Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 115-138, jul. 2012/jun. 2013
TEXTOS
A ESCRITA ATAPETADA DA VOZ:
tempo e espaço na experiência
do despertar1
Luciana Brandão2
Resumo: Seguiremos a trilha de Clarice Lispector e Maria Gabriela Llansol em
alguns de seus textos para que, ao cabo da leitura, o leitor seja confrontado com
uma experiência que implica o tempo e que, num além em relação ao significante, toque no cerne da transmissão por via de um escrito: quando corpo pulsional
e escritura se encontram, porque alicerçados nos fundamentos do erotismo, tal
qual a psicanálise de Freud e Lacan propõe.
Palavras-chave: escrita, corpo, erotismo.
WRITING CARPETED BY THE VOICE:
time and space in the experience of awakening
Abstract: We will follow the trail of Clarice Lispector and Maria Gabriela Llansol
in some of their texts, following wich the reader is confronted by na experience
that implicates time, and wich, beyond the signifier, touches upon the heart of
the question of transmission through the means of writing: at the point where
the body of de drive and writing meet, they are grounded in the fundamentals of
eroticism.
Keywords: writing, body, eroticism.
1
Uma parte deste texto foi texto apresentada na Mesa redonda Ato e Letra, no IX Simpósio
do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ e IV Colóquio Internacional Escrita e
Psicanálise: Linguagem e Escritas do Corpo, em 06 de novembro de 2012, no Rio de Janeiro.
2
Psiquiatra; Psicanalista; Escritora. E-mail: [email protected]
116
A escrita atapetada da voz...
Amor e morte
T
alvez seja no litoral entre estes dois mundos − unidos e separados por
uma letra de gozo e por um traço de escrita −, que se encontre um lugar
originário para todo falante.
Em Lituraterra Lacan ([1971] 2003) assinala que a letra demarca o litoral entre heterogêneos, como rastro, não sem indicar a possibilidade de um
atravessamento nesse ponto limite entre o real e o simbólico. Heteróclitos,
saber e gozo não se misturam, mas coexistem.
Ao trilharmos tais mundos, lançamo-nos, irremediavelmente, na trajetória que tende ao silêncio e ao caos, no rumo certo que nos leva em direção
à finitude. Essa rota, movediça e obtusa, diz respeito a uma experiência que
provoca o contato íntimo com a presença materna que nos habita, originária
e derradeira. Uma experiência em que se finca a raiz do erotismo; implicando o tempo e o espaço; coadunando a origem ao fim; entrelaçando a morte
à vida.
Uma trilha que coloca em causa o sujeito, frente a um caminho que se
abre e o move em direção à escrita. Uma operação que provoca efeitos ao
longo de um percurso, que o atravessa no mesmo instante que o produz.
Como? Clarice Lispector nos ajuda nesse ponto.
Com ela, lançamos a hipótese de que a escrita de seu estilo decorreu
de um efeito proporcionado pela mais arcaica das experiências, oriunda de
uma temporalidade em que sequer havia furo, na vigência apenas de uma
marca: a marca originária semeada pelo grão da voz materna, gérmen de
toda vida. Os seus escritos testemunham essa temporalidade, tributários
que são do instante em que o infans entra no campo da linguagem. Quando,
num átimo, a morte se inscreve no corpo por via da castração.
Na tentativa de avançarmos, elegemos, diante de tais considerações,
O relatório da coisa (Lispector, 1999b) – título de um interessante conto da
escritora mencionada. Por quê? Porque ele permite que verbalizemos algo
dessa experiência. Nesse texto, cujo personagem principal é um relógio
que se chama Sveglia, Clarice Lispector toca no cerne da transmissão por
via de um escrito, quando algo é transmitido a partir de uma experiência
que ocorre num além em relação ao significante, no ato que consagra, a
um só tempo, corpo pulsional e escritura. Afinal “Sveglia não admite conto
ou romance, o que quer que seja. Permite apenas transmissão” (Lispector,
1999b, p.60).
A transmissão de que se trata diz respeito ao efeito de sentido real –
distinto do sentido proveniente do simbólico ou imaginário –, mencionado
por Lacan ([1974-1975] s/d) em R.S.I.? Provavelmente.
117
Luciana Brandão
Sveglia provoca uma experiência que envolve o tempo, naquilo
que o tempo tem de mais real e radical: a eternidade do agora, suspensão temporal que abole o passado e também o futuro. Por isso, Sveglia
é.
Mas por ora deixaremos Sveglia a nos esperar, para que, antes de
nos despedirmos dele, possamos melhor situar o argumento de nosso texto. Recorreremos, então, a outro narrador, o personagem Autor do livro
derradeiro de Clarice Lispector, Um sopro de vida ([1977] 1999a), dele
recolhendo a seguinte frase: “Para escrever tenho de me colocar no vazio”
(p.15).
Desse espaço vazio, que se confunde com o corpo do escritor, a linguagem emerge. No tempo em que o silêncio da pulsão demarca a morte na
pele que atapeta a carne, erotizando-a.
Escrito em 1977, às vésperas da precoce morte da escritora, tal livro
também recebe o subtítulo “pulsações”, numa vertente que o situa fora do
âmbito das ficções literárias. Ao nomeá-lo assim, parece que Clarice reafirma a trágica solidão em que se encontrava nas letras modernas, exilada
que estava do próprio campo da literatura.
Com tal ato, o pulsional se inscreve no título de uma obra que aponta, mais do que nunca, ao caráter fragmentário ao qual gradativamente
se reduziu o texto lispectoriano. Essa redução pode ser pensada como
a chegada do seu texto ao ponto de letra, proposta por Lucia Castello
Branco (2011), quando a voz narrativa faz ecoar tão simplesmente o grão
da voz. Tal como Roland Barthes ([1973] 1997) o situou ao nos contar
sobre os incidentes pulsionais da linguagem atapetada da pele, depositados em um texto através do qual se escuta o grão erotizado que sopra
da garganta de quem o escreve. Trata-se do efeito de um trabalho que
se realiza por via da linguagem na própria linguagem, em que o escritor
atravessa a representação e obtém uma torção em sua escrita, situandoa na dimensão daquilo que Barthes ([1973] 1997) nomeou como escritura. A escritura seria este estado em que o texto alcança a concisão de
um grão, ou, para nos valermos da nomenclatura lacaniana, quando se
pode ler, por via do estilo do escritor, uma depuração que somente ocorre
porque o seu texto habita o universo da letra. Da letra tal como ela se
apresenta em Lituraterra (Lacan, [1971] 2003), assim o supomos. Letra
que se distingue do significante, situada entre a palavra e o silêncio, no
litoral entre o gozo e o saber, lugar entre o excesso e a falta. Na articulação do corpo e da língua, o grão da voz ganha contorno de letra − operador lógico propício à abertura de novos sentidos tanto quanto para a
destruição destes.
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A escrita atapetada da voz...
Escritura, o Kama-sutra da linguagem
Roland Barthes, em seu ensaio O prazer do texto ([1973] 1997), assinala que o texto é um corpo erótico. Ele também afirma que os ritmos
literários correspondem aos ritmos corporais, que advêm a partir do trabalho
realizado com a linguagem, cuja matéria-prima é a palavra poética colocada
em ato. O ritmo de determinados textos deriva desse compasso (ou desse
pulso) corpóreo, reconhecido na leitura, na alternância ocorrida entre os
tempos de pausa e suspensão e os momentos em que a experiência de ler
se faz veloz e desenfreada.
As entonações e o timbre musical também refletem a nostalgia de um
momento mítico, desde sempre perdido, em que os prazeres se fariam sentir de maneira irrestrita e ilimitada, a partir do gozo com o primeiro amor, a
mãe. Quando o sopro da voz materna é murmúrio na pele do bebê, a linguagem de Eros se faz repercutir na sensualidade do toque entre os corpos.
Para Barthes ([1973] 1997), o texto é também o lugar dos ritmos respiratórios, onde “a pulsão inscreve a sua pulsação, mimetizando eroticamente os
movimentos criadores de um outro corpo erótico, nascido desse sopro do
desejo” (Brandão, 1995b, p.57).
A sensualidade investida no texto pode ser sentida nas palavras de
Barthes quando ele descreve a relação amorosa, portanto erótica, entre o
escritor e seu leitor. E, ainda, entre o escritor e o seu próprio texto. E, mais,
entre o texto e o seu escritor. Ele chega a propor a ideia de que existe um
desejo da própria escrita, uma vez que o escritor vive sob a exigência da
obra. Ainda em seu livro O prazer do texto ([1973] 1997), ele nos apresenta
essa ideia de que o texto deve dar provas ao escritor (bem como ao leitor)
de que ele (o texto) é o desejante da escrita. Somente assim se atinge o
que ele chama de “escritura”, uma vez que nem todos os textos provocam
prazer. Alguns, por ele chamados de textos de gozo, provocam inquietação.
O texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele
me deseja. Essa prova existe: é a Escritura. A Escritura é isso: a
ciência das fruições da linguagem, seu kama-sutra (desta ciência,
só há um tratado: a própria escritura) (Barthes, [1973] 1997, p.11).
O que é a escritura para Barthes? Numa resposta curta e direta: a escritura é o kama-sutra da linguagem:
A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É
como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta
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Luciana Brandão
das palavras. Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um
duplo contato: de um lado, toda uma atividade do discurso vem,
discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado único que é “eu te desejo”, e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo,
fazê-lo explodir (a linguagem goza de se fazer tocar a si mesma);
por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio,
o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o comentário ao qual submeto a relação (Barthes, [1973] 1997, p.64).
Barthes se posiciona de um modo novo em face à crítica literária de
sua época, ao propor que um texto nem sempre é lugar de prazer. Para
além dos textos confortáveis e idílicos, há essa outra escrita, que aponta, ao
contrário, a um lugar de desconforto, próprio ao gozo que se vive na experiência do unheimlich. Textos assim se erguem numa íntima relação com a
morte, com a morte enquanto ruptura. Por isso, esses textos costumam ser
vertiginosos. Antes dele, não havia lugar na crítica séria para textos digressivos e à margem. Eles demandam uma posição diferente de seus leitores
(portanto, de seus críticos). Inicialmente dragados pelo turbilhão que tais
textos suscitam, há todo um trabalho necessário de descolamento e separação por parte do leitor, que advém muitas vezes somente depois que
ele é levado pelo texto a escrever. É preciso que ele suporte um tempo de
simbiose amorosa e mimetismo com o objeto amado – o texto, que também
é objeto de desejo – para que, no desenlace dessa paixão, a crítica se faça
com alguma verdade.
Barthes ([1973] 1997) se refere a essa experiência com tal rigor que
considera impossível proceder a uma leitura/escrita “de fora” do texto. É preciso escrever/ler “de dentro” do texto; nele, em seu interior, confundido com
o escritor que inicialmente o concebeu. Talvez por isso a crítica tradicional
muitas vezes os considere textos herméticos, inanalisáveis e sem lugar.
O escritor de prazer (e seu leitor) aceita a letra; renunciando ao
gozo, tem o direito e o poder de dizê-la: a letra é o seu prazer; está
obsedado por ela, como estão todos aqueles que amam a linguagem (não a fala), todos os logófilos, escritores, epistológrafos, linguistas; dos textos de prazer é possível portanto falar [...] a crítica
versa sempre sobre os textos de prazer, jamais sobre os textos
de gozo [...]. Com o escritor de gozo (e seu leitor) começa o texto
insustentável, o texto impossível. Este texto está fora-de-prazer,
fora-da-crítica, a não ser que seja atingido por um outro texto de
gozo: não se pode falar ’sobre’ um texto assim, só se pode falar
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A escrita atapetada da voz...
‘em’ ele, à sua maneira, só se pode entrar num plágio desvairado,
afirmar histericamente o vazio do gozo (e não mais repetir a letra
do prazer) (Barthes, [1973] 1997, p.31-32).
Nessa guinada, se a psicanálise tem muito a aprender com o campo
literário, a crítica literária, por seu turno, também encontra na psicanálise
uma fonte preciosa de questionamentos aos quais se lançar. É justamente
por esse motivo que Lacan considerou que “é por esse método que a psicanálise poderia justificar melhor sua intrusão na crítica literária”, levando
a crítica literária a se renovar efetivamente, “pelo fato da psicanálise estar
aí para os textos se medirem por ela, justamente por ficar o enigma do seu
lado, por ela se calar” (Lacan, [1971] 2009, p.108).
Essa modalidade de texto, que aponta ao lugar vazio da morte enquanto abismo da significação, indica justamente o topos de onde uma genuína
invenção pode surgir, através da criação de uma nova retórica. Quando é
preciso dizer mas não se tem meios para fazê-lo, forja-se essa novidade,
capaz de modificar o corpus social por meio de sua potência poética. Assim,
novos significantes são criados e estilos inovadores reconhecidos, tanto
quanto gêneros literários são rompidos e limites discursivos ampliados.
Textos concebidos frente ao vazio da produtividade correspondem ao
que se admite no discurso literário como Escrita feminina3, mesmo quando
o sujeito da enunciação é um homem. Uma escrita de gozo, diria Barthes.
Em nossa opinião, Lúcia Castello Branco (2011) parece nomear por “escrita feminina” uma gama de textos que dizem respeito ao que Jacques Lacan
apontou em sua lição sobre Lituraterra, em seu seminário De um discurso
que não fosse semblante ([1971] 2009). Trata-se de uma escrita que advém a
partir de uma posição discursiva aberta ao feminino, ao gozo feminino. Uma
abertura para a transgressão, tentativa de se ir além dos limites da língua, do
corpo e da narrativa. Numa trilha além do prazer, além do princípio do prazer.
O artifício de escrever talvez seja a maneira pela qual alguns escritores
tentem, em vão, escrever o indizível. O indizível que aponta ao impossível.
Uma tentativa de dizer o é da coisa, de escrever aquilo para o qual não há
inscrição, o real.
Numa temporalidade em que o corpo simplesmente não existe – pois,
segundo Lacan ([1972-1973] 1985), nesse tempo o corpo ex-siste – a leitura
de obras como as de Clarice Lispector e Maria Gabriela Llansol fomentam
3
A expressão Escrita feminina foi cunhada pela escritora e psicanalista Lúcia Castello Branco.
121
Luciana Brandão
a tese de que a prática de escrever as levou a se submeterem a uma experiência que é correlata ao que se passa na operação que funda a matriz
simbólica de onde o ser falante emerge, o recalque originário.
Tal suposição encontra sustentação na posição discursiva a partir da
qual as duas escritoras mencionadas enunciavam, pois o gozo místico pode
ser pensado como um tipo de gozo que se realiza no furo provocado pelo recalque originário, em decorrência do confronto com Ⱥ mulher, que não existe. Esse gozo é experimentado por ocasião desse acontecimento particular,
em que o Outro é barrado. Enquanto posição discursiva, a posição feminina
é aquela que suporta tal enunciação, pois, ao estar posicionado do lado mulher, o falante que daí enuncia é capaz de entrar em contato com uma parte
que, embora lhe seja constitutiva, não está remetida ao gozo fálico.
Graças a essa modalidade de escrita, indicamos que tais escritoras
mantiveram relação com o Outro sexo. Por qual motivo? Por que, ao ser o
suporte da mulher (Ⱥ) – Deus ou o Outro-sexo – seus textos parecem ser o
efeito da escrita do sinthome, o que atesta que a relação sexual não existe
(Lacan, [1975-1976] 2007, p.98).
Ainda que não seja nosso objetivo nos alongarmos sobre a temática
do sinthome no momento, importa delimitar que segundo Lacan haveria ao
menos dois aspectos cruciais sobre a função do sinthome, a serem destacados. Um deles é a possibilidade de o sinthome fazer suplência do significante Nome-do-Pai, corrigindo o nó em estruturas cuja configuração as
levaria, não fosse o trabalho operado pelo sinthome, ao desencadeamento/
desnodulação corolários a uma psicose que se desencadeou.
Contudo, a perspectiva que adotamos no momento a respeito do sinthome realça simplesmente a natureza desse operador, qualquer que seja a
estrutura à qual ele se relacione. A pertinência de nós trazermos esse operador para o presente trabalho decorre do fato de ele ser o suporte do traço
unário, adotando-o sob o viés de ele ser, antes de mais nada, um significante funcionando como objeto – tal como Lacan ([1961-1962] 2003), nos idos
do seminário a identificação, propõe acerca do nome próprio.
Desse modo, consideramos o sinthome como um significante que trabalha na conjunção disjuntiva entre o traço unário e o objeto a, tal como a
letra, o que nos permite relacionar, de maneira indissociável, a autoria de
uma obra e o estilo de um autor.
Ao nomear o inominável, o sinthome é o significante que cria o real.
Ele é a escrita da impossibilidade de a relação sexual se escrever. Por isso,
Lacan a ele se refere como a flor do simbólico, desabrochada de um traço
cuja natureza o reduz a um objeto da pulsão − como, por exemplo, a voz
ou o seu grão −, do qual a vida germina e o corpo soergue. Eis a potência
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A escrita atapetada da voz...
poética do sinthome: escavar um lugar, através dos artifícios da linguagem,
onde depositar o objeto que da própria linguagem cai.
Mas o traço unário, o que seria ele afinal?
Partindo do Ein einziger Zug freudiano, Lacan propõe o conceito de
traço unário enquanto traço fundamental, ponto primordial da identificação
simbólica na relação de um sujeito com o objeto que se perde do campo do
Outro. No seminário A transferência, Lacan o designa como o “signo” de
um sujeito (Lacan, [1960-1961] 2001, p.344), para, alguns meses depois, já
no seminário A identificação ([1961-1962] 2003), circunscrevê-lo como um
“significante” (especialmente na aula de 29 de novembro de 1961), ficando
patente, nesse momento de seu ensino, que o traço unário é o elementochave utilizado por Lacan quando buscava precisar o estatuto do significante, diferenciando-o do signo.
O traço unário é um traço distintivo, marca indelével de um sujeito em
sua singularidade, que inscreve, no ser falante, a diferença enquanto tal. Sua
origem remonta ao momento original, em que o sujeito é elidido pela linguagem, surgindo no lugar do apagamento do objeto, quando este cai do campo
do Outro, ou seja, quando se produz uma falta no Outro. Isso, porque o traço
unário apaga a Coisa (das Ding), ele a rasura, dela restando apenas vestígios.
Fruto da operação de separação a partir da qual a pulsão de morte se
encarna – inscrevendo a castração nas malhas corporais de um sujeito –,
o traço unário é uma espécie de vestígio deixado pelo objeto a. Esse fato
levou Lacan a afirmar, na aula de 10 de janeiro de 1962 de seu seminário
A identificação ([1961-1962] 2003), que, “se é do objeto que o traço surge,
é algo do objeto que esse traço retém, justamente sua unicidade” (Lacan,
[1961-1962] 2003, p.100-101).
Enquanto marca distintiva, esse traço é da ordem de um puro bastão:
um traço sem qualidades, intraduzível, que funciona simplesmente como o
suporte da diferença, permitindo ao sujeito se inserir numa contagem e a
equivaler ao seu nome próprio. Para Lacan, o nome próprio é, assim, um
traço aberto à leitura; um efeito da leitura do traço unário.
Lacan, ao comentar que “a poesia é efeito de sentido, mas também
efeito de furo” ([1976-1977] s/d)4, acaba por assinalar a existência de uma
Refiro-me à seguinte passagem encontrada na Lição do dia 17 de maio de 1977 do seminário
inédito L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre: “La poésie est effet de sens mais aussi
bien effet de trou. Il n’y a que la poésie vous ai-je dit, qui permette l’interprétation et c’est en cela
que je n’arrive plus, dans ma technique, à ce qu’elle tienne: je ne suis pas assez pouâte, je ne
suis pas pouatassé”. Tal passagem pode ser traduzida para o português da seguinte maneira:
“A poesia é efeito de sentido, mas também de furo. Não há senão a poesia que permite a interpretação, e é nisso que eu não chego mais em minha técnica a que ela se atenha. Eu não sou
bastante “poeta”. Eu não sou poeta bastante”
4
123
Luciana Brandão
trança entre a poesia e o saber inconsciente, o que promove efeitos de
transmissão. Eis a razão de Lacan também ter afirmado que ele não era um
poeta, e, sim, um poema. Um poema que se escreve, “apesar de ter jeito de
ser sujeito” (Lacan [1976] 1998e, p.568). E isso decorre do simples fato de
ele se posicionar como um agente da poesia. O agente de um discurso, de
um acontecimento de linguagem, de um saber que promove efeitos de furo
e também de sentido. Lacan, com isso, salienta o litoral de onde o saber
inconsciente emerge.
No que diz respeito à literatura, podemos dizer que há também uma
trança que a enlaça ao saber inconsciente. Esse trançamento Lacan nomeou Lituraterra, modalidade textual que acomoda o objeto a, sua invenção. Qual a importância de nomear uma determinada literatura como tal?
Bem, com esse ato, Lacan circunscreve o campo literário da psicanálise.
O sujeito do qual a psicanálise se ocupa emerge do campo da fala e
da linguagem. Mas Lacan precisou subverter a linguística para delimitar a
linguagem da qual o sujeito emerge, criando, através de uma nomeação, o
campo da linguisteria.
Em relação à literatura, ele procedeu da mesma maneira. Com o termo
Lituraterra, Lacan nomeia um campo textual que se destaca da literatura,
embora a ela esteja relacionado. Nesse caso, esse ato possibilita a tomada
do texto enquanto escritura, em cujas bases encontramos o índice de algo
que jamais se escreve.
Esse trabalho com o texto escrito, e mais especificamente com o texto
literário, levou Lacan a se interrogar a respeito da letra, do que faz furo,
mas também do que faz borda ao saber. Assim, ao indicar que “a Literatura
analítica é uma Lituraterra” (Porge, 2005, p.72), Lacan circunscreve uma
modalidade de texto que tange o limite da linguagem, apontando também a
sua origem.
Com Lacan aprendemos que o corpo pulsional se constitui na medida
em que a matéria do corpo é banhada pela pulsão. O real do organismo
do bebê antecede a constituição de seu corpo, pois, para que um corpo
se faça, é preciso que a sua materialidade seja animada pelo simbólico.
Essa animação advém do encontro com a linguagem, a partir dos traços
significantes que chovem do Outro, aluviados de lalangue. Com o ravinamento desse gozo assemântico, − ideia apresentada por Lacan a partir da
metáfora geográfica por ele utilizada em Lituraterra ([1971] 2003) −, a superfície corpórea é perfurada por traços de uma língua estrangeira, morta,
que lhe chega do exterior. Esse escoamento produz sulcos, vias por meio
das quais a superfície corpórea se anima. Eis que, assim, o corpo é liturado,
num tempo em que, no trato com a precariedade simbólica do infans, a mãe
124
A escrita atapetada da voz...
manuseia amplamente o seu bebê: dirigindo-lhe a voz, imprimindo afetos,
outorgando olhares, nomeando sensações, aplicando-lhe o toque.
A linguagem antecede a posse do silêncio, pois, para que um sujeito se
faça falante, é necessário que nele se incorpore um ponto indizível, um pedaço de real que choveu de lalangue. O silêncio pulsional – ao ser imiscuído
no real do organismo –, concede ao infans a possibilidade de ele aceder à
linguagem. A partir daí, por via da palavra, ele conquista o exercício de seu
dizer, podendo enunciar e designar o que lhe perpassa e rodeia.
