receita da União”. Nesta hipótese, o excedente é expropriado e passar a ser de propriedade do Estado.188 No Brasil, o instituto da fluid recovery nunca constituiu o tema principal abordado por um livro. O mecanismo é citado em muitos manuais e livros sobre o processo civil coletivo189; entretanto quase não existem trabalhos específicos sobre o 187 MULHERON, Rachael P. Op. cit. P. 224. No item “The Cy-prés doctrine in its ‘Wider Sense” a autora explica que, em sentido amplo, no que se refere às ações coletivas, a ideia de cy pres além de abarcar os seus dois modos tradicionais, apontados no ponto 6.1 deste trabalho: (i) criação de um fundo com o objetivo de financiar fins conexos ao objeto do processo e a (ii) redução temporária dos preços do produto do réu, também inclui as alternativas elencadas no ponto 6.3 deste trabalho: (iii) o rateio entre as vítimas; (iv) a reversão para o réu e (v) a expropriação para o Estado, totalizando cinco possibilidades. 188 Alternativa discutida no item 6.3.3. 189 Por exemplo, MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 25 ed. São Paulo: Saraiva , 2013. P. 575; ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo - Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 4 ed. São Paulo: RT, 2009. P. 187; GIDI, Antonio. Rumo a um código de processo civil coletivo. A codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: 102 tema. Destacam-se os artigos de Marcelo Abelha Rodrigues, Érica Barbosa e Silva e Elton Venturi.190 Diante desta ausência de análise mais aprofundada sobre o assunto na doutrina nacional é que a pesquisa deste trabalho se justifica. 7.1. DENOMINAÇÃO DO INSTITUTO Sobre a denominação do instituto, no capítulo anterior já foi indicado que a primeira menção ao termo fluid recovery no país parece ter ocorrido na tradução de um artigo do processualista italiano Mauro Cappelletti sobre a tutela processual coletiva, publicado na Revista de Processo número cinco.191 Nos países de common law, há crítica generalizada quanto ao uso desta expressão192, pois ela é empregada em múltiplos sentidos nos Estados Unidos por juízes e comentadores, levando a grande confusão terminológica. Geralmente, o instituto é denominado naqueles países como cy pres. Esta expressão tem origens incertas, porém a maioria dos comentaristas afirma que ela teria sido derivada da antiga expressão franco-normanda “cy pres comme possible”, que significa “tão próximo quanto possível”.193 O instituto busca uma tutela baseada na proporcionalidade e não na perfeição.194 No Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, Ada Pellegrini utilizou a expressão fluid recovery ao tratar do art. 100 do CDC, com referência expressa ao original em italiano do artigo referido de Mauro Forense, 2008. P. 323; DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. 8 ed. Vol. 4. Salvador: JusPODIVM, 2013. P. 409 e LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1998. P. 164. 190 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ponderações sobre a fluid recovery do art. 100 do CDC. Revista de Processo, São Paulo, v. 116, p. 325-333, 2004; SILVA, Érica Barbosa e. “A Fluid Recovery no Sistema Brasileiro e a efetivação dos direitos coletivos.” In: Processos coletivos e tutela ambiental. Carlos Alberto de Salles, Solange Teles da Silva e Ana Maria de Oliveira Nusdeo (coords.). Santos: Leopoldianum, 2006. P. 83-102 e VENTURI, Elton. “Liquidação e execução coletiva da fluid recovery referente à "sobra" do empréstimo compulsório cobrado pela União e não devolvido.” Revista de Processo, São Paulo, v. 111, p. 313-321, 2003. 191 CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Traduzido por Nelson Campos. Revista de processo, São Paulo, n. 05, p. 128-159, 1977. P. 153 e 154. 192 MULHERON, Rachael P. Op. cit. P. 216-217. 193 NAGAREDA, Richard A. Op cit.. P. 498. 194 ‘Proportionality, Not Pefection’ é elencada como um dos objetivos da tutela processual coletiva por MULHERON, Rachael P. The class action in common law legal systems: a comparative perspective. Oxford: Hart Publishing, 2004. P. 50. 