Transferência e vínculo institucional na Clínica-Escola 1 José Vicente Alcantara "Uma análise termina quando analista e paciente deixam de encontrar-se para a sessão analítica" Sigmund Freud em Analise terminável e interminável (1937). A frase citada em epígrafe tem ares de sofisma ou, se quisermos seguir o espírito freudiano mais a risca, pode ser lida como um chiste e, portanto, como uma formação do inconsciente. Levado a refletir sobre como se constitui o vínculo entre os terapeutasestagiários e a Clínica-Escola2 na qual exerço as função de supervisor de estágio, eis que essa frase freudiana foi o primeiro pensamento que me assaltou a consciência. Todos aqueles que temos ou tivemos alguma experiência em uma Clínica-Escola (terapeutasestagiários e supervisores) nos deparamos com algumas condições institucionais que, a princípio, apresentam-se como resistência ao trabalho psicoterápico. Ë bom lembrarmos que, muito cedo em sua obra, Freud (1900) caracteriza a resistência como sendo "tudo o que interrompe o trabalho analítico". No contexto da instituição Clínica-Escola, já o próprio vínculo contratual do estágio (limitado temporalmente) impõe, de saída, um núcleo resistencial que, de um modo ou de outro, se manifesta na dinâmica do tratamento. Desse modo, esse núcleo resistencial irá modular os impasses com os quais somos confrontados quotidianamente em nosso fazer clínico: o desligamento do terapeuta-estagiário; a passagem dos pacientes (transferência institucional, isto existe? se existe quais as condições do seu estabelecimento?); os encaminhamentos intra e extra-intitucionais; a escritura da experiência clínica como obrigação acadêmica ao mesmo tempo que como modo de elaboração do fazer clínico; e a questão do pagamento em uma clínica pública. Aliás, temas já tratados neste espaço em edições anteriores. No que se refere a resistência, entretanto, atribuí-la a um ou mais aspectos das mazelas institucionais constitui-se em um argumento parcial para dizer o mínimo. Se é certo que ela (a resistência) articula-se a estrutura institucional, deve-se buscar alhures as condições da sua produção, ou melhor dizendo as condições do modo como se constitui este enlace entre produção resistencial no tratamento psicoterápico e funcionamento institucional especialmente, no caso em que estamos tratando que é o da Clínica-Escola. Freud (1937), em um de seus escritos terminais, nos dá pistas sobre o que resiste em Psicanálise. Ele propõe esta discussão com uma advertência aos analistas no sentido de que seu interesse deve deslocar-se da questão do como se dá a cura em psicanálise para qual os obstáculos que se colocam no caminho desta cura. É interessante que neste texto, talvez mais do que em outros, ele propõe como sendo 1 Professor do Curso de Psicologia da URI- Campus de Santo Ângelo Mestre em Psicologia Clínica - PUCRS Supervisor local de Estágio de Psicologia Clínica na Clínica de Psicologia da URI 2 Clínica de Psicologia, inserida no Núcleo de Psicologia Clínica do Curso de Psicologia da URI - Campus de Santo Ângelo equivalentes as condições da cura aos seus percalços, é como se ele dissesse: a cura não é outra coisa senão os seus percalços. Sobre a natureza desses percalços, Freud (1937) propõe uma interessante classificação, situando as resistências como sendo oriundas de três fontes: as originárias do polo pulsional da estrutura psíquica; as advindas do Eu, especialmente, no modo como se atualiza sua estrutura defensiva; e aquelas decorrentes da posição do analista no campo transferencial. Relativamente às resistências advindas do polo pulsional, Freud (1937) invoca, inicialmente, o fator quantitativo como determinante, aliás estratagema quase sempre utilizado pelos clínicos sejam eles sofisticados ou de poucos recursos técnicos, pois se, no final das contas, as coisas não vão tão bem, sempre se pode elegantemente postular que aquele paciente é inanalisável e, portanto, foge da nossa alçada qualquer intervenção que esteja circunscrita a nossa nobre arte. Este argumento também é utilizado muitas vezes em relação as condições que se apresentam para o exercício da psicanálise na Clínica-escola só que, ao invés de se invocar o real (pulsional) como impossibilidade, nos prendemos ao real instituicional como fonte dos fracassos da nossa prática. Desse modo este real manifestaria-se tanto no sentido da sua negatividade ou seja, naquilo que falta (falta análise aos terapeutasestagiários, falta teoria aos supervisores e, numa perspectiva mais conservadora de ver as coisas, falta um enquadre adequado, o povo quer divãs!); quanto da positividade dos entraves institucionais especialmente aqueles que derivam das malhas da burocracia universitária (por exemplo toda a sorte