Existe, portanto, uma impossibilidade em tudo se dizer também para
aqueles que enunciam a partir de uma escrita dita feminina. Na verdade, tal
textualidade escancara essa impossibilidade, ainda que se tente ampliar e
expandir os limites da língua que a acolhe. Diante do “além” que tal escrita
conclama, importa sublinhar a existência de um limiar até onde se pode ir,
porque, enquanto não-toda submetida ao gozo fálico, ainda assim em parte
a mulher com o falo mantém relação. Sem a baliza fálica nenhuma expressividade seria possível. Esse “a mais” que diz respeito ao “além” do gozo
feminino é circunscrito pelos limites da linguagem, indicando a existência
de uma modalidade textual que se produz nas bordas do discurso, mas não
fora dele. Por isso podemos articulá-los como textos-limite, caracterizando
uma literatura de borda, escritos que tangenciam um litoral e margeiam o
gozo. Ou, como testemunha Llansol (2011a), textos concebidos na margem
da língua. Uma textualidade que se dirige ao que Barthes ([1973] 1997) nomeou como escritura, num além em relação à literatura.
Ao se referir sobre a própria escrita, o depoimento registrado por Maria
Gabriela Llansol em um dos seus diários, no dia 30 de maio de 1979, aponta
em tal direção:
Destituo-me da literatura, e passo para a margem da língua [...]
tal é a árvore genealógica da literatura portuguesa. Os temas, circunscritos ao país despido das suas rotas de viagem, são temas
carcerais que revelam a mediocridade das relações de sociedade, em geral, e o desenvolvimento normativo de uma literatura;
diferente é a interrompida linha de continuidade das memórias,
enterradas nas areias de um mapa celeste; quase escondido da
literatura vigente, teme surgir um campo inundado da língua em
que conhecer-se através dela faz parte dos amores íntimos [...]
vivo para escrever e ouvir e, hoje, fui um dos primeiros leitores de
Na casa de Julho e Agosto; tão profundamente me sensibilizou
o texto que, depois de me ter esquecido o que ia dizer, ou seja,
escrever a seguir, me sentei no banco verde do jardim, junto de
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Luciana Brandão
Prunus Triloba, a reflectir que me devia perder da literatura para
contar de que maneira atravessei a língua, desejando salvar-me
através dela (Llansol, 2011a, p.12).
Ainda a esse respeito, Maria Gabriela Llansol também escreve em seu
diário no dia 02 de outubro de 1981: “Não há Literatura. Quando se escreve
só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros” (Llansol, 2011a, p.52).
Transpor os limites da linguagem significa engendrar o ilimitado pelas
bordas do discurso; senão, seria metafísica. Quando Lacan ([1972-1973]
1985) desenvolve suas ideias sobre os deslizamentos incessantes do gozo,
ele assinala a existência de uma barra no Outro que impede o gozo absoluto. Portanto:
Se a escrita feminina se constrói nessas bordas, como um discurso
não marcado, seu específico não é exatamente o que se opõe ao
paradigma, mas o que se desenha em seus contornos. Por isso,
como discurso da margem, ela será uma escrita do fragmento, da
ruptura, da cisão; uma escrita a que corresponde uma dimensão
temporal sempre descontinua, sempre lacunar; a uma noção de
sujeito não pleno, não acabado; uma escrita que não nega o vazio
que a constitui, mas que antes o exibe, o apresenta, e faz dele
matéria de linguagem. A configuração que proponho para a escrita
feminina não desemboca, portanto, numa configuração de gênero,
ou de espécie: o feminino não é o lírico, não é o poético, não é o
memorialista, embora o lírico, o poético e o memorialista possam
atravessar esse lugar feminino da escrita. Esse discurso feminino,
a meu ver, deve ser entendido antes como uma categoria de escrita a que se chega quando determinados gestos de paroxismo da
linguagem são efetuados – sejam eles gestos ficcionais, de memória, sejam mesmo de crítica (Branco, 1995a, p.75).
O amor e o grão da voz
No seminário A angústia ([1962-1963] 2005), Lacan é enfático ao afirmar que o amor permite ao ser falante aceder ao desejo; na mesma lição em
que propõe que, por via da demanda materna, o cíbalo ganha o estatuto de
ser, “a dádiva por excelência, o dom do amor” (p.331). Sob esse viés, para
Lacan, é o amor que possibilita a passagem do gozo para o desejo, sendo a
pulsão simplesmente o efeito da demanda do outro.
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A escrita atapetada da voz...
É o amor que subsidia a passagem do oral ao anal, alicerçando a
transposição da prevalência da voz ao predomínio do olhar, na vigência da
operação simbólica da separação. Não obstante, é sob a égide do olhar que
o corpo próprio pode ser cotejado. Dessa feita, o ser falante passa a ter um
corpo na medida em que os dois registros – oral e anal, voz e olhar – passam a operar conjuntamente.
Nunca é demais dizer que o investimento amoroso, realizado geralmente pelos pais, é o responsável por fornecer o lastro simbólico para que o
ser falante se engaje num laço discursivo e se apodere de uma imagem que
dê forma ao seu próprio corpo. Por isso Lacan asseverou, na lição do dia 18
de dezembro de 1973, do seminário Les non dupes errent ([1973-1974] s/d),
que o amor é o laço essencial entre o real e o simbólico. Admitindo o amor
como a relação do real ao saber, Lacan situou o amor como uma saída ao
mais-de-gozar. Para ele, o amor é contingente justamente por nele intervir a
função do real. E, se o real é no fundo a morte – lá onde o desejo foi expulso
–, o amor é, pois, o meio para unir corpo e gozo. Nesse contexto, podemos
dizer que é o amor que possibilita a criação da verdade do espaço, para que
ali um ser falante vigore. O amor, nessa perspectiva, é uma valiosa defesa
contra a morte, favorecendo a manutenção da vida e da imagem corporal.
A incorporação do pai – dos traços simbólicos que fundam uma estrutura – também diz respeito às marcas de amor encarnadas no pequeno vivente.
Com isso, podemos dizer que o amor inaugura o tempo do exílio, suplantado
pelo desejo que advém quando uma demanda dá notícias de um sujeito que
ali floresce. Do amor recebido – inerente ao que se transmitiu da lei paterna
– o ser falante pode então se servir. E, portador de um lastro simbólico, ele
vem a dispor de uma quota libidinal que será utilizada na ventura dos investimentos que ele fará. É nessa direção que podemos admitir a suplência que
o amor é capaz de realizar: Lacan sustenta, no seminário mais, ainda ([19721973] 1985), que um dos nomes-do-pai é o amor, apresentando-o como uma
das formas de suplência da relação sexual, que não há. Nesse viés, o amor
pode suprir a falta de um significante que represente o sexo.
Lacan decerto se ocupou do amor ao cotejar o texto freudiano, fazendo
avançar um trabalho cuja temática perpassou distintos contextos no decorrer de seu ensino. Partindo da obra platônica O banquete (2011), primeiro
ele o trabalha no seminário da transferência, valendo-se da leitura do mito
de Poros e Pênia. Pênia (que em grego quer dizer “pobreza” ou “penúria”)
não tinha nada a oferecer, por isso não poderia participar dos festejos que
celebravam o nascimento de Afrodite. Aproveitando-se todavia da embriaguez de Poros, ela adentra em seus aposentos e o seduz, engravidando
nessa noite para, meses mais tarde, dar à luz Eros. Lacan ([1960-1961]
127
Luciana Brandão
2010) então formula a transferência indicando que “amar é dar o que não se
tem” (p.435), nomeando a transferência como o “milagre do amor”.
Anos mais tarde ele retoma a leitura de O banquete (Platão, 2011),
só que dessa vez pela via do mito do andrógino trazido por Aristófanes.
Nesse momento de seu ensino, Lacan ([1972-1973] 1985) abre o seminário
mais, ainda indicando que o amor demanda o amor, contrapondo o amor
fusional ao amor “em Deus” – inerente aos místicos –, o qual, por sua vez,
não exige reciprocidade, pois parte de um ponto de infinitude que é índice
da inexistência da relação sexual. Para Lacan, o amor fusional faz barreira
ao inconsciente, pois ele obtura o vazio deixado pela impossibilidade da relação sexual se escrever. Em contrapartida, Lacan indica essa modalidade
diferente de encontro amoroso: sem proporção entre os sexos, tal encontro
subscreve o um que não faz série, tampouco unificação. Daí Lacan nos
dizer, também no mesmo seminário, que diante disso “a única coisa séria
que se pode fazer é letra/carta de amor” (Lacan, [1972-1973] 1985, p.113),
dimensionando, assim, o estatuto da escrita e de seu endereçamento.
Assim como para Barthes existem duas modalidades textuais − quais
sejam, textos de gozo e textos de prazer −, para Lacan existem duas modalidades de amor. Uma dessas modalidades corresponde ao amor no senso
comum, entendido como uma relação de proporcionalidade entre os amantes, que, exemplarmente encenado pelo amor cortês, faz barreira ao inconsciente e suplência à inexistência da relação sexual. O laço entre o leitor e os
textos de prazer poderia ser pensado nessa perspectiva. Tal modalidade de
amor é uma expressão subjetiva do gozo fálico, que visa à obtenção de sentido tributária da miragem complementar da unidade, indicada, desde Freud,
quando ele discorre sobre o narcisismo, pois a unidade do ego abrange essa
ilusão de completude com o Outro. No amor fusional, trata-se, então, de um
laço que busca a complementaridade entre o amante e o amado, obturando
imaginariamente a falta, através da ilusão narcísica de reciprocidade.
Todavia, no contraponto desse laço amoroso, há outra modalidade de
amar, que se aproxima da dimensão do que Lacan nomeou como gozo feminino ou gozo suplementar, que não tem reciprocidade ou proporcionalidade.
Ao invés de conferir sentido e encobrir a falta, esse amor, ao contrário disso,
faz furo no sentido e desvela a falta imaginariamente encoberta. Os textos
de gozo, em suma, provocariam como efeito esse tipo de enlace.
Quando Lacan propõe que Deus é Ⱥ mulher, que não existe, ele assim
o faz acentuando que Ⱥ mulher está do lado do ser, ou seja, comparecendo
como gozo do Outro. Com a barra do recalque colocada sobre A (Ⱥ), indicase a divisão de uma mulher estabelecida entre dois gozos: o gozo fálico
– do qual participa através do homem –, e o gozo feminino, que aponta ao
128
A escrita atapetada da voz...
significante da falta de significante no campo do Outro. O gozo fálico limita
o gozo do Outro, o que possibilita que este último seja, após uma torção,
vivenciado como gozo feminino.
O árduo trabalho com a linguagem efetuado pelo escritor, frente a essa
voragem, provoca consequências. Barthes refere-se a ele como um processo que leva à extenuação, em que:
[...] por fim, o texto pode, se tiver gana, investir contra as estruturas canônicas da própria língua (Sollers): o léxico (neologismos
exuberantes, palavras-gavetas, transliterações), a sintaxe (acaba
a célula lógica, acaba a frase). Trata-se, por transmutação (e não
mais somente por transformação), de fazer surgir um novo estado
filosofal da matéria linguageira; esse estado inaudito, esse metal incandescente, fora da origem e fora da comunicação, é então
coisa de linguagem e não uma linguagem, fosse esta desligada,
imitada, ironizada (Barthes, [1973] 1997, p.42-3).
Essa extenuação levaria ao grão da voz? Pensamos que sim. Ainda
com Barthes ([1973] 1997) em O prazer do texto:
Se fosse possível imaginar uma estética do prazer textual cumpriria incluir nela: a escritura em voz alta. Esta escritura vocal (que
não é absolutamente a fala), não é praticada, mas é sem dúvida ela
que Artaud recomendava e Sollers pede. Falemos dela como se
ela existisse. Na antiguidade, a retórica compreendia uma parte olvidada, censurada pelos comentadores clássicos: a actio, conjunto
de receitas próprias para permitirem a exteriorização corporal do
discurso: tratava-se de um teatro de expressão, orador-comediante ’exprimia’ sua indignação, sua compaixão, etc. A escritura em
voz alta não é expressiva; deixa a expressão ao fenotexto, ao código regular da comunicação; por seu lado ela pertence ao genotexto, à significância; é transportada, não pelas inflexões dramáticas, pelas entonações maliciosas, os acentos complacentes, mas
pelo grão da voz, que é um misto erótico de timbre e linguagem,
e pode portanto ser por sua vez, tal como a dicção, matéria de
uma arte: a arte de conduzir o próprio corpo (daí a sua importância
nos teatros extremo-orientais). Com respeito aos sons da língua, a
escritura em voz alta não é fonológica, mas fonética; seu objetivo
não é a clareza das mensagens, o teatro das emoções; o que ela
procura (numa perspectiva de gozo), são os incidentes pulsionais,
129
Luciana Brandão
a linguagem atapetada da pele, um texto onde se possa ouvir o
grão da garganta, a pátina das consoantes, a voluptuosidade das
vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do
corpo, da língua, não a do sentido, da linguagem (Barthes, [1973]
1997, p. 85-86. Os grifos são meus).
A escrita em voz alta, diz Barthes, condensa eroticamente o timbre e a
linguagem. Podemos ler essa escrita por ele proposta de mãos dadas com
Lacan, uma vez que é do lado do que há de mais real na linguagem que Lacan situa a escrita. O grão em pauta corresponderia a esse irredutível, entre
heterogêneos? Um grão-letra, que litura a terra. Ao mesmo tempo em que
conserva o que há de mais real na fala (o timbre da voz) ele faz litoral com o
fenotexto, com a linguagem que se abre ao universo de todas as representações. Um misto erótico, entre saber e gozo.
Sveglia e Clarice
Ao mencionar o vazio em que precisa se colocar para criar, Clarice
Lispector muito bem situa o lugar de onde ela escrevia. Afinal, a arte torna
possível um encontro com o impossível. Isso quer dizer que ela viabiliza a
experiência de um confronto; de uma tomada de posição, pelo sujeito, no
momento em que ele se choca com o vazio que lhe é constitutivo. Esse vazio instaura o movimento do desejo, pois ele está, indelevelmente, relacionado ao gozo perdido de das Ding (a coisa), parcialmente recuperado nessa
experiência que a obra de arte proporciona. É por isso que Lacan afirmara,
em seu seminário sobre a ética, que a obra de arte se eleva à dignidade de
coisa (Lacan, [1959-1960] 1997, p.140-141).
Toda obra, seja literária ou não, corresponde a uma organização de
tal vazio constitutivo ao dar-lhe um contorno. Ela organiza esse vazio, que
nada mais é do que um furo real existente no seio da linguagem. A linguagem, tecido do qual somos feitos, nos permite um distanciamento da coisa,
protegendo-nos da aniquilação de um confronto com o real sem mediação
(Lacan, [1959-1960] 1997). A escrita bordeja esse vazio. Ao operar com a
letra, o escritor tem êxito em um trabalho com a linguagem que o remete às
fímbrias de onde o inconsciente se estrutura, pois, para Lacan, o inconsciente é simplesmente “estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem” (Lacan, [1955-1956] 2002, p.139).
O corpo erógeno é um espaço que somente existe quando circunscrito
por um bordejamento, para que assim a pele – enquanto tecido de linguagem – possa vestir a carne da qual também somos feitos. Podemos dizer
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A escrita atapetada da voz...
que essa pele/borda coloca em relação o “dentro” e o “fora” que nos liga
ao mundo, moebianamente, conectando a linguagem que igualmente nos
constitui à realidade “interna/externa” sem a qual não existimos – fato que,
em suma, nos possibilita investir numa vida em relação com os outros, por
via dos laços amorosos passíveis de serem feitos.
Logo, a linguagem atapetada da pele, proposta por Barthes ([1973]
1977), diz respeito a uma tessitura em que o tempo se coaduna ao espaço,
porque é no tempo mesmo em que a trama da língua é cerzida que a pele/
corpo se perfaz para aquele que fala.
Isso não é novidade.
Desde Freud nos foi dito que o ato de escrever coloca em evidência
a dimensão sexual da escrita, enquanto ato sexual, que apenas se realiza
porque implica o corpo do Outro – do Outro com “O” maiúsculo. Nesses termos, o ato de escrever equivale ao ato de fazer amor com a palavra e o seu
limite – com a palavra em seu limite.
Logo que o escrever, que faz com que um líquido flua de um tubo
para um pedaço de papel branco, assume o significado de copulação, ou logo que o andar se torna um substituto simbólico do
pisotear o corpo da mãe terra, tanto o escrever como andar são
paralisados porque representam a realização de um ato sexual
proibido (Freud, [1926] 1976, p.110).
Marcada pela impossibilidade, a escrita que pisoteia a página branca,
no momento original em que um texto é concebido, traz consigo o gozo de
um momento perdido, evocado do instante exato em que um encontro jamais se realizou. Afinal, como asseverou Lacan, “tudo o que é escrito parte
do fato de que será sempre impossível escrever como tal a relação sexual”
(Lacan, [1972-1973] 1985, p.49).
Esse desencontro com das Ding, depreendido a posteriori por
aquele que fala, provoca efeitos de escritura, na estrutura do ser falante. Efeitos absolutamente imprevisíveis, em que opera a memória de
um passado inexistente, quando o ser falante esteve reduzido simplesmente a uma promessa, destinado a um futuro todo por se fazer. Talvez
seja esse o ponto de abertura e inovação em que o ato de escrever se
encontra com o que está no cerne do que define a dimensão do ato
analítico.
Roland Barthes ([1953] 2004) certa vez declarou que o ato de escrever
é um ato erótico forte, cujo principal efeito, oriundo da escritura, é a fadiga
amorosa de quem precisa insistir, sempre e reiteradamente, em escrever.
131
Luciana Brandão
Por isso, também para Barthes, escrever é uma necessidade inconciliável.
Por qual motivo? Porque a cada vez é necessário relançar o desejo, pois a
repetição, consequente dessa insistência deriva da pulsão de morte, atestando a existência de algo inassimilável, vindo do real.
Outra escritora que privilegiadamente indica as relações entre corpo
erógeno e escritura é Maria Gabriela Llansol. Quando os escrevia, dizia que
os seus livros eram “atravessados por uma corrente erótica fortíssima [...]
por uma corrente libidinal”, o que a levou a se referir ao ato de leitura como
o seu “sexo de ler” (Llansol, 2011c, p.57). Tal como Freud, a escritora equipara o ato sexual ao ato de escrever, ponderação claramente verbalizada
na anotação redigida num de seus diários: “E o sexo e a escrita não serão
os dois nomes da mesma ação?” (Llansol, 2011b, p.19). Indagada a respeito
dos motivos pelos quais era levada a escrever, certa vez respondeu:
Por que escrevo? Escrevo para testemunhar o que os meus olhos
expectantes veem, a minha escrita é isto: o meu sopro [...] quando
me perguntam se escrevo ficção eu tenho vontade de rir. Ficção?
Personagens que acordam, dormem, comem? Não, não tenho
nada a ver com isso. Para mim, não há metáforas. Uma coisa é ou
não é. Não existe o como se. O que escrevo é uma narrativa, uma
só narrativa que vou partindo, aos pedaços (Llansol, 2011b, p.48).
Morte: linha de partida e também ponto de chegada. Por isso é que
agora, ao final, voltaremos ao ponto de largada deste texto: O relatório da
coisa (Lispector, 1999b).
Sveglia é. Sveglia, simplesmente é. É assim que a narradora, com
grande esforço, descreve esse relógio na obra que mencionamos. Especial,
ele lhe proporciona uma experiência que envolve o tempo, naquilo que o
tempo tem de mais real e radical: a eternidade do agora, suspensão temporal que abole o passado e também o futuro. Por isso, Sveglia é.
Sveglia é um relógio cujo nome, em suas origens italianas, está ligado ao verbo svegliare: em português, acordar. Ele é composto por alguns
pequenos furos pretos pelos quais ressoa um som macio como o cetim,
descrito pela protagonista do conto como o resultado de uma ausência de
palavras. Ele possui dois discos distintos apenas pelas suas cores − cores
estas que também diferem conforme se trate do interior ou do exterior do
relógio.
Dourado por dentro e prateado por fora, Sveglia faz mais do que marcar o tempo, pois também detém a importante função de despertar aquele
que dorme – despertar o falante para a verdade da castração, rompendo
132
A escrita atapetada da voz...
com o que imaginariamente esteja encobrindo a falta, que o constitui. Por
esse motivo é que ele tem o poder de acordar a protagonista do conto para
o real, proporcionando-lhe a transmissão de uma experiência que é, em
suma, a irrupção de uma temporalidade na qual a morte se inscreve no falante, por meio da força de Eros5.
Não vou falar sobre relógios. Mas sobre um determinado relógio.
O meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer e sem literatura.
Este relatório é a antiliteratura da coisa. O relógio de que falo é
eletrônico e tem despertador. A marca é Sveglia, o que quer dizer
’acorda’. Acorda para o quê, meu Deus? Para o tempo. Para a
hora. Para o instante. Esse relógio não é meu. Mas apossei-me de
sua infernal alma tranquila (Lispector, 1999b, p.57).
Na intimidade do pulsional, sem ideais ou esperanças, o acordar ao
qual a narradora é introduzida a dirige ao cerne do que se passa na dessubjetivação, efeito temporal do recalque originário. − O que estaria no cerne
da transmissão, por via de um escrito, quando algo é transmitido ao leitor
através de uma experiência que ocorre num além em relação ao significante? Arriscamos responder: o tempo. A experiência do tempo, enquanto
colocação do real.
Trata-se da transmissão de uma experiência cuja temporalidade situa
uma inscrição originária, no instante em que um traço demarca, no corpo,
um ponto que se torna o espaço de ancoragem para o ser falante ex-sistir.
Ponto de puro rastro que, numa anterioridade lógica ao sujeito, nele
escreve, inscrevendo-o no campo da linguagem, na ordem do simbólico.
Lugar de depósito e inscrição, privilegiado ao traço unário, onde se costura
a teia do erotismo. Quando, em face ao gozo, a trama do desejo é fiada
pelo amor – sim, porque na hora em que se costura esse primeiro ponto, na
tapeçaria em que as tramas do corpo se alinham aos dizeres, o amor é o elo
que permite o tear do desejo, no limiar da palavra.
Segundo o mito grego, Eros é o deus do amor, responsável pela origem de toda vida, cuja
principal tendência é a união, a conexão do homem com a sua origem e a finitude. Deve-se a
ele a criação da Terra, também conhecida como mãe natureza, inerente ao Cosmos e a tudo o
que dele participa. Quem ama busca o complemento e a fusão. Todavia, haveria uma modalidade de amor ímpar, em que as partes envolvidas não fazem Um. As diferenças são preservadas,
porque tal amor se dirige ao infinito, expressão mística que aponta ao real que está na origem,
ao impossível que é o amor.
5
133
Luciana Brandão
E no limiar da palavra, quando o tapete por onde o falante dará seus
passos, o que se colhe senão o grão da voz? Mais uma vez, Maria Gabriela
Llansol e a primazia da voz escrita, em textos de gozo e insistência:
[...] a voz não está fora do texto. A voz não está dentro nem fora
do texto... ao mesmo tempo é uma voz extremamente corpórea, é
muito objetal essa voz. E, quando ela fala, ela provém de um corpo
real que sabe perfeitamente qual é a sua experiência, o que viveu... digamos que ela traz as marcas de sua própria existência...
(Llansol, 2011c, p.49-50).
O exercício do tempo é o tempo do instante de ver, coadunado ao momento de concluir. Temporalidade em que o furo do olhar do Outro se cruza
com a voz que a ele se superpõe − com uma voz que nada quer dizer, opaca
e sem sentido porque ela se reduz a um puro eco de lalangue, a um grão.
