7° Encontro Anual da ANDHEP – Direitos Humanos, Democracia e Diversidade
23 a 25 de maio de 2012, UFPR, Curitiba (PR)
Grupo de Trabalho 01: Teoria e História dos Direitos Humanos
DO PARADIGMA DO MENOR EM CONFLITO COM A LEI AO PARADIGMA DA
PROTEÇÃO INTEGRAL
Alexandre Soares de Melo
Universidade Federal da Paraíba - UFPB
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DO PARADIGMA DO MENOR EM CONFLITO COM A LEI AO PARADIGMA DA
PROTEÇÃO INTEGRAL1
Alexandre Soares de Melo2
RESUMO
A legislação brasileira voltada para criança, por muito tempo, tratou de disciplinar
unicamente a situação de meninos e meninas em conflito com a lei, os chamados menores
infratores. Foi assim no Código de Menores de 1927 e também no Código de Menores de
1979. Pretendemos neste ponto demonstrar o longo caminho percorrido pelas crianças no
que diz respeito à superação do paradigma do menor infrator, da doutrina da situação
irregular, destacando o papel dos movimentos sociais na concepção do ser infante, na luta
por reconhecimento e também na edificação de novos direitos a partir da década de 1980.
Aqui buscaremos enfatizar o princípio da Proteção Integral, introduzido no texto
constitucional de 1988, que representa um marco na trajetória de afirmação de direitos de
crianças e adolescentes no país, como também ponto de partida para efetivação dos
Direitos Humanos do público infantil.
Palavras-Chave: Infância. Paradigma. Proteção. Integral
1
Artigo apresentado durante o 7° Encontro Anual da ANDHEP, realizado na cidade de Curitiba/PR, durante os
dias 23, 24 e 25 de maio de 2012, através de comunicação oral junto ao Grupo de Trabalho 01 – Teoria e
História dos Direitos Humanos.
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- Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPB (PPGCJ/UFPB) – Área de concentração em
Direitos Humanos.
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INTRODUÇÃO
A concretização de uma infância cidadã apresenta-se como um dos maiores
desafios da atualidade, seja porque a ideia de cidadania vem exigindo novas interpretações
com a ampliação da ideia de participação, seja também porque a infância, ao longo da
história, foi marcada por um processo de invisibilidade cujas representações ainda estão
muito arraigadas nas práticas e nas mais diversas situações da nossa realidade social.
A cidadania, enquanto produto histórico da humanidade, reclama na modernidade
a inserção de novos grupos sociais historicamente excluídos do catálogo de direitos civis,
políticos e sociais, de modo a autorizar, a partir da experiência da exclusão, o exercício de
uma igualdade formal recentemente conquistada como mecanismo de luta por de novos
direitos e inserção em novos espaços de atuação.
A infância, cuja história foi marcada pela invisibilidade, marginalização e exclusão,
insere-se nesse contexto de luta por reconhecimento de novos direitos a partir de um
modelo de cidadania que possa, mas do que atribuir-lhe um cabedal de direitos e garantias
no âmbito normativo, permitir a sua efetiva participação nos assuntos da sociedade,
retirando-lhe da redoma das relações privadas e apresentando-lhe o espaço público e
institucional.
Analisar a situação social do público infantil a partir de uma perspectiva históriconormativa pode se apresentar como um interessante instrumento de investigação das
representações assumidas por estes sujeitos ao longo dos tempos. Permite igualmente
identificarmos a situação jurídica de meninos e meninas no decorrer de suas trajetórias,
fazendo as conexões com o aprimoramento do nosso sistema normativo.
A legislação brasileira voltada para criança, por muito tempo, tratou de disciplinar
unicamente a situação de meninos e meninas em conflito com a lei, os chamados menores
infratores. Foi assim no Código de Menores de 1924 e também no Código de Menores de
1979.
A promulgação da Constituição Federal de 1988 e posteriormente da Lei n°
8.069/90, conhecido como Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, representa, no
campo normativo, a mudança de percepção sobre a infância no Brasil e se anuncia como
instrumento para promoção da cidadania infantil.
Pretendemos neste ponto demonstrar o longo caminho percorrido pelas crianças
no que diz respeito à superação do paradigma do menor infrator ou da doutrina da situação
irregular, destacando o papel dos movimentos sociais na concepção do ser infante, na luta
por reconhecimento e também na edificação de novos direitos a partir da década de 1980.
Buscaremos enfatizar o princípio da Proteção Integral, introduzido no texto constitucional de
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1988, que representa um marco na trajetória de afirmação de direitos de crianças e
adolescentes no país, como também ponto de partida para efetivação dos Direitos
Humanos do público infantil.
