Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Direitos sexuais e direitos reprodutivos
de adolescentes e jovens em conflito
com a lei: contribuições para o
debate e ações
São Paulo, junho, 2012
1
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Presidenta da República
Dilma Vana Rousseff
Vice-Presidente da República
Michel Miguel Elias Temer Lulia
Ministra de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Maria do Rosário Nunes
Secretária Executiva da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Patrícia Barcelos
Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente
Carmen Silveira de Oliveira
Coordenadora-Geral do SINASE
Thelma Alves de Oliveira
Colegiado responsável pela ECOS – Comunicação em Sexualidade
Maria Helena Franco, Osmar de Paula Leite, Sandra Unbehaum, Sylvia Cavasin, Teo Weingrill Araújo,
Thais Gava, Vera Lúcia Simonetti Racy
Projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes em conflito com a lei
Coordenação
Maria Helena Franco
Equipe Técnica
Cecília Simonetti, Vera Lúcia Simonetti Racy, Ingrid Leão, Vitor Silva Alencar
Equipe Financeira/Administrativa
Osmar de Paula Leite, Denize Cardoso Pereira, Sandra Pessoa
Colaboradoras/es
Alcides dos Santos Caldas, Eduardo Paysan Gomes, Estela Scandola, Fabiane Simioni, Francisca
Eleonora Asanuma Schiavo, Manoela Souza, Maria da Graça Bezerra, Max André Correa Costa,
Ricardo Melo, Tânia Palma
Parcerias institucionais
Plataforma de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais - Plataforma Dhesca,
Regional Bahia da Rede Feminista de Saúde, MUSA – Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação
Técnica em Gênero e Saúde do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, Grupo
Operativo da Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Estado da Bahia, Instituto Universidade
Popular – UNIPOP, Centro de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente Zumbi de Palmares
– CEDECA, Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher –
CLADEM Brasil, Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC, Instituto
Brasileiro de Inovações pró- Sociedade Saudável Centro-Oeste – IBISS/CO
2
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Copyright@2012 - ECOS – Comunicação em Sexualidade e Secretaria de Direitos Humanos da
Presidênca da República
Secretaria de Direitos Humanos da Presidênca da República – SDH/PR
Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual de Crianças e Adolescentes
SCS B, Qd 9, Lt C, Ed. Parque Cidade Corporate Torre A, sala 805-A
70.308-200 – Brasília – DF
Telefone: (61) 2025-9907
Site: www.direitoshumanos.gov.br
Email: [email protected]
ECOS – Comunicação em Sexualidade
Endereço: Rua Araújo, 124/2º andar – 01220-020, Vila Buarque, São Paulo/SP Brasil
Telefone: (11) 3255-1238
Site: www.ecos.org.br
Email: [email protected]
Esta publicação é resultado de convênio entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República e a ECOS – Comunicação em Sexualidade.
A reprodução do todo ou parte deste documento é permitida somente para fins não lucrativos e com a
autorização prévia e formal da SDH/PR e da ECOS, desde que citada a fonte.
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens em conflito com a lei: contribuições
para o debate e ações
Conteúdo disponível nos sites www.direitoshumanos.gov.br e www.ecos.org.br
ISBN: 978-85-61808-13-6
Tiragem desta edição: 1.000 exemplares
Impresso no Brasil
1ª Edição
Distribuição gratuita
Criação, redação e edição
Maria Helena Franco, Cecília Simonetti, Vera Lúcia Simonetti Racy
Fotografia
Maria Helena Franco
Projeto Gráfico e Editoração
DMAG Design Editorial – Argeu Godoy e Doriana Madeira
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens em conflito
com a lei: contribuições para o debate e ações /[coordenação Maria Helena Franco].
– Sao Paulo: ECOS – Comunicação em Sexualidade, 2012.
Vários colaboradores.
Bibliografia
1. Adolescência 2. Adolescentes infratores – Direitos 3. Direito e saúde 4. Direitos
Humanos 5. Direitos reprodutivos 6. Direitos Sexuais 7. Medida socioeducativa – Leis
e legislação – Brasil 8. Mulheres – Saúde e higiene 9. Políticas públicas – Brasil 10.
Sexualidade 11. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINSE).
12-08726CDU–342.7:347.157.1(81)
Índices para catálogo sistemático:
1. Brasil: Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo: Medidas Socioeducativas
destinadas a adolescentes e jovens em conflito com a lei: Direitos sexuais e
reprodutivos: Direitos humanos: Direito constitucional 342.7.347.157.1 (81)
3
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Sumário
1
Introdução........................................................................................................09
2
Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.......................................................10
3
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE...................12
4
Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo aos Adolescentes
em
Conflito com a Lei – 2010.......................................................................14
Sumário
8.1
Aspectos do sistema socioeducativo que ferem a doutrina
de proteção Integral....................................................................................36
9
O quê o Projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de
adolescentes em conflito com a lei encontrou.........................................39
9.1
Direito à intimidade – a política pública da visita íntima...........................39
5
CNJ – Programa Justiça ao Jovem................................................................16
9.1.1 Caminhos possíveis, porém difíceis...............................................................47
6
Metodologia do projeto promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de
9.1.2 Reflexos da visita íntima no dia-a-dia.........................................................49
adolescentes em conflito com a lei................................................................17
9.2
6.1 Levantamento das unidades femininas nos estados e
Distrito Federal................................................................................................17
Direito à igualdade, a não ser discriminado e à diferença –
homoafetividade............................................................................................50
9.3
Direito à informação sobre métodos contraceptivos, à prevenção
6.2 Seleção das unidades socioeducativas, parcerias locais e visitas..................26
do câncer e das
7
Informações gerais sobre as unidades visitadas............................................28
ginecológica..................................................................................................60
7.1 Pará...................................................................................................................28
9.3.1 Ações de educação em saúde sexual e reprodutiva...................................62
7.2 Pernambuco.......................................................................................................29
9.3.2 Ações de prevenção das DST, Aids e Hepatites Virais...............................64
7.3 São Paulo..........................................................................................................30
9.3.3 Saúde reprodutiva: assistência ginecológica, gravidez,
7.4 Alagoas.............................................................................................................30
DST, AIDS e Hepatites Virais e à assistência
pré-natal, parto, pós-parto e aborto..........................................................70
7.5 Rio Grande do Sul...........................................................................................31
10
Boas Práticas ...............................................................................................77
7.6 Bahia..................................................................................................................31
11
Considerações finais.....................................................................................83
7.7 Mato Grosso do Sul.......................................................................................32
12
Referências bibliográficas............................................................................85
8
Informações gerais sobre as garotas cumprindo medida socioeducativa
nas unidades visitadas......................................................................................32
4
5
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Agradecimentos
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Apresentação
À equipe do projeto, ao acolhimento e comprometimento de colaboradoras/es, instituições parceiras,
responsáveis pelas unidades socioeducativas e suas equipes técnicas, de saúde, educadores/as, socioeducadores/as, magistrados/as e especialmente às garotas, que tornaram este estudo possível.
Comunidade de Atendimento Socioeducativo – CASE Salvador
2ª Vara da Infância e Juventude de Salvador
Câmara Municipal de Salvador
Centro Socieducativo Feminino em Ananindeua – CESEF
2ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Belém
Promotora da Infância e Juventude de Belém
Ordem dos Advogados do Brasil de Belém
Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino – CASEF
Centro de Atendimento Socioeducativo POA I, masculino
3ª Vara do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre
Núcleo Estadual de Atendimento Socioeducativo – NEAS
Unidade de Internação – Extensão – UIME
Unidade de Internação Feminina – UIF
Vara da Infância e Juventude de Alagoas
Fundação de Atendimento Socioeducativo – FUNASE
Centro de Atendimento Socioeducativo Santa Luzia – CASE SANTA LUZIA
Centro de Internação Provisoria Santa Luzia – CENIP SANTA LUZIA
Vara Regional da Infância e Juventude da 1ª Circunscrição de Recife
Unidade Educacional de Internação Estrela do Amanhã – UNEI
Vara da Infância e Juventude de Campo Grande
Fundação Casa
Unidade Feminina de Internação Provisória e Internação Chiquinha Gonzaga Internato Parada de
Taipas
Unidade de Semiliberdade Azaleia
CASA Guarulhos III, Guarulhos
Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente de Cerqueira César I e II
6
7
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
1. Introdução
O
Historicamente, a posição reservada às mulheres
nas normas sexuais e reprodutivas constitui um
dos pontos de maior tensão no momento da elaboração e aplicação de leis e políticas. Em geral as leis
e políticas estabelecem mais restrições à liberdade
sexual e reprodutiva feminina, justificadas como
necessárias para a reprodução e desenvolvimento
saudável da população. Ainda hoje, com maior
ou menor intensidade aspectos fundamentais da
posição das mulheres como titulares de direitos sexuais e reprodutivos são negligenciados no dia a
dia (VENTURA, 2011, p.306)
8
Projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes em conflito
com a lei foi implementado pela ECOS – Comunicação em Sexualidade com
o apoio da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/
PR). Teve por objetivo promover os direitos sexuais e os direitos reprodutivos de
adolescentes e jovens cumprindo medida socioeducativa restritiva de liberdade em
todo o território nacional.
Para produzir informações sobre unidades socioeducativas femininas, a
equipe responsável pelo projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de
adolescentes em conflito com a lei, visitou 13 unidades de internação e internação
provisória femininas, localizadas em sete estados e cobrindo as cinco Regiões do
país. Durante as visitas, realizaram-se entrevistas e conversas com adolescentes e
jovens, com profissionais das unidades de atendimento e operadores/as de direito.
Para a organização e realização das visitas, a equipe da ECOS contou com o apoio
de organizações não governamentais locais no campo dos direitos humanos de
adolescentes e jovens.
Do ponto de vista da história da ECOS, o Projeto Promovendo os direitos sexuais
e reprodutivos de adolescentes em conflito com a lei tem um significado especial, pois
duas das fundadoras da ECOS – Cecília Simonetti e Sylvia Cavasin – e Maria Helena Franco, coordenadora deste projeto – trabalharam na Secretaria do Menor
do Estado de São Paulo, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, época de
experiências pioneiras no atendimento de adolescentes em situação de conflito
com lei. A ECOS é uma organização não governamental, brasileira, cuja criação,
em 1989, ocorre em um contexto nacional e internacional de profundas mudanças
sociais e políticas. No Brasil, essas mudanças advinham da sinergia de diversos
movimentos sociais, tais como os da redemocratização, da reforma sanitária,
os feministas, os de mulheres e os da infância e juventude. Esses movimentos
contestavam princípios arcaicos que, há tempos, concorriam para a produção
de desigualdades nos campos da política, da saúde, nas relações de gênero, de
geração e de raça/etnia, para falar apenas das áreas mais relevantes no âmbito
deste projeto. Nesse contexto, ECOS veio posicionar-se como uma entre outras
ONGs voltadas à realização de ações, no campo da Educação, Comunicação e
Saúde, que possibilitassem a adolescentes e jovens desfrutar, em sua integralidade,
9
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
indivisibilidade e interseccionalidade, direitos dos quais passavam a ser titulares,
justamente por sua recém conquistada condição de sujeitos em desenvolvimento,
em 1989 e 19901, e aos quais foram adicionados os direitos reprodutivos e os direitos sexuais, em 1994 e 19952.
Aproximando-se das perspectivas teóricas trazidas pela reforma sanitarista,
ECOS parte do pressuposto de que a saúde não é apenas um estado biológico
e, sim, uma questão de cidadania e de justiça social. Neste sentido, o exercício
dos direitos sexuais e reprodutivos não se limita à assistência à saúde sexual e
reprodutiva, mas estende-se a um conjunto de direitos humanos, individuais e
sociais, que interagem em prol do pleno exercício da sexualidade e da reprodução.
Portanto, no presente documento, que é uma síntese dos principais achados do
Projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes em conflito com a
lei, reafirma-se que os direitos reprodutivos e os direitos sexuais são direitos humanos.
2. Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
O
s direitos reprodutivos e os direitos sexuais como direitos humanos são um
campo de reflexão relativamente novo no Brasil, quase tão novo quanto
a história recente da saúde no nosso país, cujo primeiro marco basilar foi a
Constituição Federal de 1988. Essa Constituição foi um passo importante de amplo
movimento pela redemocratização. Nela, lê-se que “A saúde é direito de todos e
dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Art. 196). Por meio
desse Art. 196, a Constituição de 1988 institucionaliza um conjunto de princípios
para a organização do Sistema Único de Saúde/SUS, tais como a universalidade –
saúde como um direito de todos, com acesso universal; a igualdade – dar serviços
iguais para todos –, a participação social e a descentralização, os quais representam
uma conquista sem precedentes de ampla mobilização social que apoiou o movimento da reforma sanitária pelo direito à saúde.
Ainda nos anos de 1980, no Brasil, as reivindicações do movimento feminista
Respectivamente, datas da Convenção dos Direitos da Criança e de aprovação do Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA.
2
Respectivamente, datas da Conferência Internacional e População e Desenvolvimento, no Cairo, e
da Conferência Mundial das Mulheres, em Beijing.
1
10
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
contemporâneo e suas interfaces com o movimento da reforma sanitária, dão origem ao PAISM - Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (1983).
Enquanto a reforma sanitária apontava para um modelo de sistema de saúde –
público, universal e equitativo –, o PAISM rompia com a concepção materno-infantil, ao enunciar o tema da “saúde integral da mulher”, que abarcam questões
ligadas ao exercício da sexualidade e da autonomia reprodutiva feminina.
Em 1990 a Organização das Nações Unidas (ONU) adota a Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças, ratificada pelo Brasil, na qual estão
previstos os direitos das crianças e adolescentes. Ao longo dos anos de 1990,
o ciclo social ONU é responsável por colocar em pauta os direitos sexuais e os
direitos reprodutivos, uma vez que (i) em 1993, a II Conferência Internacional
de Direitos Humanos (Viena) enfatiza que os direitos das mulheres são direitos
humanos e que, portanto, devem estar incluídos na agenda das políticas de direitos
humanos das nações; (ii) em 1994, em decorrência da incidência política do movimento internacional de mulheres, a Conferência Internacional de População
e Desenvolvimento (CIPD, Cairo) consagra os direitos reprodutivos como direitos humanos. Ainda no âmbito internacional, durante a IV Conferência
Mundial da Mulher em Pequim (1995), as Nações Unidas reconhecem que as
restrições legais e políticas impostas à autonomia reprodutiva, além de violarem
os direitos humanos, especialmente os direitos das mulheres, são desfavoráveis ao
desenvolvimento econômico e humano das populações.
Esses avanços, nos planos nacional e internacional, repercutem nos esforços dos
movimentos sociais e governos brasileiros no sentido de inserir o conteúdo dos direitos
sexuais e reprodutivos nas nossas leis e políticas, por exemplo, a Lei 9.263, de 12
de janeiro de 1996, que trata do planejamento familiar, no âmbito do atendimento
global e integral à saúde, assim como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde
da Mulher (2005), que busca traduzir os princípios e a filosofia do PAISM, ao mesmo
tempo em que respeita as especificidades epidemiológicas e os diferentes níveis de
organização dos sistemas de saúde dos inúmeros municípios brasileiros.
De acordo com Araújo e Simonetti (2011), a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher incorpora as diferenças entre grupos de mulheres criadas
por discriminações que se superpõem e que interagem com as discriminações de
gênero. Neste sentido, essa Política contempla as mulheres em todas as fases da
vida, portanto, a adolescência e a juventude, e em muitas de suas singularidades
11
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
de raça/etnia, privação de liberdade, orientação sexual, além de introduzir novas
questões antes invisíveis como, por exemplo, a violência sexual e doméstica e os
problemas relacionados à saúde mental. Nessa Política, está o pressuposto de que
às especificidades do corpo se agregam outras menos visíveis, criadas por efeito
cultural em contextos sociais e históricos específicos e, portanto, mais difíceis de
serem incorporadas – pelas leis e práticas jurídicas, médicas, pedagógicas, e sobretudo nas políticas – como constituintes da saúde integral das mulheres.
Apesar de todos os avanços, é de se reconhecer a dificuldade, no Brasil, de realização dos direitos sexuais e reprodutivos, mesmo quando incorporados nas leis
e políticas públicas. Nesse sentido, o problema da realização, implementação, dos
direitos reprodutivos e direitos sexuais é mais uma questão do campo da gestão.
As dificuldades aumentam quando estas leis e políticas se referem à adolescência e
juventude, tornando-se um desafio ainda maior quando, em relação a esse grupo,
fala-se das adolescentes e jovens cumprindo medida socioeducativa de internação
ou internação provisória.
Nesse sentido a adoção de uma linguagem de direitos e obrigações, permite
que se trabalhe as três faces da responsabilidade estatal, isto é:
“...respeitar, proteger e implementar. Respeitar direitos significa que as ações
do Estado e seus agentes não devem, por si mesmas, violar direitos; proteger
direitos significa que o Estado deve tomar medidas em todas as suas dependências para assegurar que nenhuma outra entidade – indivíduos, corporações –
cometa abusos contra os direitos humanos; e implementar direitos impõe a
obrigação aos Estados de garantir que suas ações em todos os níveis possibilitem
o desfrute desses direitos.” Miller apud MATTAR (2008, p. 65)
3. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE
O
presente estudo foi realizado antes de ter sido sancionada a Lei no. 12.594,
de 18/1/2012 (publicada em 19/1/2012 e retificada em 20/1/2012). Esta
lei regulamenta o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE e
altera, entre outras normativas, a Lei no. 8069, de 13/7/1990 (Estatuto da Criança
e do Adolescente – ECA). A nova lei é vista como a primeira lei nacional para a
execução de Medida Socioeducativa (MSE) destinada a crianças e adolescentes
que pratiquem atos infracionais.
12
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Vários/as defensores/as dos direitos humanos consideram que a lei é um grande avanço na garantia dos direitos de crianças, adolescentes e jovens no Brasil, por
tornar possível normatizar a internação dos que cumprem MSE, ao criar parâmetros de adequações nos poderes jurídico e executivo.
Uma das inovações da lei é a transferência da função executiva e de gestão
para a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR).
Avanços são elencados quanto à obrigatoriedade para que adolescentes em conflito
com a lei voltem a estudar (Art. 82), à proibição de isolamento do adolescente,
exceto para a sua proteção e a de outros internos (Art. 48), ou à possibilidade
de reavaliação da MSE a qualquer momento, na condição de que exista motivo
aceitável (Art. 43).
Há, entretanto, quem aponte críticas à Lei no. 12.594, por exemplo, em relação ao Art. 65 que permite, de acordo com associações ativistas da luta antimanicomial, que a autoridade judiciária interdite adolescentes com sofrimento
mental e, assim, abra brecha para que adolescentes sejam internados por tempo
indeterminado. É importante lembrar que a interdição é uma medida de privação
de direitos. Outros atores sociais na área jurídica apontam falhas na lei por não
determinar a divisão de internos por idade, por ato infracional cometido e por
porte físico; ou por não prever um quantitativo de no máximo 40 internos em
cada unidade de atendimento.
A equipe do projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes em conflito com a lei, reconhece que a lei avançou em relação a temáticas não contempladas no ECA, quanto à sexualidade e à saúde sexual e reprodutiva. Porém,
considera lastimável a supressão dos Art. 103 e 104 do ECA, sobre a imputabilidade
penal de menores de 18 anos de idade, juntamente com os demais artigos do Cap.
I – Das Disposições Gerais do Título III – Da prática de ato infracional.
ECOS trabalha com sexualidade, saúde sexual e reprodutiva, direitos sexuais
e direitos reprodutivos de adolescentes3 e jovens, temáticas que não foram explicitadas no ECA e que a lei que sanciona o SINASE contemplou.
O presente documento não trata do mérito da lei reguladora das MSE, apesar
de considerar fundamental o debate em torno dessa questão. O foco nos direitos
sexuais e direitos reprodutivos possibilita que nossa análise remeta a alguns artigos
e incisos específicos da Lei no. 12.594, em especial os artigos 35, 60, 67 e 68.
3
Recorre-se à definição de adolescente no ECA, com base na idade, de 12 a 17 anos incompletos.
13
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Art. 35, inciso VIII, sobre a não discriminação do adolescente, notadamente
em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política
ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status;
Art. 60, incisos IV e VI – diretrizes para a atenção integral à saúde do adolescente no Sistema de Atendimento Socioeducativo, incisos IV (ações de educação em saúde sexual e reprodutiva e prevenção das DST) e VI (capacitação de
profissionais nos temas de saúde sexual e reprodutiva)4;
Art. 67 e 68 – sobre as visitas, inclusive a íntima. O Art. 67 anuncia visita do
cônjuge, companheiro, pais ou responsáveis, parentes e amigos a adolescente a
quem foi aplicada medida socioeducativa de internação. A visita observará dias
e horários próprios definidos pela direção do programa de atendimento. No Art.
68 é assegurado ao adolescente casado ou que viva, comprovadamente, em união
estável o direito à visita íntima. Parágrafo único. O visitante será identificado e
registrado pela direção do programa de atendimento, que emitirá documento de
identificação, pessoal e intransferível, específico para a realização da visita íntima.
Este documento pretende contribuir para a elaboração dos Planos Plurianuais
estaduais com vistas a assegurar prioridade para a política pública de atendimento
socioeducativo, articulado horizontalmente entre as políticas setoriais e verticalmente entre as esferas de governo.
4. Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo
aos Adolescentes em Conflito com a Lei – 2010
O
estudo feito pelo projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de
adolescentes em conflito com a lei foi realizado em 2011, em 13 unidades femininas localizadas em sete estados, dos quais seis apresentaram crescimento no
número de adolescentes em restrição e privação de liberdade entre 2009 e 2010,
conforme mostram as taxas5:
Vale a pena ressaltar, para reflexão, que nesses incisos não se fala sobre direitos sexuais e direitos
reprodutivos.
4
O Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo aos Adolescentes em Conflito com a
Lei – 2010, lançado em Brasília em junho de 2011 pela Secretaria De Direitos Humanos informa
que em 2010 havia no Brasil 12.041 adolescentes em medida socioeducativa de internação e 3.934
em internação provisória. De acordo com esse Levantamento, em 12 estados aumentou o número de
adolescentes nas unidades socioeducativas enquanto em 15 diminuíram. Na região norte os estados
5
14
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
• Na Região Norte, o PA apresentou taxa de crescimento de 22,90%;
• Na Região Nordeste, a BA foi o estado que teve a taxa mais elevada (47,87%),
seguido de AL, com 33,33%. PB, apesar da taxa ser de 2,10%, foi o estado nordestino com número absoluto mais elevado, 1023 (em 2010);
• Na Região Centro-Oeste, o estado de MS teve taxa de 10,07% perdendo em
crescimento somente para o DF (taxa de 30,55%);
• Na Região Sudeste, SP apresentou crescimento de 7,09% e foi o estado
com o maior número absoluto de adolescentes e jovens em internação (5107 adolescentes e jovens em 2010);
• Na Região Sul, o RS foi uma exceção entre os estados estudados pelo projeto,
pois teve uma taxa negativa de - 21,02%.