Quando ocorre a morte da coisa, o que se vivencia é uma avassaladora e
violenta enxurrada daquilo que escapa ao simbólico; uma torrente de gozo
à qual o corpo é submetido, simultaneamente ao tempo em que se funda a
realidade psíquica, ou seja, a fantasia inconsciente. A fantasia que a partir
de então é tecida advém como uma tentativa de conter tal excesso.
A tela da fantasia, entretanto, é vazada. E a experiência erótica sobre a
qual nos debruçamos (equivalente ao acontecimento de corpo que fazemos
equiparar à experiência do despertar) salienta que existe um furo que se
esgarça na medida em que o tempo passa. Com Sveglia, novamente:
Sveglia é o Objeto, é a Coisa, com letra maiúscula. Será que o
Sveglia me vê? Vê, sim, como se eu fosse um outro objeto. Ele
reconhece que às vezes a gente também vem de Marte. Estão me
acontecendo coisas, depois que soube do Sveglia, que mais parecem um sonho. Acorda-me, Sveglia, quero ver a realidade. Mas é
que a realidade parece um sonho [...] Dorme, Sveglia, dorme um
pouco, eu não suporto a tua vigília. Você não para de ser. Você
não sonha. Não se pode dizer que você “funciona”: você não é funcionamento, você apenas é [...] mas é você que faz acontecerem
as coisas. Me aconteça, Sveglia, me aconteça. Estou precisando
de um determinado acontecimento sobre o qual não posso falar.
E dá-me de volta o desejo, que é a mola da vida animal. Eu não
te quero para mim. Não gosto de ser vigiada. E você é o olho único aberto sempre como olho solto no espaço. Você não me quer
mal mas também não me quer bem. Será que também eu estou
134
A escrita atapetada da voz...
ficando assim, sem sentimento de amor? Sou uma coisa? Sei que
estou com pouca capacidade de amar. Minha capacidade de amar
foi pisada demais, meu Deus. Só me resta um fio de desejo. Eu
preciso que este fio se fortifique. Porque não é como você pensa,
que só a morte importa. Viver, coisa que não conhece porque é
apodrecível – viver apodrecendo importa muito. Um viver seco: um
viver o essencial (Lispector, 1999b, p.58).
Sveglia desconhece o “viver” porque viver é perecível. A vida acaba,
apodrece, deteriora-se. E Sveglia, que rege o tempo que aponta ao infinito,
só conhece a eternidade.
Essa radical experiência cria um espaço que dá acesso à vastidão
sem limites que transcende o entendimento humano − vereda da existência,
aberta no exercício desse tempo que somente o agora consegue situar.
Trata-se do tempo no qual se cria um espaço virtual que a ele se conjuga.
Tempo privilegiado porque franqueia o sonho e o desejo, a criação e a fantasia. Enquanto um acontecimento erótico porque se realiza no fundamento do corpo (que também fenece e apodrece), essa experiência só ocorre
justamente porque um lastro de amor a faz emergir – tal como no amor dos
místicos, que se dirige à vida em seu bruto esplendor, numa ausência absoluta de garantias frente à inconsistência do Outro. Esse exercício do tempo
aciona o desejo em toda a sua potencialidade. Por isso é que às vezes
situações de perdas ou de confrontos com a morte provocam reviravoltas,
pois são situações extremas que nos acordam de um sono existencial, tal
como Sveglia o faz.
Eis que, assim, Sveglia tem o poder de acordar a protagonista do conto
simplesmente para que ela veja a realidade – realidade que ela diz estar
muito próxima ao sonho e, ao mesmo tempo, tão distante da vivência doméstica que enche de sentido o seu cotidiano. E Sveglia não tem descanso
por que ele é, no conto, a colocação do tempo no que ele tem de mais real:
ele funciona como o operador daquilo que resiste a uma contagem, que se
dirige em direção à morte, enquanto algo do pulsional que se vivencia a partir de uma experiência radical, como é a dessubjetivação. Radical e violenta,
como o erotismo.
A narrativa brota desse lugar vazio, ponto de letra dessubjetivado, que
coincide com o tempo puro do espaço infinito. No espaço sem tempo da obra,
tal como o propõe Maurice Blanchot (1998), o que se presentifica é justamente essa ausência, dando passagem para um traço que se torna o “é” da obra.
O que seria o “é” da obra? Seria aquilo ao qual se reduziu esse instante
de suspensão, de liberdade do ser. Do ser que se perde momentaneamente
135
Luciana Brandão
no “agora”, no além desmedido do gozo em sua face de excesso. Por isso,
Sveglia é.
Uma das formas mais pungentes da vivência subjetiva que a análise pode fazer emergir é a vivência do tempo enquanto tal, do
instante já, do agora. Viver o agora significa a perda absoluta das
esperanças imaginárias, relativas ao futuro, e exercer o desejo de
forma radical. Significa, portanto, entronizar a morte [...] precisamente porque o exercício do desejo no agora é tributário da entronização da morte pelo sujeito, vê-se que o presente pode assumir
um caráter altamente ameaçador (Jorge, 2010, p.235).
Com Sveglia, Clarice Lispector descreve essa experiência:
Água, apesar de ser molhada por excelência, é. Escrever, é. Mas
estilo não é. Ter seios é. O órgão masculino é demais. Bondade não é. Mas a não-bondade, o dar-se, é. Bondade não é. Mas
a não-bondade não é o oposto da maldade. Estarei escrevendo
molhado? Acho que sim. Meu sobrenome é. Já o primeiro é doce
demais, é para o amor. Não ter nenhum segredo – e no entanto
manter o enigma – é Sveglia. Na pontuação as reticências não
são. Se alguém entender este meu irrevelado relatório e preciso,
esse alguém é. Parece que eu não sou eu, de tanto eu que sou.
O Sol é, a Lua não. Minha cara é. Provavelmente a tua também
é. Uísque também é. E, por incrível que pareça, Coca-cola é, enquanto Pepsicola nunca foi. Estou fazendo propaganda de graça?
Isto está errado, viu Coca-cola? Ser fiel é. O ato do amor contém
um desespero que é (Lispector, 1999b, p.62).
Essa experiência limite, que mortifica o ser e o vivifica, celebra a separação que o lança no mundo. Eis o despertar. Na justa hora do adeus,
quando o fim se encontra ao começo, e a morte se encarna no corpo que
resplandece em toda a sua potência erótica.
Adeus, Sveglia. Adeus para nunca sempre. Parte de mim você já
matou. Eu morri e estou apodrecendo. Morrer é.
E agora – agora adeus
(Lispector, 1999b, p.64).
136
A escrita atapetada da voz...
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Recebido em 10/11/2012
Aceito em 21/06/2013
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 139-150, jul. 2012/jun. 2013
TEXTOS
UMA OUTRA ÉTICA
ENTRE A ESCRITA E O GOZO
Maria Lucia Homem1
Resumo: O artigo busca discutir a possível constituição de uma ética a partir da
contribuição de Lacan sobre o conceito de gozo, assim como o de escritura. Em
Encore, Lacan distingue o gozo fálico, ancorado no sentido e na linguagem, de
um outro gozo, feminino, místico, situado além da referência ordenadora do falo.
O artigo trabalha as questões do silêncio e da escrita que se decantam a partir
de textos de Marguerite Porete, Clarice Lispector e Marguerite Duras, abordando uma experiência além-da-palavra e de anéantissement ou aniquilação frente
ao real.
Palavras-chave: gozo místico, psicanálise, ética, razão.
ANOTHER ETHICS BETWEEN WRITING AND JOUISSANCE
Abstract: This paper aims to discuss the possible constitution of an ethic based
on Lacan´s contribution about the concept of jouissance as well as on that of
writing. At Encore, Lacan distinguishes between the phallic jouissance, anchored
in meaning and language, and another jouissance, feminine, mystical, beyond
the reference of phallus. The paper focusses on the questions of the silence and
writing, as shown in Marguerite Porete, Clarice Lispector and Marguerite Duras,
which reflects a beyond-word experience of anéantissement or annihilation in
face of the real.
Keywords: mystical jouissance, ethics, psychoanalysis, reason.
Maria Lucia Homem é psicanalista, pesquisadora da FFLCH/USP e professora da Fundação
Armando Álvares Penteado, FAAP-SP. Pós-graduação em Psychanalyse et Esthétique pelo
Collège International de Philosophie e Universidade de Paris 8, e doutorado pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autora de No limiar do silêncio e da letra (São
Paulo: Boitempo/Edusp/Fapesp, 2012). E-mail: [email protected]
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Maria Lucia Homem
A
psicanálise, desde a formalização freudiana, faz a crítica de uma racionalidade moderna – centrada num eu consciente e pensante – subvertendo o cogito cartesiano. Desde a modernidade, com o deslocamento
dos lugares do divino e do humano, e mais contemporaneamente, com os
imperativos de gozo, felicidade e sucesso, têm-se alargado os veios de
uma gramática individualista que pode oscilar entre a lógica obsessiva e
a perversa, tal como a clínica continuamente nos desvela. Nesse sentido,
o lugar anteriormente estável da lei simbólica unívoca parece ter que ser
posto continuamente à prova, e eventualmente transgredido, numa matriz
materialista e instrumental de viés por vezes prioritariamente hedonista e
niilista. O que a discussão sobre o gozo, e suas diversas faces, poderia
ajudar a encaminhar essa questão sobre o lugar do parâmetro da lei na
clínica contemporânea?
Em Encore, Lacan ([1972-1973] 1975) distingue o gozo fálico, ancorado no sentido e na linguagem, de um outro gozo, feminino, místico, situado além da referência ordenadora do falo. Algo de inabarcável silêncio
encontra-se aí, tal como atestam os escritos de Marguerite Porete, Clarice
Lispector e Marguerite Duras. Poderíamos, então, formular a questão: haveria a possibilidade de o sujeito sustentar uma outra posição ética de comparecimento frente ao enigma e ao Outro, a partir da consciência da contingência absoluta, do limite da capacidade humana de lidar com o mundo, da
experiência de um gozo além da razão fálica?
Falar desde um referencial teórico embasado na psicanálise implicar
tomar como ponto central para desenvolver o tecido da conversa a ideia
de um sujeito não todo inscrito na lógica racional clássica, isto é, trata-se
aqui de um sujeito marcado pelas determinantes vias do inconsciente e da
pulsão. O fio básico é discutir, a partir dessa subversão do cogito cartesiano
operada por Freud, duas formas de gozo distinguidas por Lacan com o intuito de situar questões sobre o sujeito contemporâneo, o lugar e o conceito
da razão, uma outra forma de escrita e os impasses da ética. Farei isso em
três breves tópicos.
I. Aquele que diz
Comecemos com um sobrevoo pelas obras de três autoras que, com
suas escritas singulares, não deixam de tocar em algo que, paradoxalmente, busca se inscrever ao mesmo tempo em que se situa num além
da representação, real que escapa à captura pela letra, que, no entanto,
almeja a cifra. São elas: Clarice Lispector, Marguerite Duras e Marguerite
Porete.
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Uma outra ética...
Primeiramente, um trecho que abre um dos últimos textos de Clarice
Lispector, Água viva:
É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito
eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor
de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém
me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio – já estudei matemática que é a loucura do raciocínio – mas agora quero
o plasma – quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho
um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo
instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? ou
se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma
desenvoltura de toureiro na arena (Lispector, 1973, p.9).
Temos uma mulher que grita seu uivo ao mesmo tempo de dor e felicidade diabólica, além ou aquém da razão, do cálculo, da linha reta e cristalina. E que ao longo do livro buscará escrever algo da experiência mais
visceral que, no entanto, não deixa de se colocar como impossível de ser
dita, pois que simplesmente ela “é”, sem palavras.
Eu te digo:
estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão
fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que
também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é.
Quero apossar-me do é da coisa. [...] Quero possuir os átomos do
tempo. E quero capturar o presente que pela sua própria natureza
me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já (Lispector, 1973, p.9-10).
Mas é justamente esse o fio que move a escritora-narradora: buscar
dizer o indizível, traduzir em palavras partilháveis e simbólicas o silêncio indevassável da sua experiência. Buscar o “it” da coisa e capturar o “instantejá” – isto é, vemos a busca do sujeito de se libertar de amarras básicas do
pensamento: as coordenadas espaçotemporais.
“Só no ato do amor – pela límpida abstração de estrela do que se
sente – capta-se a incógnita do instante que é duramente cristalina
e vibrante no ar e a vida é esse instante incontável, maior que o
acontecimento em si. [...] E no instante está o é dele mesmo. Que-
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ro captar o meu é. E canto aleluia para o ar assim como faz o pássaro. E meu canto é de ninguém. Mas não há paixão sofrida em
dor e amor a que não se siga uma aleluia (Lispector, 1973, p.10).
Água viva foi publicado na segunda metade do século XX, não deixando de entrelaçar questões ancestrais do humano sobre a possibilidade de
representação com novos questionamentos da linguagem e de uma estética
do dizer. A busca do é mescla-se com o silêncio da vibração do vivo que, no
entanto, não deixa de não se escrever. Ao mesmo tempo em que, paradoxo,
a função do escritor é justamente a de se deixar capturar nessa armadilha
e, assim, não deixar jamais de escrever. Entre acontecimento e linguagem,
essa literatura se constrói a partir de um “canto” que é próprio, mas “não é
de ninguém”, convidando a uma outra forma de se mapear a subjetivação.
Outra escrita que toca essas questões é a de Marguerite Duras, tanto
em sua forma de compor quanto em suas temáticas. Tomemos um de seus
romances exemplares dessa discussão, e não por acaso citado por Lacan
([1966] 1985): Le ravissement de Lol V. Stein. Um pequeno extrato pode nos
dar ideia desse descentramento de um sujeito clássico, iluminista e racional.
A própria forma de narrar, de certa forma com dois (ou mesmo três) narradores, entre masculino e feminino, já enuncia esse pêndulo:
Aqui estão mescladas, do começo ao fim, duas versões ao mesmo
tempo: uma, irreal, que Tatiana conta e outra que invento sobre a
noite do Cassino de T. Beach. A partir daí contarei minha história
de Lol V. Stein (Duras, 1981, p.9).
Junto com a forma, Duras trabalha a caracterização da protagonista,
Lol, uma subjetividade que flerta com a desrazão, entre ausência e fluidez.
No início do romance, ela é assim caracterizada em sua juventude:
No colégio, diz ela (Tatiana Karl), e não era a única a pensar dessa
maneira, já faltava algo a Lol para estar – ela diz: presente. Dava
a impressão de tolerar num tédio tranquilo uma pessoa com quem
ela julgava ter a obrigação de parecer e de quem perdia a lembrança na menor oportunidade. [...] Lol era engraçada, gozadora
inveterada e muito sutil, embora uma parte dela estivesse sempre
desligada, longe do interlocutor e do momento. Onde? [...] Tatiana
tenderia a acreditar que na verdade era, talvez, o coração de Lol V.
Stein que não estava – ela diz: presente –, provavelmente ele viria,
mas ela não o havia conhecido (Duras, 1981, p.8).
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O deslumbramento ou arrebatamento de Lol V. Stein se dão a partir de
uma cena – cena matriz, verdadeira aparição que ressitua de forma completamente diferente as vidas no tabuleiro. Emerge a outra mulher, entre
enigma, graça e morte.
Lol, momentaneamente imobilizada, tinha visto avançar, como ele,
aquela graça abandonada, encurvada, de um pássaro morto. Era
magra. Devia ter sido sempre assim. Havia coberto aquela magreza, lembrava-se claramente Tatiana, com um vestido preto bastante decotado […] Adivinha-se a ossatura admirável de seu corpo
e de seu rosto. Da mesma maneira que aparecia dali por diante,
morreria, com o corpo desejado. Quem era? Soube-se mais tarde:
Anne-Marie Stretter (Duras, 1981, p.10-12).
O homem, homem de Lol, seu noivo, se vê impactado. Ele parte. Sem mais.
Os olhos de Michael Richardson haviam-se iluminado. Seu rosto
se havia contraído na plenitude da maturidade. Nele se lia uma
dor, mas uma dor antiga, da infância […]
Anne-Marie Stretter e Michael Richardson não mais se tinham deixado. […] Lol seguiu-os com os olhos pelos jardins. Quando não
mais os viu, caiu no chão, desmaiada (Duras, 1981, p.13-15).
Lol V. Stein é tomada pela cena. Temos aqui uma personagem raptada,
capturada (um primeiro sentido do original em francês, “ravie”), ao mesmo
tempo que capturada em um deslumbramento (nome da tradução escolhida
em português; “ravissement”, igualmente). Uma captura em seu corpo, à
terra, ao instante; de certa forma o instante-já clariciano, em que a coisa é,
e nada mais pode caber nesse átimo de existência do ser, real puro, absoluto sem mediação. Nem simbólica, nem imaginária – ato que se faz sem
conhecimento, e sem razão. O arrebatamento da personagem que dá título
ao romance é além das palavras, e é nessa via que Lacan tece sua homenagem a Duras (Lacan, [1966] 1985). Aqui podemos apontar uma tríade de
textos lacanianos que se encontram justamente nesse ponto: esse breve
texto sobre Duras, L’étourdit (Lacan, 1973) e Encore (Lacan, [1972-1973]
1975). Neste último, temos a busca da sutil captura e formalização de um
gozo outro, feminino, pas-tout2 inscrito do lado masculino, fálico, do quadro
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não todo.
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da sexuação. Teresa de Ávila é ponto chave e imagem central (e da capa)
desse seminário. Sua obra ecoa em nós e em vários outros escritos de
místicos do Renascimento espanhol do XVI, como Luis de León e San
Juan de la Cruz.
Seguiremos por essa trilha, mas de outra maneira. Chegamos agora,
après-coup3, a um outro texto, tão próximo e tão distante no tempo: O espelho das almas simples e aniquiladas, da mística beguine4 do século XIII,
Marguerite Porete. A obra é tida como um dos textos mais antigos e singular
obra-prima da mística francesa. Sua estrutura é dialógica, num jogo em que
vários interlocutores se alternam. Os três principais são figuras femininas: a
Alma, a Razão e a dama Amor. Sendo que não podemos deixar de marcar
que esta última virá a se constituir como protagonista da obra.
Tome uma alma entre todas, diz Amor, uma que não deseja nem
despreza pobreza e tribulação, missa e sermão, jejum e orações,
e que dá a Natureza tudo que é necessário, sem remorso de consciência; mas tal natureza é tão bem ordenada pela transformação
da união do Amor, ao qual a vontade dessa alma está unida, que
ela não pede nada que seja proibido (Porete, 1997, p.61).
É este estilo de enunciação que busca dizer o indizível e coloca em
cena certa representação de sujeito não totalmente circunscrito à racionalidade que nos interessa, e que implica não só outra concepção de sujeito
como também uma outra forma de se pensar a relação eu – outro.
Pois Deus não é outro senão aquele sobre quem nada podemos entender perfeitamente. Pois só Ele é meu Deus sobre o qual não se sabe dizer
nenhuma palavra (Porete, 1997, p. 66).
É deste ser de razão e aleluia que o gozo outro move a falar. O fio do
discurso que corre sob esse texto diz justamente da impossibilidade de entender “perfeitamente” e, mesmo, de um dizer pleno. A Razão cada vez parece dar menos conta da tarefa. O sujeito que enuncia sua escrita se deixa
levar, correnteza que é metáfora basal. E busca deixar vir à tona com cada
vez mais precisão: “razão, amor, fé”, nas palavras de Porete.
a posteriori.
Beguines eram mulheres que, sem voto religioso formal ou institucional, dedicavam suas
vidas à oração e à chamada prática do bem na Europa cristã da Idade Média.
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A Razão não me importa mais, nem o trabalho, nem o discurso. O Amor
me fez encontrar nobreza nestes versos de uma canção. É de uma Deidade
pura, sobre a qual a Razão não sabe o que falar (Porete, 1997, p.198).
Somos um amálgama de camadas heterogêneas que se esforça por se
compreender e compreender o real à sua volta. E a função da consciência,
sabemos, é apenas uma das diversas funções subjetivas. Sabemos já das
instâncias freudianas: consciente/pré-consciente/inconsciente. A ordenação
tempo – espaço – causalidade é atributo do sistema percepção-consciência.
O sistema inconsciente opera a partir de uma outra lógica, calcada no processo primário e num certo caldeirão de representações aliadas a diferentes
quantidades de carga, relacionadas por sua vez a determinado quantum de
afeto. Caldeirão onde borbulham conteúdos mentais que buscam se processar e reprocessar ao longo de uma existência – seja através dos sonhos,
das fantasias, das projeções sempre algo delirantes, seja através da produção lógica ou da fatura da arte. O sujeito é muito aquém e além de sua
consciência racional. Como diz a própria autora Clarice Lispector, o texto a
“tomou” como uma produção autônoma e própria em si mesma: “Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço”
(Lispector, 1973, p.19).
II. Razão ampliada ou “razão inconsciente”
Há ainda uma outra linha importante a considerar no tocante à estrutura psíquica tal como situada após a virada freudiana: não só o consciente
não é soberano como o impulso basal que nos move não é plenamente conhecível nem dominável. Ou, dito de outra maneira, amplia-se a consciência
sobre a própria inconsciência, vê-se o humano movido por forças internas e
obscuras e se interroga o limite da capacidade humana de lidar com o mundo. Seres de pulsão, somos movidos por algo do qual também não temos
pleno domínio, pois que o mais profundo do que me move talvez seja para
sempre desconhecido de mim, fundo nesse poço escuro, fonte de vida. Ou,
como diria João da Cruz, a noite escura da alma.
A ideia de pulsão é das mais complexas do arsenal conceitual psicanalítico, pois trabalha com a concepção de uma força impelente, movente,
cuja direção não é sempre e propriamente a vida. Essa foi uma guinada
fundamental e clássica no percurso freudiano: revelou-se algo para além
das pulsões de vida, com seus vetores de manutenção de si mesmo e da
espécie, nas vertentes de pulsão de autoconservação e pulsão sexual. Para
além das pulsões de vida, revela-se no humano aquele nódulo mais além
do princípio do prazer, em que a pulsão se cifra em toda sua potencialidade
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destrutiva e de repetição incessante. Thanatos nomeia as forças inerciais
por excelência, insistente repetição, que deixam o sujeito refém do lugar
em que está, prendendo-o a uma posição de objeto (e não sujeito), lugar
de passividade frente ao burburinho inquietante do mundo, repetindo esquemas que lhe foram ofertados desde sua mais tenra infância e dos quais
ele não pode escapar, nem os pode elaborar (Freud, [1917] 1988), tal como
escutamos cotidianamente em nossas clínicas. Preso então num ciclo dantesco de gozo, o sujeito volteia os caminhos de sua existência, numa repetição sem fim, de formas determinadas de fora – colocando em questão os
ideais modernos de autonomia e livre-arbítrio, que seriam sustentados por
uma racionalidade decidida e senhora de seu destino. Não, o sujeito contemporâneo não é de todo submetido a essa possibilidade de guia racional,
é também ser presa de gozo, numa repetição incessante que não deixa de
se inscrever em sonhos e sintomas.
