Atos-sintomas e as perdas traumáticas Ana Maria Rudge[1] Um dos temas que têm merecido a atenção dos psicanalistas nos dias de hoje são os sofrimentos ligados a distúrbios no terreno do ato. São casos de impulsividade, como aqueles a que Rabinovich toma como“patologias do ato”, e para o quais propõe “uma clínica da pulsão”, e aos quais Mc Dougall (1980) dedicou seus estudos sobre os “atossintoma” . Lacan já havia voltado sua atenção para a questão do ato, tanto em suas tentativas de abordar com rigor o acting out, como ao destacar a passagem ao ato, importando essa expressão oriunda da psiquiatria para incluí-la no campo da psicanálise, em seu seminário sobre a angústia. Freqüentemente a patologia dos atos é remetida a uma “estrutura perversa”. A saída “ativista” é tida por alguns autores como característica das perversões (cf. Khan, 1987). Quanto a esse remetimento da patologia do ato a uma estrutura, várias críticas têm sido ensaiadas. De forma mais geral, admite-se que, ao lado da produtividade de que a influência do estruturalismo na psicanálise se mostrou capaz, uma de suas conseqüências negativas foi o tratamento esquemático que imprimiu na consideração dos quadros clínicos. A própria adoção de um enfoque estrutural das perversões tem sido questionada por vários autores (Costa, J. F. op. cit; Calligaris 1993, Peixoto), que certamente encontram respaldo na obra freudiana. A cisão do ego, tal como Freud a introduz ao tratar do fetichismo, nunca foi proposta como operador de uma estrutura específica, a perversa. Assim, adverte: “Não se creia que o fetichismo seja uma exceção, com respeito à cisão do eu: não é mais que um objeto particularmente favorável a seu estudo “(Freud 1940, Amorr. p. 205). E, de forma ainda mais enfática: “O ponto de vista que postula em todas as psicoses uma cisão de eu não teria títulos para reclamar tanta consideração se não demonstrasse seu acerto em outros estados mais semelhantes às neuroses, e em definitivo, nestas mesmas”. Freud, 1940, Amorr. p. 204. Isso sem mencionar o fato de que é discutível que o fetichismo possa servir como paradigma da perversão, já que, como um traço, está presente em quase todas as configurações da sexualidade. Quando falamos de distúrbios no campo do ato, temos que ter em mente que o perigo, que reside na adoção desta categoria, é o de ficarmos presos a um enfoque acentuadamente descritivo, que privilegie o comportamento, às expensas de um ponto de vista propriamente psicanalítico. É necessário discriminar a significação de cada ato impulsivo ou compulsivo, para cada sujeito. Quando se aborda o sofrimento que surge como conseqüência de atos impensados, compulsivos e/ou impulsivos, não há porque acreditar que exista uma chave única para a compreensão desses casos. Uma escuta cuidadosa se faz necessária, para a compreensão da dinâmica de cada caso, e as construções metapsicológicas necessárias para entender esses “atos-sintomas” serão possivelmente variadas e diversas, pois sintomas podem só aparentemente ser similares. A partir de algumas experiências clínicas, em que me deparei com atos que apresentavam certas semelhanças com o que se considera habitualmente característico da perversão, uma das versões da impulsividade se impôs para mim como associada à depressão ou ao luto patológico. Embora não se tratasse, em nenhum desses casos, de uma psicose maníaco-depressiva[2], a impulsividade em questão apresentou claras analogias com a mania[3]. Marcados por uma disposição à atividade, sentimentos de poder e suficiência, uma desconsideração pelos limites ou riscos envolvidos em certas atuações, estes estados transitórios se assemelham à mania no sentido de surgir como um movimento pelo qual o eu vence o luto pela perda do objeto, ou mesmo derrota o próprio objeto. Vitorioso, o sujeito parece ter se liberado das questões e objetos que o faziam sofrer, inflando-se de sentimentos de triunfo e alegria (1915). Maria, uma mulher que perdera sua filha, relata numa sessão o quanto seu desejo sexual andava exacerbado. O pensamento de arrumar outros homens além do seu marido a perseguia, andava pela rua pensando nisso, como se tomada por uma excitação sexual indomável. Na véspera, tomada por essa excitação, retirara sua blusa, dentro do carro em movimento, dirigido por seu marido, para exibir seus seios a quem passasse, numa atuação exibicionista que não era comum em sua história, um acting-out. Relatou- me nessa sessão algumas fantasias e brincadeiras sexuais com as quais andava se entretendo, inclusive uma que estava colorindo sua atividade sexual: a de que era uma mocinha de apenas 15 anos, e que tinha sido seduzida por um homem maduro. Perguntei, sabe-se lá por que, quantos anos tinha a sua filha quando falecera. Maria perguntou, quase com um grito: - o que? - como se não estivesse acreditando no que ouvira. Quando repeti a pergunta, respondeu – 15 anos - a mesma idade da personagem que, em sua fantasia sexual, vinha desempenhando. Chorando, disse então que sua filha possivelmente nunca tinha tido qualquer experiência