de exigências acadêmicas que se contraporiam, a princípio, ao desejo do analista). Entretanto, no que tange ao real pulsional, Freud não foi tão ingênuo quanto nós outros. O que ele nos diz é que a resistência oposta pelas pulsões possui duas faces: uma que será elaborada pelos significantes que constituem o sujeito em um trabalho no qual está implicada a resistência, porém de um modo que poderíamos situar como resistência do próprio material (Freud, 1937); e outra que apresenta-se como ponto irredutível ao trabalho de análise, este sim o limite constitutivo do sujeito: para Freud (1937) o rochedo da castração, para Melanie Klein (1957) a Inveja primária, e que Lacan (1955-1956), ao meu ver, deu uma versão mais exata ao propor o conceito de Real como sendo um buraco na estrutura do sujeito que resiste a toda formação significante. Nesse ponto, não se fala mais em cura, até porque não se pode curar alguém da infelicidade comum inerente a sua existência. Pode-se, ao meu ver, tomar os impasses institucionais a partir do modelo acima descrito. Isto significa dizer que se, por um lado estes impasses de fato apresentam-se como limite à Psicanálise, por outro eles nos instigam a alargar estes limites através do trabalho significante. Desse modo, cada instituição busca as suas soluções idiossincráticas para dar conta da solução dos impasses (desvios) em relação aquilo que se apresenta como resistência ao trabalho analítico. Talvez um aspecto que devamos assinalar quanto a isso é que as soluções engendradas, na maioria das vezes, se inscrevem como dispositivos técnicos sem a devida elaboração teórica, e que, consequentemente, carecem de uma articulação mais orgânica a produção teórica em Psicanálise. Por outro lado, o que é produzido nas Çlínicas-Escola é visto pelo establishment psicanalítico como não sendo psicanálise ou, o que costuma ser considerado um pecado maior ainda, como sendo psicoterapia. No que se refere a este ponto, minha opinião coincide com a de Fedida (1998) no sentido que ele entende a psicoterapia como sendo uma análise na qual estão presentes muitos impasses. Assim, o que fazemos na Clínica-Escola é psicoterapia porque, em todo caso, trata-se de uma psicanálise sujeita a muitas complicações. Proponho agora que examinemos o segundo tipo de resistências descritas por Freud que são aquelas advindas do Eu. Muito tem se falado sobre o narcisismo como sintoma social contemporâneo, e como este estado de coisas criou uma situação tal que os tempos atuais constituem-se como sendo especialmente difíceis para a prática da análise. Estas dificuldades se materializariam em vários aspectos da prática clínica mas, principalmente, como dificuldades técnicas justificadas pelo argumento de que a inflação narcísica tenderia a posicionar o sujeito na análise de modo que esta se inviabilizaria tendo em vista os impasses produzidos por uma transferência predominantemente especular bem como, pela prevalência do polo narcísico da estrutura subjetiva que redundaria em formações (psicopatológicas) resistentes a abordagem analítica. Se é verdade que o Eu opõe resistência ao trabalho analítico, seja pela sua dimensão narcísica, seja através do seu polo defensivo, também é verdade que não se pode prescindir de tais elementos na arquitetura subjetiva. De certo modo o Eu resiste aos influxos que vêm do Outro porque cabe a ele, em todo caso, a mediação do discurso do Outro que franqueia ao sujeito uma certa consistência que estende-se da relação a imagem do corpo próprio ao acesso a chamada realidade cotidiana. Desse modo, no percurso do trabalho analítico, não há como contornar o polo resistencial advindo do Eu, a não ser que se pudesse contornar o próprio Eu. O terceiro grupo de resistência que nos propusemos a analisar são aquelas advindas da posição transferencial do analista. Tomemos esta questão a partir do ponto onde deixamos nossa discussão a respeito do narcisismo. Se antes dissemos que o paciente atualiza, no contexto do tratamento, a dimensão narcísica da sua estrutura psíquica, logicamente que o lugar onde se dá esta atualização é a transferência. No início do tratamento prevalece a dimensão narcísica da transferência uma vez que o analista é tomado como objeto imaginário na relação que ali se estabelece. Desse modo, o pedido de tratamento sempre será mediado por este polo imaginário da transferência que, conforme o que já foi disto antes, é o polo resistencial da transferência. Esta resistência não é produzida somente pelo Eu do paciente, talvez o que se possa dizer com mais precisão sobre este momento da análise é que a resistência está muito mais do lado do analista principalmente se ele, através da ostentação do seu eu, encampa este lugar imaginário que lhe