103 Cappelletti.195 Este código comentado é uma obra clássica do processo coletivo brasileiro e a grande influência acadêmica da autora parece ser o motivo da consagração desta expressão pela doutrina nacional. Dificilmente, o instituto é referido por outro nome. Considerando que este termo não induz a qualquer confusão terminológica no país, não há qualquer óbice para que continue a ser utilizado. Caso se prefira evitar o uso de uma expressão estrangeira, é preciso pensar em uma tradução adequada. Em 1975, na tradução do artigo do processualista italiano, Nelson de Campos empregou a expressão “ressarcimento fluido”196. Nas raras oportunidades em que o termo é grafado em português, normalmente segue-se a mesma linha, denominando-o de ‘reparação’ ou ‘indenização’ fluida. Márcio Mafra acredita que esta é uma má tradução da fluid recovery, sustentando que fluida não é a indenização, mas a classe. No Brasil, a classe nunca é fluida, vez que o dinheiro arrecadado pelo autor coletivo, no caso de não comparecimento dos lesados na fase de habilitação, sempre é encaminhado a um fundo público específico e não à classe197 Discorda-se deste posicionamento. A fluidez parece ser inerente à reparação, que é feita de forma indireta. Com maior rigor, é correto dizer que fluida é a distribuição da verba reparatória. Por esta razão, para o emprego da expressão em português, concorda-se com Gidi198, no sentido de que o mais adequado seria o termo distribuição fluida. 7.2. FLUID RECOVERY E ACESSO À JUSTIÇA A fluid recovery é um mecanismo processual que pode contribuir sobremodo para a efetivação do acesso à justiça, pois garante a efetividade da 195 GRINOVER, Ada Pellegrini. Capítulo II – Das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos. In ______ et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - Comentados Pelos Autores do Anteprojeto. Vol II. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. P. 163. 196 CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Traduzido por Nelson Campos. Revista de processo, São Paulo, n. 05, p. 128-159, 1977. P. 153. 197 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Op. cit. P. 164. 198 Posicionamento expressado por Antonio Gidi em e-mail destinado ao autor deste trabalhado no ano de 2011. 104 tutela coletiva em algumas situações peculiares199. O direito a um meio executivo apto para conferir efetividade à tutela jurisdicional perseguida é um corolário do princípio do devido processo legal200. Relacionando os dois princípios, Wilson Alves de Souza afirma que um processo em que não se respeitou o “princípio do processo devido em direito nas suas dimensões processual e material, também não se atendeu ao princípio do acesso à justiça, na medida em que o direito à jurisdição só faz sentido se o processo gerou uma decisão justa sob todos esses aspectos201” Se o sistema brasileiro de tutela de direitos individuais homogêneos não trouxesse a previsão do art. 100 do CDC, muitas ações coletivas julgadas procedentes não teriam qualquer resultado útil. Isto seria uma clara violação tanto ao devido processo legal quanto ao acesso à justiça. 7.3. REQUISITOS DA DISTRIBUIÇÃO FLUIDA O art. 100 do CDC elenca dois requisitos para a utilização da distribuição fluida: (i) o decurso do prazo de um ano e (ii) a gravidade do dano incompatível com o número de habilitações. Apenas com o atendimento concomitante de ambos os requisitos é possível liquidar e executar coletivamente a sentença genérica que envolve direitos individuais homogêneos, de modo a reverter os recursos para o Fundo de Direitos Difusos previsto no art. 13 da Lei n° 7.347/1985. 7.3.1. Requisito temporal O requisito temporal para a aplicação da fluid recovery é o transcurso de um ano para o início da liquidação e execução naquela sistemática. A doutrina considera o termo inicial como sendo o trânsito em julgado da sentença, porém discute o acerto do legislador na fixação do prazo. 199 KALAJDZIC, Jasminka. Access to a Just Result: Revisiting Settlement Standards and Cy Pres Distributions. The Canadian Class Action Review, Toronto, Vol. 6, No. 1, 2010. P. 237 200 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 2ª ed. São Paulo: Editora RT, 2007. P. 224. 201 SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à justiça. Salvador: Dois de Julho, 2011. P. 142. 