Em média, no Brasil, para cada dez mil adolescentes, 8,8 encontram-se em situação de privação ou restrição de liberdade. A relação entre adolescentes do sexo
masculino e do sexo feminino na internação provisória e em cumprimento das medidas de internação e semiliberdade confirma a prevalência de adolescentes homens
com percentual próximo dos 95% (888 garotas para 16.815 garotos). Em 2010, o
número de adolescentes do sexo feminino apresentou elevação de 1,06%, em relação
a 2009, sobretudo na medida de internação e nas regiões norte e nordeste, que juntas
totalizam aumento de 56,48% em relação ao restante do país.
O menor número de garotas envolvidas na infração está associado a diversos fatores
sociais, econômicos e culturais que permeiam a questão de gênero. Dados recentes
têm mostrado crescimento no envolvimento de adolescentes do sexo feminino com o
tráfico de drogas, um problema ainda pouco conhecido e pesquisado6.
O Levantamento Nacional informa que, em 2010, “a rede física atual está composta por 435 unidades, sendo 305 para atendimento exclusivo de programas: 124
de internação, 55 de internação provisória, 110 de semiliberdade, 16 de atendimento inicial, e 130 mistas em mais de um programa de atendimento. Grande
parte destas unidades foi construída anteriormente ao SINASE, apresentando inadequações a seus parâmetros” (BRASIL, 2011, p. 32).
O projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes em conque apresentaram aumento foram PA e TO; na região nordeste AL, BA, CE, MA; na região centro
oeste o DF e MS, na sudeste o ES, RJ e SP e na região sul o PR. Em número absoluto o maior crescimento se deu no estado de São Paulo e foi de 588 adolescentes.
6
Referências a esse crescimento também foi observado no projeto.
15
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
flito com a lei identificou 40 unidades femininas sendo 7 na região Norte, 11 na
Nordeste, 11 na Centro-Oeste, 8 na Sudeste e 3 na Sul, ou seja, em torno de 1%
do total de unidades, consoante o Levantamento Nacional de 2010.
5. CNJ – Programa Justiça ao Jovem
E
m junho de 2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o Programa
Justiça ao Jovem, projeto responsável por mapear as unidades de internação de
todos os estados brasileiros e do Distrito Federal, analisar unidades de internação
de jovens em conflito com a Lei e atentar para que as/os adolescentes sob custódia
do estado tenham tratamento diferenciado dos adultos.
O Programa Justiça ao Jovem teve a participação de magistrados com experiência
na área de execução de medida socioeducativa, de técnicos do Judiciário, tais como
assistentes sociais, psicólogos e pedagogos, além de instituições, naquela ocasião,
gestoras da execução da medida de internação, tais como o Ministério Público, a
Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do Brasil.
A equipe do programa Justiça ao Jovem visitou todas as unidades da Federação
para conhecer a realidade nacional das medidas socioeducativas, verificar a situação processual de todos os adolescentes que estão em conflito com a lei no
Brasil e tecer recomendações para que os sistemas socioeducativos estaduais se
adequassem às diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
A equipe do projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes em
conflito com a lei deparou-se com os mesmos problemas apontados nos relatórios do
CNJ, particularmente nos estados visitados nas regiões Norte, Nordeste e CentroOeste (PA, AL, BA, PE, MS), sem esquecer aqueles encontrados nas unidades
visitadas em SP e RS. Em praticamente todos os estados há relato de superlotação
(frequentes nas unidades masculinas), desarranjos na estruturação e localização,
tornando deficiente o sistema para execução da internação; de necessidade de superar a arquitetura prisional, a concentração em poucos municípios que reforça a
distância dos familiares; da urgência de mais investimentos na melhoria das instalações de modo a obedecer aos ditames do ECA e do SINASE, para se atingir os
objetivos maiores da socioeducação; a necessidade de capacitação de quem trabalha
nas unidades, de servidores a magistrados, de modo a aprimorar o atendimento.
16
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
São recorrentes nos relatórios do CNJ, à exceção de situações específicas a
São Paulo e Rio Grande do Sul, a falta de uniformidade nos procedimentos do
Judiciário, a inexistência de projeto pedagógico, de planos estaduais para o Sistema
Socioeducativo, a falta de varas especializadas da infância e juventude, a existência
de assistência jurídica precária e a necessidade de maior articulação entre Poder
Judiciário, Poder Executivo, Ministério Público, Defensoria Pública e demais atores do Sistema de Garantia e Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes.
6. Metodologia do projeto Promovendo os direitos sexuais
e reprodutivos de adolescentes em conflito com a lei
6.1 Levantamento das unidades femininas nos estados e Distrito Federal
Tendo em conta o contexto apresentado pelo Levantamento Nacional de
2010 da SDH e as informações do CNJ, foi realizado um breve diagnóstico para
identificar unidades de internação e internação provisória que recebiam garotas
nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal, além de investigar a existência de
ações educativas em sexualidade, o respeito ao direito de visita íntima e o acesso a
preservativos. Esses dados subsidiaram o início do estudo sobre os direitos sexuais
nos sistemas de privação de liberdade, com foco na condição das mulheres jovens.
Para o levantamento dos primeiros dados, foram consultados representantes
dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECAs) e de sua Associação Nacional (ANCED), a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, além de militantes dos direitos da criança e do adolescente ligados a
Universidades e Fóruns de Defesa. Ademais, foram feitas consultas a websites de
órgãos governamentais e a publicações (virtuais e impressas) sobre a temática.
Em seguida foram feitas consultas telefônicas diretamente às unidades de
internação ou a órgãos gestores do sistema socioeducativo, onde foram confirmadas
as informações recebidas no primeiro momento (endereços das unidades e se de
fato eram apenas aquelas que recebiam adolescentes e jovens do sexo feminino).
No mesmo contato telefônico questionou-se sobre a existência de ações educativas
em sexualidade, sobre o respeito ao direito de visita íntima e acerca da distribuição
de preservativos. As perguntas utilizadas foram:
3 Existem ações educativas em sexualidade para as adolescentes e
jovens na unidade de internação? Se sim, no que consistem? As garotas
17
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
também têm acesso a essas atividades? (no caso de unidades mistas).
3 O direito à visita íntima é assegurado na unidade de internação,
conforme os parâmetros estabelecidos pelo SINASE? As garotas também
têm acesso a esse direito? (no caso de unidades mistas).
3 Existe distribuição de preservativos na unidade de internação? As
garotas também recebem os preservativos? (no caso de unidades mistas).
O levantamento foi realizado em março e abril de 2011. Foram encontradas 40
unidades de internação e internação provisória que recebem garotas no território
nacional. Das unidades identificadas, cerca de 20 declararam possuir ações de
educação em sexualidade, 01 admitiu ter visita íntima para adolescentes mulheres
(03 para o sexo masculino) e cerca de 30 disseram distribuir preservativos, mesmo que no momento de saída definitiva da unidade. A seguir, apresentamos
as informações fornecidas por gestores/as das unidades, registradas conforme a
ocasião dos contatos.
sando à prevenção de doenças, além do acompanhamento ginecológico das garotas,
inclusive das grávidas. Não existe visita íntima em nenhuma unidade de internação
no Amazonas, incluindo a das adolescentes. Preservativos são distribuídos quando as
adolescentes são liberadas para passar algum momento fora da unidade.
Centro Sócio-educativo de Internação Provisória: Não existem ações de
educação em sexualidade voltadas para as garotas, apenas orientações feitas individualmente pela equipe técnica da unidade. Não existe visita íntima nem distribuição de preservativos.
Região Norte
5. Rondônia
Unidade Sócio-educativa de Internação Feminina: O setor de saúde orienta
quando existe alguma demanda das garotas. Pontualmente são feitas parcerias
com a Universidade e com a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Velho para
realização de palestras e atividades de orientação sobre sexualidade. Não existe
visita íntima nas unidades de internação de Rondônia. Também não são distribuídos preservativos.
1. Acre
Casa da Adolescente Mocinha Magalhães: Não existem ações de educação
voltadas para a questão da sexualidade, mas pretendem articular para o ano de
2011; não são distribuídos preservativos, mas quando as adolescentes vão ao/a
ginecologista a unidade procura garantir a utilização de métodos contraceptivos;
a visita íntima não é permitida para as garotas, mas a alguns adolescentes do sexo
masculino é permitida com autorização judicial.
2. Amapá
Centro de Internação Feminino – CIFEM: Não existem ações de educação
em sexualidade; quando ocorrem, são através de palestras pontuais realizadas com
parcerias externas. Não existe visita íntima nem distribuição de preservativos.
3. Amazonas
Centro Sócio-educativo Marise Mendes: As ações que acontecem sobre educação
em sexualidade se restringem a orientações dadas pela equipe de saúde da unidade e
por parceria com a Secretaria de Saúde. Normalmente consistem em orientações vi18
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
4. Pará
Centro de Internação Socio Educativo Feminino – CESEF: Existem ações de
orientação sobre sexualidade realizadas pelas equipes técnico-pedagógica e de enfermagem, além de parcerias externas com a Secretaria de Saúde. Não existe visita
íntima, mas as garotas recebem preservativos.
6. Roraima
Centro Sócio Educativo Homero de Souza Cruz Filho: O número de garotas
sempre é muito pequeno e já faz dois meses que não existem garotas internadas.
Mas quando existe alguma se constrói um calendário para palestras sobre a
questão da sexualidade, proferidas tanto por atores externos como pela equipe
técnica da unidade. As garotas também recebem atendimento individual pelos/as
profissionais. Não existe visita íntima, mas quando os internos (garota ou garoto)
vão passar algum período fora da unidade recebem preservativos.
7. Tocantins
Centro de Internação Provisório Feminino de Palmas: Ações articuladas pon19
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
tualmente com a Secretaria de Saúde com foco na gravidez e na prevenção de
doenças. Não existe visita íntima. Preservativos só são distribuídos quando as adolescentes saem definitivamente da unidade.
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
buição de preservativos nem visita íntima.
Centro da Juventude Semear – Internação provisória: Não existe ação especifica
de educação em sexualidade, apenas alguma orientação quando solicitada pelas
internas. Não existe visita íntima, mas são distribuídos preservativos quando as
adolescentes são liberadas da unidade.
Região Nordeste
8. Alagoas
Unidade de Internação Feminina – UIF: Eventualmente são apresentados vídeos ou feitas parcerias para realização de palestras sobre gravidez e sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Nesses momentos ocorre distribuição de preservativos. Também são distribuídos preservativos quando alguma
adolescente está exercendo o direito à visita íntima (após cumprimento dos requisitos estabelecidos por portaria do juiz da infância e juventude). Nesse caso,
elas também recebem orientações da equipe de saúde da unidade.
9. Bahia
Comunidade de Atendimento Socioeducativo - CASE Salvador: As iniciativas
de educação em sexualidade ocorrem pontualmente através de palestras promovidas
pela equipe da unidade e por parceiros externos. Não existe visita íntima nem
distribuição de preservativos.
10. Ceará
Centro Educacional Aldaci Barbosa Mota: Atividades de orientação sobre
sexualidade são realizadas na escola e em palestras pontuais articuladas em parceria
com outras instituições. Não existe distribuição de preservativos (apenas para as
garotas da semiliberdade, que também funciona no mesmo complexo). Não existe
visita íntima.
11. Maranhão
Centro da Juventude Florescer (Feminino): As ações educativas sobre sexualidade estão inseridas no atendimento técnico (social, psicológico e pedagógico) fornecido pela unidade e pontualmente através de formações decorrentes de
parcerias feitas pela coordenação do sistema socioeducativo. Não existe distri20
12. Paraíba
Casa Educativa: A equipe técnica da unidade realiza ações de orientação
relacionadas à sexualidade e busca parcerias externas para que as adolescentes tenham palestras sobre a temática. Não existe visita íntima nem são distribuídos
preservativos.
13. Pernambuco
Centro de Atendimento Sócio-educativo – CASE Santa Luzia: As atividades
realizadas sobre sexualidade ocorrem na escola e através de palestras ministradas
por atores externos, além das orientações dadas pelos técnicos da unidade. Não
são distribuídos preservativos. A visita íntima é proibida para as garotas, mas a coordenadora insinuou que os garotos de outras unidades têm direito.
Centro de Internação Provisória – CENIP Santa Luzia: As garotas recebem palestras sobre sexualidade realizadas por profissionais de outros órgãos do governo
que vão até a unidade. Os temas são prevenção a doenças e atividade reprodutiva.
Não existe visita íntima nem distribuição de preservativos.
14. Piauí
Centro Educacional Feminino: O tema é tratado como tabu e as iniciativas
são bem tímidas. Quando acontecem são palestras pontuais feitas pela equipe
educacional da unidade. As garotas têm acompanhamento da rede de saúde,
onde recebem orientações e têm acesso a preservativos. Dentro da unidade só
existe distribuição de preservativos quando as adolescentes são desligadas definitivamente. Não existe visita íntima.
15. Rio Grande do Norte
Centro Educacional Padre João Maria (Ceduc): Existem ações de educação
sobre sexualidade fornecidas pela própria equipe técnica da unidade e por palestras
21
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
pontuais ministradas em função de parceria com a BEMFAM/RN, quando as garotas tem acesso a preservativos. As adolescentes não têm direito à visita íntima,
embora os adolescentes do sexo masculino tenham.
16. Sergipe
Unidade de Internação Feminina Hildete Falcão: São realizadas palestras
com as garotas a partir de parceria com a Secretaria de Saúde, além da orientação
que é dada pela equipe técnica da unidade. Trabalham-se ações sobre gravidez e
prevenção de DSTs. As garotas também são acompanhadas clinicamente pelos
serviços de saúde. Não existe visita íntima nem distribuição de preservativo para
as internas.
Região Centro-Oeste
17. Distrito Federal
Centro de Atendimento Juvenil Especializado – CAJE: Ocorreu pontualmente
em 2010 parceria com a Universidade de Brasília e Secretaria de Saúde onde foram
realizadas atividades de orientação voltada para a temática da sexualidade. Até
abril de 2011 esse tipo de atividade ainda não fora realizada. A primeira turma
foi formada apenas para as garotas e a segunda contou também com garotos. Não
existe visita íntima na unidade, nem para garotas nem para garotos. Preservativos
são distribuidos apenas quando as/os adolescentes saem com autorização judicial
para passar períodos fora da unidade.
18. Goiás
Centro de Atendimento Socioeducativo - CASE/Goiânia: Não existem ações
de educação em sexualidade na unidade. Não é permitida a visita íntima e não se
distribuem preservativos para os internos.
Centro de Internação Provisória - CIP: Até abril de 2011 não havia nenhuma
ação educativa voltada para a sexualidade, mas embora houvesse intenção. Não
existe visita íntima, mas em datas específicas, como o carnaval, são distribuídos
preservativos. Na semana em que foram prestadas as informações a unidade parou
de receber adolescentes do sexo feminino.
Centro de Atendimento Socioeducativo - CASE/Formosa - (contato não se efetivou).
22
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Centro de Atendimento Socioeducativo - CASE/Luziânia - (contato não se efetivou).
Centro de Internação de Adolescentes de Jataí - CIAJ: Ainda estão sendo planejadas ações de educação em sexualidade por equipe formada pela Secretaria de
Saúde e por profissionais dos serviços social e psicológico da unidade. Não existe
visita íntima nem distribuição de preservativos.
Centro de Recepção de Adolescentes de Itumbiara - (contato não se efetivou).
Centro de Atendimento ao Adolescente Infrator – CEIA/Porangatu: A equipe
de saúde da unidade ainda está planejando ações de educação em sexualidade. Não
existe visita íntima nem distribuição de preservativos.
19. Mato Grosso
Unidade de Internação provisória e Internação feminina, Cuiabá: Existe um
acadêmico de medicina que realiza palestras semanais sobre a temática da sexualidade, além das orientações que são realizadas pela equipe de saúde da unidade.
Sobre visita íntima e distribuição de preservativos a gerente preferiu que esses
temas fossem respondidos pela superintendência. Foi encaminhado email, não
respondido.
20. Mato Grosso do Sul
Unidade Educacional de Internação Feminina Estrela do Amanhã: Pontualmente são feitas palestras tanto pela equipe técnica da unidade como por parceiros externos. Na última vez membros da universidade realizaram trabalho que
envolvia o conhecimento do corpo, questões de higiene pessoal, gravidez e prevenção de doenças. Não existe visita íntima, mas são distribuídos preservativos
para as internas que deixam definitivamente a unidade.
Unidade Educacional de Internação Feminina Esperança: São proferidas palestras a partir de parceria com a Secretaria de Saúde e também são dadas orientações pela equipe de saúde da unidade. O trabalho tem conteúdo preventivo, no
que diz respeito a DSTs e como evitar a gravidez. As grávidas da unidade também
recebem acompanhamento especial. Não existe visita íntima, mas as adolescentes
recebem preservativos quando deixam definitivamente a unidade.
23
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Região Sudeste
21. Espírito Santo
Unidade Feminina de Internação – UFI: Existem apenas orientações realizadas
pelo núcleo de saúde junto às adolescentes, principalmente aquelas que se encontram grávidas ou com suspeita de gravidez. Não existe visita íntima, nem distribuição de preservativos.
22. Minas Gerais
Centro de Reeducação Social São Jerônimo – CRSSJ: As adolescentes recebem acompanhamento e são orientadas pela equipe de saúde do Programa Saúde
da Família. Também existe parceria com o Grupo Universitário em Defesa da
Diversidade Sexual, que realiza atividades sobre sexualidade. A temática da sexualidade também foi inserida nas formações destinadas às/aos profissionais do
sistema socioeducativo. Não existe visita íntima, mas preservativos são distribuídos
quando as adolescentes saem para passar períodos fora da unidade.
23. Rio de Janeiro
Educandário Santos Dumont (ESD): Existem orientações sobre sexualidade
na grade escolar e são realizadas parcerias externas com órgãos governamentais
e não governamentais para realização de palestras. Não existe visita íntima nem
distribuição de preservativos na unidade, mas algumas recebem camisinhas quando são levadas para atendimento médico externo.
24. São Paulo
CASA Guarulhos III - (contato não se efetivou).
Internato Parada de Taipas (IPT) - (contato não se efetivou).
Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente de Cerqueira César
I e II - (contato não se efetivou).
Unidade Feminina de Internação Provisória e Internação Chiquinha Gonzaga
- (contato não se efetivou).
24
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Região Sul
25. Paraná
Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa: Em 2010 a BEMFAM realizou
parceria com todas as unidades de internação do Paraná para implementar projeto
com a temática da educação em sexualidade, incluindo a questão da diversidade.
Na unidade, a equipe de saúde também procura estabelecer outras parcerias com
a comunidade, incluindo organizações não governamentais e a prefeitura. Não
existe visita íntima nem distribuição de preservativos.
26. Santa Catarina
Centro de Internação Feminina: Ocorrem apenas palestras pontuais através de
parceria feita com o posto de saúde da comunidade. As palestras visam à orientação
das garotas com vistas à gravidez e a prevenção de doenças. Não existe visita íntima
nem distribuição de preservativos.
27. Rio Grande do Sul
Centro de Atendimento Sócio Educativo Feminino – CASEF: Existem momentos para discutir sexualidade realizados pelos técnicos da unidade e por parcerias
externas, tendo já acontecido inclusive debates sobre homofobia. As garotas são
orientadas sobre métodos contraceptivos e podem fazer uso após avaliação da médica
ginecologista da unidade. São distribuídos preservativos para aquelas que podem sair
da unidade de internação, mas não existe direito à visita íntima.
As informações colhidas neste levantamento inicial do projeto já apontavam
para a ausência da abordagem dos direitos sexuais e direitos reprodutivos nas
unidades femininas de internação. Os resultados iniciais indicam que existe pouca
preocupação com a garantia dos direitos sexuais das adolescentes e jovens inseridas
no sistema socioeducativo. Quando existem ações de educação em sexualidade,
não parecem incluídas no processo socioeducativo ao qual a garota está submetida,
mas apenas iniciativas pontuais para orientação sobre gravidez ou prevenção de
doenças. Somente em 01 caso é garantido o direito à visita íntima para unidades
femininas e a distribuição de preservativos não parece contextualizada num processo educativo e de respeito ao exercício da sexualidade.
25
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
6.2 Seleção das unidades socioeducativas, parcerias locais e visitas
Baseada no levantamento inicial, apresentado no item anterior, e tendo em vista
garantir uma representação mínima das cinco regiões do Brasil, compatível com os
recursos financeiros destinados a gastos com viagens e estadias e ao cronograma do
projeto, e com base na sua rede de relacionamentos, a equipe do projeto buscou
apoio junto a organizações não-governamentais que atuam na defesa dos direitos
das crianças, adolescentes e jovens, para obter permissão para visitar as unidades
socioeducativos locais. A partir desses contatos iniciais que se deram via email e
telefone, foram encontradas instituições que se interessaram em apoiar o projeto
e as parcerias foram sendo construídas, principalmente com aquelas que estavam
desenvolvendo atividades junto ao sistema socioeducativo local.
A parceria era formalizada nos seguintes termos: a instituição parceira se
comprometia a fazer a mediação com o sistema socioeducativo local tendo em
vista a obtenção de permissão para realizar visita(s) à(s) unidade(s) feminina(s) de
internação e internação provisória, entrevistas individuais com garotas cumprindo
medida, entrevistas individuais e/ou coletivas com gestores/as do sistema e equipes
técnicas (saúde, educação, administração, socioeducadores/as); a agendar a visita;
contatar e agendar encontro com operadores/as de direito responsáveis pela(s)
unidade(s) socioeducativa(s) visitada(s); acompanhar a(s) pesquisadora(s) durante
a visita às unidades e à Vara da Infância e Juventude local; divulgar o relatório referente à visita para pessoas e instituições locais envolvidas diretamente no estudo
e para a rede de proteção local.
Por seu lado, a equipe do projeto se comprometia a fornecer informações,
produzir documentos que se fizessem necessários para viabilizar as visitas; realizar as visitas e entrevistas programadas; elaborar relatório referente à viagem,
mencionando a parceria; disponibilizar o relatório à instituição parceira para divulgação; mencionar a parceria em documentos, eventos derivados do projeto.
