Capítulo 05
O Triunfo da Melancolia
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Os conceitos de melancolia e de nostalgia nos interessam aqui apenas de um
ponto de vista estético: primeiro, como conceitos que Pessanha utiliza para refletir sobre
a poesia; segundo, como atitudes que redundam em formas particulares de organização
textual. Nesse momento, entretanto, como num texto clássico da psicanálise,
contemporâneo da obra de Pessanha, Freud se debruça sobre a melancolia, cremos que
vale a pena verificar as definições que ele ali apresenta, porque elas nos ajudarão a
formular melhor algumas das questões que vimos discutindo. Trata-se do ensaio
intitulado “Luto e Melancolia”, escrito em 1915 e publicado 1917.
O ensaio de Freud começa por reconhecer a dificuldade de estabelecer uma
clara definição de melancolia. Não só do ponto de vista médico, mas também no
emprego mais amplo da palavra, o termo recobre, sem dúvida, uma ampla gama de
significados. Considerando-a, em princípio, uma anormalidade, isto é, uma doença,
Freud opta por estuda-la em contraste com aquilo que entende ser a forma normal de
que ela seria a perversão: o luto. A pertinência da relação entre o luto e a melancolia é
garantida, para Freud, pelos sintomas muito semelhantes. Em ambos os casos, o sujeito
experimenta “um desânimo profundamente penoso, a cessação do interesse pelo mundo
externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade”. O
traço distintivo da melancolia, que se acrescenta aos do luto, é “uma diminuição dos
sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e
-1-
auto-envilecimento, culminado numa expectativa delirante de punição”. A razão dessa
diferença, diz Freud, é que a libido investida no objeto perdido não se dirige a outro
objeto, mas reflui para o ego, e nele estabelece “uma identificação do ego com o objeto
abandonado”. Daí o caráter específico da melancolia, que se explica na formulação bem
conhecida:
[...] assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado
por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma,
uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a
pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica e do ego e o ego enquanto
alterado pela identificação1.
O que torna o luto “normal” é a sua familiaridade: “embora o luto envolva
graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos
ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento
médico”. Ou seja, é um afastamento previsível da normalidade. O caráter patológico da
melancolia, por sua vez, também se revela na sua variedade e imprevisibilidade, o que,
por outro lado, obriga o analista a admitir que
A melancolia ainda nos confronta com outros problemas, cuja resposta em parte nos
escapa. O fato de desaparecer após certo tempo, sem deixar quaisquer vestígios de
grandes alterações, é uma característica que ela compartilha com o luto.
E se é verdade que o desaparecimento da melancolia difere da superação do
luto porque tende a dar lugar à mania, com a liberação de grande carga de energia
libidinal e a consequente grande disposição para a ação, Freud também reconhece que
nem toda melancolia, ao desfazer-se, gera a mania. De modo que, sendo impossível
traçar uma sintomatologia exata da melancolia, o analista vê-se obrigado a concluir que
o único ponto que se pode afirmar com certeza sobre a melancolia é que ela “contém
algo mais que o luto normal”. Esse algo mais não é, entretanto, a natureza da relação
com o objeto, porque se é verdade que na melancolia “a relação com objeto não é
simples [mas] complicada pelo conflito devido a uma ambivalência”, também no luto se
pode perceber o mesmo:
Das três pré-condições da melancolia – perda do objeto, ambivalência e regressão da
libido ao ego –, as duas primeiras também se encontram nas auto-recriminações
obsessivas que surgem depois da ocorrência de uma morte [...]2.
“Luto e Melancolia”, em Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmundo Freud, Rio de Janeiro,
Imago, 1974, vol. XVI. O trecho citado e encontra nas pp. 281-282.
2
Idem, p.291.
1
-2-
Assim, a conclusão que se impõe é a de que devemos “considerar o terceiro
fator como púnico responsável pelo resultado” [da melancolia]. É a regressão o que dá o
tom específico e o caráter patológico da melancolia. Ao internalizar o objeto
ambivalente, o melancólico é presa de uma luta inconsciente entre o amor e o ódio pelo
objeto. Como o objeto é internalizado, o “ego se degrada e se enfurece contra si
mesmo”, mas isso tudo que Freud apresenta como possível de ser afirmado, porque, nas
suas próprias palavras, “compreendemos tão pouco quanto o paciente a que é que isso
pode levar e como pode modificar-se”3.
Dessa rápida exposição, podemos concluir que melancolia é o nome que Freud
atribui a toda reação a uma perda que contenha “algo mais” do que o luto normal.