105 Marcelo Abelha Rodrigues é a voz dissonante, entendendo que, para evitar o bis in idem, melhor seria se o início do prazo para reparação fluida ocorresse no fim do prazo prescricional das pretensões executórias individuais.202 Argumenta que isso permitiria ao juiz fazer uma melhor avaliação entre o valor reclamado e o dano causado. Érica Barbosa e Silva contesta nominalmente este autor, argumentando que este seria apenas mais um entrave para a reparação fluida e que pode haver compensação entre eventuais execuções individuais e o fundo, até o limite do montante depositado203. Não faz sentido aguardar a prescrição das pretensões executórias individuais para o início da execução coletiva. As verbas destinadas ao Fundo de Direitos Difusos podem ser revertidas para o pagamento das indenizações individuais enquanto não ocorrer a sua prescrição. Depois que isto acontecer, a verba estará definitivamente alocada no fundo, sem possibilidade de reversão.204 O prazo de um ano para a aplicação do mecanismo do art. 100 do CDC não implica na prescrição das pretensões individuais, tampouco na preclusão da possibilidade de liquidação individual. 7.3.2. Gravidade do dano incompatível com o número de liquidações Comentando sobre o requisito da gravidade do dano incompatível com o número de habilitações à tutela coletiva, Marcelo Abelha Rodrigues suscita várias questões sobre a operacionalização da fluid recovery em face de sua natureza residual.205 O professor inquire basicamente (i) como será feita a ponderação do número de liquidações e gravidade do dano; (ii) como saber sobre as liquidações oriundas de ações individuais em que os autores optaram por não participar da ação coletiva e (iii) como fixar o quantum da reparação fluida, sustentando ao final posição no sentido de que estes problemas seriam mais fáceis de resolver caso o termo inicial fosse a prescrição das pretensões individuais. 202 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Op. Cit. P. 466 SILVA, Érica Barbosa. Op. Cit. P. 139-140. No mesmo sentindo, VENTURI, Elton. “Liquidação e execução coletiva da fluid recovery referente à "sobra" do empréstimo compulsório cobrado pela União e não devolvido” Revista de Processo, v. 111. São Paulo: RT, 2003. P. 314 204 SILVA, Érica Barbosa e. Cumprimento de Sentença em Ações Coletivas. São Paulo: Atlas, 2009. P. 129 205 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Op. Cit. P. 466 e 467 203 106 A análise aprofundada deste requisito evidencia a necessidade da notificação adequada apontada no quinto capítulo. A atual sistemática deficiente de comunicação dos atos do processo coletivo aos membros do grupo de vítimas causa sérios problemas. Muitas vezes, ações coletivas são ajuizadas e julgadas procedentes sem o conhecimento da maioria dos potenciais beneficiários. Sem um sistema adequado de informação sobre a tutela coletiva, simplesmente não é possível descobrir nada em relação às ações individuais envolvendo o mesmo tema. Com a adoção de uma metodologia de notificação mais eficiente, como a proposta do art. 5º do Código Modelo de Gidi, bem como a instituição do Cadastro Nacional de Ações Coletivas e a priorização do meio digital para este tipo de tutela, certamente a situação seria diferente. Apenas com o respeito à notificação adequada é possível afirmar, de forma definitiva, que o número de interessados foi incompatível com a gravidade do dano. As pessoas precisam saber sobre a possibilidade do recebimento deste dinheiro para decidir se lhes convém ir busca-lo. A falta de notificação adequada constitui um empecilho para a melhor aplicação da fluid recovery brasileira. Entretanto, esta deficiência não deve servir de justificativa para que a execução coletiva deixe de ser aplicada. Os magistrados devem buscar sempre a comunicação efetiva com os membros do grupo em relação aos eventos importantes das ações coletivas. A quantificação da reparação coletiva deve ser feita com base na extensão do dano, por força da regra geral contida no art. 944 do CC. Por certo, na tutela dos direitos individuais homogêneos, a exceção dos casos em que os prejuízos individuais são uniformes ou podem ser reduzidos a cálculos matemáticos, este valor não será exato. O juiz deve ter em mente que a ação coletiva objetiva a proporcionalidade e não a perfeição.206 Deve se munir da maior quantidade de informações possíveis sobre os aspectos relevantes do caso e fundamentar bem a decisão de liquidação, expondo para os jurisdicionados quais os critérios que utilizou na quantificação, afastando o caráter exclusivamente arbitrário da decisão e contribuindo para que ela seja mais controlável. 206 ‘Proportionality, Not Pefection’ é elencada como um dos objetivos da tutela processual coletiva por MULHERON, Rachael P. The class action in common law legal systems: a comparative perspective. Oxford: Hart Publishing, 2004. P. 50. 