sexual, e se censurou por ter sido severa com a menina, não a deixando sair para certos programas, brigando com ela quando queria sair com uma amiga que, como dizia para a filha, era “meio piranha”. Chorou muito, não só na sessão, mas por vários dias a seguir, período em que se lembrou muito da menina, olhou seus retratos, sofreu com a sua perda. Depois desse episódio, começou a relatar que agora podia pensar com menos desespero na filha perdida. Abordarei um outro caso que não envolve o luto por uma perda recente. Tratase de um rapaz que perdeu, ainda menino, sua mãe. Embora não apresentasse um quadro melancólico, um luto patológico e infindável parecia ter se estabelecido, acompanhado de uma auto-absorção narcísica, e um desinteresse que denunciava certo desinvestimento dos vínculos com as pessoas. A idealização exaltada da mãe perdida coexistia com grande hostilidade em relação às suas amantes, que, na forma de uma compulsão à repetição, ele se esmerava, assim que as conquistava, em decepcionar, confundir e angustiar. Embora isso se desse de forma predominantemente inconsciente para ele (só a mensagem que lhe retornava do outro o alertava para o sentido hostil de sua atuação) essa atuação tinha, como na mania, o sentido de uma vitória sobre o objeto, e era acompanhada de sensações de liberdade, independência, poder e leveza. O sentido de derrotar “a perda do objeto” e o próprio objeto, que caracterizam a mania, assim como a “busca voraz” de novos investimentos objetais, estavam presentes, embora sem o aspecto extremado que assumem na mania. A ambivalência em relação ao objeto está presente no segundo caso, bem mais do que no primeiro, manifestando-se na crueldade em relação às mulheres. Sabemos que as lutas devidas à ambivalência são inconscientes mas muito pregnantes na melancolia, e terminam pelo abandono do investimento libidinal do objeto, e seu recuo para o eu. Nos dois casos clínicos apresentados, não houve tal retirada de investimentos objetais e retorno narcísico - o objeto persiste investido no imaginário. No segundo caso, entretanto, embora o analisando aparentemente saiba quem perdeu, já que a imagem da mãe é investida e exaltadamente idealizada, como que saída de um conto de fadas, o retraimento narcísico é maior do que no primeiro, assim como a ambivalência, cujos componentes hostis estão em primeiro plano. Ficamos então com a questão de discutir quais são as relações entre a mania e seus correspondentes na “psicopatologia da vida cotidiana”, ou em outros estados que não podem ser considerados psicóticos. Freud considera que os estados de alegria ou triunfo são o paradigma normal da mania, compartilhando com ela as condições econômicas. Neste lugar estão as sensações de ilação que surgem na vida de todos nós, quando um esforço que precisamos despender para nos livrar de condições adversas, subitamente se torna desnecessário. Ganhar na loteria, por exemplo, é uma situação que provoca esse estado de euforia, por livrar “um pobre diabo da crônica preocupação com o pão de cada dia”. Os leitores de Luto e Melancolia sabem que para Freud não há um correspondente da mania em operação no luto. Embora o luto normal chegue a uma [1]superação da perda de objeto, após envolver um grande dispêndio de energia, que se libera para outros destinos, Freud se pergunta por que não haveria nele uma fase de triunfo. Como a saída maníaca é interpretada como resultante da liberação da energia que era empregada em um esforço psíquico que, subitamente, se fez desnecessário, explicação que reconheceu ser muito vaga, ei-lo confrontado com a questão de descobrir porque não haveria também uma fase de triunfo, análoga à mania, no luto. De fato, também o luto exigiu gramde dispêndio de energia para efetuar a separação dos laços com o objeto, representado em cada uma das pequenas lembranças dos momentos de amor. Abraham, o grande interlocutor e principal influência de Freud em seus trabalhos sobre essa questão, apresentou pela primeira vez, em um Congresso Psicanalítico em 1922[4], uma contribuição que vai na contramão da opinião enunciada por Freud de que não haveria no luto normal nada que correspondesse ao salto dado pelo melancólico para o estado maníaco. Em sua clínica, Abraham reconhecia a existência de estados equivalentes à mania no luto: uma intensificação libidinal, que se traduz numa atividade sexual aumentada, a gestação de um filho, ou, até mesmo, manifestações sublimadas, como um enriquecimento da produção intelectual e dos interesses podem seguir-se a uma perda. As observações clínicas de alguns autores contemporâneos das mais diversas orintações teóricas confirmam o valor dessa formulação, como, por exemplo, Maria Torok[5], que desenvolve esse tema em sua obra, e Ethel Spector Person [6], que , em seus estudos sobre o amor, observa que um grande amor se instala freqüentemente na iminência de uma perda, ou logo após uma perda efetivamente vivida. Embora Freud tenha recusado a contrapartida da mania no luto normal, ele não recusou a idéia de que haja contrapartidas