Melancolia, assim, é um nome genérico, que recobre uma variada gama de reações e de
sintomas, que tê, em comum unicamente a regressão da libido ao ego, isto é, a
internalização do objeto do desejo. Ora, ao longo deste trabalho vimos utilizando
sistematicamente os termos “nostalgia” e “melancolia”, e tentando estabelecer
diferenças entre elas enquanto atitudes geradoras de determinados procedimentos
textuais. Ambas as disposições de espírito apresentam as características que Freud
descreveu como constituintes da melancolia, mas o que nos interessa é justamente o que
as distingue. Passaremos, então, ainda no âmbito das coordenadas do texto de Freud, a
tentar diferenciá-las.
Uma primeira operação que se faz necessária, se quisermos utilizar de modo
culturamente produtivo o texto de Freud, é eludirmos por completo a distinção
normal/patológica que lhe permite diferenciar a melancolia e o luto. É porque pensou
contrastivamente a melancolia e o luto, com base na distinção acima, que Freud não
atribui qualquer valor à especificidade do objeto perdido. Da forma como operou,
parece que toda perda de objeto pode ser objeto de luto, isto é, de desinvestimento do
objeto perdido e reinvestimento num novo objeto. Sem atentar para a natureza dos
objetos, além disso, Freud desprezou um caminho possível para distinguir as várias
formas da melancolia e pôde escrever que tanto a melancolia quanto o luto constituem
“reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de
um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante”. No
texto de Freud, assim, a perda da liberdade ou da ligação física com a terra natal tem o
mesmo estatuto que outra perda qualquer. São “abstrações”, formações substitutivas que
3
Idem, p.290.
-3-
ocupam, na economia dos afetos, um lugar que pertence, em princípio, a um objeto
humano da libido. Toda a sua descrição do processo do luto se articula sobre o que é
para ele a perda básica: a do ente querido4. Isso simplifica bastante a análise, porque é
certo que, no caso da perda de uma pessoa amada, “o teste da realidade” pode revelar
reiteradamente que “o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido
seja retirada de suas ligações com aquele objeto”. Sendo assim, a patologia da
melancolia residiria, no final das contas, na recusa à submissão à realidade. Mas se o
luto é a forma normal da melancolia, como esperar que seja objeto de um trabalho de
luto completo a perda de uma “abstração” como o país ou a liberdade? Se, nas palavras
do analista, “quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e
desinibido” e pode investir a libido liberada em outro no caso de um prisioneiro? O
“teste da realidade” não demonstra que o objeto amado deixou de existir. Muito pelo
contrário, afirma a existência dele e o estado de privação em que se encontra o sujeito.
Não é diferente a situação de um exilado. E mesmo que, neste caso, ou que não poderá
corresponder à idealização que nasce da constatação da sua falta, é difícil pensar num
desenlace lutuoso e não melancólico para a perda da terra natal.
Feitas essas observações, não parece problemático aceitar que a nostalgia seja
uma forma de melancolia e que seus efeitos sobre a personalidade de quem a
experimenta sejam semelhantes aos de específicas da nostalgia que precisam ser, do
nosso ponto de vista, devidamente sublinhadas. Uma delas, para nos mantermos ainda
em que se historia o conceito de melancolia e as propostas de cura desde os gregos até
cerca de 1900, lemos, por exemplo, que desde o século XVII o mal do viajantes é
encarado como uma modalidade da melancolia, distinta entretanto da melancolia negra
pelo fato de se poder curar de modo bem simples, com o retorno à terra natal5. Isto é: a
nostalgia diferiria de outras variedades de melancolia por ter uma causa imediatamente
identificável; daí, também, a relativa facilidade de sua solução. A percepção dessa
diferença entre a nostalgia e outras formas de tristeza inexplicável permitiu, já no século
XVIII, que a viagem para o exterior, o deslocamento para fora do ambiente habitual,
pudesse ser aconselhada como um dos remédios mais eficaz para o mal maior da
melancolia. A nostalgia não parecia tão temível quanto a melancolia, e podia-se assim
correr o risco de a provocar, se isso fosse necessário ou eficiente para a eliminação da
4
Como mostra a comparação com o que sucede na melancolia, Freud parece pensar essa perda principalmente no sentido literal: a
morte da pessoa amada. Cf. p.277: “o objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor
[...]”.
5
Cf. J. Starobinski, Historia del Tratamiento de la Melancolia desde los Orígenes hasta 1900, Genebra, Geiby, 1962.
