G.T.: GÊNEROS, PRODUÇÃO E COTIDIANO NA CULTURA POPULAR DE MASSA RESUMO O presente texto levanta questões acerca da mercantilização e do consumo culturais na sociedade contemporânea. A cultura de massa e a pós-modernidade são discutidas tendo como pano de fundo a contracultura dos anos 60 e sua recontextualização nos anos 90. Isso aponta para a possibilidade de um novo público e, conseqüentemente, de uma nova sociedade. PARA ALÉM DOS CÂNONES DA CULTURA DE MASSA Gisele Marchiori Nussbaumer UFSM - RS Com as crescentes discussões acerca de fenômenos como a globalização e a pós-modernidade muito se tem abordado a questão da mercantilização da cultura e o fato de seu estudo passar de periférico à foco central de atenção de pesquisadores de diversas áreas de conhecimento. Isso acontece, principalmente, devido às mudanças que vêm ocorrendo na produção, divulgação e consumo de bens e produtos culturais na sociedade contemporânea. Nessa sociedade em vias de transição e cuja nova configuração vem sendo apontada como pós-moderna, as concepções tradicionais e as categorias consagradas de análise não parecem mais dar conta da totalidade e da diversidade da atual dinâmica e consumo culturais. As mudanças no estado da cultura refletem o que Mollard 1 identifica como a passagem de um “sistema artístico” para um “sistema cultural”, ao analisar como se dão as relações entre os elementos que constituem o “jogo das quatro famílias” no mercado da cultura: artistas, públicos, financiadores e mídia. Para Mollard, esse jogo de quatro famílias é ao mesmo tempo arcaico e simbólico. Arcaico porque o número quatro remete aos quatro elementos da natureza: fogo, terra, água e ar, simbólico porque remete também a quatro conceitos modernos do mundo: energia, matéria, tempo e espaço. Desse ponto de vista, a energia e o fogo representam os artistas, a matéria e a terra os financiadores, o tempo e a água os públicos, o espaço e o ar a mídia. O jogo de quatro famílias se estrutura por dois eixos: artistas e públicos podem jogar juntos, mas financiadores e mídia se nutrem da presença dos primeiros. Na república das artes e das letras, segundo expressão do autor, o sistema cultural poderia se limitar à uma relação intensa, única, passional entre artistas e públicos. Na repùÌÄØÒÆÂ@ÆÞÜèÊÚàÞåÄÜÊÂX@ÞÄÔÊèÞ@ÈÊ@ÜÞææÞ@ÒÜèÊäÊææÊ@ÂâêÒX@Þvas e musicais. Novamente, ela teve o sentimento da própria fragilidade. A simples presença de Paulo tinha o 1 MOLLARD, Claude. L`ingénierie culturelle. 1994. p.12-6. poder de enfraquecê-la. Por vezes sentia-se arrastada como se ele, sem querer, a magnetizasse. Estremeceu quando Paulo começou a dizer que a amara desde o primeiro momento.” Em Meu Destino é Pecar, folhetim que apresenta maiores pitadas de erotismo, pode-se notar o prazer também ligado à sexualidade. Quando Lena e Netinha, levadas por Lídia ao mausoléu de Guida são encontradas por Maurício que salva Lena do seu desespero: “ Quando abriu, entrou e carregou Lena no colo (...) Lena fechara os olhos, dizia palavras sem nexo, parecia estar devorada pela febre (...) Maurício se esquecia de tudo; como da outra vez que a carregara, experimentava o desejo de que aquilo não acabasse nunca. Ele pensava confusamente: ‘Nunca senti uma coisa assim, um sentimento parecido com este, engraçado’(...) Era como se Lena, despenteada, suja de lama do caminho, molhada, fosse a única, a única mulher em todo o mundo (...) Houve um clarão. Maurício olhou Lena. Estava de boca entreaberta, entreabertos os lábios, como se esperasse ou desejasse um beijo. ‘Se eu a beijar’, pensou ele, ‘ela não vai retribuir, talvez não sinta o meu beijo, está tão fora de si ...’ Mas aquela boca estava tão perto, tão próxima ( ele podia sentir-lhe o hálito) que não resistiu, a tentação foi mais forte. Pensou ainda - ‘vou beijar uma mulher com febre’ - e curvou-se para o beijo, quis unir sua boca à de Lena ...”