O gozo tem a ver com a maneira com que se usufrui do outro, do objeto – note-se: objeto esse do ponto de vista psíquico, isto é, aquele com
o qual o sujeito faz laço e cuja argamassa é a energia psíquica. Iremos
trabalhar com duas formas de gozo. A primeira é aquela que se apoia em
um ordenador privilegiado, pois que ele é ponto de estruturação: o falo. Falo
que se coloca numa posição tríplice: objeto, significante e função: ponto da
estrutura que condensa o valor, tanto imaginário como simbólico, e, assim,
a alucinação fundamental de completude frente à falta. Operação de criação
de sentido que só pôde ser possível a partir da e na linguagem, pois que ela
é tesouro do arsenal significante que permite ao humano criar sua rede de
certa forma contingente de significação. Na lógica fálica, o de que se trata
é do poder ordenador dessa matriz basal que irá privilegiar um significante
em relação aos outros, assim como um objeto será a ele remetido e assim
significantizado, objeto que irá ser não-indiferente, pois que o falo surge e
aponta a direção de valor. Fálica: função que mói em sua engrenagem as
diferenças radicais do mundo e as ordena na estática linha reta da escala
de valor unidirecional; o heterogêneo subsumido à lógica binária: ter o falo,
não ter o falo; aqui há valor, ali não há valor. De certa maneira, opera-se
uma redução a um pensamento categorizador como forma de se ordenar
a complexidade da experiência. O problema é que o outro também se vê
enredado nesse modo de ordenar e passa a ser subsumido ao lugar fálico
ou faltante. Parece-nos ser impossível lidar com o estatuto de existência radical em que cada objeto é em sua magnitude e enigma: o branco é branco,
o negro é negro, o azul é azul e o marrom é marrom. Nada mais. O grande
é grande e o pequeno é pequeno. Mas não, pois que a lógica fálica insiste.
E ordenamos: passamos sistematicamente a ordenar a multiplicidade da
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diferença singular sob listas infindáveis de mais belos, mais fortes e mais
vendidos. Queremos ardentemente a ideia de nós, sim, podermos, naquele
instante da injunção fálica sob véus, ser mais que o outro e mais que nós
mesmos: o branco mais que o negro, o azul mais que o marrom, o grande
mais que o pequeno. O falo é completude, ao mesmo tempo que insígnia.
Sigo carregando o peso de meus pequenos falos ao longo da vida.
Há ainda um outro gozo, para além da linguagem e da significação.
Além ou aquém da linguagem, e que justamente falha ao tentar dizer, mas
que não é sem efeitos. É um outro gozo. Um gozo dito por Lacan ([19721973] 1975) místico e que, em última instância, é profundo movimento de
fazer Um, consistir em unidade compondo a ideia de uma totalidade. Isso só
pode se dar nas raias da dessubjetivação, das perdas dos limites arbitrários
de um e outro, do apagamento da distinção endeusada pela modernidade
entre sujeito e objeto. O que quero de fato é me laisser aller5 na mão do
outro e seguir, deixar-me flutuar. O gozo daquela doce presença de um me
perder no outro, poder usufruir de uma interpenetrabilidade entre o eu, pobre consciência aprisionada na matéria, e o universo infinito. De fato, como
se eu fosse a criança perdida em placenta quente e úmida ou filho divino
amparado pela mão tão gigantesca de deus, que me faz ínfimo e sem contorno: passaporte para a sensação de perda dentro do outro, ultrapassagem
de limites (os próprios, geralmente os mais cruéis). Me misturo no outro
e sofro um processo de certa perda de mim. Como diz Marguerite Porete
(1997), em Le miroir des âmes anéanties: o de que se trata é de algo indescritível pela palavra, quando saber e consciência fracassam, mas de que
não cesso de buscar falar: sensação de anéantissement, nadificação que é
ao mesmo tempo não passível de expressão clássica e racional.
Retomando: o sujeito é muito aquém e além de sua consciência e de
sua razão, é um ser movido também pelo inconsciente, pela pulsão, pelo
gozo. Tirar os efeitos, talvez radicais, dessa premissa, tem sido um trabalho
denso que, de certa forma, tem se desenvolvido ao longo do último século.
III. Uma outra posição, um outro ethos
Enfim, se tal é a maneira de se ler o sujeito humano pós-Freud, isso
não implicaria uma outra forma de pensar a relação eu – outro, isto é, uma
outra maneira de conceber a ética e, assim, a política?
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deixar conduzir.
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Uma das implicações mais abrangentes dessa premissa metapsicológica seria: se o sujeito então não se conhece plenamente, e nem teria como
fazê-lo, o que ele pode afirmar com certeza e verdade sobre si mesmo? No
entanto, o problema se alarga e traz implicações sobre um outro campo: o
da alteridade. Se cada ser não tem como ter um domínio consciente e cristalino de si próprio, de forma análoga, surge a questão do que se poderia
estabelecer de forma cristalina sobre o outro. Que sei eu de você? Pior,
que sei eu das projeções que lanço sobre você e que te desenham à minha
imagem e semelhança, mesmo que imagem oculta de mim, numa rede de
projeções inevitáveis e constitutivas de meu aparato psíquico?
Estamos já no terreno escorregadio da crise de sistemas explicativos
racionalistas baseados, em última instância, em um sujeito uno e consciente
de si, cujo apetrecho maior de resolução de conflito seria a razão – crise
que acompanha inevitavelmente toda a quebra de um paradigma assertivo
sobre o indivíduo e suas regras e hábitos de ação. A modernidade pressupôs o debate dito democrático como instrumento de resolução de conflito.
No entanto, o debate parece não funcionar se for constituído simplesmente
pela sobreposição de afirmações, pois que, inevitavelmente, a razão e a
“vitória” serão buscadas através da estratégia de se falar mais ou mais alto
(o que leva, logicamente, ao poder do dinheiro e da arma para efetivar esse
falar mais alto).
O diálogo real, efetivo – no sentido de poder propiciar uma outra visão
da realidade, uma outra compreensão do mundo, de si e do outro nesse espaço compartilhado – simplesmente não existe se essa gama de questões
não pode ser colocada: quem sou eu precisamente? Quem sou eu que, na
menor brecha, me confundo com o outro? E, para complicar, quem seria o
outro? Como buscar minimamente escutá-lo e poder saber de suas intenções e razões? Quem e qual é esse objeto com o qual entro em contato? E,
talvez inevitavelmente, me misturo?
A cada vez que entro em relação sem esse “arsenal” de questões, sem
a consciência do desconhecimento que me funda, muito provavelmente não
vejo o outro; cegueira radical que simplesmente pode propiciar terreno fértil para a mais árida solidão e desejo de destruição. Onde não há palavra
simbolizada há a repetição do ato (Freud, [1914] 2005). A psicanálise pôde
apreender algumas leis do funcionamento psíquico e essa é uma delas,
talvez uma das mais preciosas e que eu gostaria de trazer à nossa reflexão:
onde falta o trato simbólico da experiência e do vivido, a repetição da ação
alienada e projetiva vai se dar. E quanto menor trabalho simbólico, mais
violenta e primária a forma da atuação. Enquanto não houver a aceitação
da necessidade do espaço de fala, aquela que parte de uma interrogação
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sobre seu próprio desconhecimento estrutural e uma implicação sobre sua
posição atuada, haverá sempre ato.
A ideia de implicação é inseparável da concepção de responsabilidade: somente aquele que se implica consigo, seu discurso e seu ato, pode
efetivamente “responder por”, responsabilizar-se. O grupo ou a massa tem
sido, historicamente, no entanto, palco da possibilidade de o indivíduo ter
sua singularidade diluída no anonimato, isentando-se assim de sua posição
própria. Embora essa seja a dinâmica e a estrutura clássica do grupo, a
questão que se coloca é justamente a de começar a colocar em xeque tal
naturalidade cíclica e situar o grupo como uma junção de sujeitos, considerados um-a-um, gerando, dessa forma, um coletivo também responsável e
não passível de se isentar sob a fachada do todo.
Uma questão aqui se coloca. A partir do momento em que se coloca
em xeque a existência de uma instância transcendental onisciente, que a
tudo observa e julga, busca-se apoio na introjeção de um representante da
lei simbólica no interior da subjetividade, sob a forma de um supereu. O problema é que essa instância psíquica internalizada não parece cumprir com
a mesma eficácia a tarefa de limitação da pulsão e do gozo e, ao contrário,
o supereu revela-se o locus de um imperativo de gozo. Ou seja, pergunta:
estamos sob os vetores de uma gramática perversa-niilista ou, como dizem
alguns, sob o império de uma razão cínica? Esse parece ser o modo de
atuação de uma racionalidade que se estabiliza na dualidade de proclamar
a direção a ser seguida ao mesmo tempo em que realiza o ato contrário
a essa injunção, dúplice, que está entre os imperativos sociais compartilhados e uma instância psíquica superegoica (Freud, [1923] 1991) que, na
atualidade, nos compele ao gozo narcísico e incessante como figura maior
do alcance da mítica felicidade. E esse imperativo, lançado ao coração de
cada indivíduo (em grande medida pelas estratégias da comunicação de
massa via imagem), se faz num caldo engrossado pela deriva do objeto
dourado do dinheiro a partir da qual, assim, a acumulação de capital passa
a ser o imperativo maior que subsume o outro a lugar de recurso, objeto por
excelência de gozo. O que se atualiza, de fato, através de uma metodologia
pragmático-utilitarista, lugar por excelência de uma racionalidade tecnicista.
Retomando nossos termos anteriores: inconsciente, gozo, implicação.
Para um sujeito, saber de si, de seu desejo e da concepção de outro que
tem vem à tona somente num espaço de fala. A psicanálise propõe essa
metodologia – onde pode haver um espaço de enunciação para além dos
ditos e reditos que formatam e engessam nossas mentes e olhos.
Seria esse um princípio ético a partir dos fios que a psicanálise pôde ir
trançando ao longo do último século? Talvez sim. E talvez possamos enun149
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ciá-lo assim: um sujeito propriamente dito, que busca trilhar um processo
de subjetivação, não tem como deixar de se implicar em sua fala e, a partir
daí, deixar de se implicar em seu próprio gozo. Esse o princípio em que o
sujeito se escoraria para se lançar em sua tarefa investigativa do real e de
contato com a alteridade, qualquer alteridade que seja, o cosmos infinito,
que nos deixa sem fala; a natureza, indevassável em seu âmago; o outro
humano, em sua carga de enigma e temor. Uma pergunta então se coloca:
não haveria o esboço de um vetor que apontaria a construção de uma posição ética, justamente pela mais ampla consciência dessa estrutura psíquica
que implica menos domínio de si e o se deparar com a falência da eficácia
de uma antiga concepção de subjetividade ancorada numa racionalidade de
certa forma limitada pela noção de intenção consciente?
Uma certa posição de implicação como sujeitos, diante de nossa ignorância – em todos os sentidos – e da contingência radical que estrutura
nossa existência, deveria fundamentar um outro laço social e um outro laço
de cada um consigo próprio, para que, a partir daí, pudéssemos operar a estreita mas fundamental escolha que nos faz propriamente sujeitos de nossa
história, individual e coletiva.
Para além ou aquém de uma ética do desejo, que não deixa de tocar
na radical subjetividade da relação do um com seu cerne, o gozo coloca em
questão a insistência de uma escrita que não deixa se buscar fazer, e uma
leitura – entre seres falantes – que não tem como não se reiniciar a cada
vez. Leitura infinita dessa maravilhosa e apavorante biblioteca de babel feita
de moléculas e símbolos.
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PORETE, Marguerite. Le miroir des ames simples et anéanties. Paris: Albin Michel, 1997.
Recebido em 04/05/2013
Aceito em 12/07/2013
Revisado por Marisa Terezinha Garcia de Oliveira
150
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 151-160, jul. 2012/jun. 2013
TEXTOS
EROS E AUTISMO
Silvana Rabello1
Resumo: Para além das histéricas, o autismo evidencia a dimensão erógena
fundamental para nossa humanização e subjetivação. A partir das referências
teórico-técnicas oferecidas por Laznik acerca do autismo e do estabelecimento
dos circuitos pulsionais, este artigo pretende trazer uma discussão acerca de
Eros à luz desse desafiador problema clínico, assim como uma discussão acerca do autismo à luz do que a psicanálise tem a dizer sobre o amor e o prazer.
Palavras-chave: Autismo, pulsão, amor, prazer, psicanálise.
EROS AND AUTISM
Abstract: Beyond hysteria, autism highlights the erogenous dimension, fundamental to our humanization and subjectivity. Drawing on the theoretical and technical references provided by Laznik about autism and the establishment of
drive circuits, this article aims to bring a discussion of Eros in the light of this
challenging clinical problem, as well as a discussion about autism in the light of
what psychoanalysis has to say about love and pleasure.
Keywords: Autism, drive, love, pleasure, psychoanalysis.
1
Psicanalista; Mestre em Educação - Distúrbios da Comunicação; Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP; Assistente-doutor PUCSP - Departamento de Psicologia do Desenvolvimento;
Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Coordenadora do Projeto Espaço Palavra (aprimoramento clínico institucional na área do autismo e
psicose); Coordenadora do curso de Pós Graduação Lato Sensu em Teoria Psicanalítica (PUCSP); Coordenadora de grupo de pesquisadores atuando no campo da Detecção Precoce de
Psicopatologias Graves. E-mail: [email protected]
151
Silvana Rabello
Provocar o desejo, o olhar, o arrebatamento do Outro sobre si!
Encantar-se com este prazer/gozo do Outro!
Surpreender-se pelos efeitos desencadeados por seus gestos, olhar,
sorriso, pelo vislumbre do seu corpo e voz...
Se possível fosse, provocar compulsivamente esse jogo fascinante de
efeitos perturbadores de um sobre o outro...
***
S
eriam, essas, confissões amorosas sob certo véu de censura, se não
estivéssemos, aqui, buscando descrever alguns movimentos fundantes
da constituição subjetiva. Especialmente aqueles que acusam o estabelecimento da circulação pulsional nos primórdios do laço mãe-bebê, a partir de
alguns rastros instintuais.
De qualquer forma, Eros em sua essência!
Trata-se, em qualquer desses contextos, da circulação eternamente constituinte do desejo, atravessando e construindo subjetividades – no
caso, mãe/bebê, como poderia ser amante/amado. Subjetividades que se
organizam enquanto movimentos pulsionais, conforme Freud ([1915] 2010)
enquanto destinos pulsionais.
Dentre esses destinos (recalque, sublimação, reversão ao contrário e
voltar-se contra a própria pessoa) será destacado, aqui, o voltar-se contra a
própria pessoa, pelo fato de evidenciar os movimentos ativo e passivo2 da
pulsão, conforme revelados pelo sadismo e masoquismo, ou mais sutilmente, pelo olhar e ser olhado, beijar e ser beijado, amar e ser amado. Ou ainda
por um terceiro movimento, chamado por Freud como médio reflexivo, ao
ressaltar que, por vezes, esses movimentos pulsionais podem compor uma
experiência reflexiva da pulsão como a experiência de se olhar, se beijar
ou de se amar, entre outras. Importantes movimentos constitutivos do jogo
erótico-amoroso. “O essencial no processo, portanto, é a mudança de objeto com a meta inalterada“ (Freud, [1915] 2010, p.65).
Seriam destinos, através dos quais Eros circula em seu jogo amoroso/
prazeroso, tecendo, alinhavando e costurando, ativa, passiva ou reflexivamente, porém de maneira definitiva, o laço amoroso e a lógica do desejo no
corpo do bebê, subjetivando-o. Trata-se esta da principal porta de entrada
da criança e de seu corpo no universo da subjetivação – Eros.
Segundo o autor, todo instinto é uma porção de atividade; quando se fala, mesmo quando
se fala de instintos passivos. Não se quer dizer outra coisa senão instintos com meta passiva
(Freud, [1915] 2010).
2
152
Eros e autismo
A partir dessa lógica, seria tecida determinada dimensão de Outro em
si, possibilitando o necessário exercício da transitividade, para que o eu é
o outro possa se constituir, como também a possibilidade da troca de posições (eu/você), e, assim, a fundação da alteridade.
Organiza-se, assim, um circuito pulsional em constante investimento,
por onde serão bordadas as dimensões imaginária e simbólica, todas assim
intrincadas, sustentando em sua potência, a humanização.
De outra forma, os significantes não conseguiriam inscrever-se e construir-se no corpo, enquanto corpo, traduzindo as marcas da história, do desejo e do gozo do Outro em si!
Fisgado por essa lógica pela qual se desenrola o desejo humano, o
bebê captura e é capturado pelo Outro, oferecendo-se à volúpia oral materna e constituindo-se, ao mesmo tempo, enquanto objeto de desejo e enquanto objeto psíquico, propriamente dito, para si mesmo – construindo-se
como um eu, sabedor da arte de se fazer amar e de se constituir subjetivamente no laço com o Outro.
Enquanto se faz sujeito e objeto-destino pulsional para esse Outro primordial e para si mesmo, situa-se em determinada posição preferencial nesse complexo jogo símbolo-pulsional, posição na qual irá se estabelecer seu
mirante do mundo, de onde se dará a construção de uma narrativa sobre
sua existência.
Freud ([1915] 2010) dedica-se à elaboração desse jogo pulsional nesses três tempos lógicos constituintes do circuito pulsional em Os instintos e
seus destinos – texto-base das elaborações aqui apresentadas.
Sugere, desde então, que a palavra amar se avizinha cada vez mais da
esfera da pura relação de prazer do Eu com o objeto, e finalmente se fixa nos
objetos sexuais em sentido estrito, e nos objetos que satisfazem as necessidades dos instintos sexuais sublimados. Sendo assim, define “o amar como a
relação do Eu com suas fontes de prazer” (Freud, [1915] 1910, p.74).
Sabemos que Freud sempre ressaltou a importância das dimensões
de prazer na constituição da subjetividade e dos conflitos humanos, desde
o início da vida, revelando o fato de que a censura social nos torna inconscientes dessa dimensão constituinte do prazer e da subjetividade. Legado
impagável às histéricas, reveladoras dessa essência em ser humano.
Lacan, em vários de seus seminários3, insiste, com razão, em que os
psicanalistas deveriam falar mais sobre o amor, entendendo ser este o palco
3
Seminários de Jacques Lacan publicados pela Editora Zahar do Rio de Janeiro.
153
Silvana Rabello
fundamental onde é armada a cena subjetiva, reeditada no jogo transferencial, armando assim as regras do jogo inconsciente que o psicanalista precisa conhecer para saber jogar, na direção do reconhecimento da verdade
do sujeito.
Existe aí, porém, uma dificuldade paradoxal para aquele que trata das
questões do amor, pois falar de amor é também um gozo; um gozo a ser
regulado.
Essa é uma proposição inquietante, trazida à tona pelo discurso psicanalítico, a certo ponto do discurso da ciência e sublinhado por Castel (1994).
Assim, falar sobre o amor é buscar a lucidez impossível a quem reside no
conflito fundamental, em que somos revelados e pelo qual nos alienamos
de nós mesmos.
Laznik (2004), em Por uma teoria lacaniana das pulsões, evidencia a
retomada feita por Lacan (1998) desse texto freudiano em O seminário: Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, onde é feita “uma
releitura da primeira teoria das pulsões à luz da segunda”4. Lacan retoma
a ideia freudiana de que a satisfação consiste em um movimento circular
da pulsão, que parte da borda erógena para voltar a ela, após contornar o
objeto; circuito que se fecha, portanto, em seu ponto de partida.
Desde Freud sabemos, porém, que o objeto em si não tem nenhuma
importância. Lacan, portanto, destaca que a pulsão deve contornar o objeto
causa do desejo – objeto a.
Em Lacan a pulsão, portanto, não é mais um conceito de articulação entre o biológico e o psíquico, mas sobretudo um conceito
que articula o significante e o corpo. Porém esse corpo não é o
organismo, é uma construção que implica uma imagem totalizante,
i(a), em cuja composição o olhar do Outro desempenha um papel
importante (Laznik, 2004, p.94).
Freud avança na compreensão desse processo quando sublinha que
acontece aí o surgimento de um novo sujeito5, para quem o indivíduo se
mostra para ser olhado.
Um novo sujeito, que surge, assim como uma nova ordem subjetiva.
Um novo sujeito para quem o bebê possa se assujeitar, re-engatando a
circulação pulsional também por sua parte, nessa costura que alinhava o
4
5
154
Laznik, 2004, p. 88.
Grifo da autora.
Eros e autismo
fantasma materno e o Outro a seu corpo, estabelecendo a lei no contraponto com as trocas compulsivamente prazerosas, excessivas o suficiente para
produzirem marcas, configurando assim a necessária alienação.
Dessa operação decorre a articulação entre corpo e linguagem, fazendo surgir um sujeito de desejo e um sujeito da linguagem, assim constituído.
É trabalhando em detalhe esse percurso pulsional em três tempos,
descrito por Freud, que Lacan vai introduzir o que me parece o
mais interessante e o mais inaudível dos elementos de sua concepção da pulsão: o surgimento do sujeito da pulsão. Lacan, munido aí provavelmente de sua experiência clínica, mas sobretudo da
lógica interna do seu discurso, força num certo sentido o texto freudiano, forcejo que é em si lacaniano, e ao meu ver extremamente
valioso como instrumento de trabalho para algumas clínicas, como
a do autismo (Laznik, 2004, p.94-95).
Conforme destacado por Laznik (2004), desse seminário de Lacan, o sujeito atinge a dimensão do Outro por intermédio do remate da pulsão, possivelmente enquanto sujeito do inconsciente, que se constitui no campo do Outro.
Lacan nesse parágrafo acossa o mais possível o texto de Freud,
o qual situa, com efeito, três tempos na pulsão: um primeiro ativo,
indo em direção a um objeto externo, um segundo reflexivo tomando como objeto uma parte do corpo próprio e um terceiro que
Freud qualifica de “passivo”, onde a própria pessoa se faz ela mesma o objeto de um outro, esse famoso novo sujeito. Lacan atribui
a este o caráter de primeiro a advir, já que ele insiste em diversas
ocasiões sobre o fato de que não existe aí, antes desse terceiro
tempo, um sujeito da pulsão (Laznik, 2004, p.96).
***
Tomando como base tais elaborações teórico-clínicas, apresentaremos agora o fato de que já faz parte do cotidiano da vida de um bebê,
desde os três meses de idade, a provocação prazerosa do olhar do Outro,
no exercício da circulação pulsional amorosa e erótica, assim como seu
encantamento em cada sucesso nessa provocação, fazendo-se ativamente
objeto de desejo do seu Outro primordial.
Desde então, mostra-se profundo conhecedor dos jogos eróticos e do
desejo materno, encontrando-se completamente instalado nesse complexo
155
Silvana Rabello
circuito pulsional, que o enlaça ao desejo e ao gozo do Outro, nesse jogo de
intensidades pulsionais que o humaniza e o subjetiva.
Os pesquisadores do grupo francês PRÈAUT (Prèvention Autistique)6
examinaram mais de 15.000 bebês aos três meses de idade, reconhecendo-os nesse enlaçamento primordial, já constituído e pulsionalmente ativo
em sua provocação do desejo materno sobre si, sábios em se fazerem objeto deste, conhecedores que já são da falta materna e do seu potencial fálico
nessa dinâmica que irá referenciá-los ao campo do Outro enquanto lugar
simbólico.
Porém, esse mesmo grupo, mais especificamente a psicanalista MarieChristine Laznik, verificou o não estabelecimento dessa circulação pulsional, conforme descrito acima, em seus três tempos lógicos (ativo, reflexivo
e ativamente passivo), como um elemento comum em crianças que se mostravam autistas.
Tal achado parece revelar que o estabelecimento desse laço assim
pulsionalizado, e desse saber do bebê em oferecer-se como objeto do desejo materno não é um fato natural e não se dá por caminhos isentos de
complexidade.
O autismo numa criança traz muitos enigmas ao psicanalista, porém,
revela no cotidiano da clínica que a lógica erótico-pulsional não pôde se
inscrever num circuito completo ao redor do objeto a. Com isso, não se
organiza o terceiro tempo do circuito pulsional, considerado por ela como
ativamente passivo.