-4-
segunda. Uma boa explicitação desse pressuposto se encontra num texto escrito em
1870 por Calmeil, um discípulo do célebre Esquirol. Para ele, a viagem poderia ser um
eficaz remédio para os melancólicos não furiosos e ricos:
Los viajes pueden aconsejarse a los melancólicos dóciles que tienen el privilegio de la
fortuna, em particular si poseen certo grado de instrucción y gusto por el estúdio, las
artes o las letras. Los viajes tienen la ventaja de excitar la curiosidade o la sorpresa de
los melancólicos, de hacer passar rapidamente ante sus ojos uma gran variedade de
objetos, de seducir su imaginación por la beleza de los paisajes, de sorprenderla com
la hermosura de la Naturaleza o la perfección de los monumentos y obras maestras
que hasta entonces sólo conocían de referencias6.
Esse texto nos interessa especialmente não apenas por apresentar uma
descrição de como se esperava que a viagem agisse sobre a disposição melancólica, mas
também porque, na sequência, nos mostra que a cura não se realiza apenas pela
distração e pelo deslocamento. Após o périplo, diz Carmeil, os melancólicos, “al
repatriarse, vuelven com fe y esperanza em la vida” (grifo do original). Como vemos, a
eliminação da melancolia se daria em dois momentos: a viagem propriamente dita – em
que a novidade produz surpresa, desperta a curiosidade e conduz ao pleno e prazeroso
exercício dos sentidos – e o retorno, no qual efetivamente se processa a cura. Calmeil
parece apostar numa espécie de redução do estado melancólico pleno ao estado
simplesmente nostálgico. Embora sendo um tipo de melancolia, a nostalgia é assim
vista por Calmeil como antídoto a ela, como estratégica de lidar com o sentimento da
tristeza e da perda de motivação, descobrindo-lhe um objeto recuperável.
Ora, na análise que vimos fazendo da forma de articulação da nostalgia e da
melancolia no universo textual de Camilo Pessanha, parece vigorar entre ambas uma
relação análoga à formulada por Calmeil. Ou, para dizer de outra forma, parece que
Pessanha tem uma crença semelhante. Para o poeta português, a manutenção do
sentimento nostálgico nos parece como defesa contra a ação dissolvente da melancolia;
e esta, como um alívio momentâneo da angústia nostálgica.
Nostalgia e melancolia, dessa perspectiva, nos parecem como pólos de tensão,
na cosmovisão que emerge da obra de Pessanha. O dominante, enquanto formulação
consciente de uma poética e enquanto prática preferencial, é o nostálgico. Mas o que
acaba dando uma coloração muito característica à obra poética de Pessanha é justamente
a tensão entre esses dois pólos. O que quer dizer que é, me última análise, a
transformação da nostalgia em melancolia, e vice-versa. Mas não há reversibilidade
6
Apud J. Starobinski, op. cit., p. 70.
-5-
pacífica entre os termos, não há harmonia entre as duas atitudes, e sim um conflito
bastante sensível.
Para melhor delinear a dinâmica que pretendemos apreender, recapitulemos
ainda uma vez o que, a esse respeito, tentamos estabelecer nos ensaios anteriores, estas
linhas gerais: tal como a vimos entendendo, é nostálgica a atitude em que a sensação de
perda é identificada à de desenraizamento e acompanhada de uma vontade de retorno,
em que o tempo e o espaço são sentidos como impedimentos a uma plenitude possível,
como osbstáculos ao reencontro com a origem; é melancólica, por outro lado, a atitude
em que se dá um afrouxamento da perspectivação temporal, de que resulta o alívio da
dolorosa percepção do afastamento e do consequente anseio de retorno, mas se
absolutiza a sensação de solidão. Por sua ação dissolvente, a melancolia representa a
anulação do sentimento nostálgico. O ponto é justamente este, porque, como vimos,
para Pessanha era justamente o sentimento nostálgico a condição necessária para a
inspiração poética. Assim sendo, no quadro que vimos traçando, aquele esforço de
afirmação da poética da nostalgia, presente no texto de 1924, pode ser lido agora
simultaneamente como uma confissão do triunfo da melancolia e como uma formação
reativa, ela mesma nostálgica de um momento primeiro, em que o exílio ainda podia ser
sentido de modo particular, e não como condição geral da existência. Porque afinal, é
disso que se trata, quando a melancolia se vai sobrepondo à nostalgia: da extensão do
sentimento de exílio e deslocamento, pela perda da individualidade do objeto do desejo.