107 7.4. RELAÇÃO ENTRE AS EXECUÇÕES INDIVIDUAIS E A EXECUÇÃO COLETIVA As execuções individuais não são obstadas pela execução coletiva. O prazo de um ano não representa preclusão para as liquidações e execuções individuais. O dinheiro destinado ao Fundo de Direitos Difusos pode ser revertido para pagar execuções individuais, sem qualquer problema. As verbas apenas serão consolidadas na esfera de titularidade do FDD após a prescrição das pretensões individuais. O Fundo foi criado para operacionalizar as verbas oriundas das ações coletivas, portanto o seu comitê gestor deve se preocupar com estas questões e manter sempre liquidez para pagar eventuais reparações individuais, mediante a simples notificação do magistrado. Em sentido contrário, argumenta Mazzili, sustentando que após o decurso de um ano, o membro do grupo não poderá habilitar-se na ação coletiva, restando apenas a opção de ajuizar ação individual direta contra o comitê gestor do Fundo de Direitos Difusos para obter a reparação, já que a obrigação de indenizar do réu já estaria quitada.207 Esta não parece ser a interpretação correta. O sistema estaria incentivando, após o exíguo prazo de um ano, que os membro do grupo litigassem com o FDD, criando a multiplicidade de ações individuais que a tutela coletiva tenta evitar. A possibilidade de reversão das verbas destinadas ao FDD enquanto não houver a prescrição das pretensões individuais, mediante a simples requisição do Juiz, confere harmonia ao sistema. Uma vez que as liquidações e execuções individuais podem ser propostas por via de processos autônomos em diferentes comarcas, é recomendável que o órgão gestor deste fundo mantenha registros informatizados, acessíveis aos magistrados e servidores, para que estes possam visualizar a distribuição conferida às verbas destinadas ao fundo. 207 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 25 ed. São Paulo: Saraiva , 2013. P. 577 108 7.5. É POSSÍVEL DISPENSAR O PRAZO DE UM ANO? Será possível dispensar o prazo de um ano para a aplicação da fluid recovery, em contraposição à literalidade do texto do art. 100 do CDC? Ada Pellegrini tem opinião contrária a esta proposta.208 Entretanto, sustenta-se a possibilidade da dispensa do prazo de um ano caso o magistrado perceba que os valores das pretensões individuais são irrisórios. Conforme foi sustentado, se algum interessado desejar receber a reparação individual, não há qualquer empecilho técnico para a reversão do dinheiro destinado ao FDD em benefício de integrante do grupo substituído. Caso a situação demande cautela extremada por ser bastante incerta a quantidade de membros interessados, o magistrado poderá ordenar que o FDD não utilize qualquer parcela do dinheiro por um determinado prazo, que pode ser inclusive superior a um ano, mas não deve passar do prazo de prescrição das pretensões individuais. O dinheiro poderia ser parcial ou integralmente depositado em conta remunerada. 7.6. NATUREZA RESIDUAL OU PUNITIVA? A doutrina geralmente atribui à fluid recovery brasileira o caráter residual e subsidiário. Elton Venturi discorda deste posicionamento. Sustenta que a reparação fluida do art. 100 do CDC não diz respeito tão-somente à soma de indenizações individuais não pleiteadas. Para o autor, “Ainda que o número de interessados que tenham se habilitado seja ‘compatível com a gravidade do dano’, mesmo assim não se afasta a mensuração da reparação indivisível, destinada ao Fundo.” 209 Venturi argumenta que a fluid recovery decorre da lesão “social” perpetrada pelo agente, o que parece estar em consonância com a defesa da natureza coletiva dos direitos individuais homogêneos. Nesta linha, sustenta que o prazo de um ano para a liquidação coletiva não se deve ao fato de temer o bis in idem (porque a natureza das reparações é diversa), mas sim à consecução de um 208 GRINOVER, Ada Pellegrini. Capítulo II – Das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos. In ______ et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - Comentados Pelos Autores do Anteprojeto. Vol II. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. P.163. 