Isso quer dizer que a criança consegue se fazer ativa e reflexiva em
seus jogos pulsionais. Porém, não provoca o desejo materno, não se faz,
ativamente, objeto de seu Outro primordial, sugerindo o não surgimento
desse novo sujeito ao qual se alienar e para o qual se oferecer como objeto
de desejo, impedindo a organização da alteridade na direção de seu processo de subjetivação.
Frente a tal limite de Eros, também não constrói redes representacionais organizadas através das quais poderiam se escoar os excessos pulsionais de si e do Outro, já que impedidos de escoamento natural.
Na cena do estádio do espelho, a criança se vira para o adulto que a
carrega, para lhe demandar a confirmação, pelo olhar, do valor de que ela
se apercebe nessa relação, sem a qual a imagem não pode se suportar
6
156
http://preaut.fr/
Eros e autismo
num sentido. Assim, entendemos o corpo como efeito do olhar, enquanto
investimento libidinal que o constitui, reenviando-o, daí em diante, compulsivamente, à busca de se fazer olhar, de se olhar e olhar, já que se constituiu
nesses três tempos que compõem o circuito pulsional. E assim se sustenta
em sua subjetivação.
Esse corpo, efeito do olhar pulsionalisado, pode ser inscrito numa relação que irá oferecer as condições para organizar a relação simbólica fundamental – ausência/presença – conforme verificado diariamente no fort-da
das crianças: perdeu/achou, caiu/retomou, trocas de posição, de lugares de
interlocução, lugares de gozo, ora como sujeito, ora como objeto.
A criança ou o bebê autista não se interessa pelo prazer que pode oferecer à sua mãe, ou em fisgar seu gozo para gozar também. Não entra no
campo desejante para além da necessidade, devendo ser essa a expressão
máxima dos limites de Eros.
Encontramos, aí, um olhar fascinado, porém, não pelo objeto negativado do desejo do Outro ou por se fazer esse objeto para o seu gozo, mas pela
lógica dos objetos positivados: a poeira gravitando no ar que se revela num
reflexo de luz, a imagem das gotas que arpejam através de um espirrador,
o movimento dos objetos que se dobram e não se quebram, etc. Pela lógica
dos objetos, não objeto a.
Não consegue estabelecer o olhar ou qualquer outro de seus movimentos na lógica da circulação pulsional, revelando, ao contrário da circulação ao redor do objeto a, um movimento paralelo, ativo ou reflexivo, mas na
direção de um objeto presença, não desenhando a complexa configuração
da circulação pulsional.
Assim, organiza um corpo que não demanda o Outro em caso de sofrimento ou aflição, já que o Outro não está inscrito em seu corpo na lógica da
demanda, revelando como resposta a determinados estímulos uma aflição
cataclísmica, como nomeia Laznik (1991), como se partisse em pedaços.
Como acontecia com Luiz, um frágil e quieto garoto de quatro anos, que poderia destruir um ambiente, como já fizera algumas vezes, se um estímulo
sonoro ou um movimento brusco o assustasse.
O evitamento radical de algumas situações por parte da criança parece
configurar a resposta possível à enorme dificuldade em administrar essa excitação, sugerindo não ter organizado uma imagem mínima que sustentasse
seu corpo ou um enlaçamento ao Outro que pudesse suportá-lo.
Conforme sugere a autora, não se organiza o que Lacan chama de
imagem originária de seu corpo como unidade, não se organiza certa consistência corporal que seria anterior à sua reedição narcísica especular e
sua condição.
157
Silvana Rabello
Trata-se, assim, de uma “falha fundamental da própria presença original do Outro” (Laznik, 2004, p.51), dessa inscrição do Outro no corpo,
dizendo respeito mais aos domínios do narcisismo primário que secundário.
Gustavo parece evidenciar tal falha através de um difícil desmame vivido até os dois anos de idade. A essa altura, seu desmame foi realizado
de alguma forma por sua mãe, mas não por ele. Quando separado do seio
materno, passou a buscá-lo por toda parte, em todos os corpos e objetos,
um segundo de esperança seguido pela experiência da decepção e desencontro, e um novo cataclisma. O gemido de angústia acompanha todo o
tempo dessa busca sem fim e sem cansaço.
Buscava o seio de maneira indiferenciada e por toda parte, sempre o
seio, e não a mãe, acusando, em seu quadro autístico grave, a não instalação do circuito pulsional enquanto laço amoroso, único caminho por onde o
Outro primordial poderia nele se inscrever, construindo suas reedições até a
sua formação simbólica fundamental enquanto presença–ausência.
Muitos objetos autísticos, nesse menino ou em outras crianças como
ele, parecem apontar uma separação impossível. O que, por vezes, sugere
uma birra ou uma recusa à frustração constituiria uma impossibilidade de
operar na lógica pela qual transita a alteridade e, portanto, suportasse simbolicamente a separação em seu psiquismo.
Não parece se tratar do fracasso da castração/separação, como nas
psicoses, mas de uma “falha fundamental da própria presença original do
Outro”, como sugere Laznik (2004, p.51); fracasso de uma inscrição psíquica originária suficiente do Outro, que possibilitasse, num segundo tempo, a
separação.
Sem essa primeira instauração, os objetos todos, mesmo o objeto mãe,
acabam por ser incorporados à criança como objetos autísticos, não sendo
perdidos sem uma aflição cataclísmica de um corpo se despedaçando.
***
Falar de um jogo amoroso-erótico é sempre falar, pelo menos, de dois
personagens, mesmo que fantasiados.
Aqui não poderia ser diferente.
O Outro, primordial, desse bebê – os pais.
Pais que não são provocados nesse jogo amoroso, que não se sentem sequer estar sendo correspondidos, sofrem esse desencontro amoroso,
esse fracasso pulsional, já que não conseguem, por sua vez, produzir encantamento em seus bebês.
158
Eros e autismo
Dessa forma, não podem ser sustentados nesse lugar de pais, já que,
para isso, necessitam da resposta de sua criança, que os assegura nesse
lugar de seu Outro primordial.
Pais que sofrem essa não instauração da lógica pulsional complexa,
que mantém um e outro em conexão constitutiva. Porém, pais que vivem
um sofrimento amoroso que dificilmente pode ser reconhecido por eles próprios, nem acolhido pelos que estão a sua volta.
Afinal, como podem exigir de um bebê que sinta prazer em encontrálos, que faça festa em sua presença ou que sinta o prazer compulsivo em
agradá-los e, ainda mais, que se ofereça a construir neles a experiência de
completude fálica?
Como podem se queixar de seu bebê por não sustentá-los enquanto
Outro primordial, não se importando com seus desejos e nem se deixando
tocar por seus fantasmas? Como podem se queixar por seu bebê não se
oferecer como objeto ao seu gozo e por nada se interessar sobre sua falta
fundamental?
A não instauração do desejo num bebê não pode ser denunciada pelos
pais sem constrangimento, só se autorizando ao alarde quando essa estranha configuração começa a se apresentar através de sinais deficitários em
sua criança – motivo este que pode justificar eticamente sua queixa.
Mas seria a psicanálise possível nessa configuração da radicalidade
de um sujeito sem Outro, se entendemos que a psicanálise é uma teoria da
encarnação do fantasma na carne e da transferência à pessoa do analista?
Consequentemente, podemos nos perguntar, de que transferência se
organiza nessa clínica, sem Outro inscrito na criança e, portanto, sem a possibilidade de movimentar a posição lógica da criança através do fantasma
parental, já que este não se inscreve?
Pensar a subjetividade para além dos sinais de normalidade ou adequação, a partir da ética do singular, é um dos legados freudianos.
Sempre um desafio!
Pensar o autismo, então, é arriscar-se em terra estrangeira, tentando
inscrever o que não cansa de não se inscrever no campo simbólico, tampouco no campo erógeno e pulsional.
Destacarei, portanto, o jogo amoroso e a erogeneidade em construção,
na cena em que se desenrola a constituição subjetiva, numa criança, assim
como seus limites. Limites de Eros7, pensados, aqui, a partir desse impasse
Referência ao livro organizado com este título, Limites de Eros, organizado por Eliane Michelini Marraccini, Maria Helena Fernandes, Marta Rezende Cardoso e Silvana Rabello e publicado
pela Primavera Editorial em 2012.
7
159
Silvana Rabello
apresentado pela criança autista: o não estabelecimento da experiência do
prazer compulsivo em saborear e ser saboreado pelo Outro.
REFERÊNCIAS:
CASTEL, P-H. Amor. In: DORGEUILLE, C. Dicionário de psicanálise: Freud e Lacan.
Bahia: Ágalma, 1994.
FREUD, S. Os instintos e seus destinos [1915]. In:______. Obras completas. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010, v.12.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.
LAZNIK-PENOT, M.-C. Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso
da instauração do circuito pulsional: quando a alienação faz falta. In: ______. (org.)
O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas. Salvador: Ágalma, 1991.
LAZNIK, M.-C. Por uma teoria lacaniana das pulsões. In: ______. A voz da sereia:
o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Bahia: Ágalma, 2004. p.88-106.
Recebido em 04/06/2013
Aceito em 01/11/2013
Revisado por Marisa Terezinha Garcia de Oliveira
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 161-172, jul. 2012/jun. 2013
TEXTOS
SINTOMAS SEXUAIS:
uma escrita deslocada
da relação sexual1
Gérard Pommier2
Resumo: Este artigo mostra que há uma diferença entre os sintomas sexuais
e os sintomas neuróticos a posteriori. Esses sintomas se escrevem por ocasião
da relação sexual, da qual são uma escrita deslocada. Manifestam a entidade
clínica da neurose atual, distinta da neurose propriamente dita. Mostra-se que
essa escrita está na dependência de certa colocação em tensão do masculino.
A escolha do gênero sexual é totalmente distinta do sexo anatômico. Esse fato
obriga a considerar que a escolha só pode operar a partir de uma bissexualidade psíquica, efetiva para todos os sujeitos.
Palavras-chave: sintomas sexuais, neurose, bissexualidade, orgasmo.
SEXUAL SINTOMS:
A DISCONNECTED WRITING OF THE INTERCOURSE
Abstract: This article shows that there is a difference between sexual symptoms
and neurotic symptoms post-stroke. These symptoms are written on the occasion of sexual intercourse which they are writing moved. They testify to the clinical entity of actual neurosis, distinct from the neurosis itself. This writing is in the
dependence of some tensioning of the masculine. The choice of sexual gender
is completely separate from anatomical sex. This fact forced to consider that the
choice can operate only from a psychic bisexuality, effective for all subjects.
Keywords: sexual symptoms, neurosis, bisexuality, orgasm.
Tradução de Patrícia C.R. Reuillard (UFRGS), a partir da conferência Les symptômes sexuels,
écriture déplacée du rapport sexuel, realizada em Buenos Aires em 25/04/2012.
2
Psicanalista, Psiquiatra e Diretor da revista La Clinique Lacanienne.
1
161
Gérard Pommier
N
o campo das manifestações do inconsciente, o sintoma denota um sofrimento do corpo cuja causa imediata é psíquica. Pode ser uma simples
queixa, sem materialização física, ou um distúrbio funcional (como certas
paralisias ou vertigens), ou então uma doença devidamente repertoriada
pela Academia3. Existem também sintomas sexuais, que ocorrem com a
relação sexual. Distinguem-se dos sintomas neuróticos, que sobrevêm a
posteriori, à distância do trauma desencadeador, com frequência abertamente e a partir de pequenas repetições simbólicas, quase sempre difíceis
de detectar. Portanto, a eclosão neurótica difere dos sintomas sexuais, que
não se produzem a posteriori, mas no ato (por assim dizer).
Geralmente, os pacientes não se queixam ao analista desses sintomas
neuróticos, simplesmente porque não suspeitam que sua origem possa ser
psíquica. Na maioria das vezes, pensam que se trata de algo orgânico e
procuram um médico. Somente mais tarde, quando curados de suas amigdalites repetitivas, de suas enxaquecas, de suas azias, é que se dão conta
de que podia ser psíquico. Já com os sexuais é diferente, pois são sintomas
conscientes, que se produzem no ato e levam os pacientes a se queixar:
criam problemas para o casal, o que também provoca sofrimento. Mas nem
sempre é assim: em certas situações culturais, um sintoma sexual pode não
causar sofrimento. Pensemos, por exemplo, nos frequentadores de bordéis
do século passado ou nos clientes das prostitutas nos dias de hoje. Essa
relação venal se conclui geralmente por uma ejaculação precoce, mas sem
o menor sofrimento. O cliente não vê que isso é um sintoma, sem dúvida
porque paga em dinheiro e no ato.
É fácil listar esses sintomas sexuais conscientes: impotência, ejaculação precoce, frigidez feminina e masculina (impressão de ter um sexo
de pedra), cistite do dia seguinte, ausência de orgasmo mais ou menos
esporádica. Podemos acrescentar mais um sintoma, a neurastenia como
consequência do coito interrupto, tal como descrito por Freud acerca da
neurose atual. É o afeto da ausência de orgasmo, o que não é muito prazeroso. Ao que tudo indica, os romanos consideraram essa tristeza como
uma característica do amor sexual em geral, já que criaram um adágio que
atravessou os séculos: post coitum, animal semper tristis. Bem feito para o
augusto patriarcado dos romanos: de tanto considerar que as mulheres não
Por exemplo, uma amigdalite: o que de início era apenas um órgão inchado passa a ser o
ninho de uma bactéria oportunista.
3
162
Sintomas sexuais...
existiam, suas companheiras não deviam gozar muito e, por conseguinte,
eles tampouco.
À pequena lista dos sintomas sexuais indiscutíveis, soma-se, portanto,
o estado de espírito difuso da “depressão” (atualizando o rótulo freudiano de
“neurastenia”). Acrescentamos ainda um afeto mais inesperado da relação
sexual, o do ciúme: de certo modo, esse afeto é o oposto da neurastenia,
que se instala porque não há orgasmo, ou então – na melhor das hipóteses – uma espécie de autoerotismo a dois. Quando o orgasmo chega, ao
contrário, ele vem de um horizonte tão distante que os amantes podem se
perguntar de onde veio ou, em todo caso, podem imaginar (com razão) que
essa deflagração resulta de sua própria ação, por mais experientes que sejam. Terão sido os artesãos de um prazer que lhes escapa na linha de chegada. Com quem goza uma mulher quando isso lhe acontece? Seu amante
também representa uma força que o excede. A crise de ciúme logo após o
amor é tanto feminina quanto masculina, como se o gozo acabasse de cair
sobre o corpo de outra mulher, ou como se tivesse sido provocado pela habilidade de outro homem. Esse é o indício, seja como for, de que o gozo da
relação sexual não é um autoerotismo a dois, mas de que leva a contar pelo
menos até três, ou até quatro quando o amor é recíproco. E quando o amor
sexual funciona, o amante sente ciúme justamente quando não há mais
nenhuma razão para isso, senão aquela, muito poderosa, de uma demanda
de exclusividade do gozo em si. Esse tipo de ciúme paradoxal nem sempre
é evidente, mas, no entanto, é o motor principal da excitação sexual. Ele
rompe com a tristeza romana, à qual se opõe. Um ciumento não tem tempo
para ficar triste, e esse ciúme do amante que não pode sê-lo foi citado aqui
apenas como contraponto à lista dos sintomas sexuais. É o afeto da relação
sexual, ao contrário do sintoma, que é a escrita de seu fracasso.
A série dos sintomas sexuais atinge tanto homens quanto mulheres.
Um observador superficial dirá que alguns são especificamente masculinos
e outros, femininos. Por exemplo, a impotência (inibição da ereção) ou a
ejaculação precoce seriam sintomas especificamente masculinos. A frigidez
e a cistite do dia seguinte seriam eletivamente femininos. Mas se pode imediatamente contradizer essa observação em razão de sua relatividade. Um
homem que sofre de impotência ou de ejaculação precoce pode apresentar
esses sintomas apenas com uma determinada mulher – com frequência,
aquela que ele ama –, ao passo que não terá problemas em encontros eventuais ou com mulheres que ele despreze. Do mesmo modo, uma mulher que
sofre de vaginismo ou que é considerada frígida com o marido poderá não
sofrer disso com outro homem, ou, caso o parceiro se mantenha, deixará de
sê-lo se as circunstâncias mudarem. Na realidade, nenhum sintoma sexual
163
Gérard Pommier
é específico de um gênero, e a irrupção dos sintomas sempre depende da
correlação entre masculino e feminino. É claro que, sem essa correlação,
eles não surgem. E se houver uma variação de parceiros, será também
porque, em cada relação, a relação de forças masculino/feminino muda. Por
exemplo, um homem mais ou menos feminizado por uma mulher terá uma
ejaculação precoce com uma prostituta diante da qual ele se culpa e que o
despoja. Essa relação feminino/masculino depende de cada parceiro, que
incita mais um aspecto do que outro da bissexualidade do parceiro.
A bissexualidade psíquica de todo sujeito fomenta uma alquimia que
varia com os encontros. Isso é evidente quando lembramos que essa bissexualidade é o outro nome da castração: é seu nome de guerra no que
se delineia como encontro e, depois, como uma espécie de combate entre
os homens e as mulheres, na medida em que cada um deles tem de lidar
com a sua bissexualidade. Qual é seu princípio no universo da sexualidade
infantil? O pai castra – portanto feminiza –, mas essa castração excita – portanto masculiniza. Todo sujeito se debate com essa contradição bissexual,
insustentável, salvo justamente se for compartilhada entre homem e mulher,
de qualquer jeito. Costuma-se dizer, ou ao menos se dizia, que o parceiro “é
minha cara metade”. Essa fórmula familiar ilustra bem a divisão do sujeito,
transladada em diferença sexual. O desafio de todo encontro é distribuir
no espaço essa divisão íntima, cuja repetição fomenta o próprio desejo,
que não tem outro objeto. Sob a ascendência de uma bissexualidade psíquica que recobre a divisão do sujeito, os homens são bem masculinos
apenas quando recalcam e rejeitam sua feminidade sobre mulheres – que
eles amam e rejeitam proporcionalmente a essa rejeição –, e as mulheres
são bem femininas apenas quando preservam sua parcela de masculinidade – de falicismo clitoridiano, pode-se dizer – que prima sobre sua eventual
inversão vaginal – acontecimento totalmente contingente.
É fato que a relação amorosa, passional entre homens e mulheres, se
torna por isso espinhosa – no melhor dos casos, eroticamente resolutiva –,
mas esse conflito é sempre proporcional à luta interna do masculino e do
feminino de cada um, isto é, à angústia de castração. O masculino não poderia vencer sem a destituição do feminino (da angústia de castração). Mas
se o masculino vencesse completamente, sobre o que seu desejo se apoiaria? O feminino renasce perpetuamente de suas cinzas, portanto, como
horizonte obsedante do desejo nunca saciado. O feminino se impõe para
uma mulher como um horizonte impossível para ela mesma, mas que ela
encarna, todavia, para um homem. Uma mulher não é “toda”, pois sempre
preservará uma parte de sua masculinidade um pouco, muito, apaixonadamente – como mostra a permanência da erogeneidade clitoridiana (fálica).
164
Sintomas sexuais...
Uma mulher “toda” feminizada estaria sob a ascendência do desejo do pai
castrador, expondo-se assim a uma morte por incesto4.
O sintoma sexual ocorre nesta falha do masculino/feminino, pelo menos sempre que a morte por incesto não reapareça sob a forma do orgasmo
que, como diz a linguagem corrente em francês, é também uma “pequena
morte”. Sem esse instante resolutivo, sem esse grito do pai que tomba, que
liberta ao mesmo tempo um corpo que está se reencontrando, o sintoma
sexual escreve com insistência a constância do falicismo (isto é, do masculino). Nem toda mulher tem a sorte, como algumas místicas cuidadosamente
escolhidas, de copular com um Urvater bem morto como Deus. O caminho
do meio das mulheres, assim como dos homens que não conseguiriam se
virar sem elas, enfrenta sem cessar essa divisão do feminino e do masculino, sempre tocada para o outro e desejada na mesma proporção. Aquém
da resolução orgástica que finaliza o gozo, o sintoma sexual escreve com
constância o que fracassa na relação, e afirma a masculinidade.
Vamos ilustrar essa insistência com um breve caso clínico, que representa o sintoma sexual da “cistite do dia seguinte”. Trata-se de uma jovem que, sempre que tem uma relação sexual orgástica vaginal, sofre uma
violenta cistite no dia seguinte. Pode parecer estranho dar o exemplo de
uma mulher para ilustrar a tese de um sintoma sexual masculino. Contudo,
isso é pertinente porque se trata da masculinidade dessa mulher. No texto
“Bate-se numa criança”, Freud fez o mesmo com a fantasia: embora ele
afirme que se trata de uma fantasia feminina, todos os exemplos comentados dizem respeito a homens, com uma única exceção. Voltando à nossa
jovem: ela atinge o orgasmo com bastante facilidade, mas essencialmente
por masturbação clitoridiana – fálica, portanto. Quando solitária, essa atividade se sustenta em uma fantasia que poderia ser resumida por uma figura mitológica, a de Diana caçadora, Ártemis, cujos cães dilaceram Actéon.
Pelo menos é assim que ela exalta suas infidelidades ao amante: “Eu sou
Ártemis, eu que, no entanto, te amo”. Quando sua atividade sexual não é
solitária e se quiser ter um orgasmo, ela precisa ser ativa com seu amante
– espacialmente mesmo, pois tem que montá-lo para conseguir o que quer.
Ela precisa dominar e o consegue melhor ainda quando o amante tem o
tato de deixá-la agir (sem dúvida porque isso atende à necessidade desse
gentleman do ponto de vista de sua própria feminidade).
Como no suicídio de Marilyn Monroe, da cantora Dalida, da atriz Romy Schneider, etc., exemplos notáveis disso.
4
165
Gérard Pommier
Então, tudo é perfeito, ou pelo menos seria, se ela não tivesse tido o
infortúnio de se apaixonar por esse homem transigente. Isso atrapalha, porque surge um problema assim que ela começa a ficar ciumenta e a esperar
algo dele, quando o amor se torna o mestre e busca ser atendido. A expectativa aumenta e acaba por fazer um buraco – e não é uma metáfora quando
ela repercute no corpo. Chega então o momento, depois de uma grande
crise de ciúmes, em que o orgasmo dá uma virada, deixa de se desencadear via clitóris, para se refugiar no côncavo, ou seja, na vagina. Sem dúvida,
é uma virada deliciosa, mas que priva Ártemis de seu falicismo anterior.
É nessas circunstâncias que a cistite se desencadeia: a flecha do jato de
urina manifesta a existência do pênis, e a dor desse jato a pune ao mesmo
tempo por esse protesto. Não se pode nem mesmo dizer que se trata de
uma interpretação, se lembrarmos que, do ponto de vista da sexualidade
infantil, o jato de urina – a enurese – afirma o império do gozo fálico contra
a pulsionalidade do Outro. A urina apaga o incêndio do amor materno. Do
mesmo modo, a cistite afirma esse falicismo enquanto seu erotismo queima.
Conclui-se que se trata mesmo de um sintoma sexual masculino. Será que
o balde de teoria que acaba de ser jogado só serve para apagar o fogo?
Parece que não, a crer nessa jovem. Tendo faltado a uma sessão por causa
da dor, no dia em que a cistite começou, pedi que a pagasse, o que ela de
início se recusou a fazer. Na sessão seguinte, indaguei se tomara algum
medicamento para a ardência que persistia5. Respondeu que não queria se
tratar. Surpreso, é claro, perguntei imediatamente o que ela ganhava com
isso. E, como era claro demais que ganhava justamente o falo, ela teve uma
forte recaída da cistite no dia seguinte, como que para me mostrar que se
pode facilmente fazer uma interpretação selvagem sem nem mesmo se dar
conta disso.