Nesse sentido, buscaremos no presente artigo articular as premissas acima
relacionadas, iniciando por um relato a respeito da infância e suas representações. Em
seguida, apresentaremos o processo de transição da doutrina da situação irregular, que
marcou a história do atendimento a criança no Brasil, para a doutrina da proteção integral
consagrada na Constituição Federal de 1988 e no ECA.
Na tentativa de compreendermos a amplitude do ECA, não como marco normativo
em si, mas como referência dinâmica, buscaremos demonstrar que a importância desse
instrumento mais se direciona a possibilidade de constituirmos novas formas de
subjetividade e ampliação dos espaços de participação social. A propósito, é nesse sentido
que a cidadania infantil se concretiza, com a participação de jovens e crianças como
protagonistas, conhecedores do seu passado, agentes de transformação da realidade
presente, capazes de modificar o futuro.
O presente artigo encontra-se estruturado em três capítulos mais as considerações
finais. Inicialmente abordaremos o tema da “história da infância e suas representações” ao
longo dos tempos. O segundo capítulo será reservado para análise dos instrumentos
normativos vigentes no Brasil a respeito da criança, demonstrando a transição do
paradigma do menor em conflito com a lei – característica própria dos Códigos de Menores
de 1924 e 1979 - para o paradigma da Proteção Integral contemplado no Estatuto da
Criança e do Adolescente - ECA. Por sua vez, o terceiro capítulo será reservado para
discussão sobre a implementação da cidadania infantil por meio do protagonismo, como
instrumento para resignificação de sentidos, numa perspectiva de desnaturalização das
relações de poder que ainda hoje se fazem presentes no universo infantil. Nas
considerações finais faremos um apanhado das principais reflexões suscitadas ao longo do
artigo, apresentando as mudanças significativas verificadas na legislação brasileira em prol
da concretização da cidadania infantil.
CAPÍTULO I – HISTÓRIA DA INFÂNCIA E SUAS REPRESENTAÇÕES
Para entender a infância e o lugar ocupado por estes sujeitos ao longo dos tempos,
é importante não perder de vista o tratamento dispensado a infância em outras épocas.
Contar a história da infância é antes de tudo aceitar que essa trajetória foi forjada, por vezes
não contada, e quando contada, feita por adultos.
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A noção de infância, tal como compreendemos hoje, é resultado de uma
elaboração que remonta vários séculos. Os cuidados e as atenções que, ao menos em
tese, cercam a criança atualmente, foram construídas socialmente numa evolução que
reflete a transformação da própria sociedade. A criança tal qual concebemos hoje, dotada
de um sistema de proteção e de garantia de direitos, é uma ideia por demais recente na
história da infância, cuja trajetória foi marcada pela invisibilidade.
Assim, para desvendar a infância, é importante antes de tudo compreender os
fatores históricos, políticos, sociais, econômicos e culturais inseridos em seu contexto,
como também da compreensão dos múltiplos sentidos dados à infância em períodos
anteriores.
Segundo Corazza (2004, p.116) nas sociedades antigas, onde prevalecia no
âmbito familiar o princípio do patria potesta, era emblemático o ato de elevar à criança tão
logo realizado o parto. Esse gesto adotado pelo pai significava a aceitação da criança, a
sua inclusão no ambiente familiar. Por sua vez, acaso o pai não elevasse a criança, não a
acolhesse, isso representava a rejeição, que importava no seu abandono, muito comum
com as crianças não desejadas, as que nasciam enfermas, filhas de relações clandestinas
ou filhos de escravos.
Foucault (1993, p.127-149), em uma passagem da história da sexualidade, articula
o direito paterno do instituto do patria potestas ao direito exercido pelos pais, chefes de
família, de vida e morte sobre os filhos, como o poder exercido pelos reis sob seus súditos,
destacando, no entanto, que na relação entre rei e súditos o direito de vida e morte
encontrava limites, mas em relação ao patria potestas não.
O status ocupado pelas crianças nestas sociedades era completamente nulo. Não
raro o infanticídio era praticado em razão de ação direta dos pais, maus tratos e outros tipos
de agressões, ou mesmo pelo abandono. Esse poder e autoridade do pai sob os filhos,
presente historicamente em todas às sociedades ocidentais, e exercido em termos
absolutos, implicando no direito de causar a morte e permitir a vida, marcou a trajetória da
infância na história da humanidade.
Até o fim da Idade Média, a atenção à criança não teve por função principal cuidar
do infantil, mas sim zelar pelos cuidados da descendência, pelas relações de submissão e
de posse entre pais e filhos.
Isto ocorria porque não acreditavam na possibilidade da existência de uma
inocência pueril. Não se tinha a ideia de sujeitos em condições especiais de
desenvolvimento. Não se percebia a criança como indivíduo dotado de características
físicas e psíquicas diferente das dos adultos. Até o fim do século XIII, não existem crianças
caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido.