Foi esse momento de sobreposição que Urbano Tavares Rodrigues notou, quando
escreveu que “toda a poesia de Camilo Pessanha é poesia de exílio. Em Macau ou em
Lisboa, mesmo nas terras da sua infância, o tecido de existência que o envolvia era o
exílio”7. Apenas, na nossa leitura, o “tecido da existência” fica sendo, mais
especificamente, o “véu da melancolia”, que obscurece o olhar nostálgico e vai tornando
sem sentido os esforços de recuperação do passado.
No acervo textual de Camilo Pessanha pudemos identificar um dos momentos
fortes no processo de substituição da nostalgia pela melancolia, enquanto atitude
predominante. Trata-se da carta de janeiro de 1909, escrita a Carlos Amaro, que há
pouco comentamos. Como vimos, o poeta ali se referia ao estado de espírito da viagem
como uma espera sem esperança e exprimia, no post-scriptum, o desejo de não chegar
nunca ao destino. Notamos então a singularidade da frase em que punha no mesmo
nível afetivo Portugal e China, aos quais se referia como “dois abismos tão distantes um
7
Urbano Tavares Rodrigues, “Aproximação da Poesia de Camilo Pessanha”, Ensaios de Escrever, Porto, Editoral Inova, 1970.
-6-
do outro, e no fundo de cada um dos quais a minha alma perpetuamente agoniza”, e
apontamos que essa agonia já não se podia explicar em termos exclusivamente
nostálgicos. Uma outra passagem desse texto merece, para compor um quadro mais rico
da tensão entre nostalgia, ser considerada. É esta:
Como aí, no Tejo, presenciaram e me fizeram nota, eu ainda estava em Lisboa entre
os melhores amigos que deixava na Europa e já estava na China. Aquela rapariga,
passageira da segunda classe, que ao navio regressava à última hora, de uma fugida
por Lisboa, chalreante e flutuante naquela ventania de temporal, era bem o tipo das
europeias de arribação que eu estou habituado a ver para lá do estreito de Málaca.
Os criados malaios que nos rodeavam são aproximadamente os criados chinas que nos
servem em Macau. Quando a lancha em que os meus amigos recolhiam ao Terreiro do
Paço, tendo atravessado pela proa do vapor, me fez mudar de bordo para ainda lhes
acenar um fugidio adeus, tive, é certo, a impressão de que da minha alma uma grande
parte, que lhe fora agregada pelo lento passado, se separava bruscamente para sempre,
sem eu saber para onde. Veio-me então a consciência da minha soledade, vendo-os a
todos que se afastavam também fustigados pela desgraça, como alguém que se
esgueira à pressa e de cabeça baixa, depois de um enterro. Naturalmente, chorei...8
A noção central aqui é a de perda. A perda objetiva é a da companhia dos
amigos, que ficam para trás, mas a percepção é de uma perda muito mais ampla do que
essa. Uma grande parte da alma, diz o poeta. Embora possamos ser levados a concentrar
no segundo parágrafo transcrito a sensação da perda, a discussão a que já procedemos
do conceito de inspiração poética, chama de imediato a nossa atenção para a experiência
que descreve no primeiro. De fato, quando afirma que poesia é bucolismo. Pessanha,
como vimos, nos diz que para os portugueses poderem exercitar a sua “especial
atividade imaginativa” é essencial, pelo menos, “a ilusão de se estar em Portugal”.
Naquele texto, dá a si mesmo como exemplo da produtiva divisão nostálgica, em que a
imaginação exaltada conseguia abstrair do ambiente exótico e obter a ilusão necessária à
manutenção da inspiração. É essa mesma divisão que ainda comparece numa carta de
1905, escrita ao primo José Benedito:
Parti de Macau sem esperança de arribar a este torrão das minhas saudades, ao qual
exclusivamente a minha alma pertence, como bem sabes... Os ossos, mesquinhos, ai
de mim!, esses pertencem, por um destino invencível e absurdo, ao chão antipático do
exílio9
Mas agora, após alguns anos em Portugal, o que percebe operar-se nele tem
sinal oposto. O simples ambiente do cais do porto já o transporta e o que sente (e os
amigos notam) é que o corpo ainda está em Portugal, mas a alma já está longe, no que
era antes apenas um lugar antipático e hostil. Daí provém a sensação seguinte, a de que
8
9
A. Dias Miguel, op. cit., pp.132-133.
Carta de 25 de outubro de 1905, escrita em Braga. Apud. A. D. Miguel, op. cit., pp. 121-122.