Que lição se pode tirar desse exemplo de sintoma sexual “masculino”?
Que ele manifesta a luta contra a castração, cuja aplicação bissexual é evidente nesse caso, é fato. Mas se o sintoma sexual denota sempre a forma
neurótica da denegação da castração, então todos os sintomas sexuais são
masculinos, e só o orgasmo é feminino. Os sintomas sexuais manifestam
um falicismo mantido, são uma escrita deslocada da relação sexual, sua
rasura. Eles testemunham um recuo diante do orgasmo, que, ao contrário,
De fato, é perfeitamente possível que a inflamação de um determinado órgão tenha uma
origem psíquica, mas esse estado pode desencadear uma verdadeira doença, que deverá ser
tratada.
5
166
Sintomas sexuais...
se apaga no próprio momento em que é atingido. Ele não se escreve no
sentido em que a escrita faz rasura: as letras desenham um corpo rasurado,
assim como os sintomas sexuais escrevem o revés da relação.
A relação sexual, para a qual o desejo incita surdamente, ou antes,
cegamente, não se vê de fato. O desejo busca resolver vários problemas
diabolicamente desligados uns dos outros. O próprio desejo sexual nada
tem de instinto: ele busca seu elã repetitivo sob o efeito do “desejo do pai”
(do traumatismo sexual). E como não há nada de mais incestuoso do que
o desejo desse pai, sua cabeça – e o resto – devem cair – orgasticamente.
Segundo problema, que também é a mise en scène do primeiro: o “desejo
do pai” separa o masculino do feminino (ele castra enquanto excita). Esse
desejo prepara o palco onde vai se dar a cenografia erótica dos casais, cujo
desfecho é a decapitação (orgástica). A relação sexual se apresenta como
um ensaio geral cujo ato final não pode ser visto, pois, como todo ensaio,
ele inverte o sentido do sujeito e do objeto: de modo que, mais do que o pai,
é o próprio sujeito que entra em afânise na hora do orgasmo, e que, portanto, não poderia ver do que é culpado. Não se pode compreender de outro
modo, mesmo entre os casais unidos em Nome do pai, a esquisitíssima
culpa – por outro lado excitante – ligada ao ato sexual6. É que a pulsão de
morte acaba de se transladar em fantasia parricida, e o sujeito inverte orgasticamente essa fantasia, ou ele próprio desaparece. Que alívio livrar-se da
falta, quando ela acaba de ser cometida! Mas, por causa desse mundo oculto do parricida, nada mais é necessário para que o ato sexual se torne uma
cenografia recalcada impossível de ver; ninguém pode ver a translação da
pulsão de morte em ato sexual, que assume uma dimensão obscena. Essa
atividade, considerada natural, todavia, permanece invisível, ou obscena,
no sentido de “fora da cena”.
Mas de quem é a culpa por tal obscenidade? Do feminino, a crer no
Gênesis. Aliás, só o feminino goza com a queda do gozo, com seu ápex e
com seu fim. Pode-se discutir que só o orgasmo seja feminino. Mas vale
lembrar que, nos colóquios, nos artigos, nos livros, etc., sempre que se trata
de orgasmo, só o feminino aparece, como se isso não acontecesse com os
homens ou, antes, como se isso só acontecesse com eles por acaso, por
meio de “alguém”. E é exatamente o que ocorre, isso só lhes acontece por
meio de “alguém”, no duplo sentido da palavra: “alguém” quer dizer alguém
e ninguém, um momento de aniquilamento que corresponde àquilo que o
6
“Fauter”, em francês, significa também “fazer amor” em algumas expressões correntes.
167
Gérard Pommier
orgasmo tem de despersonalização, posição que é a perspectiva aniquiladora
só do feminino. Nessa linha, esse “ninguém” vale pela inexistência da mulher,
pelo menos enquanto se esquece que é também alguém (no masculino).
Por que só o feminino seria sujeito ao orgasmo – mais do que do orgasmo? Pode-se perguntar de outro modo: por que esse orgasmo, essa
espécie de morte do feminino, é o que apaixona os homens, o que eles
procuram a ponto justamente de provocar o deles, como uma espécie de
contaminação histérica? Mais uma vez, esse problema só pode se dar no
par masculino-feminino: o feminino está sujeito ao orgasmo, desde que o
masculino o busque. Para ilustrar: fazer gozar até morrer, até o aniquilamento. É uma imagem, evidentemente, criada para ilustrar que não se trata de
morte física, mas do momento de metamorfose da pulsão de morte em gozo
orgástico. Aliás, pode-se falar de “gozo” orgástico? Não exatamente. Pois se
trata sobretudo do fim do orgasmo, do momento em que, pelo menos uma
vez, o prazer cai a seu grau zero, essa cifra insolúvel do traçado pulsional,
um instante solúvel na fantasia, à condição do zero ao qual um homem reduz o pai, ao menos na alquimia da fantasia.
O orgasmo não realiza o desejo do Outro; não é Outro gozo: é o contrário! Ele atualiza o que foi, é e será o desejo do sujeito – o gozo do Outro
é Tânatos, enquanto o desejo do sujeito é Eros. No primeiro caso, a morte
é uma ameaça (aquela, por exemplo, do impulso suicida das psicoses); no
segundo, ela se reduz a uma inversão, mero momento de desaparecimento
do mesmo sujeito. Pois o próprio movimento do desejo provoca uma afânise
do sujeito desde o nascimento. Existem, aliás, descrições de momentos orgásticos do bebê, quando a alucinação se depara por um instante com seu
objeto e alivia o sujeito de sua própria objetivação. De certo modo, esse é
o primeiro sinal de que o orgasmo é uma formação do inconsciente, atualizado pela repetição do desejo. Desde os primeiros sonhos, o sujeito repete
ao avesso, ativa e alucinatoriamente, os traumas que sofreu passivamente:
aqueles do desejo do Outro. Ele próprio muda de lugar e se perde nesse
movimento. Nessa inversão, não é mais o desejo do Outro que aniquila, é o
desejo do próprio sujeito. A afânise se assemelha a um momento de morte
psíquica, no extremo da realização alucinatória do desejo.
A reprodução ativa do que foi sofrido de modo passivo libera alucinatoriamente do trauma, mas nós morremos na praia, nos perdemos, libertandonos. Na repetição, o passivo se inverte com o ativo, de modo que o sujeito
objetiva a si mesmo; portanto, não é mais um sujeito e precisa recomeçar.
Percebe-se o caráter, propriamente falando, mortal do desejo: por princípio,
ele é mais retomado por seu próprio movimento do que insatisfeito. É um
momento de subjetivação da pulsão de morte. Não se pode reduzir a pulsão
168
Sintomas sexuais...
de morte a uma consequência aniquiladora do desejo do Outro (ser o falo
materno, por exemplo). De fato, existe uma dimensão subjetiva da pulsão
de morte, uma espécie de virada dessa dimensão aniquiladora que resulta
do próprio ato do sujeito para se liberar dela7. Essa virada não se resume à
história do combatente que se suicida para não ser morto pelo inimigo que
o cerca. Ou àquela do Marquês de Sade, que mandara construir uma porta
dentro de sua cela na prisão, para que o guarda fosse obrigado a bater antes de entrar (seguindo essa imagem, o orgasmo seria a segunda porta do
erotismo humano). Na inversão da repetição, a pulsão de morte mudou de
objeto ou, antes, seu objeto se fez sujeito: um sujeito não é seu corpo, ele
pode desaparecer e nem por isso morre! Essa é a descrição da libertação
orgástica. Ela se resume ao momento de virada do desejo do Outro em
desejo do sujeito. O orgasmo se inverte e apaga o gozo do Outro. É um momento de culminância e de alívio das longas contradições do desejo. Nada
demonstra isso melhor do que este fato consistente: se os psicóticos fossem
apenas os objetos do desejo do Outro, jamais atingiriam o orgasmo. Ora, a
experiência demonstra o contrário, e a libertação de sua subjetividade.
Esse momento de aniquilação abre a perspectiva mesma de um desejo que busca seu próprio fim: isto é, aliviar sua tensão interna. Ora, sob que
forma se apresentava essa tensão, senão a de que torna o masculino tributário do feminino? Foi este que se tornou a causa universal do desejo, como,
aliás, do ódio provocado por sua alienação. A mulher simboliza a causalidade do desejo. Sem dúvida, o desejo é efeito da castração paterna, mas,
como esse pai se apaga com a fantasia parricida, como só resta a angústia
de castração de sua ação, permanece apenas a rejeição à feminidade, que
passa a ser paradoxalmente a causa do desejo. A mulher encarna desde
sempre o mal do desejo. Na falta de Deus, é ela quem leva.
Enquanto símbolo por ausência do fim do desejo, uma determinada
mulher vai encarnar o feminino. Pode-se dizer que é um símbolo por ausência, único em seu gênero, o único símbolo por ausência da falta, da castração. Dizer que “a mulher não existe” expressa um desejo de aniquilação do
feminino e, ao mesmo tempo, do próprio desejo, obcecado por seu próprio
fim. Fora desse contexto, esse aforismo seria um slogan dos talibãs, uma
Para compreender isso, examinemos por um instante o campo das toxicomanias: psicóticos
alucinados tomam às vezes alucinógenos. Eles subjetivam assim as alucinações do desejo do
Outro por meio de suas próprias alucinações. Tem-se a impressão de um flerte com a morte,
ao passo que se trata de uma inversão ativa da pulsão de morte. A morte parece fascinar os
toxicômanos, mas não a morte real, aquela que finaliza a vida.
7
169
Gérard Pommier
espécie de bandeira patriarcal que, na obsessão do desejo, confunde mulher e feminino. Ele tange à generalidade dos homens, ou seja, um símbolo
por excesso; o que quer dizer que isso os excede e que impingem às mulheres seu próprio feminino, que assim se mostra velado, e que detestam o
feminino, por conseguinte, proporcionalmente ao seu desejo.
Somente o feminino está sujeito ao orgasmo; em sua ausência, a atualização do desejo provoca sintomas sexuais, sempre masculinos. Essa
hipótese poderia levar a crer que os homens não têm orgasmo ou até que
não têm nenhuma ideia de que isso exista, salvo que isso os obseda. Eles
prefeririam que essa obsessão não existisse, porque ela os reduz à inexistência, em uma imposição de cada instante (obsessão que, por vezes, leva
ao crime). Fazer gozar ou morrer. Fazer gozar até à morte. É sempre o mesmo pesado equívoco: entre a morte do sujeito (simples afânise orgástica)
ou a morte do corpo. Uma morte que, não sendo a finalização da vida, é ao
menos essa morte funcional esquisita do sintoma sexual: a ejaculação precoce, a impotência, etc. São pequenas mortes funcionais parciais, de que
o sujeito sai às vezes profundamente mortificado. Alguns homens se destroem com drogas, álcool; certas mulheres se suicidam por causa de seus
sintomas sexuais. O sintoma sexual funciona como véu com o orgasmo.
Alguns homens ficam obcecados em fazer uma mulher gozar. Buscam isso
com constância. Mas, quando encontram o que procuram, pode acontecer
de eles próprios não conseguirem mais. Resumindo, não conseguem mais
ejacular: trata-se de um sintoma por excesso, um sintoma de superpotência,
que permeia o masculino em si. É um “sintoma masculino” no sentido de
uma rejeição total ao feminino. Para que mesmo assim o orgasmo aconteça,
apesar dessa masculinidade, é necessário adentrar a feminidade por um
momento, transbordar pelo próprio gozo feminino. Gozar com o orgasmo
feminino é, para um homem e em última instância, se deixar feminizar e
também ter um orgasmo. O orgasmo é efetivo, embora seja provocado por
outro, engendrando um instante de feminização. Nesse sentido, o orgasmo
de um homem é feminino. Continua sendo um instante de transbordamento,
uma ejaculação precoce, mas que deixa de sê-lo quando consentida (quando sua feminização não é mais um problema para ele).
Porém o véu surge então em toda sua força: é que esse orgasmo “feminino” anula a virilidade. O homem que goza perde por um instante sua
masculinidade; alguns sucumbem a isso, a ponto de não quererem mais
atingi-lo, a ponto de não conseguirem mais ejacular. No fundo, exagerando
um pouco, o véu surge em todo seu horror, se observarmos que a neurastenia após o amor (o semper triste do adágio romano) bem poderia ser o
resultado de uma inibição: a da vontade de matar. O ódio ao feminino se de170
Sintomas sexuais...
sencadeia por causa do gozo mesmo, e se percebe agora que ele tem uma
entrada e uma saída. Na entrada, o desejo do feminino é excitante, mas é
correlato de uma rejeição. Na saída, o orgasmo feminiza o homem, e o ódio
pode lhe suceder por angústia de perder seu gênero. Para começar, o sadismo com as mulheres tange ao desejo e, para terminar, a violência sucede
ao orgasmo “feminino” provocado no homem. Quando essa angústia e essa
aversão latente se acumulam, elas podem levar um homem a não conseguir
mais fazer amor justamente com a mulher desejada, o que é o cúmulo.
Vale lembrar que não se trata daquela vertente neurótica em que uma
representação materna recobre e aniquila o desejo sexual. O desejo de uma
mulher, por si só, confronta esse véu. Isso significa que a impossibilidade
de ejaculação é um sintoma sexual distinto da impotência. Estranhamente,
o mesmo véu se impõe a uma mulher, que se confronta com o mesmo problema de sua feminização rejeitada ou aceita, eventualmente até o orgasmo. À impossibilidade de ejaculação de certos homens corresponde uma
impossibilidade orgástica de certas mulheres, ou porque não querem liberar
sua masculinidade, ou porque se recusam a isso com um parceiro cujo ódio
pressentem, ao menos nesse instante. E quando uma mulher consente em
sua feminidade, ela goza consigo mesma como com uma outra. Cada mulher é dividida entre sua masculinidade primeira e sua feminização potencial, inicialmente fomentada na infância pelo desejo do pai. Isso quer dizer
que o orgasmo retrocede no tempo de que se apropria graças à fantasia ou
ao transitivismo do amor – ele difere da descarga autoerótica, tanto para
uma mulher quanto para um homem.
Pode um homem, entretanto, consentir por muito tempo em sua própria
feminização? Os resultados de tal prova são no mínimo aleatórios. Deve-se
dizer que esse consentimento do masculino ao feminino beira o impossível,
e que é apenas nesse sentido bem estrito que não há relação, que a relação
corresponde somente a um instante de afânise infinitesimal do sujeito reduzido à sua divisão (a seu nome, em suma). Não se pode ilustrar isso com a
flecha de Zenão, suspensa para sempre no céu, ou com a corrida de Aquiles,
atrás da tartaruga que nunca se deixa alcançar. Existe uma relação, tão ininscritível quanto o choque de dois opostos que se empurram quando se encontram. Essa afânise do sujeito no orgasmo apaga a relação no exato instante
em que ela se atualiza, e se pode preferir o sintoma sexual a tal apagamento.
“Preferir” quer dizer que esse refúgio forma o ponto de apelo regressivo para a sexualidade infantil. Lara Croft, Tarzan e a ingênua personagem de histórias em quadrinhos Bécassine zombam da relação sexual. E
se compreende então como sintomas sexuais da vida de casal bem atuais
acabam por trazer novamente à cena a neurose que se dá a posteriori.
171
Gérard Pommier
Esse come-back da neurose infantil varia conforme as circunstâncias, isto
é, conforme a instabilidade da relação masculino/feminino, que não precisa
de grande coisa para mudar de direção: uma pequena tempestade de ciúme
da senhora, um jeito de comendador do senhor, um barulho de panelas um
tanto exagerado na cozinha, etc., e a crise ameaça, trazendo a neurose do
passado para o presente, pondo um freio fatal às paixões mais fogosas. É
a regressão na sexualidade infantil – isto é, a impotência propriamente dita,
uma impotência retomada em um espaço endogâmico caracterizado pelo
interdito do incesto – é um interdito familiar que desencadeia a impotência
de um homem ou de uma mulher. Não é usual considerar que uma mulher
seja impotente; no entanto, isso acontece, e se trata de um sintoma diferente da frigidez. Essa impotência, aliás, quase nunca é aparente, pois consentida em casais que estão bem desse jeito, até mesmo aliviados. Isso só vai
produzir um sintoma se um dos protagonistas se acordar.
Essa regressão na sexualidade infantil não vem ao acaso e ocorre
ainda mais depressa quando uma cena infantil suplanta uma cena atual.
Acontece rapidamente quando um homem se torna o pai de sua mulher – ou
quando ele a rejeita devido a seu ódio ao feminino e às razões anteriormente mencionadas –, ou assim que sua mulher começa a falar com ele com
voz de menina: o negócio está feito, a impotência o espreita ou, no mínimo,
o fim do desejo, pois só os filhos são desejantes. Os pais só desejam porque
querem se livrar do papel de pai, sendo incestuosos, pedófilos. Essa regressão ao infantil assinaria o fim do desejo? Não, pois o amor pode sobreviver
muito tempo ao fim do erotismo. Não, pois o desejo renasce facilmente de
suas cinzas, em especial graças a cenas transgressivas, fantasiosas ou reais: raivas, cenas, mentiras, engano, afetação, prostituição, pornografia, etc.
Essas artimanhas do desejo devem ser acrescentadas à lista dos sintomas
sexuais? Não, pois não se pode dizer que são sintomas sexuais, quando se
fomenta um enfrentamento ao interdito, à figura do pai, ao comendador que,
finalmente, vencerá Don Juan – afinal, é sua mulher!8.
Como clínicos, que lição poderíamos tirar dessas observações? É que
a análise nunca poderá resolver o desajuste sempre “atual” do desejo, e que
o ato analítico se limita a suas repercussões neuróticas. No fundo, os analistas estão somente a serviço de uma atualização do desejo, a serviço do
diabo, em suma, que não poupa nenhuma atividade humana de seu fogo.
Revisado por Deborah Nagel Pinho
No último ato da ópera de Mozart, o comendador pede a Don Juan sua mão (Da me la
mano)... para levá-lo para o inferno.
8
172
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 173-178, jul. 2012/jun. 2013
ENTREVISTA
SOMOS ANTES
DE TUDO CLÍNICOS
Gérard Pommier
Neste número, além da conferência proferida em Buenos Aires, trazemos uma
entrevista com Gérard Pommier, psiquiatra de formação, psicanalista, ex-aluno
e analisante de Lacan, diretor da revista La Clinique Lacanienne e autor de
diversas publicações no campo da psicanálise. Dentre elas destacamos: O desenlace de uma análise (Zahar, 1990), A ordem sexual-perversão, desejo e gozo
(Zahar, 1992), Do bom uso erótico da cólera e algumas de suas consequências
(Zahar, 1996), A exceção feminina: os impasses do gozo (Zahar, 1987).
Pommier segue a tradição herdada de Freud e Lacan: faz de sua clínica o motor
de suas questões. Retorna a alguns conceitos freudianos para reformular o que
Lacan trabalhou como gozo. E, nesse movimento, parece acrescentar algumas
interessantes questões sobre o feminino e a masculinidade.
Pommier questiona ainda, de maneira provocativa, a forma como se estuda Lacan. A entrevista traz interrogações que caberá aos leitores desdobrar.
Boa leitura!
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Gérard Pommier
REVISTA: O senhor estabelece uma equivalência entre a bissexualidade psíquica e a castração. É interessante essa formulação, pois dentro de
uma lógica clássica se pensaria justamente no contrário, que a escolha de
objeto sexual e a posição sexuada masculina ou feminina seriam produtos
da castração. Como o senhor sustenta essa hipótese?
POMMIER: Existem muitas citações de Freud, mas eu não me referia
a Freud, não vale a pena. É um problema simplesmente de experiência, que
a masculinidade se apoia na feminilidade, não se pode pensar na masculinidade sem a feminilidade e reciprocamente. Logo, falar de lógica clássica,
como se houvesse uma classe de homens e uma classe de mulheres, é um
erro fundamental, antipsicanalítico, antifreudiano. As fórmulas da sexuação
que categorizam os homens de um lado e as mulheres de outro é um erro
antifreudiano. Não sei se era isso que Lacan queria dizer, porque Lacan escreveu muita coisa, disse muita coisa. Isolar, simplesmente, um fragmento
de sua obra... não é possível colocá-lo em oposição a toda obra freudiana,
que repousa sobre essa ideia do complexo de castração. Eu tentei demonstrar que o complexo de castração é coerente com a noção de bissexualidade, é a experiência que mostra. Um homem não é sempre masculino com
uma mulher, ele é por vezes feminizado por uma mulher. É a experiência
de todos os sintomas sexuais que mostram isso. É a experiência de toda a
clínica, pode-se dizer. Creio que deve-se compreender o mecanismo mesmo da bissexualidade psíquica na relação à castração. Porque o termo castração é emprestado; como muitos conceitos psicanalíticos, é um conceito
aproximativo. Muitos conceitos psicanalíticos são aproximativos. O conceito
de inconsciente é aproximativo, não define uma entidade, não define um
ser, mas define processos, o que é completamente diferente. Quando temos
essa ideia de que o pensamento freudiano é mais ligado à noção de processo do que à questão da estrutura, a que nos acostumou Lacan, temos um
pensamento mais flexível, para compreender a forma como Freud situa os
conceitos. Por exemplo, se tomamos o conceito de castração no dicionário,
isso significa supressão da virilidade. Ora, na clínica freudiana a castração é
o contrário, é o que dá a virilidade. Ou seja, se nos referimos à lógica clássica isso finda, é perdido, não vale a pena, devemos fazer um outro métier.
Há a angústia de ser castrado, que é articulada ao desejo do pai. Ou seja,
é a angústia de ser feminizado pelo pai, logo, castrado. Estamos no meio
do processo, em que temos sempre essa ideia de processo. É a angústia
de ser feminizado pelo pai, como mostra, por exemplo, o caso clínico do
Homem dos Lobos, ou Homem dos Ratos. Os dois são feminizados pelo
pai. É a forma de entrar na angústia de castração. Logo, primeiro tempo
de feminização. Mas essa angústia de feminização é uma angústia que faz
174
Somos antes de tudo clínicos
gozar. Logo, ela provoca uma excitação sexual. Ela viriliza, logo, ela masculiniza. O feminino tem, no fundo, uma excitação verdadeiramente viril. Assim, se tomamos o termo de castração, isoladamente, não compreendemos
que seja excitante, não compreendemos isso. Não compreendemos por que
uma mulher castradora pode ser também uma mulher excitante.
REVISTA: Achamos muito interessante sua formulação da bissexualidade, na conferência que lemos, que o senhor fez em Buenos Aires. Cremos que ali o senhor avançou nessa formulação. Porque, se entendemos
bem, o senhor utiliza o feminino do lado do orgasmo. O orgasmo como o
final do gozo. É algo que corta o gozo.
POMMIER: Sim, que vem de outra parte. O gozo pode durar toda a
vida, e nada é mudado. Se liga na questão do orgasmo como uma solução
psíquica ao gozo, ao que há de insuportável no gozo, porque não se pode
continuar com essa ideia de que o gozo é um prazer. Não é um prazer, é
demasiado simples dizer que é um prazer. É um prazer que contém um
desprazer e que quer descarregar-se de seu desprazer. Se não se vê desta
maneira, por que o gozo não vai durar todo o tempo? Por que não gozar
todo o tempo? Não, a humanidade não gosta do gozo (risos). Tem que parar com isso. Assim, é necessário um termo suplementar ao gozo, tal qual
se entende que seja o orgasmo. Não é um gozo suplementar, que seja um
desastre suplementar (risos). Mas algo que faz um corte. Uma solução psíquica ao gozo.