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A partir do século XIV, entretanto, constata-se a utilização de representações
infantis, principalmente na arte e na religião, onde a criança começa a despontar. É a partir
desse momento, segundo Ariès (1981, p. 28), que começa a ser construído um sentimento
de infância:
A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua
evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos
séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se
particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e
durante o século XVII.
Ao longo da história edificaram-se várias representações do ser infantil, todas elas
relacionadas com a diminuição, marginalização e exclusão das crianças das esferas
participação política e social. Até mesmo quando se despertou em meados do século XIV
para o chamado sentimento de infância, segundo enumera Philippe Ariès, a criança era
percebida não como sujeito em si, individualizado, mas indivíduo que pela tenra idade, era
merecedor de proteção e cuidado.
No Brasil, a percepção da existência de particularidades e características inatas à
etapa geracional primeva dos indivíduos seguiu a mesma direção. A violência contra
criança foi marcante no período de colonização do país, tendo sido introduzida pelos
jesuítas que buscavam implantar o modelo de educação da metrópole, sendo o castigo
físico o método adotado contra aqueles que opusessem a participar daquela doutrina
educacional.
As crianças indígenas foram às primeiras vítimas. Os portugueses tinham desprezo
pelo tratamento que os índios davam aos seus filhos. Os índios que aqui habitavam
costumavam tratar suas crianças com atenção, zelo e cuidado. Segundo Guerra (1998, p.
77), a pedagogia adotada pelos portugueses na educação de crianças no Brasil, pautava-se
na seguinte direção:
O muito mimo devia ser repudiado. Fazia mal ao filho... O amor do pai ou do
educador espelha-se naquele divino, no qual Deus ensinava que amar é
castigar e dar trabalho nesta vida. Os vícios e os pecados deviam ser
combatidos com açoites e castigos. Fortemente arraigada na psicologia de
fundamento moral e religioso comum desta época.
O tratamento dispensado as crianças indígenas no país não foi diferente do
tratamento dados aos negros e seus filhos. No Brasil colonial, os negros trazidos para o país
na condição de escravos, eram submetidos aos mais cruéis tipos de tratamentos, e a
7
criança negra não estava imune a esta escravidão. Trabalhos forçados, açoites, castigos
eram próprios desse regime.
Como resultado destes tratamentos, uma desvalorização quase que completa do ser
criança. A expressão que melhor representava a situação vivida pela infância no Brasil era
a incorporação, pela criança, de uma situação inferiorizante. Segundo Freyre (1969, p. 67):
[...] a introjeção, pela própria criança, de sua inferioridade, que a levava a
ter vergonha de sua idade. O uso de trajes adultos, o recurso a maquiagens
que visavam ao envelhecimento precoce, na tentativa furtiva de fazer brotar
bigodes e costeletas nos rostos ainda impúberes, exemplificam essa
preocupação em remover os sinais da meninice.
Porém, a partir dos séculos XVII e XVIII o conceito de cidadania, bastante restrito na
antiguidade clássica, passaria então por um processo de resignificação, representando uma
busca pela inclusão e pelo reconhecimento de direitos. É nesse período da história humana
em que se intensificam os questionamentos a respeito do sistema estamental de
autoritarismo e privilégios na sociedade, cujos reflexos eram marcantes no tratamento
dispensado a infância e aos demais grupos minoritários.
As desigualdades entre os homens impostas pelo absolutismo com fundamento em
uma vontade divina passa a ser é alvo de intensas manifestações e questionamentos,
culminando nas Revoluções Burguesas dos séculos XVII e XVIII.
Historicamente, o modelo de Estado também foi determinante para aferir o grau de
direitos atribuídos aos indivíduos, e dessa forma, a extensão da cidadania aos grupos que
clamavam por liberdade. Assim, a ideia de cidadania passou por gradativa modificação e
ampliação do seu conceito, na medida em que o Estado iria tomando novas formas e
consagrando novos direitos, a exemplo das conquistas dos direitos civis (século XVIII),
direitos políticos (século XIX) e direitos sociais (século XX).
Mas mesmo após a consagração dos ideias burgueses, pautados na defesa
irrestrita das liberdades individuais e na limitação política do poder estatal, continuaram a
coexistir a noção de cidadania num contexto de exclusão social. A burguesia revolucionária
que se insurge contra o Estado absoluto ao tempo em que acenava com a ideia de
cidadania ampla e universal, incluindo os grupos sociais historicamente excluídos do
processo de participação política, abriu espaço, em nome das liberdades individuais, para
dominação do capital e para a exploração dos demais cidadãos livres e não proprietários.