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nesse momento perdia uma grande parte da própria alma e mergulhava numa solidão
completa. Porque o que se perde aqui é o alimento da nostalgia, a parte da alma em que
se sedimentaram as vivências do ambiente de origem, a parte (digamos assim) social da
alma, a sua identificação com o grupo. Com os costumes, a parte que responderia por
aquilo que ele chamaria, em 1927, de “sentimento étnico”.
É assim possível esboçar agora, como coroamento ou corolário de uma poética
básica da nostalgia, que perpassa todo o universo textual de Camilo Pessanha, uma
outra atitude, uma outra poética, centrada no olhar melancólico. Ora sentida como uma
superação fugaz, ora como triunfo momentâneo do eu lírico, que deixa na sombra a
dolorosa sensação de desenraizamento e o anseio sempre frustrado pela reintegração;
ora percebida como estiolamento da capacidade criativa, da capacidade de evocar o bem
perdido, é à disposição de espírito que dá o tom dessa passagem e do restante da carta
que chamamos aqui melancolia. Poeticamente, quando triunfa a melancolia, apagam-se
as metáforas da recuperação evocatória da origem, desparece aquele que, reforçado pela
quadra escrita para abrir o conjunto dos seus versos, nos aparece como o registro mais
forte da obra poética de Camilo Pessanha, e o foco do interesse deixa de ser o
esvaziamento do sujeito ao longo de um eixo de deslocamento espacial e temporal e
passa a ser a fragmentação desse sujeito, a fragmentação das suas percepções e das suas
memórias. O modo básico do poema é, então, a reflexividade e o seu tema, a ironia.
Já comentamos vários poemas em que a perspectiva nostálgica é dominante, e
também tratamos de alguns em que a melancolia é prevalece. Mas para podermos
aprofundar um pouco mais o que seria o ideal poético de Camilo Pessanha na época em
que tão doloridamente discorre nas cartas a Carlos Amaro sobre a disposição
melancólica da espera sem esperança, leiamos agora um poema que Pessanha
considerava, em 1908 – ou seja, no ano anterior ao das cartas que há pouco comentamos
–, o que de mais perfeito havia em toda a sua obra10, e tentemos identificar nele os
procedimentos textuais que poderíamos vincular à perspectiva melancólica:
Foi um dia de inúteis agonias,
– Dia de sol, inundado de sol.
Fulgiam, nuas, as espadas frias,
–Dia de sol, inundado de sol.
Foi um dia de falsas alegrias.
–Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso.
10
Referimo-nos aqui ao documento encontrado em 1995 no espólio de Manuel Mendes: uma versão autografa do soneto que
começa: “Foi um dia...”, datada de dezembro de 1908 e anotada: “forma definitiva”. Na folha desse autógrafo, Carlos Amaro
registrou: “Disse-me Camilo Pessanha que era Isto o mais perfeito da sua Obra”, Mais informações sobre o poema e sobre esse
documento podem ser encontradas em: Clepsydra, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 1995, pp. 171 e ss.
-8-
Voltavam os ranchos das romarias.
–Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso.
Dia impressível, mais que os outros dias.
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!
Difuso de teoremas, de teorias...
O dia fútil, mais que os outros dias!
Minuete de discretas ironias...
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!
A um primeiro olhar, do ponto de vista mais externo, o soneto produz dois
estranhamentos: o causado pela intensa repetição de versos ou partes de versos e o seu
desenvolvimento muito peculiar.
Observando mais de perto o poema, aprofunda-se a impressão de singularidade
formal: nem a estrutura das rimas é perfeitamente aceitável dentro dos padrões
tradicionais do soneto (o esquema, aqui, é abab/acac/ada/aad), nem os decassílabos têm
acentuação regular, nem a estruturação sintática, que faz de cada verso um período,
respeita a divisão estrófica da forma11. A característica mais notável desse poema,
entretanto, é a já apontada repetição de versos ou segmentos de versos: três pares de
linhas são inteiramente iguais e em dois outros pares o primeiro ou o segundo
hemistíquio se repete. Ou seja, dois terços dos versos do soneto são construídos por
paralelismo ou repetição. Também as rimas integram essa estratégia de repetição: uma
delas atravessa todo o soneto, encerrando nada menos do que oito versos.
Contrastando com esse princípio construtivo, a estrutura métrica do soneto é
uma espécie de exercício de variação, em que um conjunto de oito versos heróicos
intercala-se com quatro provençais e duas outras ocorrências únicas: um sáfico e um
exótico decassílabo acentuado na 2ª e na 5ª12.