209 VENTURI, Elton. Op. Cit. P. 317 109 parâmetro justo para a fixação do montante da indenização fluida.210 A ideia apresentada parece coadunar com a conclusão de Marcelo Abelha Rodrigues, que, diante das dificuldades de adoção do critério residual da reparação fluida (elencadas supra), afirma que um bom caminho seria interpretar o instituto como tendo caráter punitivo, não residual, havendo independência entre a reparação fluida e os prejuízos individuais211. A lesão ‘social’ aventada por Elton Venturi é uma ideia interessante, mas não é visualizada em todas as ações que envolvem direitos individuais homogêneos. O instituto deve assumir um caráter eminentemente punitivo apenas nestes casos. A possibilidade da ocorrência de lesão social na violação de direito individuais homogêneos parece guardar conexão com a intenção do agente perpetrador do dano de lesar uma coletividade, causando pequenos danos a grandes grupos de pessoas, ao tempo em que adota práticas que impeçam ou dificultem a resolução extrajudicial destes micro conflitos. Por exemplo, caso fosse provado que uma determinada operadora de serviços telefônicos enxertou intencionalmente pequenos valores indevidos nas faturas dos seus clientes e julgou improcedente a maioria das reclamações dos consumidores pelo SAC da empresa, a lesão aos direitos individuais homogêneos estaria qualificada pela ‘lesão social’, viabilizando a aplicação punitiva da fluid recovery. O instituto não parece assumir um caráter punitivo em todas as situações. Sua interpretação deve ser feita da forma mais aberta e flexível, tendo em vista o princípio do devido processo legal coletivo. Certamente, o cotejo analítico do que foi efetivamente pago pelo réu nas reparações individuais e a vantagem indevida que obteve com a prática ilícita deve ser realizado pelo magistrado em todos os casos, de forma a conferir segurança na aplicação do mecanismo. 7.7. FLUID RECOVERY COMO GARANTIA DE EXECUÇÕES INDIVIDUAIS A técnica na fluid recovery, considerada de modo mais amplo, pode ser útil para garantir a execução de pretensões individuais. A possibilidade foi verificada na experiência jurídica australiana com as previsões contidas no Federal Court of 210 211 Ibid. P. 317 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Op. Cit. P. 468. 110 Australia Act212. Tomando por base as ideias subjacentes a este instituto jurídico, é possível conceber a aplicação no direito brasileiro da tutela cautelar de forma coletiva nas ações que envolvam direitos individuais homogêneos para garantir a execução futura de pretensões individuais. O art. 4º da Lei de Ação Civil Pública. parece sustentar esta tese ao permitir expressamente a tutela cautelar no âmbito dass ações coletivas. Por exemplo, antes do trânsito em julgado de uma sentença proferida em uma ação coletiva, pode ser útil o emprego de uma cautelar coletiva de arresto para garantir futuras execuções individuais. Dificilmente, os membros do grupo substituído intervêm na ação coletiva, portanto não seria viável a requisição individual de tutelas cautelares para assegurar os seus direitos, o que denota a utilidade da via coletiva. 7.8. POSSIBILIDADE DO USO DA FLUID RECOVERY EM ACORDOS COLETIVOS Da experiência jurídica norte-americana se extrai o fato de que a maioria das class actions é encerrada por via de acordo. Na pesquisa, foi verificado que as ações que envolvem a aplicação da fluid recovery naquele país seguem esta mesma tendência e raramente o instituto é aplicado por imposição judicial. Existe corrente acadêmica que nega a aplicabilidade deste instituto no contexto litigioso, sustentando que sua validade é restrita ao campo dos acordos.213 Atentando às peculiaridades brasileiras, é possível admitir a sua aplicação em transações que envolvam direitos individuais homogêneos. Não há qualquer óbice para a admissão de um acordo na hipótese em que um princípio que sustente a aplicação da técnica no caso concreto prevaleça no exame de ponderação em face de princípios que pugnam pela solução contrária. Os requisitos do art. 100 podem ser flexibilizados diante de outras normas mais importantes no caso concreto. A título de exemplo, com o fortalecimento da cultura da tutela coletiva no país, é possível que uma comunidade ribeirinha que sofreu lesões individuais homogêneos decorrentes de ilícito ambiental consiga fazer um acordo coletivo 212 Analisadas no item 6.2.2 MULHERON, Rachael P. The modern Cy-prés Doctrine: Applications & Implications. London: UCL Press, 2006. P. 242. 