Os estados visitados e as instituições parceiras que apoiaram a realização do
estudo foram:
Bahia – Plataforma de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e
Ambientais – Plataforma Dhesca, Regional Bahia da Rede Feminista de Saúde
e MUSA – Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Gênero e
Saúde do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia;
Pará – Instituto Universidade Popular – UNIPOP;
26
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Alagoas – Centro de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente Zumbi de
Palmares – CEDECA;
Rio Grande do Sul – Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através do Grupo de Assessoria
Jurídica para Adolescentes Selecionados pelo Sistema Penal Juvenil (G10) e do
Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher –
CLADEM Brasil;
Pernambuco – Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social –
CENDHEC;
Mato Grosso do Sul – Instituto Brasileiro de Inovações pró-Sociedade Saudável
Centro-Oeste – IBISS/CO.
Com relação ao Estado de São Paulo, a estratégia foi diferente, pois o Centro
de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente – Fundação Casa, responsável
pelas unidades socioeducativas paulistas, estabeleceu uma portaria (Portaria Normativa Nº 155/2008) que normatiza procedimentos para a realização de estudos
e pesquisas nas suas unidades. Portanto, no caso das unidades femininas paulistas,
a equipe seguiu os procedimentos estabelecidos pela portaria e a tratativa se deu
diretamente com o setor da Fundação Casa que atende a essas solicitações, sem a
mediação de outras instituições locais. Para a aprovação do estudo pela Fundação
Casa foi apresentado projeto de pesquisa contendo justificativa, objetivos, metodologia, resultados esperados e roteiros de entrevistas.
As visitas aos estados, com exceção de São Paulo, em média duravam dois dias,
no caso de visita a uma única unidade, ou três, quando havia mais de uma unidade
a ser visitada. Geralmente, no primeiro dia, na parte da manhã era feita visita à
unidade, a(s) pesquisadora(s) era(m) recebida(s) por representante do gestor/a,
pelo/a gerente da unidade e parte da equipe técnica ou quase toda a equipe, a
depender da disponibilidade das/os profissionais, e realizava entrevistas individuais
e/ou coletivas. Nessas ocasiões, quando permitido, a unidade era fotografada.
Na parte da tarde do primeiro dia eram realizadas entrevistas individuais com
as garotas, pelo menos três entrevistas, sempre antecedidas de informações sobre
o estudo e da concordância por parte das garotas. A seleção das garotas dependia também do tempo na unidade – as com mais tempo tinham mais chance de
ter acompanhado/participado de ações educativas/atividades e de situações abordadas pelo estudo que aquelas com menos tempo de internação. Quando havia
27
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
garota(s) grávida(s) ou com bebê na unidade tentávamos entrevistá-las para obter
informações sobre atendimento de pré-natal, parto, cuidados pós-parto e com o
bebê. Também buscávamos entrevistar garotas de modo a contemplar as diversidades de raça/etnia observadas no momento da visita. As entrevistas com os/
as profissionais e com as garotas eram apoiadas por um roteiro semi-estruturado
com questões sobre os serviços de saúde a que garotas tinham acesso na unidade
ou fora dela (incluso pré-natal e pós-parto), acesso a métodos contraceptivos e de
prevenção, acesso à visita íntima, oferta de atividades educativas em sexualidade e
saúde reprodutiva, relações homoafetivas, entre outras perguntas.
No segundo dia, se havia mais uma unidade, a visita era feita no mesmo esquema
descrito acima. Caso não houvesse outra unidade a ser visitada realizávamos a etapa
final da viagem, que consistia em encontro e conversa com juízes/as, promotores/
as responsáveis pela execução das medidas socioeducativas na(s) unidade(s). Nessas ocasiões falávamos sobre o projeto e sobre o que havíamos visto e ouvido na(s)
unidade(s) visitada(s), em especial sobre violações relacionadas aos direitos sexuais
e direitos reprodutivos das/os adolescentes/jovens.
As entrevistas e conversas foram gravadas, transcritas e deram origem, até o
momento, a relatórios parciais, por estado, a este documento e a um seminário
nacional realizado no dia 11 de maio de 2012, em São Paulo/SP, com o apoio da
Faculdade de Saúde Publica da Universidade de São Paulo.
7. Informações gerais sobre as unidades visitadas
V
isitamos 13 unidades femininas de internação e internação provisória, entrevistamos individualmente 33 garotas, sendo 24 brancas e 9 negras. Em
relação à população adulta envolvida no escopo do estudo foram entrevistadas/os
individualmente 6 profissionais do sistema socioeducativo e 14 operadores/as de
direito, e realizadas 14 entrevistas coletivas envolvendo 7 operadores/as de direito
e 76 profissionais do sistema socioeducativo.
7.1 Pará
Visitamos a unidade da Região Norte, o CESEF – Centro Socieducativo Feminino em Ananindeu/Pará, em agosto de 2011, com apoio do UNIPOP.
Foram realizadas entrevistas individuais com cinco adolescentes e com três pro-
28
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
fissionais (gerente da unidade, profissional da área de saúde e socioeducador/a);
conversa com juíza de 2ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Belém, com
Promotora da Infância e Juventude em Belém; com assistente social da Defensoria
Pública e defensor público, com assistente social da Promotoria da Infância e
Juventude de Belém e encontro com representantes da Comissão da Criança e do
Adolescente e da Comissão da Diversidade Sexual da OAB/Belém.
O CESEF é a única unidade socioeducativa do Estado do Pará que atende
garotas cumprindo medida socioeducativa de internação, incluindo internação
provisória e de semiliberdade. São 143 municípios e as garotas vêm das mais diversas e longínquas áreas do estado para cumprir medida nesta unidade. Na ocasião
da visita, das 14 garotas cumprindo medida na unidade, 9 cumpriam internação,
4 internação provisória e uma estava em regime de semiliberdade. A idade das
garotas, na ocasião, variava de 13 a 18 anos.
7.2 Pernambuco
Visitamos as unidades femininas da Fundação de Atendimento Socioeducativo
– FUNASE, Centro de Atendimento Socioeducativo SANTA LUZIA – CASE
SANTA LUZIA, o Centro de Internação Provisória SANTA LUZIA – CENIP
SANTA LUZIA, e a Vara Regional da Infância e Juventude da 1ª Circunscrição
de Recife, em outubro de 2011, com apoio do CENDHEC.
Realizamos entrevistas individuais com quatro adolescentes, com uma profissional de saúde e com três operadores/as de direito (promotor/a, juíz/a) e três
entrevistas coletivas (uma com a equipe do CASE SANTA LUZIA da qual participaram nove profissionais, outra com a equipe do CENIP SANTA LUZIA da
qual participaram cinco profissionais, e a terceira com grupo de quatro educadoras/es da Escola Vovó Geralda, que atende as garotas do CASE).
O CASE SANTA LUZIA é a única unidade socioeducativa feminina de internação do Estado de Pernambuco. As garotas vêm das mais diversas áreas do
estado para cumprir medida nessa unidade. Fica em um bairro residencial de Recife, em uma casa alugada. Tem capacidade para atender 20 garotas, no dia da
visita estava com 37 garotas e um bebê.
O CENIP SANTA LUZIA é a única casa de internação provisória feminina
de Pernambuco, recebe adolescentes oriundas de todos os municípios do Estado.
No CENIP as garotas ficam no máximo 45 dias aguardando a sentença do/a
29
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
juiz/a podendo resultar em liberdade, em semiliberdade, liberdade assistida (LA)
ou encaminhamento para uma casa abrigo (nos casos de garotas que não possuem
famílias responsáveis por elas).
7.3 São Paulo
Na etapa paulista do estudo visitamos a Unidade Feminina de Internação
Provisória e Internação Chiquinha Gonzaga, na Mooca em São Paulo, a CASA
Guarulhos III, em Guarulhos, o Internato Parada de Taipas, na Vila Brasilândia
em São Paulo, o Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente de Cerqueira César I e II, em Cerqueira César, e a Unidade de Semiliberdade Azaleia em
São Paulo, capital. As visitas a essas unidades ocorreram nos meses de outubro,
novembro e dezembro de 2011.
Foram realizadas 16 entrevistas individuais com adolescentes/jovens, uma
entrevista individual com um/a gestor/a, 5 entrevistas coletivas com equipes técnicas (profissionais da saúde, da gestão, administrativo e socioeducadores/as) envolvendo 29 profissionais da Fundação Casa. No Estado de São Paulo o projeto
não conseguiu entrevistar operadores/as de direito.
Na ocasião da visita às unidades paulistas, na Unidade Feminina de Internação
Provisória e Internação Chiquinha Gonzaga havia 98 garotas cumprindo medida
de internação provisória (a unidade comporta 60) e 64 garotas cumprindo medida
de internação (a unidade comporta 50); na casa das mães havia 12 garotas; na
CASA Guarulhos III havia 40 garotas na internação e 8 na internação provisória,
de 12 a 18 anos; no Internato Parada de Taipas havia 56 garotas na internação,
de 13 a 20 anos; no Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente de
Cerqueira César I e II havia 56 garotas cumprindo medida de internação na Casa
II e 48 na Casa I, cuja capacidade é para 40 garotas, na provisória havia 3 garotas
e a capacidade é de 16; e na Unidade de Semiliberdade Azaleia havia 19 garotas e
a unidade tem capacidade para abrigar 20.
7.4 Alagoas
Visitamos parte do complexo que abriga as unidades masculinas (posto de saúde, salas de aula, quadra, gramado e a Unidade de Internação – Extensão – UIME),
e a Unidade de Internação Feminina – UIF e à 1ª Vara da Infância e da Juventude da
Capital, em Maceió, em setembro de 2011, com apoio do CEDECA.
30
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Foram realizadas entrevistas individuais com duas garotas, duas entrevistas
coletivas – uma na visita ao complexo com participação de um/a gestor/a do
sistema socioeducativo e um/a profissional da saúde, e outra com equipe de professionais da UIF (gerente, psicólogo/a e assessor/a administrativa/o).
A unidade feminina, UIF, comporta internação provisória, internação e semiliberdade. Fica em uma casa em um bairro residencial de Maceió. Das 11 garotas
que estavam na unidade, uma tinha menos de 15 anos e as demais entre 15 e 18
anos. A maioria era da capital.
7.5 Rio Grande do Sul
Visitamos o Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino – CASEF e o
Centro de Atendimento Socioeducativo POA I, masculino, da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul – FASE, e a 3ª Vara do Juizado
da Infância e Juventude, em Porto Alegre, em setembro de 2011, com apoio do
SAJU e do CLADEM Brasil.
Realizamos conversas informais com garotos, entrevistas individuais com
três garotas, uma entrevista coletiva com doze profissionais da equipe técnica do
CASEF (gestor/a da unidade; profissionais da saúde – coordenador/a, psicólogo/a,
médico/a, enfermeiro/a, assistente social, socioeducadores/as) e conversa conjunta
com dois juízes/as da 3ª Vara do Juizado da Infância e Juventude.
O CASEF é a única unidade de internação feminina no Rio Grande do Sul.
Na unidade garotas cumprem medida de internação provisória, internação e
semiliberdade.
As adolescentes do CASEF vêm do centro do estado, das fronteiras, da serra,
do litoral, sendo que a metade é da região metropolitana de Porto Alegre. Na ocasião da visita havia 33 adolescentes na unidade.
7.6 Bahia
Visitamos o CASE Salvador – Comunidade de Atendimento Socioeducativo
da FUNDAC, a 2ª Vara da Infância e Juventude e a Câmara Municipal de Salvador, em julho de 2011, com apoio da Plataforma Dhesca, da Regional Bahia da
Rede Feminista de Saúde e do MUSA.
A visita ao CASE Salvador foi feita em comitiva composta por Tânia Palma,
Ouvidora Externa da Defensoria Pública do Estado da Bahia, acompanhada pelo
31
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Grupo Operativo dessa ouvidoria, com representação de 34 regionais do estado.
A comitiva foi recebida por um representante do/a diretor/a geral de Atendimento Socioeducativo da FUNDAC, pelo/a diretor/a e um/a gerente administrativo/a do CASE Salvador.
Realizamos entrevista coletiva, em conjunto com a comitiva, com os/as três
gestores/as, três entrevistas individuais com garotas, duas entrevistas individuais
com profissionais da saúde, duas entrevistas individuais com operadores de direito
(juízes/as) e uma entrevista individual com um/a vereador/a de Salvador.
Na unidade feminina, na ocasião da visita, localizada em uma das alas do
CASE Salvador, havia 14 garotas cumprindo medida, 6 da internação provisória e
8 da internação, com idades de 14 a 19 anos.
7.7 Mato Grosso do Sul
Visitamos a Unidade Educacional de Internação (UNEI) Estrela do Amanhã,
e a Vara da Infância e Juventude de Campo Grande, em novembro de 2011, com
apoio do IBISS/CO.
Realizamos entrevistas individuais com três adolescentes, com um/a operador/a
de direito (juiz) e com um/a inspetor/a de ação socioeducativa, e uma entrevista
coletiva com profissionais da unidade (um/a gestor/a, duas/ois profissionais da
saúde, duas/ois da educação e dois/uas socioeducadores/as).
A UNEI Feminina Estrela do Amanhã tem capacidade para atender 16 garotas,
no dia da visita estava com sete garotas. Em média são 10, 12 garotas abrigadas na
unidade, com idade em torno de 15 anos.
8. Informações gerais sobre as garotas cumprindo
medida socioeducativa nas unidades visitadas
A
s garotas entrevistadas tinham entre 14 e 22 anos, esta havia acabado de completá-los. Das 33 garotas, uma era da semiliberdade, 7 da internação provisória e 25 estavam cumprindo medida de internação. Das 33 garotas, 3 não haviam completado o ensino médio e as demais não haviam completado o ensino
fundamental.
Entre as atividades escolares desenvolvidas nas unidades, de acordo com a fala
das garotas, havia a continuidade dos estudos interrompidos, cursos de artesanato
32
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
(pintura em tecido – pano de prato, camisa –, pintura em madeira, bordado,
crochê, biscui, bijuteria), de informática, de teatro, violão, hip-hop, aulas de arte,
de grafite, atividades esportivas (vôlei, futebol, gincana). Como atividade profissionalizante dentro das unidades as garotas citaram cursos de culinária básica,
salgados, chocolateria, vela, horta, cabelereiro, manicure e um curso de LIBRAS
– Língua Brasileira de Sinais. A única garota que relatou participar de atividades
profissionalizantes fora da unidade foi a que cumpria medida de semiliberdade –
citou curso de lapidação, educação ambiental, biblioteconomia e participação em
estágio em órgão público.
À exceção de uma garota, os cursos e a escolas das unidades foram bastante elogiados:
“Tem até mais atenção. Como somos poucas, tem mais incentivo, atenção,
porque todas nós temos mais dificuldade. Eu tinha abandonado a escola,
agora voltei, acho que até de ano eu vou passar.” (Mato Grosso do Sul)
“De um lado foi bom porque tirei bastante proveito dos cursos até agora.
A escola é boa aqui, os cursos são muito bons, fiz muitos cursos. Gostei de
cozinha, informática, que estou fazendo de novo, teatro, eu amo teatro, estamos montando uma peça.” (São Paulo)
Um aspecto negativo a se destacar diz respeito às atividades externas, realizadas
fora da unidade, que, se nos basearmos pelas falas das garotas, há poucas saídas: uma
garota na semiliberdade (já citada); algumas menções a participação em atividades
esportivas, tais como a Olimpíada da Fundação Casa; outras a idas a shopping para
assistir filme, pelo bom comportamento; alguns passeios (parques, chácaras).
Algumas referiram também encontros, atividades festivas que acontecem, vez
por outra, nas próprias unidades femininas, nos quais participam também garotos
que estão cumprindo medida socioeducativa. Nesses encontros garotas e as garotos
têm a oportunidade de conversar, e pode rolar namoro.
Algumas garotas já haviam trabalhado como garçonete, babá, empregada doméstica, agricultora, ajudante de construção civil; atividades que exigem pouca
qualificação e de baixa remuneração. Outras já haviam trabalhado para o comércio
ilegal de drogas e/ou para o comércio sexual.
Entre todas as entrevistadas, 28 estavam cumprindo medida socioeducativa de
internação pela primeira vez e 5 já haviam sido internadas, anteriormente, uma
33
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
delas com 3 reincidências por envolvimento com o comércio ilegal de drogas e
outra cumpria medida pela quinta vez.
Quanto ao tipo de ato infracional que as levou à medida restritiva de liberdade, o tráfico de drogas ou associação com o tráfico desponta como o
mais cometido, seguido de homicídio, latrocínio, roubo e sequestro. Entre os
homicídios conversamos com duas irmãs que haviam acabado de adentrar ao
sistema socioeducativo acusadas de matar o pai, que segundo elas vinha abusando sexualmente delas há vários anos, estava de olho na irmã de 8 anos, e havia
ameaçado matá-las e expulsar a mãe delas de casa. Esse caso foi levado às autoridades competentes e pedida especial atenção dada a situação envolvida no ato
infracional e o estado das garotas, ambas muito abaladas emocionalmente.
Das garotas que receberam sentença por envolvimento com o comércio ilegal
de drogas, duas declararam que o envolvimento se deu por iniciativa própria
(uma delas desde os 9 anos de idade), “para ter um dinheirinho”, “comprar alguma
coisinha”, “tirava uma média 600 reais/dia e gastava com cigarro, bebida, roupas”,
uma maneira utilizada pelas/os jovens para terem acesso a bens de consumo, e
itens para a própria sobrevivência e/ou da familia:
“Eu estava traficando drogas, crack, era eu e meu marido (...). A gente não
consumia droga, nem álcool, era traficar mesmo pra ter casa, carro, dinheiro,
viajar (...) quando engravidei ele falou da gente parar porque ‘não quero que
a gente fique preso e o nenê lá fora’, mas eu pensava muito no dinheiro, então
não deixei ele parar... ele tinha até uma oferta de trabalho de pintor, e eu
era contra, que pintor não dava dinheiro. (...). Aí ele tá preso e eu também.”
Sobre os ganhos com nesse comércio, estes variavam bastante, segundo
as entrevistadas desde R$100,00 para a primeira vez que comercializava, até
R$5.000,00 semanais:
“Eu traficava drogas, farinha, crack, eu traficava pra comprar roupa, não
era pra usar droga (...), minha mãe sempre comprou as coisas pra gente, mas
eu sempre queria mais, eu traficava sozinha, o pai do meu filho não sabia.
Eu trabalhei antes, ai comecei a traficar e minha mãe achava que eu saia pra
trabalhar (...). Por semana eu tirava 2 mil reais, não guardava, comprava
roupa, gastava com bebida, saía, não dava nada pra minhas irmãs, só dava
uns presentinhos pro meu sobrinho.”
34
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Para sustentar seu próprio consumo de drogas, três garotas declararam recorrer
ao comércio sexual para obter o dinheiro necessário.
Com respeito ao envolvimento das garotas com o “tráfico”, demos algum destaque também porque esteve muito presente nas falas de profissionais das unidades
visitadas e de juizes/as e de promotores/as entrevistadas/os, quando referiam a mudanças no perfil das garotas e garotos cumprindo medida de privação de liberdade
nos últimos anos. Uma das falas faz ressalvas quanto a essas colocações:
“A gente deve por entre aspas porque há situações bem diferentes, umas
estão com 70 kg de crack e juiz libera, outras estão ao lado de quem está
traficando e ela é internada, então não se pode generalizar, o tráfico tem que
ser visto com mais cuidado senão ela vai carregar um peso que não é de fato
dela.” (Participante de equipe)
Quanto à sexualidade, saúde reprodutiva e orientação sexual, duas garotas
declararam que ainda não haviam tido nenhuma relação sexual. As demais já
eram sexualmente ativas antes de ingressarem no sistema socioeducativo; cinco
garotas se declararam lésbicas, três bissexuais. Uma delas nos pareceu transexual,
pois se apresentava com nome social masculino e adotava identidade de gênero
masculina.
Entre as garotas entrevistadas, sete disseram que viviam com seus maridos; o
tempo da relação com o marido variou de oito meses a cinco anos. Uma das garotas vivia com a namorada.
Das garotas entrevistadas, três estavam grávidas e oito tinham pelo menos
um/a filho/a - duas delas haviam entrado grávidas no sistema socioeducativo, tiveram seus bebês e viviam com ele na unidade.
Este rápido apanhado sobre as garotas entrevistadas se aproxima da colocação
de um/a juiz/a quando discorreu sobre o perfil de garotas e garotos quem cumprem
medida socioeducativa:
“Com relação ao perfil, eu não vejo grande mudança não, continuam
sendo os meninos pobres, continuam sendo aqueles com fragilidade de apoio em
geral, muitos meninos continuam fora da escola, então as vezes o menino é até
matriculado por conta dos programas de bolsa e tal, mas eles não frequentam
aquela escola. A escola não está acessível a este adolescente, acessível que eu
falo é assim, com recursos suficientes pra ser atrativa para os adolescentes. Es35
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
pecialmente os meninos que têm envolvimento com drogas, esse não é o aluno
que é ‘bem querido’ ou bem recebido na escola. Eu não vejo mudança não, os
meninos continuam analfabetos na grande maioria das vezes.” (Juiz/a)
8.1 Aspectos do sistema socioeducativo que ferem a doutrina de
proteção integral
Garotas se queixaram da falta de ou pouca roupa que têm para usar, principalmente em unidades nas quais é obrigatório o uso de uniforme. Nesses locais, muitas vezes, os uniformes giram entre as garotas, em sistema de rodízio, e elas acabam
não tendo uma roupa pessoal, só delas, com exceção das peças íntimas:
“Os uniformes estão muito velhos, tá manchado, tá rasgado.”
“Roupas não tem à vontade, só o uniforme da casa. São três uniformes, lavo
lá dentro e estende.”
“Não existe troca de roupa todos os dias. Às vezes, passamos até três dias
com a mesma roupa. Não existe número suficiente de calcinha, dão uma calcinha e um sutiã.”
“Não tem roupa pessoal, fica três dias com a mesma roupa, depois ela é
trocada. De pessoal só calcinha e sutiã.”
“Tenho três calcinhas, uma ganhei da unidade e as outras duas de uma
amiga, a mãe dela trouxe.”
“Tenho três, quatro calcinhas e preciso de mais, menstruo direto e mancha,
sabe? A família não pode trazer, são só as roupas da fundação.”