REVISTA: A nosso modo de ver, essa formulação que o senhor fez
avança na proposição da bissexualidade, vai mais longe. Teria uma aproximação entre essa formulação que o senhor fez e a questão da sexuação em
Lacan? O que a aproxima e o que a diferencia?
POMMIER: O problema é que Lacan ficou nessa questão do gozo, não
há um mais além do gozo. Não há nada sobre o orgasmo em Lacan, nada,
nada.
REVISTA: Mas e no seminário sobre a angústia?
POMMIER: Eu não me lembro de ter lido nada sobre o orgasmo, o que
ele diz?
REVISTA: Ele fala no seminário sobre la petite mort, ele toma o orgasmo como do outro lado do gozo.
POMMIER: Bem, eu me enganei então. Talvez ele fale, mas muito pouco. Em Freud há passagens interessantes, sobretudo num texto de Freud:
175
Gérard Pommier
Dostoiévski e o parricídio, onde há uma forma de mostrar como um levantamento possível do gozo, pelo viés do pensamento parricida, como um fim
do gozo e como equivalente, também, à crise de epilepsia, ou a grande crise
de histeria. Todos esses são equivalentes. Logo, há indicações interessantes em Freud e também os avanços de Lacan sobre o gozo, são úteis para
compreender como o gozo é algo insuportável e que precisa terminar. Logo,
com Freud e Lacan, podemos pensar qual o processo psíquico que permite
pôr fim ao gozo.
REVISTA: Podemos falar na sexuação na psicose? Existe o mesmo
processo que você falou antes?
POMMIER: Sim. Escutem, nós somos antes de tudo clínicos. Mesmo
Freud, no início ele era um doutor. O gozo sexual existe na psicose, o orgasmo existe também na psicose. A partir dos fatos, tentemos entender os
fatos. Não podemos dizer ao contrário. Por exemplo, há teóricos, analistas,
que dizem que não há desejo na psicose; é uma besteira extraordinária.
Pois em todo sujeito, desde que fale, desde que ele nasce, há produções
alucinatórias que são realizações de desejo, que se sexualizam mais, ou
menos, mas é um fato que isso se sexualiza na psicose. O delírio de ciúmes,
por exemplo, na paranoia, é totalmente sexualizado. A paixão paranoica de
um homem por uma mulher, ou de uma mulher – na forma de erotomania
– por um homem, são paixões sexuais, que não são amores sublimados.
E mais, pelos exemplos clínicos que eu conheço, pode-se dizer que são
excelentes amantes. Eles se viram super bem, a mulher também. Simplesmente, como dizer, de maneira circunstancial, isso engendra problemas
particulares que não existem na neurose, na qual pode haver, ao contrário,
um bloqueio da paixão, uma inibição da potência sexual, muitos sintomas
sexuais. Ora, dizer que o psicótico não tem vida sexual e o neurótico, sim, é
contra uma verdade clínica. Eu digo isso a meus colegas: é preciso partir da
clínica, ensaiar de solucionar o problema, tomar pouco a pouco o problema.
REVISTA: O senhor acha que é um problema tomar unicamente o texto
de Lacan, seria essa uma forma de não pensar a clínica?
POMMIER: Escute, todo analista tem pacientes, logo, é a isso que ele
deve se referir. Se se toma uma frase de Lacan que não está de acordo
com a clínica, ou bem Lacan diz outra coisa em outra parte, ou... Pode-se
encontrar tudo o que se quiser em Lacan. Há um livro de Allouch sobre o
amor, L´amour Lacan, ou algo assim... O que é interessante é que sobre o
amor Lacan diz uma coisa, diz o contrário, diz ainda outra coisa... pode se
encontrar tudo o que se quiser para justificar uma crença de grupo, con176
Somos antes de tudo clínicos
cernindo uma questão ou outra. Logo, não podemos pensar assim. Devese proceder, respectivamente, relativo ao trabalho clínico que temos. Há
uma elaboração que, em todo caso, não seja uma contradição evidente.
Por exemplo, se dizemos que o psicótico não tem desejo, é evidente que é
uma contraverdade. Se eu digo “não há relação sexual”, por exemplo, peço
desculpas, mas é uma contraverdade. Como se pode dizer e repetir uma
coisa semelhante? (risos) É incrível. É aí que vemos o que é uma religião
de grupo. Porque é verdadeiramente, muitos lacanianos acreditam nisso.
Acreditam que não há relação sexual! Todos os dias há milhares!... (risos) E
eles repetem isso. Por quê?
REVISTA: E por que você acha?
POMMIER: Por estarem em grupo, acalentados.
REVISTA: O senhor está propondo que há uma clivagem entre clínica
e teoria, é isso?
POMMIER: Sim, mas não é teoria, é crença. É como o fenômeno religioso, é igual. Eu digo isso aqui, mas dizer em público é difícil. Porque os
colegas creem, eles acreditam nisso. É uma crença.
REVISTA: Escutando o senhor, pensamos que o texto freudiano lhe dá
mais coordenadas para pensar a clínica, é isso?
POMMIER: Não obrigatoriamente. Minha formação é lacaniana, mas
é preciso fazer como Lacan. Ele dizia sempre o contrário de afirmações
anteriores. Se você repete Lacan, você não é lacaniana. De todo modo, não
tenho ideia de repetir ninguém. Eu vejo um problema e tento entendê-lo.
Se encontro que Freud, Lacan, Winnicott, não importa quem, já disse algo
sobre isso, eu me sirvo disso. Mas, se ao contrário, eu não entendo, eu pego
outra coisa, é mais prático.
REVISTA: No seminário Encore, quais questões são mais clínicas para
o senhor?
POMMIER: Não é exatamente minha maneira de abordar um problema.
REVISTA: Porque nesse seminário ele fala de amor também, fala de
gozo, de muitas questões que o senhor também aborda.
POMMIER: Posso fazê-lo porque Freud já o fez com o termo “libido”.
Fê-lo a sua maneira. Lacan, com o termo “gozo” – que é um equivalente do
termo libido, não há que esquecer – o fez também. Cada vez é um passo.
177
Gérard Pommier
Eu trabalho com essas maneiras de pensar, mas não utilizo o seminário
para provar algo, não é meu propósito. Meu propósito é de colocar um problema, de avançar, não digo solucionar, porque um outro vai solucionar um
pouco mais depois. Por exemplo, meu livro O que quer dizer o amor, para
mim agora já é passado, fora de consumo (risos). É como um iogurte. Eu
penso outras coisas agora.
REVISTA: O que o senhor pensa agora?
POMMIER: Não, não, ainda está em fabricação. Não que eu tenha me
equivocado, mas alguns problemas não estão bem colocados. Mas essa
maneira de sempre continuar era a maneira de Freud, ou a maneira de Lacan, a maneira de qualquer pessoa. Sempre pensamos outra coisa que ontem. Assim, tomar um livro e pensar que ali há a verdade... É uma maneira
de averiguar alguns pontos, mas não tem que se encerrar também. É tudo
o que quero dizer. Claro que todos temos mestres, é útil para pensar, mas
não para encarcerar-se.
178
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 179-206, jul. 2012/jun. 2013
RECORDAR,
REPETIR,
ELABORAR
QUESTÕES SOBRE
O SEMINÁRIO ENCORE 1
Contardo Calligaris2
Nosso nome não é Porto por acaso. A psicanálise da cidade deve muito aos imigrantes que acolhemos, e Contardo Calligaris foi um desses. Italiano, mas com
passagens pela Suíça e especialmente pela França, morou em Porto Alegre no
final dos anos 80, início dos 90. Foram sete anos de trabalho intenso, até que
partiu, como era previsto, deixando-nos marcados pela sua inquietude.
Desses anos de convívio, ficamos com um legado teórico e um político. No
primeiro, ajudou a divulgar o pensamento lacaniano; no segundo, foi um das
peças-chave para a criação da APPOA. Naqueles tempos de infinitas horas de
reunião, gestou-se um projeto que desejava constituir alternativa a uma série
de sintomas de sectarismo, hermetismo e autoritarismo que se queria criticar
e evitar. Como agregar-se sem sucumbir a essas limitações? Além dos ensinamentos teóricos, da franqueza com que expunha sua visão da clínica, Contardo
contribuiu com o esforço por vezes até físico de suportar a duração de um debate que precisava infinitas horas para amadurecer.
Transcrição das aulas de Contardo Calligaris, proferidas nos dias 29/12/1986 e 07/01/1987,
realizadas em Porto Alegre.
2
Doutor em Psicologia e psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(APPOA); colunista da Folha de São Paulo; autor de Adolescência (Publifolha, 2011), Cartas a
um Jovem Terapeuta (Compus Ed., 2007) Introdução a uma Clínica Diferencial das Psicoses
2ª ed. (Artimed, 2013) e diversos artigos, crônicas e romances. E-mail:[email protected]
1
179
Contardo Calligaris
As aulas abaixo são uma mostra do que foram os seus seminários. Contardo
tinha e tem uma maneira muito própria de assimilar e transmitir a teoria, nunca
divinizou o texto lacaniano, nunca se perdeu em exegeses reverenciais. Dizia
que o trabalho de Lacan estava em constante mutação e muitas pontas soltas
eram arestas inevitáveis de quem mostra o vir-a-ser dos conceitos, aos quais
não via como prontos. Concebia especialmente os seminários como uma oficina
bagunçada, em que a obra-prima é mostrada com algumas aparas dum recinto
ainda não varrido. A verdade é que transmitia uma liberdade e leveza com os
conceitos que facilitava para que puséssemos nossas mãos sem medos neles.
Passava um entusiasmo e uma curiosidade por outros autores psicanalistas de
todas as correntes, incentivava o diálogo com a antropologia, a filosofia, a arte.
Vista assim, a psicanálise aparecia como uma babel organizada, contraditória,
na qual falavam-se muitas línguas, mas não se padeceria da condenação à
incompreensão. A unidade era garantida pelo compromisso ético em perguntarse sobre o sofrimento humano, pelo anseio de buscar caminhos da cura ou, às
vezes, apenas acompanhar a solidão e errância dos nossos pacientes.
Seminário 29/12/1986
E
sta noite gostaria de falar para vocês sobre o seminário Encore – Ainda.
Digo-lhes de imediato que, para mim, isso é um exercício muito difícil,
porque não é meu jeito habitual de trabalhar. Geralmente, prefiro trabalhar
com os seminários em vez de sobre os seminários. É, mas tenho inclinação
para a heterodoxia e achei muito interessante refletir sobre uma espécie
de leitura do seminário Ainda. Espero que vocês o tenham percorrido, digo
percorrido, porque no meu entender é preciso ler os seminários de Lacan ao
menos uma vez, mesmo que não entendamos tudo. É preciso se lançar, ler.
Vou tentar isolar um fio e evidentemente levantar alguns problemas
que o seminário ainda me coloca. Vocês sabem que inicia com a questão
do gozo. Entendemos porque Lacan inicia por aí, porque – é o que ele diz
– o gozo é aquilo com que estamos lidando todo o tempo. O que é o gozo?
Vocês encontram isso na p.11 da edição portuguesa e ele diz que o gozo é
algo totalmente distinto do útil – que o gozo está em estado de pura perda,
gasto, que não tem nada a ver com o útil. Introduz aí o termo usufruto, que
é um termo jurídico.
O termo usufruto deve nos explicar a diferença entre o gozo e o útil.
Vocês sabem o que é o usufruto, por exemplo, quando vocês podem receber os juros de um capital, mas vocês não podem mexer nele. Vocês têm o
180
Questões sobre o Seminário Encore
usufruto de uma casa, podem morar nela, alugá-la e receber o aluguel, mas
não podem vendê-la.
Também, é muito interessante observar, de imediato, que se agora é
totalmente oposto ao útil, não sirva para nada. Mas, ainda assim, há dois
tipos de gozo. Um gozo que estaria em estado de pura perda, um gasto no
capital, e um gozo que seria unicamente um usufruto, já que se diz que se
goza de um bem em usufruto.
Acho que isso introduz a diferença de um gozo que seria fálico e um
gozo que não seria fálico – o gozo fálico é justamente um tipo de gozo que
permite não gastar o capital, que permite não sacrificar o corpo ao gozo.
Fica entendido que esses dois gozos não servem para nada. Isso é importante, é o bê-á-bá, pois, por exemplo, o sintoma não serve para nada, a não
ser para produzir gozo, no caso, o gozo fálico do sintoma.
Podemos, a esse respeito, refletir um pouco mais em que o gozo fálico é um usufruto. Algo que é um gozo, mas que é um limite ao gasto, pois
justamente o gozo fálico é um gozo que nos permitimos para que nos seja
interdito, proibido, um gozo outro que não o fálico.
O que não é evidente, é que este gozo outro, que não o fálico, é impossível. Digo isso entre aspas, pois toda a questão do seminário ainda é esta:
há outro gozo além do fálico? Ficando entendido que o gozo do Outro, como
Lacan sempre disse, é impossível. Acaso há um gozo além do fálico? Lacan
vai sustentar que há outro gozo além do fálico, o gozo feminino. Vamos voltar e ver que não é tão simples assim.
Observem também, já que estamos nessa distinção, que Lacan fala
logo a seguir que o superego enuncia-se da seguinte forma: goze. Lacan
diz que se enuncia assim o superego, fazendo uma homofonia que não aparece na tradução portuguesa – homofonia entre jouis, “goze” e, colocando
apóstrofo, j´ouis fica “eu ouço”. É interessante observar que a posição do
superego em relação ao gozo, graças à homofonia, está a cavalo entre os
dois gozos. De um lado, Isso diz “goze” no sentido de gozar do Outro, do
lado do gasto; Isso também diz “goze”, “gaste”, de qualquer forma “eu ouço”,
quer dizer, o teu gozo sempre seria fálico.
Vamos voltar a respeito do gozo fálico. Todos dizem, e Lacan repete
muito, que o gozo fálico está ligado ao significante. Por quê? O gozo fálico
é próprio do sujeito enquanto sujeito falante. Goza de ser um sujeito falante em relação a alguém no Outro, a um pai, com relação a quem está em
dívida; em relação a um pai, que é justamente aquele que é chamado para
interditar, proibir o gozo do Outro.
Isso é muito problemático. Não podemos considerar esse aspecto sem
levantar uma questão, pois o gozo de que se trata o sintoma é com certeza
181
Contardo Calligaris
gozo fálico. O sintoma é comandado por essa referência ao pai e também,
na mesma medida, o que é problemático é considerar que o gozo sexual
masculino seja gozo fálico, ou seja, ao mesmo título.
Não é tão simples considerar que o gozo sexual masculino seja um
gozo ligado ao significante, um gozo fora do corpo. Para mim não é algo
evidente, mas vamos voltar a isso.
Se vocês continuarem a leitura, irão encontrar uma frase que Lacan
repetirá muitas vezes, que é a seguinte: “O gozo do Outro, não é signo de
amor”. Repete isso mais ou menos umas sete vezes. É muito curioso, pois,
se toma o cuidado de repetir essa frase, deveríamos pensar que é isso que
acredita que se teria tendência a acreditar – que o gozo do Outro teria a ver
com o amor.
Como poderíamos pensar isso? Poderíamos pensar que o gozo fálico
é algo que está ligado ao exercício do desejo de forma evidente, ou seja, o
desejo nos produz como sujeitos falantes pelo intermédio de um significante
e, portanto, nos produz no gozo fálico. Ora, poderíamos pensar que o amor
– que com certeza é coisa diferente do desejo – estaria na dependência
desse gozo do Outro.
Para compreender como chegamos a essa conclusão, seria importante que disséssemos que ideia fazemos do amor. Em particular, poderíamos
pensar que o amor está do lado de uma fusão; no amor, no final das contas,
tratar-se-ia de se completar, de fazer um a partir de dois. Se pensarmos
isso, teria muita relação com o gozo do Outro. Finalmente, o gozo do Outro
seria o seguinte: haveria um Outro ao qual poderíamos nos oferecer como
objeto, que o completaria, que produziria seu gozo. Portanto, se o amor é
completar-se, talvez tenha a ver com o gozo do Outro.
Lacan nos diz o contrário; diz: cuidado, o gozo do Outro não é signo
de amor. Por que isso? Pela seguinte razão: é totalmente certo que no amor
lidamos com a imagem de nosso semelhante, que é uma imagem de completude. Nosso semelhante, aquele por quem estamos apaixonados, é uma
imagem, um pequeno i(a), que aparece para nós, trazendo nele ou nela, o
objeto que faria completude do Outro. Mas não é por isso que iremos nos
precipitar em direção ao objeto de amor, envolvendo nosso corpo como uma
doação sacrificial, porque aquilo que faz o objeto de amor é algo a mais. É
também, a suposição a esse semelhante, de significantes de um registro
paterno [i(a)/S2] Vocês encontrarão alguma coisa nesse sentido na p. 69 da
edição portuguesa.
E o que é a função desses significantes? O que quer dizer isso? Que
idealizamos o objeto de amor, supomos a ele significantes do nosso próprio
ideal do eu, de tal forma que pareçamos amáveis a ele. É por isso que La182
Questões sobre o Seminário Encore
can fala que os sentimentos são recíprocos. São recíprocos porque, quando
se ama alguém, idealizamos, supomos nele significantes tais que pareçamos amáveis a ele e, por conseguinte, ao nosso próprio ideal de eu. É por
isso que o amor é simpático.
Dessa mesma feita, os significantes supostos, que são paternos, são
do mesmo registro desses significantes que nos protegem contra o gozo do
Outro. Isso faz com que nossa relação com o objeto de amor não esteja do
lado do gozo do Outro, mas do lado do gozo fálico. No amor estamos também no gozo fálico. É nesse momento que Lacan diz: não é do amor que
estou falando, estou falando do gozo do Outro, e quando falo do gozo do
Outro, falo do amuro, do amur. Pode ser tanto a-mur (a-muro), e quando se
põe acento circunflexo (a-mûr) pode ser “a-maduro”.
O que é amaduro, o amuro? Que o sexo é da ordem do real, é também
do real, não da sexuação. No sexo poderia haver, talvez, um gozo que seja
ainda. Um jogo de palavras, uma homofonia em Encore, ainda e Encore, –
en corps – no corpo, em corpo. O que é o sentido de todo o seminário, pois
Encore, ainda, quer dizer “no corpo”.
Se há um gozo no corpo? Quando se diz isso, imediatamente se coloca a questão, que repito: será que o gozo fálico está fora do corpo? Evidentemente, a somatização, por exemplo, o sintoma de conversão, não seria o
que me mostraria que o gozo fálico está fora do corpo?
Ainda assim, será que o gozo sexual masculino é fálico? Vocês sabem
porque se pode pensar que o gozo masculino é fálico? Porque o gozo masculino pode ser contado, pode-se contá-lo. Poderíamos fazer a observação
seguinte, é a mulher que conta, é a mulher que diz, por exemplo, estás me
devendo uma; o homem não diz isso.
Isso coloca uma questão. Não estou seguro de que se possa pensar
que o gozo sexual masculino seja um gozo ligado inteiramente ao significante.
Iremos voltar a essa questão, já que a que surge imediatamente, quando penso nisso, é a seguinte: apesar de tudo, apesar disso que vocês sabem muito bem, que o gozo masculino pode ser visto; – há uma ejaculação,
o que não é o caso da mulher – então, que apesar disso, ainda é curioso que
em Freud, (e não apenas em Freud) a única questão que se coloca verdadeiramente, é a sexualidade feminina. Quanto aquilo que quer um homem
não é uma questão que pareça muito interessante à psicanálise. A questão
é sempre o que quer uma mulher, o que é a sexualidade feminina. Pensem
na famosa história do continente negro de que fala Freud a propósito da
mulher. Vou tentar lhes propor uma resposta a isso, que parece estranha,
no final de minha exposição.
183
Contardo Calligaris
Se vocês continuarem com a leitura, e espero que aquilo que estou
lhes dizendo sirva para que leiam o seminário Encore tendo um fio. Se continuarem com a leitura, vocês chegarão às páginas 17 e 18 da edição portuguesa. Lacan fala que o gozo sexual é fálico, ou seja, não está relacionado
com o Outro enquanto tal – aparentemente diz isso de todo gozo sexual.
Por que diz isso? Quando se goza de um corpo (p.35), se goza sempre
de um corpo de forma corporizada significante, de uma maneira significante, ou seja, se goza sempre de uma parte. O que quer dizer essa frase: se
o gozo do Outro é isso, não nos oferecemos como objeto ao Outro, o que
permite a metáfora paterna.
O que a metáfora paterna permite é, de um lado, nos produzir como
sujeito para um gozo fálico em relação ao saber do pai e, por conseguinte,
transformar o Outro com quem estamos lidando; de terminá-lo de tal maneira que poderemos brincar com o objeto parcial determinado, o objeto do
fantasma, brincar de fantasma.
Por que podermos brincar de fantasma? Porque iremos brincar com
esse objeto, abrigar-nos na metáfora paterna. Podemos suscitar o objeto
parcial, por exemplo, o olhar, sem termos por isso oferecido o olhar ao Outro, mas mantendo-nos como sujeitos em relação ao saber do pai. É o que
faz que no gozo sexual fale-se de gozo fálico, pois não nos aventuramos
no fantasma somente quando estamos obrigados pelo saber paterno. Isso
Lacan vai repetir durante duas páginas, vai nos dizer, por exemplo, que
o significante é causa material do gozo e também limite – isto é, a causa
material do gozo fálico e o limite que nos protege contra o desejo do Outro.
Alduísio Souza: (Não foi possível transcrever)
Contardo Calligaris: Poderia discorrer mais se vocês quisessem, no
sentido de que seria interessante ver como o objeto quer vem na escolha de
objeto de amor, e como quer vem na escolha do objeto de desejo. Na escolha de objeto de desejo geralmente ressalvo, pois nos casos mais puros o
objeto pode estar presente como terceiro, ou seja, que se pode escolher um
parceiro sexual e o objeto pode ser o olho terceiro – o que aliás, é bastante
frequente. Se não, o objeto, colamos nas costas de nosso parceiro.
Gosto de fazer a inversão desses dois termos, e dizer que, no objeto
de amor, o objeto é algo que está apagado atrás da completude do objeto
de amor. No parceiro sexual, o objeto que colamos em suas costas é justamente aquilo que buscamos, inclusive, buscamos destacar nele. Mas se
trata sempre de gozo fálico, e o que é engraçado é que Lacan vai sustentar
essa posição até, mais ou menos, a p.75.
Cuidado, atenção, quando ele fala de uma outra satisfação, que é um
dos capítulos do seminário Encore. Trata-se ainda de um gozo fálico. Vai
184
Questões sobre o Seminário Encore
nos dizer que a realidade é abordada com os aparelhos do gozo; diz: o
único aparelho do gozo é a linguagem. Continua a dizer, não há gozo se
não fálico, não há gozo se não fora do corpo, até o momento em que muda.
Essa mudança ocorre nas páginas 81 e 82 da edição portuguesa, onde
nos propõe esta ideia que é admirável: se houvesse um outro gozo além do
fálico, não teria que ser este. É uma frase muito esquisita, pois ele mesmo
diz, quando digo este estou falando do gozo fálico ou do Outro?
Se houvesse um outro, além do fálico, não seria preciso que fosse
este. O que quer dizer este? É uma frase muito bonita, pois creio ser um
modelo de interpretação, isto é, um modelo de equívoco. Se pudéssemos
produzir todo o tempo interpretações dessa qualidade seria maravilhoso.