Nesse contexto de mudanças políticas, sociais e econômicas, a infância foi apenas
coadjuvante. Apesar de pontuais avanços nesse período, segundo Corazza (2004, p. 139):
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[...] até o século XIX, permaneceu prisioneira do papel social do filho. A
família colonial dos três primeiros séculos ignorava e subestimava essa
figura, já que seu universo cultural compunha-se do culto à propriedade, ao
passado, à religião, no qual o pai, o homem-adulto, o chefe da casa,
condensava a “majestade”.
Porém, a guinada de perspectiva em torno da infância, ao menos no campo
normativo, somente alcança maturidade no decorrer do século XX. A infância, cuja
liberdade em todos os aspectos lhe fora tolhida ao longo da história, fruto de uma relação
social pautada no adultocentrismo, passa a ser agora, representada pela ampla proteção,
pelo zelo e cuidado típico de sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento, cujos
interesses superiores devem ser preservados.
Assim é que, no plano internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU), após
o fim da Segunda Guerra Mundial, passa a desempenhar um papel fundamental no que se
refere à promoção dos direitos humanos, promulgando em 1948 a Declaração Universal
dos Direitos Humanos3, em 1959 a Declaração Universal dos Direitos da Criança4.
Estes instrumentos, não obstante o caráter meramente declaratório, significaram
muito para a história da infância. Serviram de caminho para que em 1989 mais de 192
países ratificassem a Convenção Sobre os Direitos da Criança 5, que se constituiu para a
humanidade um feito histórico, reconhecendo as crianças como sujeitos de direitos,
portanto, aptos a exercerem gozarem de determinados direitos de cidadania.
CAPITULO II - DA DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR À DOUTRINA DA
PROTEÇÃO INTEGRAL. SUPERANDO PARADIGMAS
A legislação brasileira voltada para criança passou por profundas transformações ao
longo dos tempos. De matriz iminentemente religiosa, a nossa legislação primeva sobre o
público infantil muito se utilizou de costumes e tradições da igreja para disciplinar o
tratamento dispensado as crianças em nosso país.
Apenas em 1854 fora regulamentado o ensino obrigatório no país para crianças. Por
meio do Decreto n° 1.313/1891 se regulamentou a idade mínima para o trabalho. Em 1923
é criado o Juizado de Menores do país. Em 1927 entra em vigor o Código de Menores,
3
(Adotada pela Resolução 217-A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948).
(Adotada pela Resolução 1386 (XIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 17 de novembro de 1959).
5
(Aprovada pela Resolução 44/25 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989.
Decreto Legislativo 28/2990, de 14 de setembro de 1990 aprovou a Convenção Sobre os Direitos da Criança no
Brasil. Decreto Presidencial 99.710/1990, de 21 de novembro de 1990, promulgou a Convenção Sobre os
Direitos da Criança no Brasil).
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conhecido como Código Mello Matos, em homenagem ao primeiro juiz de menores do
nosso país José Candido de Albuquerque Mello Matos.
Não obstante já se verificasse nestas primeiras normatizações de caráter específico
em relação às crianças significativos avanços, tais como, proibição do trabalho de crianças
e adolescentes que pusessem em risco a saúde; preocupação de implementar o ensino
obrigatório como direito inerente a todo indivíduo; fato é que a elaboração de tais
dispositivos normativos visavam sobretudo o controle de crianças abandonadas e
delinquentes, sendo estes, inquestionavelmente, o público destinatário da norma, como é
possível se extrair do art. 1° do Decreto n° 17.943-A, de 12 de outubro de 1927 (Código de
Menores), que assim prescrevia:
Artigo 1° - O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqüente, que
tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade
competente ás medidas de assistência e proteção contidas neste Código.
Como visto, a legislação menorista de 1927 tinha como destinatários aqueles
indivíduos que estivessem em situação de irregularidade, a saber, os expostos, os
abandonados e os deliquentes. Consagra-se e institucionaliza-se a partir do Código de
Menores de 1927 a doutrina da situação irregular
Nítido era o caráter protecionista da legislação que conjugava intervenção judicial
com adoção de medidas assistenciais como forma de intervir na vida das crianças a que
ela, a norma, se destinava. É a partir desse cenário que se constrói a categoria do menor,
que irá simbolizar uma infância pobre ou potencialmente perigosa, com reflexos diretos nas
políticas estatais destinadas as crianças.
Em 1940 entrou em vigor o Código Penal Brasileiro (Decreto n° 2.848/1940, de 07
de dezembro de 1940) que estabeleceu a responsabilidade criminal a partir dos 18 anos de
idade.
No período de 1964 a 1979 dois importantes instrumentos normativos relacionados a
infância entraram em vigor no Brasil. A Lei n° 4.513/64 criou a Fundação Nacional de BemEstar do Menor – FUNABEM, órgão responsável a nível nacional pela implementação das
políticas de assistência voltadas ao público infantil.