A falta de roupas próprias repercute negativamente na auto-estima das garotas
e consequentemente no próprio processo socioeducativo, dado que contribui para
a não expressão, apagamento das individualidades. Em algumas unidades essa
situação é agravada pelo fato de as garotas não terem acesso a espelhos. Uma das
garotas entrevistadas disse que elas e as outras internas só veem o próprio rosto
quando fazem faxina no banheiro dos funcionários, que tem espelho,
36
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
“Aí a gente dá aquela olhadinha rápida, mas e só.”
“Uma fica vigiando enquanto a outra se olha no espelho. Para o funcionário
não pegar.”
As garotas entrevistadas referiram outras situações constrangedoras por que
passam no cotidiano das unidades socioeducativas, entre elas a “revista íntima”,
“Toda vez que entra na unidade, tira toda a roupa, ‘abaixa e sopra’.”
Segundo as garotas a “revista íntima” também seria realizada em familiares, inclusive em crianças, por ocasião das visitas.
Outras referiram o “baculejo” ou “pagar canguru” que consiste em ficar nua e
abaixar o corpo por três vezes seguidas, de frente e de costas, durante uma revista
para se procurar eventuais objetos escondidos em algum orifício do corpo. Sobre
essa prática as garotas disseram:
“É muito humilhante.”
“Tipo, dentro da sala de aula, se sumir um lápis, uma borracha, a sala
inteira paga canguru. Tem que tirar a roupa e agachar três vezes, pra ver se
não escondeu.”
Sobre o sumiço dos objetos a garota acrescentou:
“Aí quando vai procurar direitinho está enfiado dentro do armário, foi
colocado dentro da caixa de revistas.”
Fala de outras garotas,
“A gente paga revista todo dia, isso é ruim porque não tem tanta necessidade
de pagar tanta revista. Tira toda roupa, agacha 3 vezes de frente, 3 vezes de
costas, todo dia, quando tem aula. Sai do curso, paga revista, tem curso de
noite, paga revista. No esporte, não, mas na aula de pintura, que tem material,
paga revista. Nunca vi aparecer nada, na turma que eu vou pagar revista,
nunca vi. Já sumiu lápis, mas sempre depois aparece em carteira.”
“Sumiu ou não, todo dia tem que pagar. Tipo faz um paredão com todo
37
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
mundo. Se está menstruada, não paga, você abaixa, mostra o absorvente, daí
veste a roupa e vai.”
Algumas garotas mencionaram violências, provocações por parte de funcionários, geralmente homens, que segundo elas, agem com muito rigor:
“O que não é bom aqui são as regras, eles pegam muito no pé. Tem funcionário
que fica provocando a gente pra gente perder a cabeça. Não são todos, mas tem.”
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Os conflitos e violências demonstram urgente necessidade de revisão do regime
disciplinar, das sanções disciplinares das unidades socioeducativas, principalmente
aquelas que impliquem em “tratamento cruel, desumano e degradante, assim
como qualquer tipo de sanção coletiva”, conforme consta no subitem 8, letra b)
do item 4.2.3. Entidades de Atendimento (BRASIL, 2010, p. 37), e que encontra
respaldo no Art. 124, item V, da Secão VII do ECA, que trata da internação, ou
seja, é um direito “do adolescente privado de liberdade ... ser tratado com respeito
e dignidade” (BRASIL, 2011, p. 106).
“Alguns são muito rígidos, os homens mais que as mulheres. Muito chato,
parece que não entendem a gente.”
9. O quê o Projeto Promovendo os direitos sexuais e
reprodutivos de adolescentes em conflito com a lei encontrou
“Quando a gente fica nervosa, chuta a porta, briga com adolescente, eles
algemam a gente e levam lá pra baixo, fica o dia inteiro algemada. A gente
apanha, eles machucam a gente.”
“No domingo mesmo as meninas ficaram o dia todo formadas, sentadas na
quadra, com as pernas cruzadas.”
“Não pode conversar na hora do almoço.”
“É que eles gostam de ser rigorosos.”
“Aqui ele é o pai, todo mundo respeita ele. Ele bate, ele quer ser o que não
é aqui dentro.”
“...é muito rígido, tem gente que fica na contenção 15 dias, é ali naquele
quarto vazio, não tem nada dentro dele, é aquele quarto lá, hoje tem uma
menina ali, não sei porque. Só tem dois colchões.”
Conflitos entre socioeducadores/as e garotas foi relatado também por Assis e
Constantino (2001). Pra essas autoras, “A dificuldade dos agentes em aceitar os
revides carregados de revolta das meninas às menores frustrações é um dos pontos
mais delicados dessa relação. Dependendo do grau de sensibilidade do agente,
situações corriqueiras viram um problema institucional” (p. 209).
38
M
iriam Ventura, no artigo Saúde feminina e o pleno exercício da sexualidade e
dos direitos reprodutivos (2011, p. 310), comenta as dimensões individuais e
sociais dos direitos sexuais e reprodutivos. Em relação às primeiras, têm relevância
para este projeto as referências da autora sobre (i) o direito à privacidade e à
intimidade, e (ii) o direito à igualdade, a não ser discriminado e à diferença. Ainda
de acordo com a autora, na dimensão social encontra-se (iii) o direito à informação,
educação, aquisição de competências e demais meios e métodos para as pessoas
tomarem decisões sobre sua vida sexual e reprodutiva (incluindo o acesso a métodos contraceptivos, à assistência ginecológica e à prevenção do câncer e das DST,
aids e hepatites virais).
9.1 Direito à intimidade – a política pública da visita íntima
No Brasil a politica pública da visita íntima para adolescentes em conflito com
a lei e cumprindo medida socioeducativa de internação foi sancionada pela Lei no.
12.594, de 18/1/2012 (publicada em 19/1/2012 e retificada em 20/1/2012). Essa
lei entrou em vigor após três meses da data de publicação.
O artigo que trata exclusivamente do direito à visita íntima e os critérios de
elegibilidade a ela é o Art. 68, pelo qual “É assegurado ao adolescente casado ou
que viva, comprovadamente, em união estável o direito à visita íntima”, havendo obrigatoriedade de o visitante ser identificado e registrado pela direção do
programa de atendimento, que emitirá documento de identificação, pessoal e
intransferível, específico para a realização da visita íntima. 39
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Antes mesmo da aprovação da lei, houve gestoras/es que se inspiraram no documento do SINASE (BRASIL, 2006) para instituir a visita íntima ou manifestar
alguma intenção nesse sentido, a exemplo de Alagoas, Pernambuco, e Bahia (entre
os estados visitados).
Em Alagoas, a visita íntima estava liberada no sistema socioeducativo, segundo
um/a gestor/a, desde 2004. Nesses anos todos, somente uma garota teve acesso
ao exercício desse direito. O mesmo não ocorre em relação aos garotos. Segundo
um/a técnico/a, cerca de 40 garotos (correspondendo a 25% do total de garotos
que cumpriam medida na ocasião da visita) tinham direito à visita íntima. Quando
se perguntou o motivo de as garotas não exercerem esse direito, foi dito que:
“As meninas não recebem, assim... Elas têm direitos, o que ocorre é que
normalmente o companheiro abandona, por isso que elas não têm a visita. Nos
últimos 7 anos, nós só tivemos um caso de menina que recebeu visita íntima
na unidade. Normalmente o companheiro que ela tinha lá fora a abandona.
Quando tem companheiro fixo elas são abandonadas. Só houve um caso de
uma menina, ainda no tempo em que elas ficavam aqui no espaço destinado
aos garotos de 12 a 14 anos.”7
De acordo com o relato de um/a gestor/a,
“Nós aqui não temos um lugar específico para a visita íntima dos adolescentes
masculinos. Quem recebe visita íntima fica no alojamento, e quem recebe
a visita social, que é a visita da família, vai fazer atividade externamente,
na área de convivência, no pátio. Isso foi combinado entre os garotos e eles
dividem isso muito bem. Como cada alojamento tem dois quartos, então fica
um por quarto. É uma coisa que eles respeitam muito, a visita. Aquele que não
respeitar eles cobram depois. Então, até os próprios funcionários no período da
visita não podem olhar pra esposa de ninguém, tem que ter muito respeito. Essa
história de ‘homem pegando’ não pode, eles têm uma regra muito própria, não
pode deixar nada, cueca estendida no dia da visita, eles lavam, mas não pode
estender fora, não pode ficar à mostra. É tudo, eles são cheios de regras, assim
7
Em Porto Alegre, um/a participante da equipe técnica que havia visitado um presídio feminino com
duas salas de visita íntima referiu ter perguntado “como é que vocês conseguem, com duas salinhas só?”
ao que lhe responderam “tem semana que nem são usadas, porque os companheiros não vêm visitá-las”.
40
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
pra proteger a visita. Existe uma regra entre eles muito concreta. Se existe uma
coisa que funciona como regra na unidade é o respeito à visita íntima.”
Sobre o parecer do CNJ, criticando a visita íntima nessa unidade, no alojamento, sem local separado, o/a gestor/a comentou:
“Eu não concordo com o lugar separado porque nós tivemos uma experiência
na unidade de jovens adultos em que tinha um lugar separado, e as companheiras
se sentiam constrangidas porque era aquele local, o espaço era dividido em
quartos, tinha banheiro. Os internos iam antes para lá, preparavam o lugar
para recebê-las. Só que quando elas chegavam na unidade, o pessoal sabia
que o tempo que elas passavam lá elas estavam com o companheiro, tendo
relação com ele. E as meninas se sentiam constrangidas e reclamavam com a
equipe técnica, na época. Nesse período no qual a visita íntima se realizava
em local separado, como era um espaço único, um local especifico, tinha que
dividir o espaço entre os meninos. Isso causou constrangimento, ficava, sabe,
ficava brincadeira, ironia dos companheiros com eles, isso causou problema.
Eles reclamaram, reclamaram tanto que a gente, mesmo tendo aquele espaço,
acabou voltando para o alojamento. Eles mesmo começaram a negar o espaço.
Agora que o local da visita é no próprio alojamento, as companheiras que vêm
para a visita não reclamam porque elas ficam determinado momento, mas
depois elas saem, interagem, fica mais discreto.”
Essa experiência nas unidades masculinas foi absorvida pela Portaria No 14/11,
de 22 de Julho de 2011, da 1ª Vara da Infância e da Juventude de Alagoas. Essa
portaria regulamenta o direito à visita íntima, assegurando-o para maiores de 15
anos, desde que, em qualquer hipótese, manifeste tal intenção perante a gerência
da respectiva unidade, considerando situações tais como: comprovação de vida
marital ou com relacionamento sólido, autorização de familiares ou responsáveis.
Para maiores de 18 anos, a autorização de familiares ou responsáveis é dispensada.
A unidade deve obrigatoriamente inserir as/os internas/os cadastradas/os em
programas sistemáticos de educação sexual, fornecer preservativo, métodos anticoncepcionais, exames laboratoriais, sempre com a participação do casal e sem
prejuízo dos demais adolescentes e jovens na unidade. A visita íntima, consoante o
Art. 4 dessa portaria estadual, ocorrerá nos alojamentos, com a garantia do direito
41
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
à privacidade, sem necessidade de haver quarto separado.
Na Bahia, de acordo com um juiz/a,
“(...) em 2006 a diretora que estava na gestão da CASE CIA, inicialmente
pensou em fazer um quarto de visita íntima, o SINASE já tinha determinado
esse ponto, se falou que ia implantar, mas como se falou que teria que ter regras
(porque apesar de ser um direito do adolescente não se pode fazer de forma
desordenada) até hoje não foi implementada a visita íntima. Porque muitas
têm companheiro, muitas têm filhos; essa diretora sempre falava que teria que
falar com o juiz, que teria que ver como é que ia ser, então foi sempre esse ‘teria
teria teria’ e acabou que nunca houve.”
Em Salvador, a equipe do projeto teve acesso a um documento, de 2008.
Tratava-se de uma representação apresentada à promotora que elaborava o documento a ser enviado ao juiz, para solicitar uma série de mudanças e apresentar recomendações para a reforma do prédio. A última das propostas recomendadas, com prioridade C (a menor delas) era a construção de espaço para
encontro íntimo do adolescente, para atender a “necessidade fisiológica e afetiva dos
adolescentes que já constituíram família e garantir ao adolescente o convívio familiar”,
com base no SINASE, na Portaria do Ministério da Saúde No 340/2004 e na
Portaria Interministerial MS/SEDH/SEPM No 1.426/2004. Em Salvador, um/a
operador/a de direito declarou que,
“Se é algo que o SINASE implantou, é um direito dos adolescentes (...),
porque o direito da visita íntima é o SINASE que traz, e um direito que está
pelo SINASE você acaba postergando, deixando isso pra ser avaliado depois,
embora seja algo que deve ser tratado com a mesma deferência que os outros.”
Os avanços (ou quase) nesses três estados se fazem acompanhar por algumas
reticências que transparecem (i) na aceitação de uma demanda supostamente
baixa para a visita íntima nas unidades femininas, (ii) na baixa prioridade dada aos
direitos reprodutivos e direitos sexuais como direitos humanos, (iii) nas dificuldades
em matéria de espaço físico na unidade, argumento este que se sobrepõe aos
demais e que foi assinalado em todas as unidades visitadas, especialmente nas
femininas (nestas, funciona como impeditivo). Essas reticências merecem ser problematizadas, ao lado de outras que serão abordadas posteriormente.
42
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Sobre a demanda supostamente baixa para a visita íntima nas unidades femininas, pergunta-se que ações têm sido conduzidas de modo socialmente articulado para se reverter a assimetria de gênero nas relações entre mulheres e
homens? Análises antropológicas e sociológicas mais recentes dão conta de que
não existe uma essência do gênero feminino, de que este, assim como a própria
biologia, são construídos socialmente, consoante os interesses de alguns/algumas e
omissões de outros/as. Não é simples responder à questão do porquê as mulheres
tendem a continuar visitando seus parceiros em situação de privação de liberdade,
o mesmo não acontecendo na situação inversa. Esta é uma questão que mereceria
um estudo mais aprofundado, seja entre mulheres adultas ou jovens.
“Tem um tempo que convivo com as medidas socioeducativas e quando
é pra UNEI masculina, a tentativa pra visita íntima é mais tranquila, a
tentativa, não estou dizendo a implantação. Eles falam que os meninos precisam da visita íntima pra ficar calmos, como se as meninas não tivessem,
entende, a sexualidade é desconsiderada do ponto de vista da vida saudável.
Menino precisa de sexo, menina não precisa.” (Mato Grosso do Sul).
Nas palavras de algumas garotas internadas,
“Seria bom receber visita do namorado. Tem menina que se relaciona com
mulher por falta do namorado.” (Pará)
“Bem que eu gostaria de ter direito à visita íntima, eu queria muito ter
visita íntima, mas assim, né, eu não sei porque não tem. Eu não entendo porque não tem.” (Alagoas)
“Ninguém na unidade feminina recebe visita de namorado ou marido.
Acho que bem que elas queriam (risos), mas acho que não deixam porque somos menor.” (Pará)
Quanto à baixa prioridade dada aos direitos reprodutivos e direitos sexuais, é
fato que estes pertencem a uma “geração de direitos mais jovem”, no entanto, nem
por isso menos relevante. Muitos fenômenos que ganharam visibilidade recente –
a violência contra a mulher, a homofobia, a mortalidade e a morbidade maternas
por aborto inseguro, a expansão do HIV entre as mulheres e entre as pessoas
43
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
pertencentes à faixa etária situada no início da vida sexual e reprodutiva etc. – estão associados a fatores diversos, sociais e culturais, entre os quais se encontra a
violação dos direitos reprodutivos e direitos sexuais.
Com relação ao “espaço físico” para a visita íntima para as garotas, foi referido
como problema em todos os estados visitados. Para muitos/as profissionais e
garotas internadas, não há estrutura física para implantar visita íntima a médio ou
longo prazo. Nas palavras de algumas jovens internadas,
“Eu acho que a casa não oferece condições para ter visita íntima, olhe só
a situação, aqui são três quartos e nos três quartos mal cabem um beliche e
também aquele quarto ali é para a tranca, então aonde você ia ter?” (Alagoas)
“Não há visita íntima aqui na UIF porque, rapaz, a estrutura física daqui
não tem acesso a esse tipo de visita.” (Alagoas)
Ao se referirem ao espaço físico como imperativo para a realização/implantação
da visita íntima, o discurso de juízes/as, promotoras/es, profissionais do sistema
socioeducativo muitas vezes camufla questões muito mais sérias, tais como a invisibilidade dos direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens,
principalmente de garotas; a extensão desses direitos às relações homoafetivas; a
imobilidade para enfrentar as mudanças necessárias. No Pará,
“Não é possível implementar visita íntima com a estrutura atual. Foi
muito bom a visita do projeto para poder falar desses assuntos, para influenciar
esse olhar. Amanhã, quando eu for visitar a nova unidade masculina, já vou
observar até se existe sala para visita íntima. Nunca pensei no assunto.”
Em Salvador,
“Você tem lá quase 280 jovens, você vai aplicar a visita íntima, que até
já deveria estar sendo implantado, porque tem condições de fazer até porque o
quarto já existe, já fui nesse quartinho no lado de fora, disseram que era pra fazer
a visita íntima, mas até hoje não foi regulamentado, até porque é um assunto
difícil, falar sobre esse direito, da sexualidade, porque quando você atravessar
essa discussão, você terá que garantir ao adolescente homossexual a sua visita
íntima, não é? Você dá direito sim a ele, e como vai ser trabalhado isso? Mesmo
porque até o corpo técnico da CASE Salvador, diante de tantos problemas que
44
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
eles enfrentam, de atendimento, e ainda ter que lidar com essa situação de visita íntima que tem que ser bem preparada, você tem que trabalhar o direito
à sexualidade, a questão da... da... de trabalhar essa questão da prevenção, a
questão da gravidez, porque os meninos chegam aqui falando ‘a minha esposa,
a minha mulher’, ‘o meu filho’, então você hoje tem esse cenário, há cinco anos
atrás você não ouvia isso com tanta constância, e hoje é comum, ‘eu tenho companheira, eu já tenho filhos’ então tem esse direito, e acho que o Ministério Público tem que ter um certo empenho, já que é fiscal de toda unidade...”
Em Porto Alegre,
“Mas acho que a provocação que vocês {da ECOS} fazem é absolutamente
pertinente, é importante que o sistema comece a pensar isso, principalmente
quando a gente pensa que as futuras unidades, por conta do SINASE, vão ter
que ter espaço pra visita íntima. Vi no Espírito Santo duas unidades novinhas
em folha com espaço para visita íntima e que não acontece porque a unidade
não sabe como fazer!”
Em todos os estados, à exceção de Alagoas, quando se perguntava para o grupo
de entrevistados/as como estava a discussão na unidade sobre a política pública da
visita íntima, várias pessoas respondiam que essa discussão não existia. No Pará,
um/a juiz/a disse que “A visita íntima nunca entrou em pauta de discussão, nunca
chegamos até aí. Com a visita de vocês, o assunto pode começar a ser trabalhado”.
Acrescentou ainda que “se fosse um debate costumeiro, com certeza a defensoria pública estaria envolvida”.
Em Mato Grosso do Sul, “Dentro da unidade, não, às vezes tem algum seminário, aí tem o grupo a favor e o do contra”, disse um/a participante da equipe, que
continuou dizendo que “eu, por exemplo, nunca participei de uma discussão só sobre
isso dentro de uma UNEI, nunca participei, mas quando tem um seminário nacional,
estadual pra todo mundo da saúde, da educação, da medida socioeducativa, se joga a
questão”.
Em Porto Alegre, nas palavras de um/a operador/a de direito, “O sistema do Rio
Grande do Sul não trabalha com visita íntima, o programa estadual não contempla
isso e nenhuma das unidades tem”.
Em São Paulo, um/a participante da equipe técnica, por sua vez, reconhece
45
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
que “a gente precisa começar a tratar desse assunto, sim, nós ainda praticamente nem
engatinhando estamos, talvez este agora seja o momento da gente começar a pensar,
porque não é um assunto fácil de lidar”.
Resistências de alguns profissionais ao direito à visita íntima, ainda que esta seja
uma política pública, apareceram através de relatos enfáticos, alguns com visões
conservadoras – mesmo preconceituosas – da sexualidade na adolescência, em especial no caso de garotas cumprindo medida. Trouxeram também a perspectiva
prisional, do discurso sanitarista preventista. Esses relatos são úteis para fornecer
pontos para reflexões sobre como e que itinerários percorrer em direção ao respeito
aos direitos sexuais, particularmente no que se refere ao exercício da sexualidade
na adolescência,
“A menina está cumprindo medida porque é bandida, é vagabunda.”
“Como é que a menina vai receber a visita do namorado se ela está cumprindo medida?” (Pará)
“Não acho que se esteja preparada, ainda mais numa casa feminina, para
se implantar a visita íntima; não vai ter como controlar nem obrigar, por
exemplo, o uso de preservativo, aquela coisa toda, porque ninguém vai ficar
junto olhando.” (São Paulo)
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
seria a muito longo prazo, primeiro devia se investir mais nesse sentido que
falei porque senão a coisa vai se perder, e ao invés da gente solucionar um problema a gente criaria mais um.” (São Paulo)
“Não comporta visita íntima dentro da unidade, não é o lugar, não é o
ambiente. A menina tem que sair da unidade, tem que passar o fim de semana
em casa.” (Mato Grosso do Sul)
“Sim, têm uma vida sexual ativa, mas é totalmente conturbada, como se
pusessem a carroça na frente dos bois, elas entram aqui sem nenhum tipo de
educação, principalmente em relação a essa vida sexual ativa. Aqui elas vão
começar a ser educadas e garantir todos os direitos que são possíveis, mas essas
questões ainda não são possíveis pra nós. É uma questão a se pensar? É uma
questão a se pensar, mas neste momento ainda, pela estrutura que estamos
vivenciando no estado...” (Mato Grosso do Sul)
“E agora com a experiência que a gente tem aqui, a visita íntima eu
particularmente sou contra, mas o trabalho em cima das adolescentes com
educação sexual, isso sim eu acho que dá pra ter um aprofundamento mais
sério, uma discussão em cima disso.” (Mato Grosso do Sul)
“As garotas engravidam, precisa ver bem com o juiz.” (Pernambuco)
“Ai, a gente vai ter que ficar ouvindo gemidos?” (Mato Grosso do Sul)
“Eu acho uma situação bem complicada a instituição de uma visita íntima
nas casas femininas da FUNASE... Se a gente acha que não deveria ocorrer
uma relação com uma idade tão baixa, pela idade, o organismo do ponto de
vista ginecológico não está amadurecido ainda, seria um contra-senso a gente
permitir uma visita íntima.” (Pernambuco)
“O índice de reprodução no caso da maternidade na adolescência está
muito alto e as meninas não estão tendo de forma nenhuma consciência disso,
então acabam gerando novas crianças que vão receber a mesma educação que
elas e vão ... praticamente ser futuras ... muitas delas, umas vão dar sorte,
muitas delas vão ser futuras infratoras, por que? Pela falta da orientação, pela
falta da estrutura familiar. (...) eu acho que pode vir a ter esse direito, mas
46
9.1.1 Caminhos possíveis, porém difíceis
A Lei No 12.594/2012 contém várias limitações, o que não elimina o fato de que
ela indica alguns caminhos possíveis para se começar a respeitar e a implementar
o direito da visita íntima de adolescentes cumprindo medida socioeducativa de
internação como uma politica pública.