. Regina descobre seu amante Maurício no mausoléu e, desesperada, foge na tempestade. Maurício deixa Lena e sai atrás de Regina. Quando consegue alcançá-la, ela quer voltar para o túmulo: “quando entram no mausoléu, ela foi possuída de uma tensão nervosa que se traduzia em riso, pranto sem motivo e numa alegria frenética. Quis que ele beijasse ali, num capricho ousado e perverso; fez questão, era uma espécie de desafio que lançava para a eternidade. Ele teve medo, fugiu com a boca; porém ela forçou o beijo, só descansou e só fechou os olholítico por exemplo, justifica essa importância pelo fato de a cultura ter sido enfim colonizada, ou seja, foi colonizado um espaço ainda resistente de crítica. Então, como fugir da realidade do mercado (ou mercantilização) da cultura e continuar apenas a criticála de forma unicamente pessimista como fariam os marxistas mais ortodoxos? lidade. Quando Lena e Netinha, levadas por Lídia ao mausoléu de Guida são encontradas por Maurício que salva Lena do seu desespero: “ Quando abriu, entrou e carregou Lena no colo (...) Lena fechara os olhos, dizia palavras sem nexo, parecia estar devorada pela febre (...) Maurício se esquecia de tudo; como da outra vez que a carregara, experimentava o desejo de que aquilo não acabasse nunca. Ele pensava confusamente: ‘Nunca senti uma coisa assim, um sentimento parecido com este, engraçado’(...) Era como se Lena, despenteada, suja de lama do caminho, molhada, fosse a única, a única mulher em todo o mundo (...) Houve um clarão. Maurício olhou Lena. Estava de boca entreaberta, entreabertos os lábios, como se esperasse ou desejasse um beijo. ‘Se eu a beijar’, pensou ele, ‘ela não vai retribuir, talvez não sinta o meu beijo, está tão fora de si ...’ Mas aquela boca estava tão perto, tão próxima ( ele podia sentir-lhe o hálito) que não resistiu, a tentação foi mais forte. Pensou ainda - ‘vou beijar uma mulher com febre’ - e curvou-se para o beijo, quis unir sua boca à de Lena ...”. Regina descobre seu amante Maurício no mausoléu e, desesperada, foge na tempestade. Maurício deixa Lena e sai atrás de Regina. Quando consegue alcançá-la, ela quer voltar para o túmulo: “quando entram no mausoléu, ela foi possuída de uma tensão nervosa que se traduzia em riso, pranto sem motivo e numa alegria frenética. Quis que ele beijasse ali, num capricho ousado e perverso; fez questão, 2 Palestra proferida em 17/06/96 no Auditório do Jornal Folha de São Paulo - SP. era uma espécie de desafio que lançava para a eternidade. Ele teve medo, fugiu com a boca; porém ela forçou o beijo, só descansou e só fechou os olholítico por exemplo, justifica essa importância pelo fato de a cultura ter sido enfim colonizada, ou seja, foi colonizado um espaço ainda resistente de crítica. Então, como fugir da realidade do mercado (ou mercantilização) da cultura e continuar apenas a criticála de forma unicamente pessimista como fariam os marxistas mais ortodoxos? mo da outra vez que a carregara, experimentava o desejo de que aquilo não acabasse nunca. Ele pensava confusamente: ‘Nunca senti uma coisa assim, um sentimento parecido com este, engraçado’(...) Era como se Lena, despenteada, suja de lama do caminho, molhada, fosse a única, a única mulher em todo o mundo (...) Houve um clarão. Maurício olhou Lena. Estava de boca entreaberta, entreabertos os lábios, como se esperasse ou desejasse um beijo. ‘Se eu a beijar’, pensou ele, ‘ela não vai retribuir, talvez não sinta o meu beijo, está tão fora de si ...’ Mas aquela boca estava tão perto, tão próxima ( ele podia sentir-lhe o hálito) que não resistiu, a tentação foi mais forte. Pensou ainda - ‘vou beijar uma mulher com febre’ - e curvou-se para o beijo, quis unir sua boca à de Lena ...”. Regina descobre seu amante Maurício no mausoléu e, desesperada, foge na tempestade. Maurício deixa Lena e sai atrás de Regina. Quando consegue alcançá-la, ela quer voltar para o túmulo: “quando entram no mausoléu, ela foi possuída de uma tensão nervosa que se traduzia em riso, pranto sem motivo e numa alegria frenética. Quis que ele beijasse ali, num capricho ousado e perverso; fez questão, era uma espécie de desafio que lançava para a eternidade. Ele teve medo, fugiu com a boca; porém ela forçou o beijo, só descansou e só fechou os olholítico por exemplo, justifica essa importância pelo fato de a cultura ter sido enfim colonizada, ou seja, foi colonizado um espaço ainda resistente de crítica. Então, como fugir da realidade do mercado (ou mercantilização) da cultura e continuar apenas a criticála de forma unicamente pessimista como fariam os marxistas mais ortodoxos? o