A Lei n° 6.697/79, conhecida como o Código de Menores, sistematizou práticas
assistencialistas e repressoras, voltadas ao contingenciamento de uma expressiva parte da
população infanto-juvenil, qual seja, crianças abandonadas ou carentes.
Baseado na doutrina da situação irregular, a legislação brasileira voltada para o
público infantil se ocupava apenas com aqueles indivíduos que estivessem em situação de
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conflito com a lei. A doutrina da situação irregular, caracterizada no Código de Menores de
1979, evidenciava, segundo Veronese e Costa (2006, p.47), uma reunião de terminologias
até então existentes para designar a criança “exposta, abandonada, delinquente,
transviada, infratora, vadia, libertina”, sob a mesma condição: situação irregular.
Naquele contesto, as ações do Estado voltadas para a criança e adolescentes ou
eram de ordem repressiva ou assistencialista. O texto normativo do Código de Menores é
próprio do momento político que o país vivenciava aquela época, que sob regime de
exceção caracterizava-se pelo cerceamento de direitos civis e políticos, como também por
uma extrema repressão.
Ainda no final dos anos 70 e início dos anos 80 avançam as negociações no país
para abertura política, culminando no surgimento de movimentos sociais e espaços de
discussão para questionar as atrocidades cometidas contra crianças no país, sobretudo em
relação ao caráter repressivo da lei menorista que criminalizava a pobreza e judicializava a
exclusão social.
A promulgação da Constituição Federal de 1988 representou, dentre outras
conquistas, o estabelecimento de uma política de proteção integral à infância e a juventude,
atribuindo a crianças e adolescentes no Brasil a condição de sujeitos em condições
peculiares de desenvolvimento.
Reza a Constituição Federal em seu art. 227:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,
ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada pela Emenda
Constitucional n° 65/2010)
Ao consagrar no texto constitucional o princípio da proteção integral como requisito
de observância obrigatória e de primeira ordem, o legislador indicou de forma bastante
objetiva uma completa ruptura com os padrões de atendimento que eram dispensados as
crianças e adolescentes no país quando da vigência do Código de Menores de 1979,
marcando assim uma ruptura com a doutrina da situação irregular até então em vigor no
país.
Mais que isso, a consagração do princípio da proteção integral, ratificado no texto
infraconstitucional da Lei n° 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA)
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representou, dentre outras conquistas, a mais significativa delas, o reconhecimento no
campo normativo da cidadania infanto-juvenil em nosso país.
Estabelece o ECA em seus art. 3° e 4° que:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata
esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do
poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária.
A ênfase agora se relaciona com os princípios do superior interesse da criança e da
proteção integral. A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente
– ECA de 1990, no plano interno, são os instrumentos normativos que marcam essa
mudança.
É a partir dessa nova perspectiva de resignificação de sentidos para o público infantil
no Brasil, adotada pela entrada em vigor do ECA e pela consagração da doutrina da
Proteção Integral, que um novo referencial de cidadania para esse público passa a ser
perseguido.
CAPÍTULO III - O ECA COMO INSTRUMENTO DE IMPLEMENTAÇÃO DE CIDADANIA E
RESSIGNIFICAÇÃO DE SENTIDOS
Mas o que significa cidadania? Que implicações trouxeram a vida de crianças e
adolescentes no Brasil o seu reconhecimento enquanto sujeitos de direitos? Estas são
algumas das indagações que buscaremos evidenciar adiante.
Para tanto, necessário se faz recorrermos antes de tudo aos conceitos. O termo
cidadania provém de cidade, do latim civitate. Cidadania significava assim a relação de um
indivíduo com a cidade. O termo cidade, por sua vez, também era designada pela expressão
ciuitas, derivada de cius, que era o ser humano livre e, por isso, ciuitas carrega a noção de
liberdade em seu centro (FUNARI, 2003, p. 49).
A sociedade romana fazia discriminações e separava as pessoas em classes
sociais. Os romanos eram cidadãos, mas não podiam ocupar todos os cargos políticos. Só
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alguns de seus membros cidadãos podiam participar das atividades políticas e ocupar
cargos elevados no governo.
Da mesma forma, na Grécia antiga, a ideia de cidadania, apesar de entendida
como o direito de participação na vida política da polis, não incluía necessariamente todas
as pessoas, pois, liberdade e igualdade não eram valores universais e a cidadania era uma
categoria excludente, porque deixava à margem as mulheres, os escravos, as crianças, os
estrangeiros etc. (SORTO, 2009, p. 44).