Uma das limitações da lei refere-se à comprovação da união estável, mas a lei
não fala como a comprovação deve ser feita, abrindo brechas para interpretações
mais restritivas tais como as que o Estado de São Paulo estaria adotando, segundo
matéria publicada no Caderno Cotidiano, página C3, do jornal Folha de São
Paulo de 9 de maio de 2012.
Na matéria intitulada “São Paulo define regras para jovem infrator ter visi47
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
ta íntima”, a presidente da Fundação Casa afirmou que “A lei [federal] fala casamento ou união estável comprovada e nós entendemos que essa união deve
ser provada nos termos da lei”. Ainda na mesma matéria, as críticas vindas do
desembargador da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça Paulista e do coordenador da Infância e da Juventude da Defensoria Publica apontam que as
exigências inviabilizam o benefício. O segundo se pergunta: “Que adolescente tem
contrato de união estável? É uma parte irrisória”. O desembargador sugere que “As
exigências deveriam ser entrevistas e palestras com educadores, assistentes sociais e
psicólogos, falando das cautelas”. Ele defende inclusive a medida para namorados.
Um aspecto importante para a implementação da política pública da visita íntima, diz respeito à formação de recursos humanos, conforme disposto no item IV
do Art. 11 do Capítulo IV da Lei No 12.594/2012. Tal aspecto também foi citado
praticamente em todas as unidades visitadas, ainda que apontassem enormes
dificuldades para se vencer os preconceitos de boa parte do corpo funcional,
“Não adianta falar da visita íntima para adolescentes, tem que chegar
antes ao corpo de funcionários.” (Mato Grosso do Sul)
“(...) o agente educador não está interessado nesse tipo de formação, ele não
dá importância para essas prioridades, parece que ele pensa que o trabalho aqui
é só um trabalho mecânico, trazer adolescente, levar adolescente, mas receber
informações importantes como as dos direitos reprodutivos e direitos sexuais, da
visita íntima, eles não acham importante.” (Mato Grosso do Sul)
“Mas, pensando no futuro, quando a visita íntima for implantada,
veremos o tamanho do problema. Não teremos uma solução a médio/longo
prazo, até porque temos a questão dos funcionários no geral. Parte da gente,
dos funcionários, tem pessoas que não estão capacitadas em sexualidade do
adolescente e não vão mudar seu pensamento. Elas vão se aposentar e vão rir
do menino que foi exposto sexualmente e não vão admitir o uso da camisinha.”
(Rio Grande do Sul)
Quanto às reflexões sobre “como fazer” para inserir a visita íntima nos ambientes
de atendimento socioeducativo fechado, um/a operador/a de direito disse que
as questões todas relativas ao sistema são bastante complexas, pois envolvem o
48
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
governo do estado, o poder judiciário, a família das garotas e que existe pouca
interlocução entre esses sistemas que deveriam estar juntos. Ele/a considera que
o problema deveria ser colocado e chamados todos os elementos para conversar,
tendo em vista a definição de uma política de Estado e que deveriam ser pensadas
estratégias que cheguem a todo o sistema, principalmente aos juízes, promotores,
defensores públicos - para que os direitos sejam garantidos de fato.
Nessa direção, pressupõem-se constantes diálogos “multiprofissionais” (NETO, 2011) e com a participação das/os adolescentes e jovens em situação de internação e internação provisória. Esses diálogos deveriam permitir que se supere o
silêncio sobre a sexualidade na adolescência em assuntos que não se restrinjam à
temática materno-infantil e à da doença.
9.1.2 Reflexos da visita íntima no dia-a-dia
Em Alagoas, o/a gestor/a comentou que “os meninos que não recebem visita
íntima têm um comportamento mais agressivo. A visita facilita o trabalho socio-educativo, o dia da visita é um dia esperado” .
A fala a seguir, apesar de retratar a manutenção de estereótipos de gênero por
parte do/a profissional que a enunciou, traz outros aspectos positivos da visita
íntima, que repercutem até mesmo na própria ocupação do espaço, gerando novos
sentidos em relação aos cuidados consigo mesmo, com o outro, com o ambiente:
“Na sexta-feira eles estão parecendo todos donas de casa: vassoura, balde, tudo,
limpam, lavam lençol, lavam tudo que tiver pra deixar tudo bem arrumado e
perfumado. Eles fazem faxina no alojamento, eles limpam tudo, eles preparam
a casa e se preparam para receber a companheira. É curioso, mas é muito
interessante.”
Em Salvador, para um/a operador/a de direito,
“É importante a visita íntima porque se terá algo mais integral, porque se você
trabalha bem a sexualidade você vai ter uma medida melhor cumprida porque
o ser humano vai estar mais equilibrado no sentido da sua satisfação com você
mesmo, porque realmente ter uma companheira que mora em Itabuna e que
quando vem não tem o direito à visita íntima, é algo que... e o presídio já
garante há muito tempo [para pessoas adultas, homens e mulheres].”
49
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
9.2 Direito à igualdade, a não ser discriminado e à diferença – Homoafetividade
O estudo ora relatado encontrou nas unidades femininas visitadas diversas situações relativas ao tema da não discriminação por orientação sexual homoafetiva,
referida no Art. 35, inciso VIII, da Lei 12.594/2012. Esse artigo versa sobre a
não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou
pertencimento a qualquer minoria ou status.
O termo “orientação sexual” adotado neste documento baseia-se na nomenclatura difundida pelo movimento social de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais
e travestis – LGBT. Parte-se do suposto de que são reconhecidos três tipos de
orientação sexual – a heterossexual, a homossexual e a bissexual – que não são consideradas como “opção sexual” uma vez que independem de uma escolha racional
que a noção de “opção” contém.
É de ressaltar que, no sentido aqui adotado, o termo “orientação sexual” não
é sinônimo de “educação sexual”, ou “educação em sexualidade”, como acontece
em diversas publicações e discursos, inclusive de algumas pessoas entrevistadas no
âmbito deste projeto. Por exemplo, no documento do SINASE (BRASIL, 2006),
no Eixo 6.3.6 – Abordagem familiar e comunitária, especificamente no parâmetro
da gestão pedagógica ao atendimento socioeducativo, o termo é utilizado no sentido de “educação sexual / em sexualidade” (p.75), e não no sentido adotado pela
comunidade LGBT, por sinal referido em diversas páginas anteriores nessa mesma
publicação8.
Cumpre lembrar, ainda, que se recorre à noção de homoafetividade de modo a
incluir a dimensão dos sentimentos que o discurso dominante e normalizador da
sexualidade costuma associar apenas à orientação sexual heterossexual como uma
espécie de artifício que concorre para desvalorizar, desrespeitar e mesmo condenar
as orientações sexuais homo e bissexuais.
Nas relações sociais cotidianas, é raro se ouvir perguntas sobre a “causa” da
heterossexualidade, ao contrário do que costuma ocorrer quando a questão é a
homossexualidade. Os esforços para tentar “explicar de onde vem”, qual a “causa”
da homossexualidade, se potencializam em instituições de internação, tal qual se
percebe nas entrevistas realizadas ao longo do estudo.
As visões que, todavia, carregam valores conservadores quanto às relações de
8 Precisamente pp. 26, 55, 60, 63, 68 e 73.
50
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
gênero se refletem em práticas discriminatórias quando o assunto são as relações
homoafetivas entre as adolescentes e jovens com medida de internação ou internação provisória.
No Brasil, ainda é intensa a fobia a pessoas da comunidade LGBT (lésbicas,
gays, bissexuais, travestis e transexuais) ou suspeitas de pertencer a ela, mesmo
com todas as conquistas já alcançadas em matéria de direitos humanos. Portanto,
não causa espanto encontrar, no sistema socioeducativo, entre profissionais e adolescentes e jovens, atitudes e práticas que não respeitam outra orientação sexual
que não a imposta pela norma heterossexual dominante.
Para o conjunto de profissionais que deram entrevistas, as unidades não possuem uma política de como abordar a homoafetividade. Entretanto, a omissão
é, em si, uma política que, aliás, pode repercutir no tempo de permanência na
unidade. Embora as e os profissionais que participaram do estudo tenham dito
que respeitam a orientação homoafetiva, reconhecem a dificuldade de lidar com
situações conflituosas cuja emergência atribuem à homossexualidade.
Em todos os estados, existem resistências quanto a relacionamentos homoafetivos entre garotas. Entretanto, foram encontradas iniciativas que procuram
lidar melhor com a questão, para respeitar os ditames legais estabelecidos no
SINASE, de um lado, e de outro o enfrentamento de seus próprios preconceitos
diante das recentes conquistas no campo dos direitos das pessoas LGBT.
De acordo com as falas de profissionais e de juizes/as e promotores/as, ainda
não se dispõe de estratégias e diretrizes que orientem o “como fazer” diante de situações de homoafetividade nas unidades socioeducativas. Em um dos estados,
diante do preconceito por parte de funcionários/as, decidiu-se começar a “debater,
trabalhar a questão” trazendo pessoas da área dos direitos humanos LGBT para
dialogar com a equipe técnica.
Um/a gestor/a comentou um caso, de funcionário que chegou a ser suspenso por
ter destratado um adolescente internado na unidade masculina, declaradamente
de orientação homoafetiva. O funcionário não foi demitido porque “ele reconheceu
o erro e pediu desculpas ao menino”.
“Então a gente tem trabalhado no sentido de coibir e também de orientar,
buscar orientar o pessoal no tratamento com os meninos, de saber dar a liberdade que eles têm que ter.” (Bahia)
51
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Os/as profissionais sustentam também a necessidade de “trabalhar” com as garotas porque, segundo eles/as, as relações homoafetivas são geradoras de brigas,
discórdias devido ao ciúme, e acreditam que se não intervirem as garotas acabam
“fazendo loucura”. Nessas situações, participantes da equipe técnica de uma unidade, procuram “conversar, aconselhar” as garotas, pedindo-lhes para que não participem de brigas e para ficarem atentas quanto às situações que sinalizem no sentido
da parceira/namorada “estar tirando algum proveito da situação”, como por exemplo,
fazer a garota executar tarefas em seu lugar - lavar roupas, limpar banheiro, etc:
“(...) não fossem as brigas e os ciúmes ... porque elas são passionais demais,
extremamente possessivas ... nós não teríamos problema.” (São Paulo)
“(...) elas fazem coisas muito malucas, por causa do ciúme, essa dor do ciúme, temos que ajudar ela a suportar essa dor, porque elas ficam cegas, falam
‘eu furo teus olhos, você tem que olhar pra mim e não pra outra porque eu sou
tua mulher’.” (São Paulo)
“Elas se apaixonam e aí ficam com ciúmes e, às vezes, a gente tem que
separar de quarto por conta do ciúme.” (Pernambuco).
“(...) elas acabam se violentando, são violências sérias, então nosso problema
é a garantia da integridade delas.” (São Paulo)
Sobre os conflitos associados ao ciúme nas relações homoafetivas, as garotas
comentaram que acontecem, no entanto, relativizaram esses casos:
“Às vezes sai briga por ciúme, mas é muito, muito raro, é uma, duas num
ano só, muito raro.” (São Paulo)
“Tem brigas por outras coisas, não é tanto por isso, é muito raro.” (São Paulo)
“Tem briga sim. A partir momento que você vive com mais pessoas, tem
desentendimento, sim.” (Mato Grosso do Sul)
“Briga porque não se dá bem com a menina do quarto, ou porque vê que
a outra tá ciscando no terreno dela, ou por causa de funcionário. Briga feia é
difícil.” (São Paulo)
52
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
“Não tem briga, tem muita discussão. Mas briga de se pegar uma com a
outra, pelo tempo que estou aqui nunca vi, não.” (Mato Grosso do Sul)
No geral, as equipes técnicas das unidades disseram que as relações homoafetivas
nesses estabelecimentos são tratadas com “muito respeito”. Segundo uma das equipes,
as garotas respeitam as restrições impostas quanto às manifestações homoafetivas não se beijarem, abraçarem, etc durante o dia, nos locais de circulação:
“Quando elas descobrem, chamam a gente e orientam para que a gente
respeite. Não vão obrigar a gente a não fazer, mas devemos respeitar as pessoas
que trabalham aqui.” (Garota cumprindo medida)
“Eu costumo ser bastante assediada pelas meninas, mas no momento estou
sossegada. Quando dá briga, os funcionários falam que é patifaria, sapataria,
é um bando de piva (quem fica com homem e com mulher, lá fora ficava com
homem aqui com mulher). Nem todos, mas eles acham que se liberar isso aqui
vai virar uma bagunça, não é bem assim, tem um respeito.” (Garota cumprindo medida)
No entanto, há falas de garotas que indicam não se tratar apenas de “respeitar
funcionários”, mas também de as relações homoafetivas ou suspeitas de, serem vigiadas, controladas, proibidas:
“Eu busco ser discreta, não quero ficar mais tempo aqui dentro.”
“Vigiam muito na aula, no curso, o que estão conversando.”
“Tem menina que vai orar e o funcionário separa as meninas controlando
as garotas só de estar de mão dada.”
Algumas equipes técnicas costumam pedir “ajuda” para as mães das garotas
para lidar com as manifestações homoafetivas. Nesses casos, recomendam que a
mãe “Converse com a sua filha” e fazem a mesma orientação para a garota - “Converse com a sua mãe”. Segundo uma das equipes o impacto para a mãe pode ser
muito grande:
“Tem mãe que saiu de lá aos prantos.”
53
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
“Tem muita mãe aqui que fica abismada quando toma conhecimento que
a filha está enveredando por este caminho.”
Perguntamos se tal atitude não seria desrespeitosa com a garota, pois ela estaria
sendo pressionada a revelar uma situação que talvez ela preferisse não contar. Uma
das equipes técnicas respondeu que tal medida se faz necessária porque as garotas
aparecem com marcas roxas nos pescoços e a família/mãe da garota poder achar
que tais marcas tenham resultado de violência praticada por socioeducadora/r, e
nesse caso querer processar a unidade:
“As mães quando vêm aqui e vêem as meninas todas cheias de roxo pelo
pescoço, dos chupões durante a noite, e a mãe vem dizer que a menina foi espancada por um agente? Como é que a gente pode fazer?” (Pernambuco)
“Você pode ter o seu namoro, ela pode se apaixonar por pessoa em qualquer
lugar, mas tem a parte física, elas se arrranham, dão chupões, ficam com
manchas no corpo e ai a gente conversa: vamos falar com seus pais, porque eles
vão chegar aqui e ver isso, e qual a justificativa que a gente vai dar? E aí para
esconderem da família dizem que foi um ASE (agente socioeducativo) que fez
isso.” (Pernambuco)
Outra alegou que esses relacionamentos poderiam “chocar” as famílias, as
mães, principalmente de garotas “do interior” e impactar no retorno das garotas
para suas casas,
“A menina que veio pra cá tinha namoradas, namoradas (acentuou as
letras as), a mãe vai vir e ela vai morar com a mãe. Como é que esta mãe está
sendo preparada para conviver com as namoradaaaassss, porque ela vai voltar
a morar na casa da mãe e não vai poder conviver com as namoradaaasss,
ela vai ter que ter namorado, então, em que medida isso também pesa nesse
desligamento dessa menina.” (Mato Grosso do Sul)
Interrompendo a fala anterior, um/a profissional ponderou: “já teve caso de menina que teve relacionamento homossexual e a gente perguntou para a mãe se ela tinha
conhecimento. A mãe não sabia e ela não teve aquele pasmo ‘ai, minha filha’. Não, ela
escutou, só houve uma crítica ao homossexualismo (sic)”. Outra equipe técnica citou
54
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
casos de garotas que assumem a relação homoafetiva para a família – ela fala para a
mãe que está apaixonada, apresenta a namorada para a mãe no dia de visita.
As situações que envolvem comportamentos homoafetivos, supostos ou concretos, têm provocado reações/medidas das mais variadas, desde inabilidade/não
saber lidar com a situação, como “tem pessoas que tapam os olhos a isso e isso é
muito difícil de ser trabalhado”, a medidas severas de punição por conta das regras
vigentes, “em especial as que dizem respeito às relações homoafetivas”, sendo proibido
qualquer tipo de contato físico, incluso qualquer manifestação de carinho:
“Não pode ter contato fisico, não pode andar de mãos dadas, não pode beijar.” (Garota cumprindo medida)
“Não {rola alguma coisa entre as meninas}, porque não pode, é uma das
regras, é muito severo, principalmente.” (Garota cumprindo medida)
“No banheiro também, não pode tocar uma na outra, aqui é muito severo
em relação a isso, não pode fazer nenhum carinho, nem um abraço.” (Garota
cumprindo medida)
“E uma determinada menina acabou sendo punida com uma advertência
e a comissão de disciplina deve ter comunicado o judiciário, porque ela teria
entregue um bilhete de uma adolescente pra outra, ela foi o correio e este bilhete
era um bilhete com uma declaração homoafetiva. E a unidade não conseguiu
lidar com isso.” (Juiz/a)
“Temos que lembrar que estamos no sistema de segurança o tempo todo.”
(Profissional do sistema socioeducativo)
“Não existe perseguição, existe ‘um olhar mais atento com meninas atrevidas’.” (Profissional do sistema socioeducativo)
Sobre a rigidez adotada pelo sistema em relação a relacionamentos homo-afetivos, garotas comentaram:
“É difícil, é raro, ter alguém na contenção, só quando as gurias brigam ou quando
acontece de uma guria ficar com a outra, tu fica ali pra pensar bem no que fez.”
55
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Quando se sabe que as meninas estão ficando, logo elas são separadas. Eu
conheço dois casos, um deles teve que ser escondido. Eu mesma faria escondido
para não ir pra contenção.”
“Já namorei (meninas), mas é uma ilusão, não é isso que eu gosto. É arriscado, fui punida, fui arrastada pra contenção.”
Essa rigidez pode até mesmo repercutir a maior no tempo de permanência das
adolescentes no sistema socioeducativo,
“Nessa situação, recebemos advertência, assinamos um papel que ganha
mais três meses de casa.” (Garota cumprindo medida)
“Já fiquei com umas aqui, mas se a gente se envolve muito acabo arrastando
minha caminhada.” (Garota cumprindo medida)
O problema da repercussão na duração da pena devido aos relacionamentos
homoafetivos foi analisado por Natália Padovani (2010) na pesquisa que realizou
na Penitenciária Feminina da Capital. Seu estudo versou sobre as falas do poder e
do prazer sexual, e ela afirma que “as consequência do flagrante desse ‘desrespeito’
sempre foram o castigo e as perdas dos benefícios como visita íntima, escola e trabalho, os quais permitem que as presas obtenham a liberdade mais rapidamente”
(PADOVANI, 2010, p.101).
Nesse mesmo texto, a pesquisadora comenta outra situação que foi encontrada
pelo projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes em conflito
com a lei, qual seja, a de caracterizar a homoafetividade como consequência do
confinamento. A mais frequente explicação fornecida nas entrevistas com as
equipes técnicas, gestores/as, magistradas/os e garotas é a de que as relações homoafetivas ocorrem, menos por desejo e mais pela carência, tentando inclusive
“dessexualizar” essas relações. Essa visão, de acordo com Padovani, “significa
compactuar com o discurso de serem as mulheres menos desejantes sexualmente
que os homens; mais do que isso, significa olhar para a prisão [no nosso caso, as
unidades] através da díade dos gêneros derivada, direta e simplesmente, do sexo
anatômico” (idem, p. 103).
A propósito do uso do termo “sapatão”, “sapataria”, Padovani recorre a Facchini
56
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
para explicar que, embora a origem do termo remonte a um passado, quando foi
imposto pelas falas da polícia e das guardas das unidades penais femininas (FACHINNI apud PADOVANI, idem, p. 104), a identidade “sapatão”, instituída
pelo poder, “foi cooptada e subvertida pelo discurso das internas. Esta subversão,
contudo, terminou por atualizar o mesmo discurso heteronormativo que serviu
para patologizar as práticas homossexuais” (PADOVANI, 2008, p. 148).
São muitas as adolescentes e jovens entrevistadas que utilizam esses termos –
e outros com o mesmo significado. Concordando com Padovani, mas também
buscando referências em Foucault (1976), as falas dessas garotas e de membros
das equipes técnicas reforçam o discurso dominante da heterossexualidade e
heteronormatividade.
Sobre como as questões homoafetivas são tratadas, algumas unidades têm mais
dificuldades que outras. Houve até mesmo afirmações corajosas, que assumiram a
existência do preconceito entre os/as profissionais da unidade,
“A visão preconceituosa é mais da gente do que da família.” (Mato Grosso do Sul)
“Eu acho delicado nesse sentido, cada pessoa tem sua experiência pessoal, cada
funcionário, cada menina tem sua experiência pessoal e cada pessoa tem seus
preconceitos em relação a isto ou não.” (Rio Grande do Sul)
Os pontos a seguir, extraídos de falas de profissionais e operadores/as de direito,
de diferentes estados, atestam o preconceito e o quanto é enorme a dificuldade
de se trabalhar questões da sexualidade e da homoafetividade em unidades tanto
masculinas como femininas, ainda que haja um desejo/necessidade de se lidar
com elas:
“Eles têm hoje demandas mais primárias do que essa {sexualidade}.”