deixa Lena e sai atrás de Regina. Quando consegue alcançá-la, ela quer voltar para o túmulo: “quando entram no mausoléu, ela foi possuída de uma tensão nervosa que se traduzia em riso, pranto sem motivo e numa alegria frenética. Quis que ele beijasse ali, num capricho ousado e perverso; fez questão, era uma espécie de desafio que lançava para a eternidade. Ele teve medo, fugiu com a boca; porém ela forçou o beijo, só descansou e só fechou os olholítico por exemplo, justifica essa importância pelo fato de a cultura ter sido enfim colonizada, ou seja, foi colonizado um espaço ainda resistente de crítica. Então, como fugir da realidade do mercado (ou mercantilização) da cultura e continuar apenas a criticála de forma unicamente pessimista como fariam os marxistas mais ortodoxos? io que lançava para a eternidade. Ele teve medo, fugiu com a boca; porém ela forçou o beijo, só descansou e só fechou os olholítico por exemplo, justifica essa importância pelo fato de a cultura ter sido enfim colonizada, ou seja, foi colonizado um espaço ainda resistente de crítica. Então, como fugir da realidade do mercado (ou mercantilização) da cultura e continuar apenas a criticá-la de forma unicamente pessimista como fariam os marxistas mais ortodoxos? A real mercantilização da cultura talvez seja, de fato, a principal mudança ocorrida com o advento de fenômenos como a globalização e a pós-modernidade. Ou, talvez, essa mudança seja, para alguns, a 2 Palestra proferida em 17/06/96 no Auditório do Jornal Folha de São Paulo Palestra proferida em 17/06/96 no Auditório do Jornal Folha de São Paulo 2 Palestra proferida em 17/06/96 no Auditório do Jornal Folha de São Paulo 2 Palestra proferida em 17/06/96 no Auditório do Jornal Folha de São Paulo 2 - SP. - SP. - SP. - SP. própria pós-modernidade. Seja qual for a posição assumida acerca desse conceito, devemos lembrar que “o pós-modernismo apoiou-se bastante na onda de informalização social e cultural da década de 60” 3 , que a contracultura analisada por Roszak4 já trazia pressupostos da pós-modernidade e que o valor antecipatório da Aldeia Global, de McLuhan, foi recuperado e reconhecido. Hoje, já podemos admitir que a sociedade não pode mais ser pensada apenas em termos de simplificação, unicidade, exclusividade, purismo ou unidade, pressupostos do modernismo; mas sim, também, em termos de complexidade, contradição, ambigüidade, tensão, inclusividade, hibridismo e vitalidade emaranhada, pressupostos da pós-modernidade.5 Há que se reconhecer que nossos jovens já não pensam mais em termos de ”ou...ou”, mas sim de “e...e”; já não são mais amantes das instituições, mas sim, buscam nelas o que elas podem oferecer, buscam o prazer nas “brechas”; não querem mais fazer parte, mas estar junto; buscam o prazer e não se recriminam por isso. No entanto, essa questão terminológica acerca da pós-modernidade parece uma polêmica eterna, pois como gerações de intelectuais sérios, e não ”orgânicos” ou “intermediários da cultura”, como são conhecidos hoje os mais “integrados”, poderiam ingerir esse termo como algo sério? Nesse sentido são bem-vindas as palavras do crítico marxista Fredric Jameson: Eu também, como todo mundo, fico às vezes muito entediado com o slogan pós-moderno, mas quando começo a me arrepender de minha cumplicidade com ele, a deplorar seu uso errôneo e sua notoriedade, e a concluir, com alguma relutância, que ele levanta mais problemas do que resolve, eu me vejo parando para pensar se qualquer outro conceito poderia dramatizar essas questões de forma tão eficiente e econômica. 6 Assim, retomando nossas reflexões iniciais e admitindo que vivemos num “sistema cultural” e numa “sociedade pós-moderna”, como chegamos até aqui e como reagimos frente a essas mudanças? E mais, como se comportam o jovens que crescem sob o signo da pós-modernidade? Serão eles parecidos com aqueles de décadas anteriores, que envolveram-se em movimentos de contracultura, a maioria de forma ingênua, ou serão capazes, eles, de surpreender-nos com uma “pós-contracultura”? Para refletir sobre essas questões buscaremos estabelecer um elo entre a cultura de massa enquanto objeto de estudo e a pós-modernidade enquanto fenômeno que influencia e modifica nossa maneira de