Dallari (1995, p.82), por sua vez, sintetiza o conceito de cidadania na antiguidade
clássica, expondo suas características tanto na Grécia quanto em Roma:
Na Grécia Antiga a expressão cidadão indicava apenas o membro ativo da
sociedade política, isto é, aquele que podia participar das decisões
políticas. Juntamente com os cidadãs compunham a polis ou cidade-Estado
os homens livres não dotados de direitos políticos e os escravos. Já existe
aí um vislumbre de noção jurídica, pois quando se fala no povo de Atenas
só se incluem nessa expressão os indivíduos que têm certos direitos. Mas,
evidentemente, não há coincidência entre esse e o moderno conceito de
povo. Em Roma, usa-se, de início, a expressão povo para indicar o
conjunto dos cidadãos, exatamente como na Grécia, dando-se-lhe mais
tarde um sentido mais amplo, para significar o próprio Estado romano.
Embora nesses casos não se encontre o sentido moderno de povo, existe
já uma conotação jurídica, pois a qualidade de cidadão implica a
titularidade de direitos públicos.
Sob o ponto de vista eminentemente formal, o termo cidadania, hodiernamente,
indica o liame do indivíduo com o Estado. A cidadania é a posição política do indivíduo e a
possibilidade do exercício desses direitos. O status de cidadão implica, nessa ordem, uma
situação subjetiva do indivíduo em relação a direitos e deveres de caráter público das
pessoas que se vinculam a um Estado.
Formalmente, a cidadania é assim a consagração dos direitos fundamentais
quando o ser humano se transforma em ser político no sentido amplo do termo, participando
ativamente da sociedade em que está inserido.
Essa concepção de cidadania, associada à ideia liberal de positivação de direitos,
por vezes gera a equivocada impressão de que o ECA, por ser uma lei que outorga
cidadania, atua como uma espécie de passaporte para aqueles que preenchem os
requisitos ali estabelecidos, ignorando que o que o torna efetivo são as lutas e os
movimentos que hão de ser empreendidos para efetivação dos direitos ali consagrados.
Como dito anteriormente, a história que melhor representa a infância é a história
marcada pela exclusão e marginalização. Por certo que a lei, com todas as garantias
estabelecidas, não possui o condão de afastar os estigmas, as representações que
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permearam o universo infantil ao longo dos tempos, sem a problematização do contexto em
que foram edificadas estas representações.
A evolução do direito da infância no Brasil, representada pela introdução da
doutrina da proteção integral consagrada no ECA, permite, sob uma perspectiva histórica,
desnaturalizar as relações de poder que envolvem o universo infantil, como também pautar
as políticas pública voltadas para a criança e o adolescente no país.
Para Foucault (1982, p. 182), o direito deve ser visto como um procedimento de
sujeição que ele desencadeia, e não como uma legitimidade a ser estabelecida, ao
assinalar que o direito com sua estrutura não apresenta verdades a serem seguidas, mas
efeitos concretos que, em vez de serem assumidos como inevitáveis, devem ser
problematizados em seu contexto, a partir das relações que emergem em função da forma
como as regras são aplicadas.
Os direitos humanos, e ai inseridos os direitos da criança, são antes de tudo
direitos históricos, por mais fundamentais que possam ser. É dizer, a historicidade destes
direitos precede a sua positivação nos ordenamentos jurídicos, segundo enuncia Bobbio
(1992, p. 5): “São direitos históricos porque nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos
de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”
Portanto, se a essência dos direitos de cidadania está exatamente no conjunto
histórico das lutas empreendidas por grupos e minorias em busca do reconhecimento, como
no caso da infância no Brasil, é correto concluir que o ECA não tem evidentemente força e
envergadura para alterar realidades por si só, como num passe de mágica, mas sim pelas
possibilidades e pelas ressignificações de conceitos que o seu conteúdo propicia.
Dessa forma, a análise do ECA não se circunscreve a compreender a lei com uma
referência última, inquestionável, estática, como a rigor se aplica na prática do Judiciário produtor de discursos, verdades e dominações - mas sim como prática na vida social, como
virtualidades constituintes de novas formas de subjetividade.
Para Scheinvar (2004, p.72):
O ECA não se apresenta como um parâmetro de verdade, mas como uma
abordagem que gera a possibilidade de outros olhares para velhas
relações, potencializando outras virtualidades, que emergem porque as
possibilidades de pensar outras maneiras sempre permaneceram
sufocadas por leituras hegemônicas e porque os processos históricos não
são estanques, mas se atualizam.
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Nesse sentido, é preciso considerar que a cidadania não é uma categoria
homogênea, neutra e totalizante, pois nem todos os indivíduos se encontram numa situação
de igualdade apenas porque assim está escrito e definido no texto da lei. Trata-se de uma
categoria diversa e mutável, no tempo e no espaço, e assumindo diferentes formas e
diversos enfoques.
Em suma, estamos a reforçar a ideia de que vivemos num tempo em que é preciso
reivindicar, lutar e insistir num conceito de cidadania multidimensional e multicultural, que
inclua os direitos civis, políticos, sociais, além da inclusão de outros grupos sociais
historicamente excluídos desse processo, como é o caso das crianças.