(Pernambuco)
“Eu já estive em ‘n’ reuniões como esta aqui e ah! fulano de tal tá encoxando o outro, tá manipulando o outro e daí o que gente faz? A gente só tem
uma única coisa a fazer, se a gente não for trabalhar com isso, é separá-los individualmente para garantir.” (Mato Grosso do Sul)
“Neste momento eles não têm gente e nem fôlego técnico pra poder melhorar
57
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
esse olhar. A dificuldade é tanto de trabalhar com o grupo de adolescentes
quanto o grupo funcional.” (Pernambuco)
“Até que ponto tem situações que são disciplinares e até que ponto essas
situações não são disciplinares e é isso que a gente tem visto aqui neste momento.” (Rio Grande do Sul)
Encontramos inciativas que buscam melhor compreender o assunto das relações homoafetivas entre as garotas. Algumas entendem que tal questão vai muito
além do estabelecimento de regras disciplinares,
“Para se discutir toda essa questão da homossexualidade, como lidar com
isso, como isso vai ser inserido no programa, como é que a regra vai ser estabelecida, em que parâmetros ela vai ser estabelecida, porque isso não passou
desconhecido.” (Juiz/a)
“Nós nos preocupamos enquanto judiciário e a unidade também se preocupou, não exclusivamente no sentido de que haja uma repressão à conduta,
mas como saber lidar com isso. Se as regras são consideradas rígidas e algumas
efetivamente são, essa é uma discussão que tem sido feita do Juizado com a
própria unidade.” (Juiz/a)
“Isso é uma coisa difícil, então, neste momento a gente tem tentado discutir isso, trazer nas reuniões técnico-administrativas, que tem a direção, a
equipe técnica e os chefes de equipe. Tem-se tentado também nas reuniões de
microequipe que acontecem mensalmente, são os grupos de cada plantão. As
reuniões existem em todos os níveis, em algum momento algum funcionário vai
participar de alguma reunião e esse é um assunto que está em pauta, inclusive
porque teve situações que foram difíceis de lidar e isso teve muito a ver, sim,
com o entendimento diverso de várias pessoas, de vários funcionários na casa.”
(Participante da equipe técnica)
Um/a participante de uma das equipes técnicas levantou a importância da visão de fora, da atuação das pessoas que trabalham com sexualidade “para que nos
ajudem, isso tem que vir de fora. Não adianta eu, fulano/a, falar porque eu vou ter
problemas e a gente não consegue”.
58
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
No que diz respeito à visita íntima para relacionamentos homoafetivos, em
Alagoas, à pergunta sobre se garotos gays e garotas lésbicas também têm direito a
visita íntima, o/a gestor/a do sistema respondeu:
“Nunca houve solicitação da parte de jovens gays ... não tem também,
normalmente, um companheiro fixo que venha. Eu acredito que a gente nunca teve um requerimento, uma solicitação para uma visita, mas, no meu entendimento, se houver esse requerimento vai ser encarado naturalmente. Pelo
menos essa é minha visão técnica, é a minha visão que acho que a equipe deve
adotar, é o que eu coloco como orientação para a equipe.”
Um aspecto que julgamos importante destacar diz respeito ao fato de qualquer
manifestação afetiva, de carinho ser interpretada como homoafetividade:
“Não pode tocar uma na outra, aqui é muito severo em relação a isso, não
pode fazer nenhum carinho, nem um abraço.” (Garota cumprindo medida)
“Eu tô com uma menina aqui só trocando umas idéias e eles começam a
falar, a querer separar achando que vai acontecer alguma coisa a mais.” (Garota cumprindo medida)
É como se “o fantasma do ‘homossexualismo’ - presente em grande parte do
sistema socioeducativo” ou como colocam Assis e Constantino (2001), “Para muitas, porém, é a única maneira de continuar interagindo no plano da afetividade”
(p. 11). As autoras acrescentam que esse espaço “é o espaço temido das relações
homossexuais, com os quais eles não sabem como lidar” (p.213), referindo-se a
técnicos/as e funcionários/as.
Entendemos que manifestações de carinho, de amizade, fazem parte de um
processo de (re)socialização, ainda mais em se tratando de adolescentes - em
plena fase de transformações corporais, hormonais e vivenciando processo de
conhecimentos, afirmações -, com trajetórias de carências e abandono, muitas
vezes sem referências de carinho, afeto, apoio familiar, por si só constituem condições favoráveis a ocorrência de manifestações afetivas, independentemente da
homossexualidade.
59
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
9.3 Direito à informação sobre métodos contraceptivos, à prevenção do
câncer e das DST, AIDS e Hepatites Virais e à assistência ginecológica
A publicação intitulada Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo SINASE, lançada em 2006 pela Presidência da República/Secretaria Especial dos
Direitos Humanos e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), menciona elementos dos direitos reprodutivos e direitos sexuais logo no início do Capítulo 3, sobre Princípios e Marco Legal do Sistema
de Atendimento Socioeducativo, ao fazer referência à “Liberdade, solidariedade,
justiça social, honestidade, paz, responsabilidade e respeito à diversidade cultural,
religiosa, étnico-racial, de gênero e orientação sexual [como] os valores norteadores da construção coletiva dos direitos e responsabilidades” (SINASE, p. 25).
Volta a tratar do tema no tópico das diretrizes pedagógicas do atendimento socioeducativo, enunciando que as “questões da diversidade cultural, da igualdade
étnico-racial, de gênero, de orientação sexual deverão compor os fundamentos
teórico-metodológicos do projeto pedagógico dos programas de atendimento socioeducativo; sendo necessário discutir, conceituar e desenvolver metodologias
que promovam a inclusão desses temas, interligando-os às ações de promoção de
saúde, educação, cultura, profissionalização e cidadania na execução das medidas
socioeducativas, possibilitando práticas mais tolerantes e inclusivas” (idem, p. 49).
A Lei 12.594 de 18 de janeiro de 2012 que institui o SINASE regulamenta
também a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional. O Art. 60, diretriz IV, faz referência à “disponibilização de
ações de atenção à saúde sexual e reprodutiva e à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis” como uma das diretrizes da atenção integral à saúde do adolescente no Sistema de Atendimento Socioeducativo. O mesmo artigo, diretriz
VI, trata da “capacitação das equipes de saúde e dos profissionais das entidades de
atendimento, bem como daqueles que atuam nas unidades de saúde de referência
voltadas às especificidades de saúde dessa população e de suas famílias”.
Apesar de manter uma redação genérica, não há dúvida de que a Lei 12.594,
Art. 60, diretrizes IV e VI, constitui um avanço em relação ao ECA, cujo texto
não traz qualquer menção à saúde sexual e reprodutiva (MATTAR, 2008). Em
seu artigo Exercício da Sexualidade por Adolescentes em Ambientes de Privação de Liberdade, Laura Davis Mattar pontua que “o ECA nada dispõe sobre sexualidade,
paternidade ou maternidade” (p. 70). Em nota de rodapé, Mattar indigna-se e
60
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
afirma que “é grave o fato de os jovens em privação de liberdade não terem previsão de exercício da sexualidade ou reprodução, mas pior do que isso é o ECA
negligenciar de modo genérico a sexualidade e a reprodução de adolescentes”.
Há que se reconhecer a dimensão histórica dos direitos humanos em geral e do
ECA em particular. Nas palavras de Wanderlino Nogueira Neto (2010), no artigo
Garantia de direitos, controle social e políticas de atendimento integral da criança e do
adolescente: marcos conceituais e normativos dos direitos humanos, “à época da edição
do Estatuto, a reflexão sistemática sobre ‘instrumentos e mecanismos de promoção e
proteção dos Direitos Humanos’ não tinha alcançado o alto nível que alcançou nos
dias de hoje, no Brasil: intuía-se a necessidade de se ‘atender direitos’ (sic – ECA),
num esforço para se superar o velho paradigma do ‘atendimento de necessidades’,
pelo novo paradigma da ‘garantia de direitos’. Em verdade, a própria discussão
sobre a promoção e proteção dos Direitos Humanos dos cidadãos em geral, como
mecanismo de efetivação e como política de Estado, ainda era incipiente” (NETO,
2010, p. 41) .
Se a Lei no 12.594 representa, em comparação ao ECA, um avanço no tema do
direito à saúde reprodutiva e saúde sexual, ela pode ser interpretada um retrocesso
em comparação ao documento SINASE (BRASIL, 2006), pelo fato de omitir o
termo “direitos reprodutivos e direitos sexuais”, nomeando apenas a saúde sexual
e reprodutiva.
Diante da pouca especificidade no enunciado da diretriz IV do artigo 60,
“disponibilização de ações de atenção à saúde sexual e reprodutiva e à prevenção
de doenças sexualmente transmissíveis”, recorre-se à Portaria no 340, de 14 de
julho de 2004 e ao SINASE, publicação de 2006, para associar essa diretriz a
ações de educação em saúde sexual e reprodutiva e ações de prevenção das doenças
sexualmente transmissíveis (DST).
Ao regulamentar as ações de Saúde, a Portaria no 340 identifica as ações de
assistência à saúde sexual e saúde reprodutiva, especificando que aquelas direcionadas a adolescentes de ambos sexos devem “a) desenvolver práticas educativas
que abordem o planejamento familiar, a gravidez na adolescência, a paternidade/
maternidade responsável, a contracepção, e as Doenças Sexualmente Transmissíveis
- DST e Aids; b) distribuir preservativos; e c) orientar quanto aos direitos sexuais e
reprodutivos”.
No eixo-saúde dos parâmetros socioeducativos do SINASE, no item 6.3.5.1.,
61
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
fala-se da necessidade de “desenvolver práticas educativas que promovam a saúde sexual e saúde reprodutiva dos adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa e os seus parceiros, favorecendo a vivência saudável e de forma
responsável e segura abordando temas como: planejamento familiar, orientação
sexual, gravidez, paternidade, maternidade responsável, contracepção, doenças sexualmente transmissíveis – DST/Aids e orientação quanto aos direitos sexuais e
direitos reprodutivos” (BRASIL, 2006, p. 62).
9.3.1 Ações de educação em saúde sexual e reprodutiva
Em Pernambuco, um/a profissional da saúde disse que realiza palestras em
grupo para as garotas, traz moldes de vulva para mostrar, aborda a questão da
anatomia, da higiene, a questão dos métodos contraceptivos, como evitar doenças.
A frequência das palestras está associada a determinadas situações vivenciadas nas
unidades, por exemplo, na “época do auge da epidemia de gripe H1N1, época da
dengue, quando há casos de menina com alguma doença mais séria, tipo HIV”. Nestas
palestras são tiradas as dúvidas que as garotas trazem, até porque “A maioria não
tem noção mesmo de higiene, como fazer higiene após a evacuação. A gente ensina
como é a vagina.” (Profissional da saúde).
Do ponto de vista de uma garota entrevistada que está há um ano na internação,
ao ser indagada sobre com quem conversa sobre sexualidade na unidade, sua
resposta foi “com ninguém”; e sobre atividades relacionadas à educação sexual, sexualidade, prevenção, respondeu: “De vez em quando vem grupo de agente de saúde,
as tias conversando com a gente ficam dizendo que precisa se prevenir.”
Em São Paulo, de acordo com um/a agente educador/a, as garotas também são
informadas9 sobre métodos contraceptivos, inclusive a contracepção de emergência
e a injeção: “perguntam se a contracepção de emergência é aborto, então explico que
cada um tem seu entendimento, tem que ver o que não vai agredir seus valores; a gente
fala da contracepção de emergência, que não é um método contraceptivo, e não podem
usar sempre porque senão é promiscuidade (sic)”.
No Estado de Alagoas, segundo um/a enfermeiro/a entrevistado/a, algumas
garotas trazem contraceptivos quando vêm para a unidade: “Algumas vêm, aí a
gente dá continuidade. Elas trazem, né, a medicação, a família traz, porque tudo de
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
medicação fica com a gente na farmácia. E aí quando elas tomam, a gente encaminha
lá para a unidade e lá é administrado”.
Segundo um/a profissional da saúde do Rio Grande do Sul, as garotas recebem
orientação sobre como funcionam os métodos, como usá-los/colocá-los, seja
individualmente, durante as consultas médicas, seja coletivamente durante os
grupos de discussão semanais, quando o assunto surge em pauta. Nesse estado, os
métodos contraceptivos disponibilizados são o oral, injetável, implante hormonal.
O oral e o injetável são obtidos na rede pública de saúde e o implante só via judicial e pago pela instituição. Neste caso tem que ter a concordância da garota, de
sua mãe e do/a juiz/a.
Sobre como são trabalhadas/abordadas, no Rio Grande do Sul, as questões
de prevenção às DST/HIV/aids tanto para os garotos como para as garotas, das
relações de gênero, orientação sexual, distribuição de preservativos, o acesso a
contracepção, um/a profissional da saúde contou que fazem grupos com as garotas onde levam preservativos, pênis de borracha, e conversam sobre uso do preservativo, do anticoncepcional, elas trazem suas experiências. Também durante
consulta médica são explicados todos os métodos disponíveis para que elas possam
decidir, bem informadas, se querem ou não usar algum método e qual. A equipe
de saúde também acompanha a adaptação aos métodos porque elas nem sempre
conseguem se ajustar ao uso do comprimido ou do injetável. Nos grupos, elas
aprendem a colocar o preservativo, inclusive o preservativo feminino.
A equipe técnica do Rio Grande do Sul avalia como muito interessante montar
um grupo com as garotas para conversar sobre sexualidade, do uso do preservativo,
do uso do anticoncepcional. Consideram essa experiência com o grupo muito
rica, porque as garotas falam de suas vivências. Porém, não deixam de lembrar
que “a gente não tem é muito tempo, infelizmente, por falta de profissional dentro da
unidade” (Participante da equipe técnica/Profissional da saúde).
Em Mato Grosso do Sul, sobre se as garotas têm acesso a métodos contraceptivos,
a equipe não respondeu objetivamente. Um/a participante da equipe comentou
que “o pré-natal é feito, mas o preventivo, até o DIU, falta ainda regulamentar essa
integração, articulação com a saúde. Na saúde a gente trabalha pela articulação, mas
vai pela simpatia, conhece fulano, conhece sicrano, então sempre se dá um jeitinho.”
Ainda que equivocadamente, inclusive com falas que expressam julgamento moral (segundo nosso
ponto de vista).
9
62
63
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
9.3.2 Ações de prevenção das DST, Aids e Hepatites Virais
Na legislação brasileira sobre adolescentes cumprindo medida socioeducativa
de internação, a distribuição de preservativos como medida de proteção específica
para a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, da aids e das hepatites
virais é nomeada somente na Portaria Interministerial nº 1.426 e na Portaria nº
340, ambas de 14 de julho de 2004. A distribuição de preservativos com a finalidade de prevenir a ocorrência de agravos à saúde é omitida tanto no SINASE
quanto na lei recém aprovada em 18 de janeiro de 2012.
De acordo com Jairnilson Paim e Carmen Teixeira (2006), define-se política
de saúde como “resposta social (ação ou omissão) de uma organização (como o
Estado) diante das condições de saúde dos indivíduos e das populações e seus determinantes, bem como em relação à produção, distribuição, gestão e regulação de
bens e serviços que afetam à saúde, inclusive o ambiente” (p. 74).
Aproximando-se desses autores, neste documento pressupõe-se que a política de
saúde específica para as populações de adolescentes em conflito com a lei e vivendo
sob condições de privação de liberdade, no Brasil, não está em conformidade com
a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (BRASIL, 2011) e os
planos e programas de enfrentamento da aids do Departamento Nacional de DST,
Aids e Hepatites Virais, do Ministério da Saúde.
Esse pressuposto baseia-se nos achados do estudo, haja vista que apenas em uma
das unidades visitadas (ou mencionadas pelas pessoas entrevistadas) a distribuição
de preservativos ocorre como uma prática regular, ainda assim restrita a garotos com
direito à visita íntima. Nas demais, não há essa regularidade, independentemente
da existência ou não da visita íntima, ainda que todo o corpo profissional a que se
teve acesso reconheça que adolescentes/jovens cumprindo medida de internação, ou
em situação de internação provisória, estejam entre as populações mais vulneráveis
ao HIV e outras DST, e concorde com a suposta, quase provável, existência de relacionamentos afetivo-sexuais entre os garotos e entre as garotas.
Em Alagoas, um/a gestora relatou que “os garotos recebem preservativos, recebem
um kit da gerente da promoção da saúde; as profissionais de saúde que cuidam da
parte da farmácia visitam as unidades semanalmente e fazem entrega de preservativos
para os garotos que têm direito à visita íntima”, “porque eles já tiveram palestras,
um acompanhamento antes”; algumas vezes alguns garotos vêm ao Centro de
saúde da unidade, procuram o serviço social e solicitam camisinha, mesmo sem
64
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
receber visita íntima. E “como a gente não pode negar, aí eles recebem a orientação da
psicóloga ou da assistente social, que são quem distribui para aqueles que não recebem
visita íntima”.
A propósito da possibilidade de acontecerem interações sexuais entre garotos,
o/a gestor/a de uma unidade em Alagoas comentou: “Ocorrem, não adianta a gente
querer, e estão tendo relações sexuais sem proteção nenhuma. Teve um período que nós
enfrentamos aqui de muitos meninos com DST nessa unidade. Então foi feito um
trabalho maciço da equipe de saúde com essa unidade, junto à escola, com o pessoal
da saúde, com os técnicos da universidade, pra que fossem tratados os meninos que
estavam com DST”. Atualmente não têm aparecido casos de DST nessa unidade,
porque “os meninos aprenderam a se cuidar” e aprenderam a pedir preservativo –
para pegar o preservativo esses garotos também têm que buscar o serviço social
e a psicóloga, pois só pega o preservativo quem passa pela orientação “eles têm
orientação em grupo e individual”.
Segundo o entendimento de um/a enfermeiro/a, os garotos da internação provisória não pegavam preservativos porque tinham vergonha:
“É que eles ficavam com vergonha de vir. Porque como é sabido que lá na
UIP eles não tinham visita íntima, então como que ele ia chegar aqui e dizer
que eu quero camisinha? Por isso que a gente teve que trabalhar mais com eles.
A princípio só vinham procurar gel, só queriam vir atrás do gel; chegavam
perguntando tem gelzinho, tem gelzinho? Só queriam o gel e a gente começou
a responder que só tinha o gel se fosse usar preservativo. Aí a gente começou a
fazer isso e teve um momento que a gente disse: gel não tem hoje, só tem preservativo. Já pra poder incentivar que ele usasse o preservativo. Aí pronto, aí
agora, graças a deus eles já se acostumaram.”
Quanto à distribuição de preservativos para as garotas, um/a enfermeiro/a comentou que “a unidade ela tem, só que como ela (a garota) não recebe visita íntima,
então ela não precisa ficar com a camisinha. Tem aqui as camisinhas, os comprimidos
e tal, mas como ela não tem visita íntima, não tem a necessidade de ela usar. Então a
gente faz só a conscientização mesmo, em relação ao material elas não têm”. Uma das
adolescentes entrevistadas confirmou: “Pra usar aqui dentro? Não, porque ninguém
usa, ninguém faz nada aqui dentro”. E acrescentou que só quando elas saem da
unidade é que recebem preservativos.
65
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Na Bahia, não há distribuição de preservativos para os/as adolescentes e nem
orientação quanto ao uso de métodos contraceptivos, até mesmo como medida
pedagógica de preparação para quando sair da unidade. No entanto, foi relatado
pelas garotas que há relacionamento sexual entre elas e que as/os educadoras/es
têm conhecimento desses relacionamentos, mas mesmo assim a prevenção não
é abordada. De acordo com a gerência, há pressão de muitos atores sociais para
não fazer valer os direitos sexuais e reprodutivos das e dos adolescentes do CASE,
muito embora a unidade se coloque a favor desses direitos, por exemplo, o da expressão da orientação sexual homoafetiva.
No Rio Grande do Sul, a equipe técnica contou que as garotas que chegam à
unidade fazem exame para detecção do vírus HIV. O exame não é compulsório,
mas em geral fazem de boa vontade. À pergunta se são recorrentes casos de HIV
entre elas, a resposta de um/a profissional da saúde foi:
“Nossa, é maior que a masculina! Nós temos mais portadoras aqui do que
nos meninos, proporcionalmente maior. Nós tínhamos uma aqui que fazia o
tratamento, mas foi desligada. Outra está com os exames bem organizados, faz
o acompanhamento no centro de atendimento que é referência. Tem uma menina que entrou no projeto federal de HPV, de vacina, do Hospital de Clínicas.
Não tinha o diagnóstico antes de entrar, a maioria é diagnosticada aqui. A
menina recebe o diagnóstico aqui, a médica acompanha, às vezes ela pede que
a gente acompanhe quando vai contar pra um familiar e ela conta se quiser, a
gente preserva até a menina ter esse momento dela de conversar.”
É importante acompanhar o diálogo a seguir entre a equipe do projeto (E) e
um/a participante da equipe técnica (PET), para se ter elementos que orientem
uma discussão sobre uma realidade cruel, que demonstra omissão e negligência,
frente ao exercício da sexualidade praticado clandestinamente, passível de acontecer em qualquer unidade do sistema socioeducativo:
PET – A qualidade do preservativo é péssima, o que vem do Ministério é
terrível. Eu experimentei pra ver e realmente é uma porcaria. Agora, dentro,
tu compra uma briga funcional se tu disponibiliza camisinhas nos dormitórios
coletivos.
E – E disponibilizam?
PET – Não.
66
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
E – Os garotos transam sem proteção?
PET – Sim, tá.
E – Tem casos de HIV?
PET – Sim.
Um/a operador/a de direito, na conversa sobre distribuição de preservativo
para unidades socioeducativas masculinas, ressaltou que nunca tinha ouvido falar
que garotos interagem sexualmente nas unidades e que “é importante a gente saber
porque, quando se faz a fiscalização mensal, nós ouvimos 10% da população daquela
unidade, esse é o padrão da nossa fiscalização, não tenho como ouvir 128, mas 10% e
te confesso que nunca ouvi esse relato. Para mim jamais diriam e muito menos para o
promotor. Quem vai fazer essas visitas mensalmente são os técnicos daqui do juizado
e dificilmente é o mesmo que vai. Num mês vai o psiquiatra, no outro mês vai a assistente social, no outro mês vai a psicóloga, no outro vai a pedagoga e trazem coisas
muito preocupantes. Mas não tinham trazido esse relato!”
Em Pernambuco, conversando sobre o mesmo assunto, um/a das/os operadoras/es de direito reagiu da seguinte maneira:
“Pelo que eu estou observando, não é só preservativo que está descumprindo
direitos humanos e o próprio ECA. Tem menino que chega na medida de internação e quando vem sendo progredido é que se descobre que não tem sequer
registro; tem unidade que não tem escova de dentes, é o asseio. É uma luta
inglória, volta e meia a gente está conversando com o executivo, na justiça,
com a obrigação de fazer e o sistema, infelizmente, às vezes, precisa até de uma
inspeção por fora pra funcionar.”