da mania em estados não psicóticos. Em Psicologia das massas uma gradação, ele afirma existirem pessoas cujo estado de ânimo oscila entre uma depressão intensa e uma alegria e bem estar exaltados, e toma a oscilação entre melancolia e mania como o exemplo mais extremo de um dinamismo que se pode se apresentar em graus de amplitude muito variáveis, inclusive bastante sutis. A introdução da pulsão de morte na teoria psicanalítica dotou a teoria da melancolia de uma nova dimensão. Distanciando-se de uma categoria nosográfica, a melancolia passou a ser entendida como um elemento estrutural (Hassoun, 2002, p. 1314). O supereu também é tributário desse movimento de amplificação dos mecanismos envolvidos na melancolia para o psíquico em geral. O fracasso no trabalho de luto é sempre acompanhado pela desintricação pulsional, e por um incremento da atividade da pulsão de morte, que surge através da mediação do supereu. A crueldade melancólica voltada para o eu ou o objeto, a atração pelo sacrifício, têm parentescos com a vocação do homem de se colocar a serviço do mal, submetido a um supereu que é lugar de uma cultura da pulsão de morte que, mesmo quando não o leva à morte, o submete tiranicamente a um compromisso com a destruição. O luto é um trabalho ao qual todos estamos convocados permanentemente pela vida, e que constitui um dos temas fundamentais da psicanálise, já que a própria análise requer esse trabalho. O traumatismo, como aquele acontecimento ao qual incessantemente retornamos, não será aquele que infringe perdas com as quais o trabalho de luto não consegue arcar? O corpo estranho que se aloja no psiquismo não será uma sombra caída no eu, objeto que não se consegue efetivamente perder, deixar ir? Sombra, admirável expressão freudiana, embora Freud tenha, como mostrou Stein (1988), idealizado a mãe como desprovida de ambivalência e hostilidade em relação a seu filho – o “mais puro exemplo de uma inalterável afeição” e “a mais perfeita de todas as relações humanas” (apud Stein, 1988, p.26), num recalque da hostilidade que também o teria levado a desconsiderar o ódio reverso, do filho em relação à sua mãe. O ativismo triunfante pode ser a única saída disponível para a opressão e o ódio sustentado pelo supereu perseguidor. Não é possível detalhar aqui toda a reflexão psicanalítica em torno do ódio que obstrui o trabalho de luto, desenvolvida brilhantemente por muitos autores contemporâneos (cf. Hassoun, 2002; Stein,1988; Gori, 2004; Enriquez, 1999). Entretanto, podemos concluir, com base nos casos clínicos que apresentei, que a missão da análise diante do luto patológico é barrar, justamente, o “eu me odeio” que é o móvel de tantas das demandas das análises que conduzimos . Referências Bibliográficas Calligaris, C. Recherche sur la perversion comme patolgie sociale – la passion de l’instrumentalité. Thèse pour le Doctorat Nouveau Régime em Lettres et Ciences Humai nes, Université de Provence Aix-Marseille I, 1993. Costa, J. F. A inocência e o vício – estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992. Enriquez, M.(1999) Nas Encruzilhadas do Ódio: Paranóia, Masoquismo, Apatia,São Paulo: Escuta. Freud, S. (1975) The standard edition of the complete psychologycal works of Sigmund Freud. London: Hogarth Press. (1917) Mourning and melancholia, v. XV, p. 237-258. (1920) “Beyond the Pleasure Principle”, v. XVIII, p.1-64. (1921) “Group psychology and the analysis of the ego”, v. XVIII, p. 65-144. Hassoun, J. A.( 2002) A Crueldade Melancólica, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Gori, R.(2004) Lógica das Paixões, Rio de Janeiro: Campo Matêmico. Khan, M.(1987) Alienación en las Perversiones. Buenos Aires: Nueva Visión. Lacan, J, (2005) A Angústia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Mc Dougall, J. (1980) Cena Primitiva e intriga perversa em A Sexualidade perversa, Lisboa: Veja, 35-66. Mc Dougall, J.(1991) Sexual Identity, Trauma, and Creativity, Psychoanalytic Inquiry, Hillsdale, NJ: The Analytic Press, v. 11, p. 559-581. Peixoto. C. A. (1999) Metamorfoses entre o sexual e o social. Uma leitura psicanalítica sobre a perversão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Rabinovich, D.(1989) Uma clinica de la pulsión: las impulsiones. Buenos Aires: Manantial. Stein, C. (1988) As Eríneas de Uma Mãe – Ensaio sobre o ódio, São Paulo: Escuta. [1] Membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle; Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Pesquisadora do CNPq. [2] Classificada atualmente no DSM IV como “transtorno bipolar”. [3] A psiquiatria possui há muito a categoria de hipomania, que talvez também merecesse, tal como a passagem ao ato, ser importada pela psicanálise. [4] Ver Abraham, K. “Breve estudo do desenvolvimento da libido visto à luz das perturbações mentais”(1924) em Teoria Psicanalítica da Libido,Rio de Janeiro, Imago, 1970, p.132. [5] Torok, M.A “Doença do luto e fantasia do cadáver saboroso” A Casca e o Núcleo, Escuta. [6] Person, E.S. Dreams of Love and Fateful enconters, New York, London, Norton, 1988