Trata-se, no dizer de Tosi (2008, p. 76):
[...] de uma luta por reconhecimento, simultaneamente, da igualdade e da
diversidade, que repercute tanto nos direitos civis e políticos, quanto nos
direitos econômicos, sociais e culturais. Não se trata da igualdade dos
“homens”, conceito abstrato, mas das mulheres, das crianças, dos idosos,
dos homossexuais, de todo tipo de minoria étnica, social e cultural.
A participação de crianças e adolescentes nesse processo de luta por
reconhecimento e ampliação de direitos é fundamental para concretização dos propósitos
consagrados no ECA. Essa participação, objetiva, situá-los no contexto histórico de
exclusão a que foram secularmente submetidos, fazendo-os protagonistas da luta social
como forma de empoderamento.
A aprendizagem da cidadania, mais do que uma interiorização de princípios
teóricos, supõe a formação de uma experiência em que são partes as relações familiares, os
grupos sociais, a escola, os meios de comunicação, as políticas públicas, dentre outros
espaços.
Pensar numa perspectiva de cidadania para a infância implicará sempre um esforço
para promover a participação infantil, considerando as crianças como protagonistas das
suas próprias relações sociais. Segundo Park e Carnicel (2007, p. 247), protagonismo
juvenil é:
[...] a intervenção educativa com os jovens, na qual eles ocupam uma
posição de centralidade, e, necessariamente, as ações devem estar
voltadas ao benefício de uma coletividade, podendo ocorrer na escola, na
comunidade ou na sociedade. Ainda, os jovens são responsáveis pela
iniciativa, pelo planejamento, pela execução e avaliação dos resultados do
trabalho por eles propostos, podendo ser, ou não mediados pelos
adultos/educadores. Trata-se de sair do plano das ideias, do papel, e passar
para o plano da vivência, do acontecimento, pois aprendizagem ocorre
justamente na experimentação e no fazer.
15
Assim, é protagonista o indivíduo que participa do processo decisório das questões
que lhe digam respeito. Compreender este significado é fundamental para o propósito aqui
pretendido. Imagina-se que através do protagonismo as crianças e adolescentes possam
ser sujeitos da sua própria história, possam vivenciar experiências construtivas, aguçando o
sentimento de participação, estimulando a reflexão a respeito da realidade social.
Falar em protagonismo infantil é referir-se à capacidade de participação e de
influência de crianças e adolescentes no curso dos acontecimentos, dando-lhes um papel de
destaque, um papel que possa ser transformador do cenário social.
O protagonismo deve se manifestar, sobretudo, num plano além das relações
privadas. Devem, portanto, ser participes nas deliberações dos Conselhos de Direitos.
Devem estar presentes na definição dos orçamentos públicos. Devem ser ouvidas nos
processos judiciais, notadamente quando são vítimas de agressão ou qualquer tipo de
violação. Devem participar dos Conselhos.
Deve-se ainda combater o modelo tradicional de cidadania assistida numa
perspectiva de cidadania emancipatória, ou seja, a cidadania considerada como
emancipação dos sujeitos socialmente construídos, onde pessoas e grupos não são
considerados beneficiários de uma política, de um programa ou de um determinado tipo de
intervenção. Trata-se de uma proposta socialmente inclusiva para as crianças, em que elas
fazem parte do diálogo e faz-se pela mobilização social, por um processo de aprendizagem
social.
Educar na cidadania e democracia e não para a cidadania e democracia,
considerando que as crianças têm um papel ativo no processo, implica a promoção de
espaços e oportunidades que promovam competências e concepções elas próprias
democráticas e cidadãs, assumindo direitos e deveres considerados como um legado
cultural e a interiorização e apropriação por parte dos atores sociais dessas práticas.
Isto implica participação ativa nos processos públicos, ter acesso às informações e
conhecimentos necessários à participação cidadã, ter formação, adquirir conhecimentos e
saberes sobre direitos, participação, cidadania e democracia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, a infância
foi alcançada por um sistema de garantia de direitos, não podendo mais ser objeto passivo
da intervenção familiar, da sociedade e do Estado. A lei lhes assegura direitos como a
dignidade, a liberdade e o respeito. Passaram a ter também primazia em receber proteção e
16
socorro em qualquer circunstância; precedência no atendimento por serviços ou órgãos
públicos de qualquer poder; preferência na formulação e execução das políticas públicas;
destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas à proteção da infância
e da juventude.
Entretanto, na dinâmica das relações sociais, estes direitos consagrados no ECA
contrastam com estigmas que permeiam a realidade infantil, cujos tratamentos que lhes são
dispensados ainda se caracterizam por uma subestimação de suas capacidades. As
representações inferiorizantes do sujeito menino ou menina ainda estão bem presentes em
nossa realidade social.