pensar a cultura de massa e, conseqüentemente, a indústria cultural. Faremos isso tendo como texto base “A Contracultura”, de Roszak, admitindo como um elo constante entre um e outro períodos a preocupação com a sensibilidade. Quando esse autor afirmava que na boêmia descuidada dos beats e dos hippies e no ativismo político exacerbado da Nova esquerda estudantil existia outra semelhança além do repúdio à tecnocracia, se referia a uma semelhança positiva de sensibilidade; revelada, principalmente, por um personalismo que identificava a alienação como o problema central da época, mas alienação compreendida como o 3 FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. 1995. p.116. Conf.: ROSZAK, Theodor. A contracultura. 1972. 5 COELHO NETO, José Teixeira. Moderno pós moderno. 3 ed. 1995. p.67. 6 JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. 1996. p.___. 4 amortecimento da sensibilidade do homem para com o homem. 7 Será essa sensibilidade, juntamente com uma maior feminilidade, uma herança ainda presente e determinante desse movimento? Quando Collins MacInnes, citado por Roszak, analisou as diferenças dos jovens radicais da década de 30 e 60, concluiu que os jovens contemporâneos consideravam-se mais responsáveis, mas para consigo mesmos. O estereótipo do beatnik ou do hippie ocultava, na realidade, uma procura da verdade da pessoa.8 Será essa afirmação válida ainda se compararmos os jovens da década de 60 com os da década de 90, passados novamente 30 anos? Também os punks ou as drag-queens não estarão à procura da verdade da pessoa, passadas décadas entre um e outro estereótipo de movimentos/contraculturas diferentes? Talvez não possamos comparar estereótipos de décadas anteriores com os atuais, já que os últimos parecem ainda mais restritos a tribos do que influenciadores de uma época. No entanto, estando nós em uma sociedade mais fragmentada e complexa do que em décadas anteriores, não serão os nossos estereótipos de pequenas contraculturas, mais restritas, porém em maior número e diversidade, capazes abranger também um maior número e diversidade de minorias? Se a contracultura analisada por Roszak tinha como risco maior a debilidade no seu relacionamento com os desprivilegiados9, não poderão as atuais e diversificadas manifestações contraculturais oferecer um ambiente mais propício à solução desse problema? Acreditando também que, como os beats e hippies, a maioria dos movimentos mais recentes também trazem em si uma semelhança maior que é a sensibilidade, não estaremos caminhando para uma perspectiva global mais otimista? Na década de 60, Edgar Morin10 dizia que o homem médio ideal podia compreender que Van Gogh tivesse sido um pintor amaldiçoado, mas não que tivesse sido um homossexual. Passadas três décadas, talvez já não se possa mais acreditar nessa afirmação. A própria indústria cultural cedeu ao que pode ser uma vitória conjunta e cumulativa de diversos movimentos a favor de uma minoria, embora este termo já possa ser considerado pejorativo. Afinal, será que as mães de adolescentes brasileiros já não torciam pelo casal “Sandrinho e Jeferson”, em uma das últimas novelas das oito da Globo? No entanto, é claro que a indústria cultural não cede desinteressadamente. Como coloca Maria Celeste Mira: a especialização dos produtos oferecidos pela indústria cultural tem a ver, embora nem sempre, com a formação de grupos culturais, que a ela recorrem para ter visibilidade, que a ela oferecem elementos para se reciclar, ou que dela recebem novos códigos culturais, que absorvem em suas práticas. Tem a ver com a absorção e difusão do alternativo e/ou alteridade. 11 A autora, no que se refere aos grupos sociais, coloca também que: Maffesoli sugeriu que as tribos urbanas nascem do desejo de estabelecer uma relação de sintonia com os outros, de estar 7 ROSZAK. op.cit. p.66-8. Idem. p.71. 9 Idem. p 80-1 10 MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. 7 ed. 1987. p.36. 11 MIRA, Maria Celeste. O global e o local: mídia, identidades e uso da cultura. 1994. p. 142. 