213 111 estando representada pela Defensoria Pública. Caso isto aconteça e os termos da transação sejam favoráveis ao grupo, não parece haver óbice para a realização do acordo. Do contrário, o grupo seria obrigado a prosseguir com um litígio que não deseja. As possibilidades de aplicação do mecanismo são mais amplas notadamente na elaboração de Compromissos de Ajustamento de Conduta, 7.9. A FLUID RECOVERY NOS ANTEPROJETOS DE CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL COLETIVO APRESENTADOS PELA DOUTRINA BRASILEIRA É digno de nota que o instituto da fluid recovery exerce clara influência sobre os quatro anteprojetos de Código de Processo Civil Coletivo apresentados pela doutrina brasileira. Em todos eles podemos observar a manutenção da sistemática da distribuição fluida nas ações coletivas sobre direitos individuais homogêneos da forma prevista no art. 100 do CDC. No anteprojeto de Antonio Gidi, o instituto é denominado “indenização individual global” e se encontra no art. 27. No Código Modelo para Ibero-América, a influência é sentida no art. 24. O anteprojeto do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP denomina a técnica de “liquidação e execução pelos danos globalmente causados” no art. 36. O § 2º do art. 40 do anteprojeto da UERJ/UNESA também prevê a adoção do instituto nos mesmos moldes214. Fica patente a existência de certa inércia doutrinária sobre o instituto, estando evidenciada a necessidade de pesquisa aprofundada para melhor compreensão da técnica, contribuindo para as desejadas respostas do judiciário às demandas de massa. Na pesquisa elaborada para este trabalho, percebeu-se que um excelente ponto de partida para as discussões sobre uma reforma legislativa na fluid recovery brasileira seria o mecanismo disposto na seção 26 do Class Proceedings Act da província Canadense de Ontário215. Apesar de conter algumas falhas, é um texto legislativo interessante para a análise comparatista. 214 215 Consultados em reproduções anexas ao livro DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR. Op. Cit. P. 479-540. Tema discutido no ponto 6.2.1. 112 8. CONCLUSÃO 1. O processo coletivo brasileiro foi estruturado precipuamente com base na experiência das class actions norte-americanas. Os juristas que auxiliaram na produção legislativa sobre o tema tiveram a preocupação de adequar o instituto norte-americano à nossa cultura jurídica, no esforço de criar um sistema próprio. 2. A possibilidade de defesa dos direitos individuais homogêneos por meio de ações coletivas foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro por intermédio do Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8078/90, sem a qual este tipo de tutela seria impossível. 3. Os direitos individuais homogêneos são direitos coletivos e não direitos individuais coletivamente tratados. 4. As ações coletivas que versam sobre direitos individuais homogêneos não constituem a única via existente no sistema nacional para tutelar as situações jurídicas individuais homogêneas. 5. A percepção da existência dos direitos coletivos rompeu com o paradigma individualista do Direito. Coletividades passaram a ser consideradas como possíveis sujeitos de direito. 6. No Brasil, é possível visualizar a existência de um ‘microssistema da tutela coletiva’. Apesar de a Lei de Ação Civil Pública e do Código do Consumidor apresentarem maior relevância, um rol aberto de diplomas normativos que trazem normas pertinentes também compõe o microssistema. 7. Deve-se recorrer ao microssistema da tutela coletiva para buscar as normas adequadas ao processo civil coletivo. 113 8. Diante da multiplicidade de possíveis foros competentes, deve ser aplicado o princípio da competência adequada para realizar esta definição, tomando por base as peculiaridades do objeto do processo e do grupo substituído. 9. É possível a resolução de ações envolvendo direitos individuais homogêneos por transação. 10. Com a evolução do direito processual coletivo brasileiro, já é possível verificar possibilidade da sentença nas ações que envolvam direitos individuais homogêneos ser líquida. 11. A despeito do entendimento do STJ no REsp 1070896/SC, o prazo prescricional das ações coletivas sobre direitos individuais homogêneos é o mesmo prazo das ações individuais, haja vista que só tratamos de prazo prescricional das ações de forma indireta, uma vez que a prescrição atinge verdadeiramente as pretensões dos direitos subjetivos veiculados. 12. A distribuição adequada de recursos oriundos das ações coletivas é essencial para o correto enfrentamento jurídico dos problemas da justiça de massa, tão comuns na sociedade contemporânea. 13. A classificação doutrinária mais precisa dos tipos de liquidação/execução nas ações que envolvem direitos individuais homogêneos é feita pelo duplo critério da natureza da pretensão e da identidade do exequente. 