Não por outra razão que afirmamos ao longo deste artigo que as novas condições
de cidadania não podem resolver-se com um tratamento jurídico puramente normativo, nem
mediante um tratamento dedutivo a partir de um conceito pré-existente da cidadania e do
cidadão.
Hão de ser considerados fatores históricos, sociais e culturais que circundam a
questão da infância. A ideia de cidadania vem transformando nos últimos anos e o
reconhecimento de espaços como também de direitos exige a incorporação dos jovens
nestes processos, como forma conhecerem a realidade em que estão inseridos, como
também fatores de empoderamento.
Essa luta social no qual os jovens devem estar engajados é exatamente a luta por
reconhecimento, definida por Honneth (2009, p. 257) como:
[...]o processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são
interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de
forma que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência
coletiva por relações ampliadas de reconhecimento”
Há necessidade de se rever as fórmulas tradicionais utilizadas até então para
entender a questão da cidadania. Os princípios clássicos sobre os quais se apoiavam os
velhos conceitos de cidadão e cidadania revelam-se cada vez mais inadequados quando
nos enfrentamos com determinadas situações.
Ganha espaço a ideia de multiplicidade de cidadanias que coexistem num mesmo
espaço, apesar da concepção e vigência de uma ideia de cidadania hegemônica, ideia que
contraria a concepção propagada na modernidade de igualar todos os indivíduos sob a
denominação abstrata de cidadão.
Contudo, há um espaço onde os velhos conceitos estão postos em discussão: os
sujeitos de cidadania. Tradicionalmente, o cidadão por excelência era o varão adulto,
17
homem e branco, de tal forma que as mulheres, escravos e, sobretudo, os jovens e ainda
mais as crianças não eram considerados como tal. De acordo com as críticas feministas,
este tem sido um conceito estrito e limitado a um único grupo social.
Nestes casos, poder-se-ia falar em cidadania por delegação, ou seja, a cidadania
que se materializa nos outros. É o caso das expressões invariavelmente utilizadas para
representar a criança como uma promessa de cidadão, como por exemplo, cidadãos em
projeto ou embrionários ou cidadãos aprendizes.
Tais expressões ainda são usualmente utilizadas para representar a infância,
inferioriza e subestima a capacidade participativa da criança, como também não se coaduna
com a proposta de cidadania aqui defendida, pois não contempla a criança como membro
pleno da comunidade e da sociedade.
A crescente importância que nas nossas sociedades adquiriram as dinâmicas
relacionadas com a incorporação das novas gerações na vida social obriga a repensar um
conceito de cidadania, que foi antecedido pelo debate sobre o desenvolvimento da
cidadania protagonizada pelas feministas e por movimentos anti-racistas. Nestes casos, se
as mulheres e os demais grupos tradicionalmente excluídos, de fato conquistaram alguns
espaços e conseguiram demonstrar suas pautas de reivindicações, as crianças continuam a
ser excluídas do espaço público.
A emergência de novas ou renovadas cidadanias anuncia a crise de um modelo
que vai esgotando as possibilidades de adaptação aos processos de transformação de uma
cidadania definida exclusivamente em torno de determinadas categorias: homem e adulto.
O fato de ainda não ser clara em nossa sociedade a ideia de considerar as crianças
como sujeitos de direitos, impede, como se demonstrou ao longo do texto, que sejam
tratados efetivamente como cidadão, vez que as características que lhes são inerentes,
associadas ao fator idade, como a imaturidade e vulnerabilidade, ou seja, um conjunto de
características biopsicológicas que não outorgam à criança o conjunto de competências que
os adultos consideram necessárias para o exercício da cidadania.
Nesse sentido, vê-se que, se as mulheres e demais grupos sociais tradicionalmente
excluídos, de fato, conquistaram alguns espaços ou fizeram observar as suas pautas, as
crianças, por sua vez, continuam a ser excluídas do espaço público.
Imperioso considerar a cidadania infantil como uma categoria diversa e mutável, no
tempo e no espaço, que é capaz de assumir diversas formas e distintos enfoques, mesmo
porque não se trata de uma categoria homogenia, vez que a igualdade consignada na lei é
meramente formal.
As crianças reivindicam o “direito a ter direitos”, para utilizar a expressão
consagrada por Hannah Arendt, considerando que os direitos têm que ser perseguidos,
18
sobretudo quando a exclusão avança e a procura da reinvenção de uma nova cidadania é
fundamental.
No que se refere à infância, podemos afirmar que para um projeto de cidadania que
considere as crianças cidadãs será necessário que, inicialmente, a infância seja tida não
como um problema, mas como uma etapa natural da vida humana, onde à promoção e
exercício de direitos possa se dar no gozo da infância, através do estímulo ao protagonismo.
19
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