Se passarmos agora à consideração da estrutura sintática do soneto,
constataremos outras singularidades, das quais a mais notável talvez seja a de os dois
tercetos não encerrarem um único verbo, compondo-se de frases nominais justapostas.
A estrutura dos quartetos é igualmente curiosa: cada verso ímpar é uma frase completa,
e cada verso par é uma expressão nominal, que se justapõe à frase anterior. Na primeira
quadra, a relação entre os versos pares e os ímpares parece ser a de tópico/comentário:
os versos pares são comentários aos tópicos lançados pelos versos ímpares. Já na
11
A propósito da estrutura do soneto clássico, ver o trabalho já referido de A. Coimbra Martins, pp. 328-330.
Essas variedades têm uma distribuição muito especial: os diferentes tipos se concentram nas quadras, enquanto que os tercetos
têm maior homogeneidade, constituindo-se exclusivamente de versos heroicos. Por fim, deve-se notar que o metro provençal (com
acentos nas sílabas [1] 4-7-10), que, como vimos, durante certa época foi uma obsessão para Pessanha, comparece apenas nos versos
pares das quadras, que funcionam como uma espécie de estribilho. Há ainda que considerar o solitário verso decassílabo acentuado
na quinta, que o poeta parece ter considerado importante no ritmo geral do soneto, pois, quando o riscou e substituiu, escolheu para
essa posição um outro, dotado da mesma distribuição acentual: “Passavam, das feiras e romarias”.
12
-9-
segunda quadra, a relação não é da mesma natureza, e os versos pares parecem ser uma
metáfora do término das atividades eufóricas que os verso ímpares indicam.
Nesse ponto, da simples observação do modo de apresentação do texto já
podemos concluir que, se este soneto representava mesmo para Pessanha a maior
aproximação as seu ideal de perfeição poética, então essa perfeição já nada tinha a ver
com a poética corrente de seu tempo, e que o seu ideal estético, ao utilizar de modo tão
peculiar a forma tradicional do soneto, passava pela corrosão das formas usuais de
organização do texto poético.
Depois desse primeiro olhar analítico sobre a superfície textual, tentaremos
agora aprofundar a análise e discernir o sentido geral destes versos assim articulados e
dispostos, ou melhor, o efeito de sentido que emerge da estrutura de que nos fomos aos
poucos aproximando. Perguntemo-nos, enfim: o que diz esse texto, do que nos fala esse
soneto?
Por não possuir uma estrutura discursiva facilmente assimilável, se tentarmos a
paráfrase explicativa, não conseguiremos ir muito longe, pois o sentido destes versos
não se deixa minimamente condensar numa fábula. Tampouco é possível perceber
imediatamente o seu desenho geral. Podemos, no máximo, reproduzir vagamente a
primeira impressão da leitura, uma percepção ingênua, desprovida de interpretação: o
texto nos apresenta um momento talvez identificável como uma tarde de verão, numa
época em que se realizam romarias. Como as dálias florescem no verão e entram em
declínio com as primeiras geadas do outono, o máximo que podemos imaginar é que o
poema se situa no final daquela primeira estação. Objetivamente, mais nada. O que se
acrescenta a essa impressão inicial é muito indistinto, muito cambiante: uma vontade de
fixar aquela tarde, uma tentativa de fornecer equivalente para ela em imagens ambíguas
(as dálias que se esfolham, um sorriso mole, espadas nuas que fulgem); uma declaração
da ausência de transcendência do episódio ou do momento que se quer fixar ( o dia que
é mais fútil do que os demais); uma insinuação da impotência dos esforços intelectuais
para transcender os dados da experiência (um dia de teoremas e teorias difusas, em que
as ironias discretamente desenvolvem os seus jogos de salão). Mas, à medida que nos
afastamos daquele primeiro núcleo de observação dos poucos fragmentos de sentido
mais literal, como o terreno se torna inseguro, quantas pontes temos de construir para
transitar de um verso para o outro, se quisermos manter um nexo de sentido lógico!