14. Os entes legitimados para a tutela coletiva podem promover execuções individuais sem o consentimento expresso dos membros do grupo. Entretanto é prudente que os alvarás só possam ser levantados pelo indivíduo beneficiado ou por procurador com poderes especiais para este fim. 15. O transporte da coisa julgada in utilibus por si não permite a execução coletiva via fluid recovery. Caso seja verificada esta necessidade em um caso que envolveu apenas direitos transindividuais, o correto é que haja uma ação coletiva com este objeto específico. 114 16. A despeito do entendimento do STJ no Resp 1273643/PR, a prescrição da pretensão executória individual nas ações que envolvam direitos individuais homogêneos acontece no mesmo prazo das ações individuais. 17. A falta de informações acerca do ajuizamento e do resultado de ações coletivas tem sido um grave problema no Brasil. Várias ações coletivas de extrema relevância social são propostas e encerradas sem o conhecimento da maioria absoluta dos interessados. 18. O direito à notificação adequada é corolário do direito ao devido processo legal coletivo. 19. O sistema de notificação do processo coletivo brasileiro é insuficiente e o sistema das class actions for damages norte-americanas não serve de paradigma para a sua reforma. 20. O sistema de notificação previsto no Código Modelo de Gidi, aliado ao Cadastro Nacional de Ações Coletivas e a priorização do meio digital para este tipo de tutela são soluções para garantir a notificação adequada. 21. O termo cy prés atualmente é o mais utilizado para designar o instituto que é objeto deste trabalho nos países da tradição da common law. 22. A doutrina da cy prés remonta à Roma antiga e tem diversas aplicações no mundo da common law. Sua aplicação nas class actions só ocorreu a partir da década de 1940. 23. A aplicação da técnica fluid recovery nas ações coletivas dos diferentes países da common law varia significativamente. 24. A previsão de fluid recovery contida na seção 26 do Class Proceedings Act da província canadense de Ontário serve de importante referência para reformas legislativas no Brasil. 115 25. A Austrália não conta com um mecanismo verdadeiro de execução coletiva. A experiência jurídica australiana é útil para a percepção da utilidade da técnica da fluid recovery como modo de assegurar a execução futura de pretensões individuais. 26. A experiência dos Estados Unidos com a fluid recovery, apesar de não ser única, é a mais rica. 27. Podem ser visualizados três métodos de distribuição alternativa à fluid recovery: o rateio entre as vítimas, a reversão para o réu e a expropriação da verba para o Estado. Nenhum deles constitui solução preferível para o problema no Brasil. 28. Apesar de a denominação fluid recovery ser em geral repudiada nos países da common law, por induzir confusões terminológicas, sua utilização no Brasil não gera qualquer problema. Caso se prefira utilizar a expressão em português, a preferível é ‘distribuição fluida’. 29. A fluid recovery é um mecanismo processual que pode contribuir sobremodo para a efetivação do acesso à justiça, por garantir a efetividade da tutela coletiva em algumas situações peculiares, sobretudo quando são causados danos de pequeno valor a muitas vítimas. 30. As execuções individuais não são obstadas pela execução coletiva. O prazo de um ano não representa preclusão para as liquidações e execuções individuais. O dinheiro destinado ao Fundo de Direitos Difusos pode ser revertido para pagar execuções individuais antes da prescrição. 31. Sustenta-se a possibilidade da dispensa do prazo de um ano do art. 100 do CDC, caso o magistrado perceba que os valores das pretensões individuais são irrisórios. 116 32. A depender da situação, o instituto pode assumir caráter residual ou adquirir uma feição punitiva, de acordo com a natureza dos direitos subjetivos violados e da extensão da lesão apreciada de forma global. 33. A técnica da fluid recovery, considerada de modo mais amplo, pode ser útil para garantir a execução de pretensões individuais. 34. Admite-se a aplicação da fluid recovery na transação de ações que envolvam direitos individuais homogêneos. 35. Nos quatro anteprojetos de Código de Processo Civil Coletivo apresentados pela doutrina brasileira foi mantida a atual sistemática da distribuição fluida do art 100 do CDC. 117 REFERÊNCIAS AGUIAR, Leandro Katscharowski. Tutela Coletiva de Direitos Individuais Homogêneos e Sua Execução. São Paulo: Dialética, 2002. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011. ALMEIDA, Gregório Assagra de. 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