8 junto à toa, (...), uma situação de face a face com o outro, de empatia que invade o social. A explicação, altamente sedutora, nos revela apenas um lado da questão, o que diz respeito à coesão interna do grupo.12 Nesse caso, Maffesoli talvez nos revele, realmente, somente essa questão da coesão interna de grupos; mas, por outro lado, esta questão, se aliada à da alteridade, pode vir a nos apontar, quem sabe, algo novo. Nesse sentido, ao tratar do pós-modernismo enquanto pano de fundo de um processo longo, envolvendo as tendências da cultura de consumo que favorecem a estetização da vida, Featherstone ressalta que o “descontrole controlado” das emoções não resulta em niilismo e desintegração social, para ele é “perfeitamente possível que a mudança para critérios estéticos e conhecimento local resulte num autocontrole mutuamente esperado e no respeito para com o outro”. 13 Assim, seria possível afirmar que os membros atuais de pequenos ou grandes grupos culturais ou de movimentos contraculturais procuram, ainda hoje, a verdade da pessoa, mas não só da pessoa que são, também da pessoa do outro e isso talvez possa ser uma novidade para aqueles que insistem no sadomasoquismo da falta de alternativas. Será essa perspectiva apenas mais uma entre outras oriundas de uma visão, talvez, otimista demais do mundo? Mesmo que seja, devemos lembrar que festivais revolucionários, atores em lugar de oradores, flores em lugar de panfletos, constituíram (e constituem, pois são eternamente recuperadas) uma revisão importante da arte de realizar demonstrações e também pequenas, mas importantes, conquistas políticas e culturais. O radicalismo do velho e também do atual estilo do setor dominante ainda desaprovam essas “brincadeiras”, pois política e cultura não são prazer, são coisas sérias. No entanto, face à realidade, devemos questionar, como fez Roszak, por que razão os jovens rebeldes (dos anos 30, 60 ou 90) deveriam supor que as sérias gerações anteriores tinham muito a lhes ensinar? E como a atual geração de jovens, pensando o presente e buscando o prazer até então condenado, pode não mudar nada? Se eles nada mudam, o que explica a multiplicidade dos conjuntos musicais organizados para financiar alguma causa nobre, todas as pequenas solidariedades cotidianas, a exigência de novas posturas frente à questão das etnias e religiosidades, as associações e movimentos culturais e caritativos, entre tantos outros exemplos a que Maffesoli nos remete? 14 Essas manifestações são um indicativo de que a individualidade pode não ser mais, como nos indica o autor, a marca de nosso tempo. Ao contrário, de acordo com sua visão otimista do mundo, parece ressurgir um sentimento de coletividade, um desejo de se tornar participante de uma sociedade mais abrangente, pulverizada por diversos modos culturais que se mesclam e convivem com mais espontaneidade do que se poderia pensar algum tempo atrás. Não podemos deixar de reconhecer que os casais de diferentes etnias e cores, assim como os do mesmo sexo foram incorporados pela cultura pós-moderna. Será a visão otimista dos que aceitam a “pósmodernidade” como o começo de uma “pós-contracultura” o que poderá nos levar do “ideal democrático” para o “ideal comunitário”, uma utopia no caos? 12 Idem. p.145. FEATHERSTONE. op. cit. p.174. 14 Conf.: MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995. 13 Como já dizia Roszak, em um de seus momentos pós-modernos, devemos admitir que existem pessoas que vêem o mundo não como a visão trivial ou científica, mas transformado, fulgurante e que, assim, vêem-no como ele realmente é. 15 Talvez seja o caso de Picasso em sua resposta à tentativa de crítica ao retrato de Guernica, ou no cinema, a visão hiper real que o diretor Emir Kusturica nos apresenta da Ex-Iugoslávia de Underground. Os jovens estranhos que antes se cobriam de talismãs e hoje os que se cobrem com outros adereços estavam e estão procurando ancorar a democracia para além da cultura técnica. No entanto, se as gerações rebeldes das décadas precedentes não perceberam a existência do apoio de um vasto consenso conquistado pelo status quo, através de meios sutis e duradouros, não será o jovem pósmoderno diferente? Não irá ele encontrar suas “brechas” nessa sociedade pós-moderna que está aí e, a partir destas, não poderá desarticular, com seus diversos modos culturais, uma estrutura obrigada a ceder frente à velocidade e à complexidade das mudanças e frente às perspectivas de um novo público, talvez menos ingênuo porque “integrado” de forma mais consciente, personalista e atuante do que o imaginado. É claro que, por outro lado, como coloca Featherstone, é “possível que estejam emergindo diferentes modos de identidade e de formação e deformação de habitus que talvez ofusquem a importância do gosto e da escolha dos estilos de vida - se não por toda estrutura social, pelo menos em alguns setores, como, por exemplo, os jovens e certas frações da classe média”. 