No Estado de Mato Grosso do Sul, argumentos como falta de estrutura, ausência de um trabalho sobre prevenção consistente e contínuo (pela rotatividade de
adolescentes) na unidade, o despreparo (e a falta de vontade para isso) da imensa
maioria dos/as agentes educadores/as no trato das questões relativas à sexualidade,
aos direitos sexuais e direitos reprodutivos, o medo de que a distribuição gere uma
“onda de violência” nas unidades, bem como as questões morais e religiosas de parte dos/as funcionários/as, são levantados contra a distribuição de preservativos nas
unidades, em particular nas masculinas.
Aliás, a equipe do projeto foi surpreendida com a sinceridade de um dos/
67
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
as profissionais, que ocupa posição importante dentro do sistema, em um dos
estados visitados, que disse “pode parecer um discurso reacionário, retrógrado, mas
eu sou contra a distribuição de preservativos nas unidades masculinas porque nós não
temos estrutura pra dar conta disso sem gerar violência. A questão é bem isso: se for
distribuído isso sem um trabalho muuuuito bem feito, se nós não estamos dando conta
de outras coisas aí de uma forma mais aprofundada, será que a saúde vai dar conta de
fazer um trabalho muito bem feito pra não gerar uma onda de violência sexual dentro
das unidades?”
Observamos que alguns/mas participantes da conversa concordaram com
esse ponto de vista. Achamos importante transcrever na íntegra a continuidade
da fala acima, pois dá uma dimensão de como conceitos discutíveis, distorcidos;
preconceitos e exageros estão presentes e dificultam o exercício de direitos, em especial o direito à proteção e à prevenção, dos/as adolescentes sob tutela do Estado:
“Eu penso o seguinte: enquanto unidade socioeducativa, uma das grandes
questões que nós trabalhamos com os adolescentes é o controle de impulsos.
O impulso sexual também, tu não sai, né, fazendo em qualquer lugar, com
qualquer um, queira ou não queira, há que haver concordância entre as partes,
um espaço minimamente, não dá pra ser no meio da praça, há que haver um
controle de impulsos pra poder estar tendo a prática sexual, a relação sexual,
não a prática individual. Eu penso que o exercício da sexualidade é possível
sim, mas não dentro da unidade porque nós não temos estrutura, nem de ter
um alojamento individual pra garantir, por exemplo, visita íntima, que é
uma outra situação, são duas coisas diversas. Nós temos que ter outras soluções
porque as unidades de internação não têm que ser totais, nós não temos que
oferecer tudo, muito pelo contrário, pelo SINASE, nós temos que garantir a
incompletude institucional, nós temos que buscar, e por que não o adolescente
ter uma liberação do juiz pra passar o fim de semana com seu companheiro,
com sua companheira, né? Que ele vá com a família e namore quem ele quiser
e que faça a sua prática sexual de acordo com a sua vontade, o que ele gosta,
o que ele curte, não aqui na unidade. Eu não vejo por que, às vezes tenho a
impressão que a gente tem que engolir goela abaixo que as coisas têm que ser
feitas dentro da unidade, entendeu? Se o nosso papel é estar falando o tempo
todo de controle de impulsos, desse menino, dessa menina estar retornando pra
sua vida, mais preparado pra lidar com os seus direitos, com os seus deveres,
68
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
por que não incluir a prática sexual nisso aí, né? Se pedir pro juiz, bem fundamentado, gente, ele libera.”
Procuramos contrapor a fala anterior com a lei do SINASE, até porque essa
pessoa reconhece que há intercurso sexual nas unidades. Se existe intercurso sexual, no nosso ponto de vista existe uma responsabilidade enorme no que se refere a zelar pela saúde sexual de adolescentes e jovens privados/as de liberdade,
especialmente no que diz respeito à prevenção às DST/HIV/aids, tendo em vista
que se trata de população entre as de maior vulnerabilidade à epidemia de HIV/
aids, e que nosso país tem um Programa Nacional de DST/aids que é referência
mundial e uma política pública de distribuição gratuita de preservativos.
Além disso, vale destacar que neste estudo foram encontradas três referências a
surtos de DST dentro de unidades socioeducativas, duas masculinas e uma feminina:
“Houve um caso nesta unidade – quando funcionava em outro lugar –
de epidemia de sífilis. Nós já tivemos uma epidemia de gonorréia dentro da
unidade feminina, ou seja, nós não podemos negar que essas meninas têm atividades sexuais dentro, umas com as outras.”
Um agravante nesse quadro é saber que ainda persiste uma cultura prisional
também dentro das unidades socioeducativas, de assédio sexual, de violência sexual, que atinge particularmente garotos com traços mais femininos, uma travesti,
por exemplo, mas não somente. Em um dos estados visitados foi dito que o garoto
que vem do interior, de locais longínquos, cumprir medida na capital é chamado
de “brinde”, pois por ser novato e provavelmente indefeso, será assediado e poderá
sofrer violência sexual.
Diante de tal situação, achamos oportuno trazer o ponto de vista, com o
qual concordamos, presente na publicação Sem prazer e sem afeto – sexualidade e
prevenção às DST/AIDS nas instituições de privação de liberdade de adolescente,
“No conjunto de esforços necessários para se alterar esse quadro... é crucial a articulação de um amplo processo de conscientização de todos os atores envolvidos. Tratase de uma estratégia que não pode ser realizada sem a mudança da lógica dos trabalhos
de saúde e sexualidade dentro das ‘Febens’ – atividades em geral ainda negligenciadas e
contaminadas por estigmas, visões punitivas e discursos de intolerância.
Oferecer um espaço de qualidade para a educação e a reinserção de adolescentes
69
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
em conflito com a lei não é apenas dar uma nova chance, mas, muitas vezes, é dar
a primeira chance a esses jovens (grifo nosso) que, em geral, têm histórias de vida
carregadas de dor, carências e contradições e que têm a violência como um modo
de ‘educação’ para a vida.
É importante sublinhar que o adolescente privado de liberdade não está
privado de seus direitos. Tem, em quaisquer cincunstâncias, o direito de crescer,
refletir, mudar e recomeçar. Portanto, é urgente no Brasil a aplicação de duas
vertentes de medidas determinadas pela Justiça. Se, por um lado, é importante
que se puna o infrator, por outro, é dever do Estado oferecer a ele uma educação
de qualidade e uma oportunidade concreta de reinserção no contexto social. Se a
sociedade e as instituições de privação de liberdade não investirem na possibilidade
de transformação, esse jovem também não terá como encontrar recursos pessoais
para a mudança” (ANDI, 2002, p.4).
9.3.3 Saúde reprodutiva: assistência ginecológica, gravidez, pré-natal,
parto, pós-parto e aborto
Os procedimentos em relação aos cuidados com a saúde reprodutiva variam de
unidade para unidade. Na maioria, assim que a garota entra, é feita uma primeira
triagem com enfermeiro/a e, dependendo da necessidade, são providenciados os
encaminhamentos médicos. Nessa primeira triagem, em alguns locais, também
solicitam teste para gravidez, anti-HIV, sífilis, hepatites. Na maioria, há ambulatório para atendimento básico e demais necessidades são encaminhadas para a rede
pública de saúde. Em algumas unidades faz parte do atendimento básico consulta
ginecológica, em outras não:
“Fiz todos os exames e não deu nada.” (Garota cumprindo medida)
“Nunca passei pelo ginecologista porque nunca tive relação sexual.” (Garota cumprindo medida)
Em Pernambuco, faz parte da triagem investigação sobre casos/situação de
abuso, violência sexual.
Nesse estado, caso a garota chegue grávida ou com suspeita de gravidez na
unidade de internação provisória, é feito acompanhamento e solicitados exames
conforme o tempo/estado da gravidez da garota - aquelas com a gravidez mais
70
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
adiantada são encaminhadas para exames/pré-natal, as que estão em início de gravidez não são encaminhadas para o pré-natal durante o período que ficam na
casa. A justificativa para estes casos é o curto espaço de tempo que a garota fica
na internação provisória, máximo de 45 dias, e que nesse período, muitas vezes,
não há tempo hábil para conseguir consultas e/ou exames e quando conseguem a
garota já saiu.
A equipe técnica da unidade de internação vê essas gravidezes como “acidente
de percurso”. Citam caso de garota que não aceitou a gravidez, enjeitou o filho,
não queria amamentá-lo, ao ponto de ser necessário que esse bebê fosse cuidado
pelas colegas da garota na unidade. Citam outros casos de garotas que mudaram
muito o comportamento depois de ter o bebê, mostraram-se excelentes mães,
construíram um projeto de vida.
Em São Paulo, ao abordar o tema da gravidez na adolescência com o grupo
de profissionais, houve quem afirmasse que a gravidez “nem sempre é indesejada,
a menina pode querer a maternidade”, aproximando-se de conclusões de estudos
multicêntricos no Brasil.
Quando da visita à unidade de internação, em Pernambuco, havia um bebê de
quatro meses residindo lá com sua mãe. No período da visita o bebê não pode ser
visto porque estava internado em um hospital com coqueluche e sua mãe estava
com ele. Havia também uma garota grávida, no terceiro mês de gravidez, e outra
esperando resultado do teste para gravidez. Segundo a equipe técnica da unidade,
mãe e bebê ficam em um quarto adaptado para o qual a garota se muda quando
está prestes a ter o bebê. Nessa ocasião a equipe ajuda a garota a providenciar o
enxoval, fazem “chá de bebê”. Sobre a permanência de bebês na unidade, um/a
profissional de saúde faz algumas considerações:
“Então assim, existe esse contato muito íntimo delas e um bebê com uma
imunidade baixa ainda no meio desses contatos. A partir do momento que
o juiz determina que a criança tem que ficar com a mãe na unidade, ele
subentende, pra ele, que a Fundação está dando toda a condição de existir um
local adequado para aquela criança, mas infelizmente não tem. Vai ser mais
uma pessoa dentro de um ambiente pequeno, com muita gente pra viver ali.”
(Profissional da saúde)
Segundo um/a juiz/a, as adolescentes ainda não estão preparadas para criar
71
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
e educar filhos. Esse/a operador/a comentou que o fato de adolescentes grávidas
eventualmente terem algum privilégio na unidade (por exemplo, não precisarem
fazer a faxina do banheiro, etc) gera disputas, invejas entre as garotas, resultando
em desentendimentos. Ele/a considera que as unidades não têm estrutura para
recepcionar adolescentes e mantê-las lá com seus bebês. Sobre a situação dos bebês ele/a comentou: “Tem que tirar da unidade, a unidade não está preparada pra
aquilo” .
Algumas adolescentes e jovens que entram grávidas na Fundação Casa, seja
na unidade de internação (UI), seja na UIP, são transferidas para a Casa das Mães
a partir da 32ª semana de gestação. Depois do parto, os bebês ficam com elas na
Casa das Mães, uma ala separada, com quartos coletivos e individuais. De acordo
com uma das mães,
“A vida aqui é tranquila, é bom que a gente está com os bebês, quando eu
estava ainda na UIP eu achava que se viesse pra cá meu filho ia ficar só seis
meses comigo, mas vi que era totalmente diferente, tanto que minha primeira
pergunta pra coordenadora foi ‘senhora, quando meu filho completar 6 meses
ele vai embora?’ Ela falou ‘você só está de 3 meses e já está preocupada com isso?
Onde você ouviu essa história’? Eu falei que era isso que todo mundo fala na
UIP. Mas aqui os bebês ficam com as mães a não ser que as mães deem motivo
pra separar, aqui só teve um caso, da mãe que beliscava o bebê, tinha problema
psiquiátrico.” (Adolescente da Casa das Mães).
A Fundação Casa tem convênio com hospital de referência mais próximo,
porque todas as gravidezes de adolescentes são consideradas de risco, “pela idade
e/ou uso de droga”. Nesse hospital as garotas fazem acompanhamento desde o prénatal, até a consulta de 45 dias após o parto, junto com o bebê.
No Estado de Alagoas, a gravidez das adolescentes também é considerada de
alto risco, e as/os médicas/os e enfermeiras/os do Centro de saúde que atende ao
sistema socioeducativo acompanham os casos de pré-natal. Até o momento não
tiveram experiência de garota cumprindo medida com bebê.
No Rio Grande do Sul, toda garota que chega à unidade tem sua saúde avaliada e é feita uma anamnese completa pela/o médica/o. Se estiver gestante é
encaminhada para pré-natal de alto risco: “geralmente é de alto risco por causa da
droga”. O pré-natal é em um hospital, o acompanhamento é na unidade. Uma das
72
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
garotas entrevistadas, que chegou grávida de dois meses, teve o bebê e vive com ele
na unidade, disse que fez o pré-natal:
“Foi bom igual Gramado (de onde veio), tive acesso a tudo, foi parto
normal no hospital, agora estou no quarto com meu filho. Tinha outra garota
grávida, desde que estou aqui tinha seis crianças, uma que tava grávida ganhou
e já saiu, mais duas, uma menina e um menino, já foram embora também.”
Na Bahia, quando se fez a visita à unidade, havia duas garotas grávidas. Uma
delas estava internada há 4 meses e ainda não havia tido atendimento de pré-natal.
A outra, grávida de 7 meses, só havia realizado duas consultas de pré-natal até
aquela data. Em uma das salas da ala feminina há um quarto onde viviam uma
garota com seu bebê. O bebê apresentava algum tipo de dermatite, com lesões no
rosto, assim como a maioria dos/as adolescentes.
Segundo um/a participante da equipe técnica de Mato Grosso do Sul, sempre
tem garotas grávidas na unidade. “Tínhamos uma grávida de 4 meses, mas foi liberada
na sexta-feira, foi embora pra casa. Em geral não fizeram o pré natal, então tem que fazer
a ficha, correr atrás da documentação, do cartão SUS, porque a maioria delas não tem”.
Quanto à continuidade do atendimento de pré-natal e pós-parto para garotas
que saem da unidade, “a gente faz uma declaração e se ela tem uma consulta pra
segunda, por exemplo, alguma coisa agendada, se é CAPS, é feita uma declaração
pra dar continuidade, por escrito. A família é orientada, com a declaração, pra dar
continuidade do que ela precisa”... “nós sempre estamos ligando pros CRAS para estar
acompanhando, mas vê bem, quando ela sai não há seguimento, então a gente não
sabe se há essa continuidade, nós trabalhamos aqui, temos todo esse procedimento, mas
lá fora, na verdade, os CRAS não têm atendimento de egressos”, completou outro/a
participante da discussão.
Em relação aos cuidados com o bebê, em Mato Groso do Sul, informaram-nos
que “em toda unidade, os agentes, chefes, pessoal de plantão, todo mundo é envolvido
no nível de orientação, independente do seu papel. A gente acompanha todo o prénatal, o enxoval, a hora que o bebê nasce, tudo, tudo, tudo, é cuidado aqui”. No
entanto, um comentário revelou que parece faltar uma diretriz sobre essa atenção/
cuidado, “cada uma tem uma opinião de como pegar o bebê pra mamar, diferente de
um profissional que diz que é desse jeito, a menina disse que não sabe mais o que fazer,
porque chega a dona e diz que tem que fazer assim, chega a outra dona e diz que tem
73
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
que fazer assado!” (Participante da equipe técnica)
Sobre bebês vivendo na unidade, uma garota comentou: “tinha até um nenê
aqui, o Luquinhas, conheci ele tinha 6 meses. Primeiro ele ficou no alojamento 1,
depois no 2 e no 3 que é maior, ele se apegou com todo mundo. Todo mundo chorou
quando ele foi embora, ele era a única distração.” (Garota cumprindo medida)
Uma garota entrevistada no Rio Grande do Sul nos disse que ela e as outras não
podiam carregar o bebê da colega e nem brincar com ele: “Não podemos agarrar ele,
não pode, quem pode são só os monitores. Não sei por que não pode, eles não deixam”.
A explicação para essa impossibilidade de trocar carinho, brincar com a criança,
veio do/a operador/a de direito: “a questão da criança, pode estar tudo bem agora,
mas pode entrar uma adolescente com forte problema psíquico, psiquiátrico e usar essa
criança como refém ou querer atingir a mãe”.
Em relação à liberação das mães com bebês, há diferentes interpretações. Em
alguns locais, como Alagoas, existe empenho em liberar garotas grávidas. Na
ocasião da visita, as duas garotas grávidas que estavam na unidade haviam acabado
de ser liberadas, “as duas gestantes já foram liberadas pelo juiz. Já estão em casa.
Uma delas estava grávida de nove meses, mas foi liberada, graças a deus, porque ela
estava tendo, assim, muitas contrações antes do tempo e perda de líquido, aí, com o
documento que foi enviado, o juiz liberou. Graças a deus.” (...) trabalhamos no sentido
da liberação da garota, junto à família e ao juiz, a gente prefere fazer isso para que ela
possa criar o filho dela junto à família”.
Em São Paulo, na Fundação Casa em relação à liberação das mães com bebês,
existe certo empenho nesse sentido. Porém, “como a Fundação não separa mãe e
criança”, quando o caso é muito grave o juiz pode permitir que a garota fique mais
tempo com o bebê na unidade. Nas palavras de uma das entrevistadas, “não fechamos
um caso só porque a menina teve a criança, mas porque ela já teve um trabalho, já sabe
cuidar do bebê; a gente abrevia o tempo aqui, mas abrevia com responsabilidade”.
Já em Pernambuco, segundo um/a juiz/a,
“Quando há adolescentes grávidas, a Fundação exerce pressão, ‘fica doidinha’, para que seja concedida liberação à garota. Aí é uma pressão para
que a vara, o juiz, vá e libere. Porque a casa chega a um ponto que não tem
como sustentar, então é afastar. Tira, leva a criança, a menina fica doidinha,
provoca tudo que é discórdia, porque já se apegou à criança, tá entendendo?”
74
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
“A criança não é um salvo conduto. Eu já tive pressão, mais de uma vez,
acho que umas duas ou três vezes e aí eu, então, fechei o cerco. Na primeira vez
fui pega/o de surpresa, confesso. E aí eu não posso, dois pesos e duas medidas: se
gerou um filho, vá pra casa; se ficou grávida, vá pra casa. Então tem um filho
e sai do sistema?”
No Mato Grosso do Sul, sobre garotas grávidas, especialmente aquelas sem
apoio familiar, que vivem na rua, um/a participante da equipe comentou: “quando
o juiz dá a internação da menina grávida como proteção - ela está na rua -, então
ela vem aqui, teve adolescente que teve o nenê aqui. Uma garota já esteve outras vezes
aqui, mas da última veio grávida, ela até poderia ter sido liberada, mas o juiz decidiu
pela permanência dela por causa da proteção do bebê, porque aqui ele seria melhor
assistido. Não sei exatamente quanto tempo ela ficou, mas o bebezinho foi adotado depois do parto, aí que ela foi liberada, ela já tinha tido outro bebê aqui mesmo, e o juiz
usou o mesmo sistema, mas esse último ela preferiu deixar pra adotar, ela já sabia que
não teria capacidade de criar o bebê.” (Participante da equipe técnica)
Quanto à posição do/a juiz, parece haver discordância em relação a ela, conforme revela o comentário a seguir: “por que a menina tem que ficar aqui se ela já
pode ser liberada? Para garantir a proteção e a saúde do menino. As intenções são as
melhores possíveis, mas é o correto?” (Participante da equipe técnica)
Ainda sobre as questões de saúde reprodutiva, algumas garotas mencionaram
atraso ou até mesmo ausência de menstruação depois que passaram a viver na
unidade de internação:
“Tá atrasada, acho que devido ao estresse.”
“Minha menstruação não vem aqui, já tem um ano e dois meses que não
vem, só uma vez veio. Os médicos falam que é normal por causa do lugar,
porque estou longe dos meus filhos, mas eu não acho que é normal, quando eu
sair daqui vou a um ginecologista ver o que é.”
“A Laís10 ficou um ano aqui e foi um ano sem menstruar. Agora desceu pra
ela daquele jeito, depois de um ano desceu.”
Sobre questões relativas ao aborto, “Esse é um assunto que não costuma
chegar.” (Profissional da saúde)
10
Nome fictício.
75
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
No Pará, entrevistamos uma garota, de 13 anos, que havia passado por um
aborto espontâneo na unidade. Sobre essa situação, ela e suas colegas entrevistadas disseram que a gravidez havia sido descoberta quando a garota chegou à
unidade, nos exames de rotina, quando também passou por testagem anti-HIV
e teve acesso ao resultado. A garota não chegou a realizar nenhum atendimento
de pré-natal, pois não tinha documentos – a unidade estava providenciando. O
aborto espontâneo, aos três meses de gravidez, teria começado na madrugada,
quando a garota teve sangramento e pediu ajuda. Ela teria sido levada ao hospital
para ser atendida somente na manhã seguinte, quando os/as profissionais da saúde
chegaram à unidade. No hospital, segundo o/a profisional da saúde, foi feita a
curetagem, a garota ficou 24 horas em recuperação e depois foi liberada.
No Mato Grosso do Sul, perguntou-se se já houve casos de aborto na unidade
e qual foi o procedimento:
“As gurias falaram, mas entre elas ... foi para o posto de saúde.”
“Houve uma vez aqui na unidade o seguinte: uma menina, grávida, pra
fazer chantagem emocional, falou que ia tentar tirar e pra provocar a atenção
ela conseguia cutucar, mas a gente conversou com a enfermagem, ginecologista,
fomos pro CAPS, era uma pessoa comprometida com a droga também. Foi pra
chamar a atenção.”
Diante da pergunta se é oferecida a possibilidade de um aborto legal, caso a
garota chegue à unidade grávida devido à violência sexual, um/a profissional da
saúde disse que “nós fazemos todo o atendimento na rede. Se o médico permitir, com
certeza. Todas as condições da rede a gente utiliza. Não cabe a nós dizer se ela pode ou
não pode, algumas não querem fazer, mesmo se foi por violência”.
E à pergunta sobre se quem faz a abordagem inicial dessa garota apresenta a
possibilidade do aborto legal, a resposta foi “não, não. A gente pede orientação nesse
sentido, não foi a técnica que resolveu. E mesmo que o médico diga que pode fazer
por causa disso, daquilo, a gente pede autorização pro juiz. A gente envolve a família,
também”. (Participante da equipe técnica)
76
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
F
10. Boas Práticas
oram observados muitos pontos positivos nas visitas, relatados a seguir, que
vêm acompanhados de recomendações sobre decisões a serem tomadas pelos
organismos responsáveis e de acordo com suas respectivas competências.