É verdade que a situação sazonal da cena, que é a passagem do verão para o
outono, conjugada ao simbolismo das flores fanadas e da perda das ilusões (na
- 10 -
qualificação das alegrias como falsas), orienta a leitura do soneto como evocação
melancólica da transição da juventude para idade madura. Também é verdade que os
elementos de que se compõe a cena não são neutros, do ponto de vista da sua situação
no tempo e no espaço. A paisagem que aqui se insinua se reduz a elementos mínimos,
mas aponta para uma cena campestre ou aldeã, em que alguns ranchos voltam de
romarias e em que a indumentária inclui espadas de aço; ou seja, apontam para um
ambiente ou um tempo distante do presente da escrita e marcam a atitude do poema
como evocação. Esse sentido evocatório é ainda reforçado pelos adjetivos com que o dia
de sol é qualificado, pois ambos podem designar simultaneamente o dia passado, cheio
de luz solar, e a sua evocação pela lembrança, o dia fantasmático e evanescente, objeto
da memória e da análise. Mas o que é importante observar é que, mesmo aprofundando
assim a leitura, tudo o que temos são índices, que nos permitem apenas identificar o
mood do soneto, o seu escopo geral, e ele continua mais ou menos impenetrável,
irredutível a uma leitura referencial ou de identificação sentimental. Tampouco é,
porém, um poema intelectualizado, no sentido de que não são aqui visíveis os jogos da
inteligência, o brilho dos conceitos em choque e movimento. O poema escorre, de uma
ponta a outra, sem que tenhamos de parar para admirar um jogo de palavras, um
segundo sentido, uma alusão literária. Nada. E no entanto, tem ele um grande impacto
sensível: a monotonia, a repetição de versos e de partes de verso, a rima monodial, a
ausência de imagens circunstanciais que nos permitam imaginar um cenário; o
acromatismo da paisagem inundada de luz, mas sem reflexos, que se resolve em
palidez; a fixação na memória de algumas poucas imagens e acontecimentos destacados
de qualquer contexto; a indeterminação de tudo o que caracterizaria aquele dia
particular, acompanhada da paradoxal e reiterada afirmação da sua singularidade em
relação aos demais – tudo isso nos é dado apenas como experiência de leitura. É nossa
a sensação da inutilidade dos esforços de fixar uma dada percepção. Esses versos não
dizem, nem apontam, mas presentificam, instauram no âmbito da percepção do leitor
uma experiência frustrada de interação. No caso, de interação com o próprio poema, que
não se submente a uma leitura apoiada na identificação de significados ou de situações
sentimentais do sujeito lírico. Tudo o que temos deste soneto é uma percepção vaga,
uma experiência de leitura que é um equivalente daquilo que o próprio texto apresenta
como experiência do sujeito lírico face à cena evocada e fragmentariamente desenhada.
Numa primeira versão, esse soneto se chamou “Manhã de Cera”; o dia
“impressível” era. Então, um dia “moldável”. É essa manhã que se constrói ao longo do
- 11 -
poema: o dia pálido e lúcido se impõe na sua homogeneidade e monotonia ao longo de
versos que impõe na sua homogeneidade e monotonia ao longo de versos que o
reproduzem não como conteúdo discursivo ou como abstração conceitual, mas como
experiência sensível.
O que esse soneto traz de mais característico, porém, dada a sua própria forma
de estruturação, é que a evocação melancólica, diferentemente da evocação nostálgica,
deixa oculto aquilo que evoca, elude a exposição do motivo do estado de espírito ou a
representação do objeto que o provocaria. Trata-se, neste sentido, de um poema que
exibe, à plena luz e radicalizada, uma característica que perpassa toda a poesia de
Camilo Pessanha: a absolutização do fragmento. Na sua poesia – pelo menos na poesia
que escreveu no período de maturidade artística, e que podemos identificar, de modo
geral com o primeiro decênio da vida em Macau13 – convivem e combinam-se duas
tendências dominantes claramente marcadas, do ponto de vista da forma de construção
textual. Alguns poemas, como o soneto “Quando voltei...”, são construídos de um modo
bastante usual, que podemos chamar de modo alegórico totalizante. Com isto, queremos
designar um texto que apresenta um desenho claro de caráter alegórico, como sucede
naquele caso específico: ao dizer que no fim do caminho da sua vida reencontrou os
seus primeiros passos, a voz lírica estabelece o quadro totalizador, em relação ao qual se
atualizarão depois as correspondências entre os dois universos significantes postos em
função. Mas em outros textos, como o que acabamos de ler, não temos um quadro
totalizador, não temos um ponto de vista a partir do qual possamos reorganizar os
fragmentos que poderiam compor uma alegoria. A dália que se esfolha, as espadas frias,
o “mole sorriso” (que nem sequer podemos decidir se é de uma pessoa ou se é
figurativamente atribuído às próprias flores), os minuetes, tudo permanece separado,
apenas justaposto e unido por fios de sentido mais ou menos frouxos. Não há aqui,
portanto, uma forma de construção poética que se possa definir a rigor como
alegórica14. Tampouco há proeminência simbólica de algum desses elementos: para
13
Ver, a propósito da atividade de escrita de Camilo Pessanha, além dos comentários dispersos no aparato crítico da Clepsydra
(Lisboa, Relógio d’Água, 1995), o artigo “Camilo Pessanha – Algumas Considerações em Contributo à sua Biografia”, Estudos
Portugueses e Africanos, n.21, Campinas, Unicamp, 1993.