16 No entanto, como coloca ainda o autor, há necessidade de considerar que “a fermentação e a desordem culturais, tão decantadas e muitas vezes rotuladas de pós-modernismo, talvez não constituam uma desordem genuína, decorrente de uma total ausência de valores, mas simplesmente assinalem um princípio integrador embutido mais profundamente”17. Assim, deve haver um estilo de vida que procure transformar o sentido que se dá a realidade. Nesse sentido, cabe pensar (ou desejar crer) no “ideal comunitário” de Maffesoli ou nas visões mais otimistas do pós-modernismo, entendido como maior liberdade na busca de prazer para si e para o outro. Enfim, ainda recorrendo a Roszak, devemos acreditar que é o público que deverá fornecer julgamentos daquilo que a consciência objetiva nos oferece. Defender o que está aí simplesmente por referência à exigência de uma apreciação equilibrada (e integrada) constitui o pior vício de nossa cultura18, vício que talvez venha sendo quebrado por uma nova cultura e um novo público. Um novo público que já não aceita a subserviência ao fogo, à terra ou ao ar, mas sim, quer inundar pósmodernamente um pouco cada um desses elementos. Afinal, se ,como vimos, a sociedade reflete um “estado da cultura” que funciona num “sistema cultural”, influenciado pela “globalização” crescente e por pressupostos da “pós-modernidade”, nos resta somente a tarefa de tentar descrever a realidade e tentar, nessa discussão, encontrar alternativas que nos levem a perspectivas também otimistas e, não apenas pessimistas, reproduzindo aqueles discursos que, por mais consistentes e realistas que sejam, não nos trazem novas perspectivas. Resta-nos acreditar num novo público, composto talvez de jovens e certas frações da classe média que, vivendo além dos cânones da cultura de massa, possam alimentar e influenciar os artistas (e 15 ROSZAK. op.cit. p.242. FEATHERSTONE. op. cit. p.40. 17 Idem Ibidem. 18 ROSZAK. op.cit. p.274. 16 intelectuais) através de novos comportamentos e demandas, bem como alimentar e influenciar, também, o comportamento da mídia e dos financiadores, que determinam e financiam estilos de vida, mas que talvez não possam mais fazer isso pensando somente no público-consumidor, mas tendo que levar em conta um público-cidadão que parece ressurgir. Para finalizar, cabe lembrar que o esquema inicial do jogo das quatro famílias, que regem o sistema cultural, como nos coloca Mollard, continua simplificador. Isso porque certos indivíduos chegam a participar de várias famílias ao mesmo tempo: esses são os grandes vencedores do jogo. Vai de um jornalista, ao mesmo tempo empresário e crítico de arte, para um financiador, que depois de ter sido artista, sabe utilizar as alavancas do sistema para desenvolver uma boa divulgação de sua obra. Em contrapartida, aquele que continua isolado das outras famílias sem dominar as regras que regem suas relações é condenado à marginalização.19 Nesse sentido, cabe acreditar em um novo público-cidadão, que já não corre à margem do sistema; mas, ao invés disso, poderá ter um lugar significativo na configuração de uma nova sociedade. BIBLIOGRAFIA: COELHO NETTO, José Teixeira. Moderno pós moderno. 3 ed. São Paulo: Iluminuras, 1995. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996. MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995. MIRA, Maria Celeste. O global e o local: mídia, identidades e uso da cultura. In: Revista Margem. Faculdade de Ciências Sociais da PUC/SP. São Paulo: EDUC, 1994. MOLLARD, Claude. L’ ingénierie culturelle. Paris: Presses Universitaires de France, 1994. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. ROSZAK, Theodor. A contracultura. São Paulo: Vozes, 1972. 19 MOLLARD. op.cit. p20.