Foi constatado que as unidades femininas de atendimento socioeducatico de
internação procuram responder positivamente ao princípio da incompletude institucional, trabalhando na perspectiva da multisetorialidade, tecendo articulações
com outros setores governamentais, em particular a educação, a promoção social
e a saúde pública.
Uma boa prática a reportar acontece no Rio Grande do Sul, onde ocorre o que
poder-se-ia designar como “multiprofissionalismo”, em aproximação da visão de
Wanderlino Nogueira Neto (2011). Nesse estado, magistrados, gestores e equipes
técnicas estão se articulando para refletir sobre “como” proceder para instaurar o
processo de realização dos direitos reprodutivos e direitos sexuais de adolescentes
e jovens, em particular a visita íntima. Lembrando, com Neto (idem) que “os
conflitos que se criam entre as categorias profissionais envolvidas (magistrados,
promotores, policiais, psicólogos, trabalhadores sociais, médicos, gestores, pedagogos, etc.) são grandes empecilhos a ser vencidos” (p. 48). A iniciativa de articulação nesse estado parece consoante às “mudanças significativas no acesso com
sucesso às políticas públicas e no acesso com sucesso à justiça, para que passem a
ser operacionalizadas, na multidisciplinaridade, na multi-institucionalidade, no
multiprofissionalismo e no multiculturalismo” (NETO, 2011, p. 51).
Ainda que constatando boas práticas no respeito ao princípio da incompletude,
sugere-se:
3 Intensificar articulações entre a unidade e SPM e SDH para garantia dos
direitos sexuais e direitos reprodutivos das adolescentes e jovens internas;
3 Reforçar a articulação com o Ministério da Saúde e Secretaria Estadual da
Saúde para desenvolver atendimento em saúde mental de qualidade – psicoterapia,
terapia de grupo na própria unidade – e para informações/fornecimento de insumos sobre métodos contraceptivos;
3 Buscar parceria com universidades, oferecendo estágio supervisionado para
estudantes em cursos sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos, educação em
sexualidade e saúde reprodutiva, com metodologia participativa;
3 Buscar parceria com organizações não governamentais que atuam na defesa
77
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
dos direitos sexuais e direitos reprodutivos para criar e implementar programas de
educação sexual, na perspectiva de gênero e com metodologia participativa;
3 Intensificar relações com a Secretaria da Educação, com universidades e
com a sociedade civil para ampliar o acervo bibliográfico de acesso às garotas;
3 Oferecer alternativas reais de profissionalização e inserção no mercado de
trabalho sob o enfoque da equidade de gênero.
Em relação aos parâmetros da gestão pedagógica no atendimento socioeducativo,
via de regra, a postura cotidiana de muitos/as profissionais parece contribuir pouco para uma atitude cidadã das adolescentes, deixando de corresponder a uma
das doze diretrizes pedagógicas do atendimento socioeducativo. A quarta diretriz
trata da presença educativa e a exemplaridade como condições necessárias na ação
socioeducativa (BRASIL, 2010, p. 47). A esse respeito, assinala-se a experiência do
Estado de Alagoas como uma boa prática. Entende-se que o empenho da gestão
foi um dos fatores que propiciaram essa inovação. Outro fator foi o respeito ao
direito de participação, considerando-se, como Monteiro e Rabello (2008) que “o
sentido da participação é o de se sentir envolvido e disposto a contribuir na vida
da comunidade”. Os garotos se mobilizam na preparação (limpeza, decoração)
dos alojamentos para receberem suas parceiras. Pode-se supor que, ao terem participado na decisão de mudar o local das visitas íntimas, do “quarto das visitas”
para o alojamento onde se sentiam mais “em casa”, introduziram novos sentidos ao
ambiente, ao alojamento, o que facilitou internalizar a importância do “cuidado
de si” e dos outros.
A experiência bem sucedida com a visita íntima na unidade de Alagoas favoreceu outra iniciativa, a elaboração e aprovação da Portaria 14/2011 da 2ª Vara
da Infância e Juventude, regulamentando a visita íntima no estado. Pode-se interpretar que a essa decisão antecedeu-se uma boa prática de interlocução entre o
judiciário e o sistema socioeducativo.
Quanto ao desenvolvimento pessoal e social do/a adolescente, uma dimensão
básica do atendimento socioeducativo, há boa relação entre adolescentes e a
equipe técnica, possibilitando relação de confiança e amizade, inclusive com alguns/algumas socieducadores/as nas unidades que se destacam pela atenção que
dedicam às adolescentes e jovens.
Mas é ainda no campo das dimensões básicas dos parâmetros da gestão pedagógica que, mais do que boas práticas identificadas, há recomendações a fazer.
78
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Estas dizem respeito aos recursos humanos, em relação aos quais sugere-se:
3 Incluir nas provas para concursos para o quadro funcional e técnico temas
da sexualidade e da saúde reprodutiva de adolescentes e jovens como um direito
humano;
3 Cursos de sexualidade e saúde reprodutiva como um programa, consistente
e de formação continuada, assumido pelo sistema socioeducativo do ponto de vista dos direitos humanos;
3 Realizar sensibilização de operadoras/es de direito e gestores/as de unidades,
e formação da equipe técnica e socioeducadoras/es em gênero, saúde e direitos sexuais e reprodutivos na adolescência, com ênfase na homoafetividade;
3 Oferecer apoio psicológico aos profissionais do sistema socioeducativo.
Outra recomendação a ser feita, em relação à qual não se encontrou nenhuma
situação que pudesse ser identificada como “boas práticas” é quanto às estruturas
físicas das unidades de atendimento11. As/os próprias/os gestoras/es e equipes técnicas entrevistadas/os concordam que as estruturas físicas não são orientadas pelo
projeto pedagógico, nem estruturadas de modo a assegurar a capacidade física
para o atendimento adequado à execução de um projeto pedagógico e a garantia
dos direitos fundamentais das adolescentes. Nesse sentido, cabe recomendar que
seja agilizada a reorganização do uso do espaço de modo a responder às obrigações
legais de ambientes separados para as diferentes medidas socioeducativas, assim
como executar reformas que propiciem condições mais salutares às garotas internas
e, quando for o caso, a seus bebês.
De acordo com o SINASE, os “Parâmetros socioeducativos” são organizados
por eixos estratégicos. O primeiro eixo trata do registro sistemático das abordagens
e acompanhamentos aos/às adolescentes, por meio do Plano Individual de Atendimento (PIA). As visitas realizadas aos estados pela equipe do projeto observaram
que essa tem sido uma boa experiência das unidades visitadas, exceto em Mato
Grosso do Sul, onde o instrumento encontrava-se em construção durante a visita,
e no Pará, onde uma garota afirmou desconhecê-lo e o/a operador/a de direto comentou que a garota não o conhecia porque o PIA não existia.
Pode se considerar uma exceção dentre as unidades visitadas pela equipe do projeto o Centro de
convivência e a unidade masculina para garotos de 12 a 14 anos em Maceió/AL. A unidade masculina
para garotos de 12 a 14 anos consisitia de um conjunto de pequenas casas (quarto, sala e banheiro), em
cada uma delas conviviam de 3 a 4 garotos, e o Centro de convivência era um local com jardim, área
esportiva, de convivência, usado pelos garotos e seus familiares.
11
79
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
O SINASE prevê a existência de um projeto pedagógico como ordenador de
ação e gestão do atendimento socioeducativo nas unidades. O projeto pedagógico
será orientador na elaboração dos demais documentos institucionais, tais como
as normas disciplinares. Recomenda-se que na elaboração e implementação dos
projetos pedagógicos os direitos reprodutivos e direitos sexuais sejam observados,
eliminando-se práticas disciplinares violadoras do direito à dignidade e intimidade,
tais como o “pagar canguru” e similares. O mesmo se aplica ao desenvolvimento e
implementação do Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo.
Outra recomendação é, certamente, criar condições para implementar a visita
íntima, definindo critérios, viabilizando espaço físico e, sobretudo, oferecendo
formação da equipe da unidade em temáticas de gênero, sexualidade, saúde e
direitos sexuais e reprodutivos. As/os gestoras/es, magistradas/os e equipes técnicas
solicitam que se troquem experiências com outras unidades de internação para
traçar as possibilidades e modos de viabilização da visita íntima.
Uma resposta positiva ao eixo diversidade étnico-racial, gênero e orientação
sexual dos parâmetros socioeducativos foi relatada no Rio Grande do Sul, onde,
segundo a equipe da unidade feminina, acontecem grupos de discussão sobre sexualidade e homoafetividade. No entanto, não faltam recomendações neste item,
por exemplo,
3 Definir estratégia de gestão de conflitos, em particular os relacionados à
sexualidade;
3 Garantir o respeito à orientação sexual homoafetiva;
3 Garantir os direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
cumprindo medida de internação, incluindo o respeito à orientação sexual e à
identidade de gênero.
No eixo educação, outra boa prática foi encontrada no Rio Grande do Sul,
onde há livros à disposição das garotas e acesso destas a diversas mídias, incluindo
noticiários na TV. O acesso a noticiários também é garantido em Mato Grosso
do Sul e Pará, mas proibido nos demais estados, para quem recomenda-se rever critérios para acesso às mídias, em especial à TV, em resposta ao direito à
informação das adolescentes e jovens – em uma unidade visitada, segundo as garotas entrevistadas, socieducadores/as ficavam com o controle da TV e quando
aparecia alguma “cena de sexo”, mudavam de canal.
No eixo esporte, cultura e lazer, há boas experiências nas unidades visitadas
80
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
no Pará, Alagoas, Pernambuco, São Paulo, Mato Grosso do Sul. As atividades
esportivas, culturais e de lazer propiciam o fortalecimento da autoestima das adolescentes e jovens, repercutindo no exercício dos direitos reprodutivos e direitos
sexuais.
No eixo saúde, constatou-se que pouca atenção é dada às normas e leis no
campo da saúde e dos direitos das mulheres; menos ainda quando se trata dos direitos reprodutivos e direitos sexuais, considerados “menores” em relação a outros,
considerados “fundamentais”. Não se internalizou a noção de que os direitos
humanos são inseparáveis, indivisíveis e universais e que não há direitos mais
importantes que outros. Diversas garotas entrevistadas desconheciam o direito à
visita íntima, sugerindo que esse assunto não é priorizado, não está na pauta das
práticas educativas e de reflexão com as adolescentes nas unidades de internação;
e ao tomarem ciência do mesmo, não se viam na posição de titulares desse direito.
Em seis anos de SINASE não se avançou quase nada neste campo. O desafio
para os próximos três anos, data prevista da 1ª visita de avaliação da implementação
da lei 12.594, será introduzir o tema da visita íntima e demais direitos reprodutivos
e direitos sexuais na pauta das reuniões, sem deixar de integrar ações concretas
no planejamento das unidades. É de ressaltar que, após a decisão do STF de reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, esse desafio inclui o
respeito à visita íntima de casais homoafetivos.
Para tanto, esforços em direção ao multiprofissionalismo serão necessários,
como bem lembrou o/a operador/a de direito de Mato Grosso do Sul: “Quando
você esta na área você tem que conhecer, até de uma maneira interprofissional, o que diz
o estatuto”, mas, “na verdade não é o que acontece”, como pode-se inferir de alguns
dos enunciados proferidos por operadoras/es de direito, tais como, “Nunca pensei
no assunto”, “Nunca me chegou pedido para autorizar visita íntima”, “Apresentamos
propostas para reforma do prédio, mas a visita íntima era nossa penúltima prioridade”.
Nas equipes técnicas, as resistências também apareceram nos discursos: “Elas
vão engravidar”, “Vão pegar DST”, “Elas são bandidas, promíscuas, têm sexualidade
conturbada”, “Elas não têm idade, são muito jovens”, “Sociedade não vai aceitar” e
“Vamos ter que ouvir os gemidos?”
Um dos argumentos para não efetivar a visita íntima nas unidades femininas
de internação é a falta de espaço. Porém, diante da experiência de Alagoas, a equipe
do projeto entende que a existência de espaço físico específico para visita íntima
81
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
não é impeditivo. Além disso, vale observar que em muitas unidades não há local
/sala para visita íntima, mas sempre há para a “tranca”.
Outros argumentos recorrentes são a “pouca familiaridade com a questão da
sexualidade”, “não sabemos como fazer” e “precisamos de mais formação”. Concretamente, efetivar a visita íntima nas unidades femininas de internação é um
problema real cuja solução é um devir. Nos seis anos decorridos desde a criação do
SINASE muitas capacitações aconteceram; podem ter sido em número menor que
o necessário; podem não ter tido a qualidade esperada; e a metodologia pode ter
sido equivocada. Há vários organismos governamentais e diversas organizações não
governamentais que atuam na área de formação no tema dos direitos reprodutivos
e direitos sexuais, que só são convocadas em momentos pontuais. Entende-se que
a capacitação tem pouca efetividade se as estratégias e ações não forem planejadas
com o propósito de respeitar os direitos reprodutivos e direitos sexuais como direitos humanos, como direitos tão fundamentais como outros já assimilados.
A equipe do projeto acrescenta como boas práticas no eixo da saúde, o acesso
aos serviços de saúde da rede pública, a realização de exames ao ingressar na unidade
que incluem teste anti-HIV e a permanência de bebês com as adolescentes na
unidade por tempo indeterminado e em local adaptado para mãe e filho. E como
outras recomendações elenca:
3 Garantir o sigilo do estado sorológico de adolescentes e jovens com HIV;
3 Formalizar fluxos para referência e contrarreferência no atendimento a
situações relacionadas à saúde reprodutiva, como parto e complicações precoces
da gravidez;
3 Verificar existência ou não de medicalização excessiva no tratamento de
abstinência do uso de substâncias ilícitas, principalmente quando se trata de
garotas grávidas;
3 Garantir acesso a informações sobre planejamento reprodutivo, acesso a
preservativos e a métodos contraceptivos;
3 Identificar critérios para receber, monitorar e avaliar as atividades realizadas
com as internas por organizações não-governamentais (ONGs) e organizações
sociais (OS), entre elas as entidades religiosas, para garantir os direitos sexuais e
direitos reprodutivos das adolescentes e jovens e a laicidade dos serviços públicos.
No eixo abordagem familiar e comunitária, reconhece-se como boa experiência
o valor que as unidades dão à presença das famílias, ao incentivarem e facilitarem
82
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
visitas familiares, mesmo de outras localidades. No entanto, fica a pergunta: se as
unidades realizam busca ativa de familiares, por que não se adotam procedimentos
similares em relação aos/às parceiros/as das jovens? Esta questão deriva da afirmação
recorrente de que há pouca demanda para visita íntima nas unidades femininas
porque os parceiros as abandonam. Por que se aceita a ausência dos companheiros
nas visitas familiares (ou até mesmo se impede que isso aconteça) como um fato
que nunca vai mudar?
11. Considerações finais
O
s direitos reprodutivos e direitos sexuais são reconhecidos com mais facilidade
quando se está nas áreas da chamada “saúde materno-infantil” e das DST/
aids e hepatites virais. Talvez porque estejam relacionadas à saúde da população,
onde a família está situada em uma posição fundamental. A este respeito, a obra
de Foucault, com destaque para sua reflexão sobre a “governamentalidade” (FOUCAULT, 2006), nos ajuda a perceber essa posição:
“(...) a família vai tornar-se instrumento, e instrumento privilegiado,
para o governo da população (...). esse deslocamento da família do nível
de modelo para o nível de instrumentalização me parece absolutamente
fundamental e é a partir da metade do século XVIII que a família aparece
nesta dimensão instrumental em relação à população, como demonstram
as campanhas contra a mortalidade, as campanhas relativas ao casamento,
as campanhas de vacinação, etc.” (FOUCAULT, 2006, p. 289)
Trazemos para este documento de síntese a perspectiva de FOUCAULT sobre
a família e o casamento com a finalidade de sinalizar que essas instituições não
são “fatos da natureza”, mas construções que se situam na história e que surgem
para responder a interesses específicos. A equipe do projeto está inserida no
campo da saúde coletiva e, nesse sentido, atua com o propósito de expandir e
aumentar a efetividade dos esforços que diversas instituições da saúde pública
têm empreendido, particularmente no direito universal à saúde por meio do fortalecimento da rede pública do Sistema Único de Saúde - SUS. Nesse sentido
entende que são essenciais as ações dirigidas a segmentos populacionais, como as
adolescentes em situação de internação, com objetivos de promoção da saúde e de
83
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
prevenção dos agravos a ela, como as de assistência ginecológica e de cuidados em
relação às DST/aids e hepatites virais.
O estudo realizado constatou que, no campo dos direitos reprodutivos e direitos sexuais de adolescentes e jovens em conflito com a lei, é dada prioridade
ao direito à assistência ginecológica em comparação ao direito à privacidade e intimidade e o direito à diversidade sexual, sugerindo que o primeiro é considerado
mais importante que os demais. Essa situação não é exclusiva ao sistema nacional
de atendimento socioeducativo. Mas é preocupante observar a intensidade com
que essa reprodução das relações de gênero dominantes no Brasil se manifesta nas
unidades femininas de internação e de internação provisória que integram esse
sistema.
Não podemos finalizar este documento sem atentar para um aspecto intrigante
do Art. 68 da Lei 12.594, quando analisado sob o crivo do enfoque de gênero:
“É assegurado ao adolescente casado ou que viva, comprovadamente, em
união estável o direito à visita íntima. Parágrafo único. O visitante será identificado e registrado pela direção do programa de atendimento, que emitirá documento de identificação, pessoal e intransferível, específico para a realização da
visita íntima.”
As palavras por nós negritadas no Art. 68 mostram o quanto um texto pode
ter limitada a sua compreensão, quando é lido na perspectiva de gênero. Nesta
leitura, é como se o Art. 68 beneficiasse somente casais gays, pois é assegurado ao
adolescente visita íntima do visitante.
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
Referências bibliográficas
ARAÚJO, MARIA JOSÉ DE OLIVEIRA; SIMONETTI, MARIA CECILIA MORAES.
Saúde das Mulheres: questões que se repetem no debate sobre políticas públicas. In:
Jornal da Rede Feminista de Saúde, no 29, dez 2011.
ASSIS, SIMONE GONÇALVES DE; CONSTANTINO, PATRÍCIA. Filhas do mundo:
infração juvenil feminina no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.
AYRES, JOSÉ RICARDO DE CARVALHO MESQUITA. Sujeito, intersubjetividade e
práticas de saúde. Ciênc. saúde coletiva vol.6 no.1 Rio de Janeiro 2001.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal no 8.069/1990. Secretaria
de Direitos Humanos – SDH/PR, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes – CONANDA. Brasília-DF, 2011.
_______. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: Princípios e
Diretrizes. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações
Programáticas Estratégicas. – 1. ed., 2. reimpr. Brasília : Editora do Ministério da Saúde,
2011.
_______. Sistema Nacional De Atendimento Socioeducativo - SINASE/ Secretaria Especial dos Direitos Humanos – Brasília-DF: CONANDA, 3a edição, 2010.
_______. Sistema Nacional De Atendimento Socioeducativo - SINASE/ Secretaria Especial dos Direitos Humanos – Brasília-DF: CONANDA, 2006.
_______. Presidência da República. Lei No 8.089 de 13 de julho de 1990.
_______. Lei No 12.594 de 18 de janeiro de 2012.
_______. Ministério da Saúde. Portaria No 340, de 14 de julho de 2004.
_______. Portaria Interministerial No 1.426, de 14 de julho de 2004.
_______. Ministério da Justiça. Resolução 01, de 30 de março de 1999.
FOUCAULT, M. Histoire de la Sexualité 1: La Volonté de Savoir. Paris: Éditions Gallimard. 1976.
84
85
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
__________. Microfísica do Poder. São Paulo: Editora Paz e Terra. 2006. 22ª Edição.
LEMGRUBER, JULITA. Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de
mulheres. Edições Achiamé Ltda. Rio de Janeiro, 1983.
MATTAR, LAURA DAVIS. Exercício da Sexualidade por Adolescentes em Ambientes
de Privação de Liberdade. Fundação Carlos Chagas. Cadernos de Pesquisa, v. 38, n. 133,
jan./abr. 2008. São Paulo.
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
tos reprodutivos. In: O Progresso das Mulheres no Brasil 2003–2010 / Organização: Leila
Linhares Barsted, Jacqueline Pitanguy – Rio de Janeiro: CEPI; Brasília: ONU Mulheres,
2011.
VOLPI, MÁRIO; LESSA, CIÇA; CATALÃO, NANA. Sem prazer e sem afeto – Sexualidade e prevenção às DST/aids nas instituições de privação de liberdade de adolescentes. Brasília: ANDI, UNICEF, Coordenação Nacional de DST & AIDS/MS, 2002.
MONTEIRO, RENATA ALVES DE PAULA; RABELLO DE CASTRO, LÚCIA. A
Concepção de Cidadania como Conjunto de Direitos e sua Implicação para a Cidadania de Crianças e Jovens. Psicologia Política . vol. 8. nº 16 . pp. 271 - 284 . Jul - Dez
2008.
NETO, WANDERLINO NOGUEIRA. Garantia de direitos, controle social e políticas
de atendimento integral da criança e do adolescente: Marcos conceituais e normativos
dos direitos humanos. In: Conselho Federal de Psicologia. A escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: CFP, 2010.
PADOVANI, NATÁLIA CORAZZA. Vamos falar de sexo: os discursos sobre sexo em
trinta anos na Penitenciária Feminina da Capital. In: < http://www.fflch.usp.br/ds/posgraduacao/simposio/m_9_Natalia_Padovani.pdf>
__________. “Perpétuas espirais”- Falas do poder e do prazer sexual em 30 anos
(1977-2009) na história da Penitenciária Feminina da Capital. Dissertação de Mestrado.
IFCH, UNICAMP, Campinas. 2010.
PAIM JS & TEIXEIRA CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saúde Pública 2006; 40(N Esp):73-8.
PIOVESAN, FLAVIA. Ações Afirmativas da Perspectiva dos Direitos Humanos. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, p. 43-55, jan./abr. 2005.
__________. Direitos Humanos, Civis e Políticos: a Conquista da Cidadania Feminina. In: O Progresso das Mulheres no Brasil 2003–2010 / Organização: Leila Linhares
Barsted, Jacqueline Pitanguy – Rio de Janeiro: CEPIA ; Brasília: ONU Mulheres, 2011.
VENTURA, MIRIAM. Saúde feminina e o pleno exercício da sexualidade e dos direi-
86
87
Direitos sexuais e direitos reprodutivos de adolescentes e jovens
em conflito com a lei: contribuições para o debate e ações
88
Download

Direitos sexuais e Direitos reproDutivos De aDolescentes