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Utilizamos a expressão “modo alegórico totalizante” para designar um texto produzido de tal forma que o quadro alegórico seja
passível de rápida compreensão global, com identificação dos dois universos representados e postos em relação em cada passo.
Nesse sentido, corresponde aproximadamente ao que tradicionalmente se denomina “alegoria imperfeita”. Mas o ponto, aqui, era
afirmar uma diferença entre o modo que julgamos ser o de Pessanha neste poema e outros modos alegóricos, em que a fragmentação
dos conceitos e as metáforas em sequência podem ser claramente atualizadas num quadro mais amplo de sentido, o que aqui não se
dá. A propósito dos vários tipos de alegoria, bem como da sua relação com a metáfora, pode-se consultar, com muito proveito, o
livro de João Adolfo Hanser, Alegoria – Construção e Interpretação da Metáfora (São Paulo, Atual Editora, 1986) – do ponto de
vista desta questão, tem especial interesse a para II: “A alegoria como expressão ou alegoria retórica ou alegoria dos poetas”.
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nenhum convergem os demais, de modo a realçar uma imagem ou uma conjunção de
significações que ficasse vibrando inexplicavelmente na memória.
É certamente por representar algo realmente diferenciado da poética sua
contemporânea em língua portuguesa, e por realizar de modo exemplar uma tendência
existente em vários textos seus, que Camilo Pessanha pôde apresentar esses versos ao
amigo dileto como o grau máximo da sua escrita. Como em vários de seus melhores
poemas, descortina-se aqui a problemática da apreensão da realidade pelo sujeito, da
permanência ou transitoriedade das imagens sensórias; mas, diferentemente do que
sucede em quase todos os outros, não há aqui, como notamos, um fio metafórico a unir,
num feixe significante, os vários fragmentos que se vão justapondo. Não há tampouco
um esboço narrativo, que permita situar esses mesmos fragmentos e observá-los ao
longo de um eixo de transcurso temporal. E não há, finalmente, um processo de
condensação simbólica que permita, por outra via, a superação da experiência da
fragmentação na leitura. Ou seja: este poema presentifica, mais do que qualquer outro
conjunto de versos de Camilo Pessanha, o cerne mesmo de sua poesia, que é uma
entranhada resistência à transitividade. Poesia pura, nesse sentido. Por isso, para o olhar
que persegue, ao longo da obra de Pessanha, os temas e os enfoques preferenciais, este
soneto é um momento privilegiado de expressão. Nele se encontra, depurada, e por isso
mesmo redimensionada, uma atitude manifesta do sujeito lírico, que vimos perseguindo
ao longo das páginas anteriores: o desejo de fixar um momento perceptivo. Mas a
natureza mesma do momento fixado é singular: um dia fútil e anônimo, desprovido de
investimento emocional do sujeito lírico. Embora localizado no passado, não é esse dia
investido de nenhuma carga afetiva. Na verdade, a atitude lírica presente nesse soneto se
revela mais inteiramente se o contrapusermos a “Quando voltei...”: de um lado, as
lágrimas quentes do desejo de recuperação nostálgica do passado; do outro, a ironia
gelada da evocação e da contemplação melancólica. Diferentemente dos poemas
construídos por alegoria ou por condensação simbólica, que nos aparecem como
tematização da impossibilidade de dizer, como remissão inicial a algo que o poema não
pode conter ou expressar, o soneto “Foi um dia...” não apresenta uma tentativa de
totalização, por meio da fixação de um momento significativo do tempo; pelo contrário,
traz a primeiro plano, e de modo radical, a própria percepção fragmentária. Esse soneto
excepcional nos parece, por isso tudo, um momento dos mais altos da poesia de
Pessanha: o momento do esplendor quase ofuscante de uma poética do fragmento, em
que o livre jogo da inteligência analítica procede ao desmembramento das recordações,
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reduzindo-as a sensações tratadas distanciadamente. E é por isso que o consideramos o
melhor exemplo – o mais puro, talvez – do predomínio do olhar melancólico na poesia
de Camilo Pessanha.
In: FRANQUETTI, Paulo. Nostalgia, Exílio e Melancolia: Leituras de Camilo Pessanha. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2001, p.p. 97-115.
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