é proposto pelo paciente (Lacan, 1953-1954). Esta estrutura dual somente será rompida se o analista, através da conjuração da regra fundamental, venha a instaurar a dimensão simbólica da transferência na qual o que prevalece é o lugar do Outro. Um menino de oito anos quando das primeiras sessões do seu atendimento subscrevia envelopes nos quais escrevia: "para o Vicente". Após algumas sessões ele mudou este procedimento não subscrevendo mais os envelopes (deixava-os em branco) e ao entregar-me simplesmente dizia: "Para quem quiser ler". Penso que este exemplo ilustre bem este momento de passagem da dimensão imaginária para a dimensão simbólica da transferência. Resta mencionarmos a proposição de Lacan (1964) de que "a transferência é a atualização da realidade do inconsciente" cujo o principal corolário é articular a transferência à pulsão (sabemos por Freud que a realidade do Inconsciente é sexual). Se articulamos a transferência à pulsão, a posição que o analista é convocado a ocupar é o lugar do objeto a . Desse modo, no fim da análise, ao ocupar o lugar do resto, o analista deverá se deixar cair para que o sujeito advenha neste lugar (Roudinesco e Plon, 1998 ). Quanto a questão específica do desligamento dos estagiários da Clínica -Escola no final do estágio de Psicologia Clínica (geralmente com duração de um ano) pode-se dizer que é, justamente, no campo da transferência que podemos identificar os seus efeitos, inclusive e, principalmente, aqueles que qualificamos como institucionais. Por exemplo, na instituição em que iniciei minha prática clínica3 nos perguntávamos se seria mais efetiva a passagem de um paciente que foi atendido em entrevista iniciais o bastante para que se estabelecesse um vínculo transferencial mais consolidado (seja lá o que isso queira dizer) ou se, pelo contrário, o período de entrevistas iniciais deveria ser abreviado para que o vínculo transferencial se desdobrasse com o terapeuta definitivo. A verdade é que nunca chegamos a uma opinião conclusiva sobre o assunto, pois esta questão se atualizava de modo radicalmente próprio em cada encontro transferencial. As entrevistas iniciais na Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS são realizadas por terapeutas mais experientes (geralmente vinculados a Cursos de Extensão ou Especialização) a aposta é que estes teriam mais condições de suportar o início do tratamento que constitui-se num momento crítico do no qual o pedido de tratamento é endereçado a um analista precisamente através de seu viés imaginário conforme expusemos antes. Já na Clínica de Psicologia da URI, parte das entrevistas iniciais são realizadas por terapeutas-estagiários no contexto da sua primeira experiência Clínica que é o Estágio Básico em Psicodiagnóstico. Desse modo, constata-se que os modelos se antagonizam, entretanto os resultados em termos de efetividade do tratamento, até onde eu posso avaliar, não são distintos. Para concluir, no que se refere ao vínculo transferencial/institucional, pode-se dizer que o paciente deve sempre ter a opção de continuar o seu tratamento com outro estagiário. Na Clínica de Psicologia da URI esta passagem tem se constituído como uma prática corrente na qual a maioria dos pacientes permanecem em tratamento. Quanto ao estagiário-terapeuta penso que uma solução interessante é propiciar a possibilidade de um vínculo com a instituição que se estenda além do período do estágio curricular. Nós optamos por viabilizar esta possibilidade através de um Curso em Nível de Especialização em Psicologia Clínica. Por fim, parodiando Freud (1937) eu diria que, tanto no que se refere ao desligamento do terapeuta-estagiário, quanto no que tange à decisão do paciente de continuar ou não em tratamento, a análise só acaba quando termina. Referencias Bibliográficas FEDIDA, P. A psicoterapia na psicanálise hoje. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 32, n.58/59.p. 79-92, nov.1999. FREUD, S (1900). A Interpretação dos Sonhos. In: ESB Obras Completas. v. IV e V. Rio de Janeiro, Imago, 1987. 3 Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS ______ (1937). Análise terminável e interminável. In: ESB Obras Completas. v. XXIII. Rio de Janeiro, Imago, 1987. KLEIN, M (1957). Inveja e Gratidão. In: Inveja e gratidão e outros trabalhos [19461963]. Rio de Janeiro: Imago, 1991. LACAN, J. O seminário: livro 11: os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, 1964. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ____ . O seminário: livro 3: as psicoses, 1955-1956. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. _____ . O seminário: livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. ROUDINESCO, E. e PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. . .