O interesse dessa frase é o seguinte: quando se está no gozo fálico
(o que aparentemente seria sempre, já que não há outro além do fálico),
se está em posição em que se pode dizer “se houvesse um outro além do
fálico, deste, do nosso, não seria preciso que fosse fálico, seria bom estar
no Outro”. Vocês veem o interesse desse equívoco?
Vocês sabem que Lacan dizia que o gozo fálico é a insatisfação, que
estamos satisfeitos de ser um, ou seja, que estamos insatisfeitos. A frase de
Lacan nos lembra justamente que se trata de um equívoco, pois quer dizer,
se há um outro, eu gostaria de estar nesse outro gozo – de jeito nenhum. É
o interesse dessa frase, e é nesse momento que Lacan diz que não há outro
que não o fálico exceto o gozo feminino, exceto o gozo mais além do fálico.
Vocês encontram isso na p. 100 e vou parar, deter-me nas p.102 e 103 – são
páginas que estão reproduzidas na contracapa do seminário.
O que é engraçado e nunca tinha me dado conta, dei-me conta hoje,
de que falta uma frase no meio do texto, a qual não está indicada que falta.
Essa frase que falta não é de jeito nenhum uma frase qualquer.
Antes de mais nada, como é que Lacan introduz a ideia de que haveria um gozo que não seria fálico e que seria o gozo feminino? Ele diz: não
quero me apoiar naquilo que se chama de pequenas considerações – que
são as considerações de Freud sobre a questão do gozo vaginal e do gozo
clitoridiano; em outras palavras, não vou me basear em Master e Jonhsons.
No que ele vai se apoiar para dizer que há um gozo feminino?
Preciso observar que aquilo que desse ponto de vista é extremamente fraco. Parecem-me substancialmente dois argumentos, que no final das
contas, fazem um só. Ele nos diz: o cristianismo inventou um Deus, de tal
forma que é esse Deus que goza. Acrescenta, basta que vocês olhem em
Roma a estátua de Bernini, é sensível sua cobertura – é a estátua de Santa Tereza, para compreenderem que está gozando. Não há dúvida de que
goza. E do que ela goza? É claro que o testemunho essencial dos místicos
185
Contardo Calligaris
é o de dizer, justamente, que ela o experimenta, mas não sabe nada dele.
Ele nos diz, o Deus dos cristãos goza, os místicos se oferecem ao gozo de
Deus. Eles estão no gozo do Outro, portanto existe algo, certas posições
místicas, que são do gozo do Outro, ao lado do gozo do Outro.
Isso, antes de mais nada, é para mim, bastante problemático. O que
nos prova que o místico está no gozo do Outro? O que nos prova que não
está no gozo fálico? Vou lhes dar os argumentos do diabo.
Os argumentos do diabo são os seguintes: um sujeito que está no gozo
fálico trabalha também para a glória do pai. É verdade que o gozo está nele
como sujeito, não no seu corpo; desse gozo concerne um outro que não tem
corpo, que é um pai morto. Não é seguro que quando se está no gozo fálico
não se está visando ao gozo do pai, ou, dito de outra forma, não me parece
seguro que a posição mística esteja no corpo. Concebo perfeitamente que
Santa Tereza seja fálica.
O segundo argumento de Lacan, dizer que eles o experimentam, mas
não sabem nada dele. Isso também é verdade para o gozo fálico. O gozo
fálico é notoriamente recalcado, isto é, ninguém está pronto a admitir que
goza de seu sintoma; aliás, essa coisa não tem o menor interesse. Isso vale a
pena ser observado, pois uma época os analistas achavam bom dizer a seus
pacientes: você está tendo a conta de seu sintoma, isso lhe faz bem, isso lhe
faz gozar. Quando se está no gozo fálico não se sabe tampouco que se está
no gozo, exatamente como os místicos de que nos fala Lacan. Então, qual é o
argumento de Lacan para dizer que há uma gozo além do fálico?
É um ato de fé e é um ponto central do seminário. Ele diz: eu creio no
gozo da mulher, no que ela é a mais, no que ela é a mais com a condição
que esse a mais, vocês lhe coloquem um anteparo antes, que tenha explicado bem. Efetivamente vai explicar isso no capítulo seguinte, com as
fórmulas da sexuação.
O que é engraçado, e agora vou ler um pouco mais, ele acaba de dizer
que ele próprio é um místico: Eu creio em Deus, eu creio no gozo da mulher
– é um ato de fé, um ato de crença postular um gozo além do fálico, crer que
há um gozo feminino.
Vou lhes dar também o argumento do diabo; crer em quem? Crer na
palavra de quem? Quem diz que há um gozo feminino? Nesse caso, a resposta ainda é fácil – quem diz que há um gozo feminino é a histérica. Porque
a histérica diz que há um gozo feminino? É porque, justamente, toda a montagem histérica consiste em reivindicar um gozo que não caia sob o golpe
do pai, ou seja, que não seja gozo fálico. Qual o interesse da histérica de
reivindicar esse gozo? Reside em que permite colocar-se, ela própria, como
nome do Pai, como a única que sabe verdadeiramente o que é o gozo. De
186
Questões sobre o Seminário Encore
tal forma que, acredito, essa questão do gozo feminino persegue a nós analistas, na medida em que foram as histéricas que inventaram a psicanálise,
e não estou seguro de que seja preciso continuar necessariamente nesse
caminho.
É preciso ver, mesmo assim, que a posição de Lacan é mais interessante do que a de Freud. A posição de Freud, até o final de sua vida, é que
se, de um lado não cessa de se perguntar o que é uma mulher e o que ela
quer, por outro, creio que jamais deixa de pensar que é um caso de frustração – que a resposta à reivindicação feminina é algo que deve poder se
resolver no sentido da frustração.
O que se tentava, no fim do século passado, na época de Freud, – o
que procuravam, na época de Freud – o que procuravam, toda sorte de gente brava do círculo de Charcot e dos outros, era carregar as místicas para a
questão da “foda”. Freud nos diz, em diversas ocasiões, que a reivindicação
histérica tem a ver com uma insatisfação sexual.
Nesse ponto de vista, Lacan é mais interessante. Situa aquilo que seria
o próprio da sexuação feminina de uma forma diferente da sexuação masculina. Todo o interesse das fórmulas da sexuação é mostrar que há uma
posição sexuada feminina, que funda um sujeito, digamos, original – que a
mulher é constitucionalmente um sujeito diferente do homem, constitucionalmente na sua relação com o significante. Até aqui, não podemos fazer
outra coisa se não seguir o que Lacan diz.
Poderíamos dizer muitas coisas, mas não hoje à noite, sobre, por
exemplo, o que seria o equivalente, na mulher, à castração. Mas, a questão de saber se essa originalidade constitucional da mulher desemboca no
outro gozo, creio não ser evidente. Não é evidente, pois, justamente o que
testemunha sobre esse outro gozo é o discurso da histérica e que Lacan
funda. Lacan funda seus desenvolvimentos num ato de crença em relação a
esse discurso, o da histérica. Seria estimulante vocês abordarem o seminário Encore com essa questão em perspectiva.
Vou lhes dizer desde logo quais são as consequências imediatas para
nós. Por exemplo, se há um gozo outro, além do fálico, como não pensar
que uma análise deveria introduzir o sujeito nesse gozo outro, nesse gozo
diferente? No entanto, penso que uma análise deveria permitir ao sujeito
fazer uma coisa interessante com o gozo fálico, em vez de embarcá-lo na
crença de um gozo além, diferente do gozo fálico. Vocês veem então, que
há algo aí cujas consequências clínicas são enormes. Espero que isso seja
útil para vocês.
Edson Sousa – Se o que funda a possibilidade de um gozo outro é um
ato de fé, o que funda a afirmação sobre o gozo fálico, já que ali há certa
187
Contardo Calligaris
reivindicação, embora impossibilitada? Seria possível pensar que ali há um
ato de crença ou seria uma ... (impossível transcrever o final da questão)
Contardo Calligaris – Acho que não, porque parece que o gozo fálico
é algo que está estabelecido empiricamente como gozo de cada um, como
gozo que está no sintoma, que funda a repetição significante. O gozo fálico
nunca é objeto de reivindicação. No gozo fálico há algo que está em gasto,
um gasto como o sintoma, como a repetição significante; algo que não é útil
e que, apesar disso, comanda a vida do sujeito. É uma suposição teórica, se
trata de um gozo, que não é um objeto de reivindicação.
Edson Sousa – Perguntava justamente por isso, quer dizer, trata-se de
algo da ordem do teórico. Nesse sentido, também se joga algo que, disseste
no início, tem certa efetividade quando se acredita, quando se engaja; se
não, não tem.
Contardo Calligaris – Sim, o problema é que na frase do Lacan essas
elocubrações místicas, “eu creio no gozo feminino”, é a posição do Lacan; é
uma reivindicação a partir da posição histérica.
Alduisio Souza – (Impossível transcrever).
Contardo Calligaris – Acho que não tem muita relação com a posição
histérica e, sim, com algo que toca na psicose paranoica – o exemplo Schreber é um exemplo evidente. O pai que volta no real, na paranoia, é um pai
não castrado e castrador no real. A penalização do sujeito é algo que está
implicado nessa volta do pai no real. O que funda a posição paranoica de
perseguição é o fato de que o pai que volta é um pai realmente castrador, é
um pai com faca – agente real da castração.
Edson Sousa – Penso que não fica muito claro também quando nos
fala do gozo do órgão. Você poderia esclarecer o que ele quer dizer quando
sublinha isso?
Contardo Calligaris – Sim... acho que sim; onde iria encontrar o ponto
onde fala nisso?
Edson Sousa – Logo no início.
Contardo Calligaris – Quando fala da objeção de consciência, ou algo
assim. Esse é um dos pontos delicados no que diz respeito ao gozo fálico.
Lacan diz o seguinte (que também não é evidente): antes de mais nada, o
sexo real da mulher não interessa ao homem – o que interessa ao homem é
o corpo da mulher. O sexo da mulher não diz nada, se não para o intermediário do gozo do corpo. Depois, o falo é a objeção de consciência feita por
um dos dois seres sexuados, a objeção a serviço do que tem que fazer ao
Outro – seria a objeção de consciência do homem.
A posição da mulher em relação com o corpo do homem não é com o
corpo, é com o órgão. A relação do homem é com o corpo da mulher; a da
188
Questões sobre o Seminário Encore
mulher, com o sexo do homem. Logo depois, e é aí que aparece a questão
de um órgão, o gozo fálico é o obstáculo através do qual o homem não
consegue gozar do corpo da mulher – aquilo que ele goza, é do gozo do
órgão. Seria assim, por que a mulher gozaria do órgão, não se interessaria
por seu corpo.
Isso daria conta de muita coisa, principalmente do fato de o corpo masculino ser menos erogenizado do que o feminino. Mesmo assim, não é de
todo evidente. Quando diz isso a propósito do sexo da mulher (que o homem não se interessa pelo sexo da mulher, se não através do gozo do corpo
desta), se vê aonde quer chegar, isto é, que o gozo da mulher não é fálico,
não está concentrado no órgão.
Agora, a questão que você levanta, que o gozo do homem seja o gozo
do órgão. Antes de mais nada, isso não é evidente. Não sei se os homens
poderiam dizer que o seu gozo sexual está concentrado no órgão. Seria
mais fácil dizer que o gozo está fora do corpo do que dizer que o gozo está
no órgão. Este é um primeiro problema, também há homens que diriam que
seu gozo está no corpo.
O segundo problema, que levantava alguns instantes atrás, é que mesmo que o gozo do homem estivesse concentrado no órgão, será que isso
provaria que se trata do gozo fálico? Será que não estamos passando de
algo que é simbólico da palavra fálico – gozo fálico como gozo ligado à
castração simbólica? Sabemos que estamos passando então, para o gozo
fálico ligado ao valor imaginário do termo fálico. Tem alguma coisa aí que
não encaixa, não dá.
Sérgio Spritzer. – Não seria o caso de pensar essa questão do gozo
fálico da maneira que Lacan fala em crença através das fórmulas de sexuação? Não estaria Lacan querendo dizer, através dessa palavra, crença, uma
crença lógica, alguma coisa ligada a reflexão sobre as fórmulas?
Contardo Calligaris – Não poderia ter feito tudo ao mesmo tempo; vamos
ver isso com mais detalhes em janeiro. Mesmo assim, parece-me que em razão que do lado da mulher se possa afirmar que não há o ao menos um que
escape à castração, esse fato não implica necessariamente a reivindicação
histérica de um gozo diferente além do gozo Outro, o que não o fálico.
O que está em jogo nesse caso é o seguinte (é meu argumento do
diabo): se essa implicação é uma implicação lógica, como você propõe,
se para uma mulher o fato de dizer não existe ao menos um que escape à
castração, se esse fato implica um outro gozo, segundo o que creio, consequentemente toda mulher é histérica. Não haveria outro destino para uma
mulher além do histérico, uma mulher jamais poderia sair da histeria, se isso
é uma implicação lógica.
189
Contardo Calligaris
Edson Sousa – E no caso do homem, qual seria?
Contardo Calligaris – A implicação?
Edson Sousa – Sim. Obsessivo?
Contardo Calligaris – Penso que para um homem não há implicação
equivalente. Por exemplo, o fato de haver ao menos um que escape à castração, não implica que temos que passar toda a vida na fortificação dessa
posição; é uma história a mais. Talvez a posição histérica, e é no que acredito, é uma escolha a mais com respeito à posição feminina. Mas, se é uma
implicação lógica da posição feminina acreditar num gozo Outro, parece-me
que nesse caso a posição histérica é uma implicação lógica da posição
feminina.
Vou ser mais preciso. Justamente se toda a questão está aí no fato de
a mulher estar numa posição diferente em relação à castração, seria preciso
lembrar a diferenciação que faz Lacan de castração, frustração, privação, e
situar em relação a esses três termos a maneira como Freud situa a castração feminina (o que seria muito longo agora).
A questão é a seguinte: mesmo que qualquer mulher esteja numa relação diferente à castração da do homem, pela razão de que no real não tem
pênis, será que isso implica um outro gozo diferente do fálico? Pelo fato de
que uma mulher não seja toda, não seja toda fálica, será que isso implica
que esteja num outro gozo? Você pode imaginar que não se é todo fálico,
sem por isso estar num outro gozo que não seja fálico. Pode-se imaginar
que não se está todo no gozo fálico, sem por isso estar implicado num outro
gozo.
É uma questão muito delicada, por ser muito próxima do sexual – por
isso Master e Jonhsons nunca foram muito longe. O que Lacan fala sobre
isso, a questão do gozo imaginário em torno disso, é de não querer fundarse sobre isso. Parece algo como uma forma de ligação.
Sérgio Spritzer – Você diria que teríamos que pensar o que é da ordem
do real e do simbólico em termos de gozo sexual, que isso não está muito
claro ainda?
Contardo Calligaris – Não está claro quando se fala, por exemplo, do
gozo fálico como gozo de órgão. A mesma coisa acontece do lado da mulher, porque parece que o que funda a ideia de gozo feminino é de que o
gozo sexual feminino é diferente do gozo sexual masculino.
Yeda Swirski – Quando ele fala, no seminário XI, que no vivo sexuado,
por ser sexuado, há algo que se perde, esse algo que se perde é... (não foi
possível transcrever). Ele diz que essa falta, essa perda, recobre outra perda que teria a ver com o recalque originário. O que pensava é se podemos
pensar esse real e simbólico nessas duas perdas.
190
Questões sobre o Seminário Encore
Contardo Calligaris – Aqui há um problema a mais. Seria preciso examinar detalhadamente, na sexuação feminina, esse fato totalmente particular que Freud sublinha. O que é para a menina a ameaça da castração, que
aparece como sendo realizada; o que é engraçado é que tira uma conclusão
oposta ao menino, com relação à ameaça. O menino, quando vê o sexo
da menina, segundo Freud, chega à conclusão de que a ameaça pode ser
realizada – o que prova que o pai existe e não é castrado. Na menina, para
que a ameaça seja realizada nela, prova que todos podem passar por isso,
inclusive o pai – chega a uma conclusão oposta. Mas, a questão é muito
importante por que tem consequências clínicas.
Seminário 07/01/87
Vou tentar falar brasileiro, por isso fui obrigado a preparar um pouco
mais o que queria falar para vocês, até escrever; escrever às vezes, não
sempre porque, como vocês sabem, essa é uma dificuldade. Se geralmente
eu nunca escrevo minhas palestras não é preguiça, é antes uma decisão
deliberada, digamos assim, para conservar o frescor, e talvez também a
frescura, da fala. Em outras palavras, acho que se trata de preservar a necessidade de que um analista fale como deve, quer dizer, de um lugar de
analisante. Por isso, para mim, geralmente, escrever as minhas palestras é
um problema.
Acho que esta noite vamos retomar um pouco o fio da leitura possível
do seminário Encore, insistindo sobre a questão, que acho ao mesmo tempo
provocadora e fundamental, que eu pus na palestra de dezembro.
A questão seria a seguinte: o gozo outro, será alguma coisa outra diferente de:
Uma implicação lógica do gozo fálico, nada mais;
A consequência patológica (na histeria) dessa implicação.
E vamos falar sobre isso esta noite. Amanhã queria seguir trabalhando
com vocês um pouco mais sobre a posição feminina: o que constitui uma
mulher como sujeito, se a castração, a frustração ou a privação?
Eu deixaria para mais adiante a questão seguinte: em relação ao gozo,
o que podemos esperar de uma análise? O acesso a um gozo Outro, então
qual gozo? Ou um outro jeito do gozo fálico, então qual outro jeito?
Então entramos no assunto. Acho que a maioria de vocês estava na
palestra de dezembro e talvez seja útil resumir um pouco o fio da nossa leitura: o primeiro ponto, vocês se lembram, p. 11 edição Portuguesa (Prefiro
chamar o seminário Encore para termos o equívoco en corps). Era a distinção entre o que seria propriamente gozo, usufruto, e que seria útil. O que
191
Contardo Calligaris
seria propriamente gozo seria então um gasto, do lado do gozo do Outro,
por que o gozo do Outro seria um gasto, um sacrifício do seu próprio corpo
para o gozo do Outro.
O usufruto, no sentido jurídico, é gozar de algo, mas sem gastar o capital, tem que ver com um gozo que preserva. O usufruto seria a posição do
gozo fálico, gozar na preservação do seu corpo, gozar fora do corpo, situar
o gozo fora do corpo, para não gastar o corpo no gozo do Outro. Então, a
posição do gozo fálico, do usufruto, é uma posição de defesa contra o gozo,
ao mesmo tempo é um gozo e é um limite do gozo.
Teríamos que insistir nessa primeira distinção entre o que seria o campo do gozo e o que temos seria do campo do útil, e vamos voltar a esse
ponto, porque acho que temos que nos perguntar como surge em Lacan
o conceito de gozo. Porque certamente é um conceito que não está assim
enunciado desse jeito, e acho que, no seminário Encore, Lacan coloca de
uma maneira bastante clara a razão de seu uso do conceito de gozo, quando ele diz, por exemplo, que um saber é um exercício de um saber e o gozo
é o exercício de um saber. Então, do que ele está falando quando fala de
gozo? No que esse conceito torna-se necessário para ele?
Eu creio que o conceito de gozo em Lacan responde à questão seguinte: se o inconsciente é um saber que está no Outro, dizemos que esse saber
obedece a regras, a limitações, por exemplo, à repetição. Essas regras e
essas limitações, será que elas estão também no Outro? Será que estão na
língua? É preciso compreender muito bem o que está em jogo nessa questão. Se essas limitações se encontram na língua, isso quer dizer que uma
gramática do inconsciente pode ser escrita. Isso quer dizer que a psicanálise pode ser uma ciência no sentido próprio do termo.
Vocês entendem o que isso quer dizer, que nós podemos ter um saber
universal sobre o inconsciente. E vocês sabem que essa ideia nem sempre
foi estranha a Lacan. Se vocês lerem o início dos escritos de Lacan, o seminário sobre a carta roubada, a famosa história das séries alfa, beta, gama,
delta, não sei se vocês já quebraram a cabeça tentando, eu passei um ano
para encontrar um erro, talvez tenha sido eu a me enganar.
Mas o que é engraçado é que se tem a impressão, ao se ler essa história das séries, que para Lacan trata-se de uma formalização possível do saber que está no Outro enquanto estando no Outro. É uma posição epistemológica muito delicada, e hoje em dia pode-se pensar que é em torno dessa
questão que uma verdadeira cisão ocorreu na Escola Freudiana. Quer dizer,
havia pessoas que pensavam que tal empreendimento era possível e outras
que pensavam o contrário. Mas, se pensarmos o contrário, que a lógica do
inconsciente não é inerente à língua, o que faz com que essa lógica opere?
192
Questões sobre o Seminário Encore
Eu creio que a resposta do seminário Encore é que, de uma certa forma, as
leis da linguagem são as modalidades do gozo fálico do sujeito. Ou seja, é do
lado do sujeito, de seu gozo, que se constituem as limitações linguageiras.
De uma certa forma, o conceito de gozo vem em Lacan, eu diria, não
substituir, mas corrigir o conceito de repetição em Freud, no sentido de que
o conceito de repetição parece poder nos levar a pensar que há repetição
incalculável na língua enquanto tal, ao passo que a repetição é efeito do
fato de que o sujeito goza na linguagem e para a linguagem. Eu creio que
o que introduz as limitações na língua, e que introduz a determinação da
linguagem sobre o sujeito é o gozo. E Lacan diz, no seminário Encore, que
o inconsciente é que isso goza, mas isso não sabe de nada. Mas, de início,
o inconsciente é o fato de que isso goza. O conceito então de gozo é um
conceito limítrofe – no sentido de dobradiça, pivô – que articula o lugar do
Outro e do sujeito.
Voltemos ao assunto. Eu também fiz a nota seguinte: (1) Que o superego fala: goza. Não seria completamente impossível encontrar um equívoco
bastante parecido em português – como podemos dizer, por exemplo, gozo
dizendo gouço (verbo ouvir). O equívoco em francês é o seguinte: jouis
(goza!) e j´ouis (eu ouço do verbo ouvir). Seria um equívoco bastante perto
do equívoco em francês, mas diferente, porque se trata de um imperativo:
“goza” e de uma primeira pessoa do indicativo: “eu ouço”. Esse equívoco é
importante para compreender o que se passa entre a posição do gozo fálico
e a posição do gozo Outro porque j´ouis é um imperativo que comanda, de
gozar, num sentido de gozar no gozo do Outro, mas o equívoco diz também:
“Goza, eu ouço”. Tenta gozar no gozo do Outro, sempre se tratará do gozo
fálico. Sempre vai se tratar de linguagem. Isso é o sentido desse equívoco
de Lacan. O mesmo equívoco está na frase de Lacan que também eu falei
da última vez: “Se houvesse um outro gozo que não o fálico, não teria que
ser aquele”. Vocês se lembram dessa frase que está na p.81-82 da tradução
portuguesa do seminário Encore, o que quer dizer que o gozo fálico supõe
um gozo outro – supõe – é uma implicação lógica, nada mais ― e supõe
uma relação com esse gozo outro, eu diria, mais dupla que propriamente
ambivalente, porque se há outro gozo é isso que tem que ser, é isso que
quero, mas, ao mesmo tempo, é disso que tenho que me preservar. Agora,
o ponto lógico de partida, de saída, sempre é o gozo fálico, porque quando
dizemos, por exemplo, que “se tivesse outro gozo que o gozo fálico” é uma
posição que está enunciada a partir do gozo fálico. Quando estamos no
gozo fálico podemos dizer: se tivéssemos um outro gozo não teria que ser
este. O ponto lógico de saída sempre é o gozo fálico. Então a questão fica:
há outra evidência, ou antes, há evidência de outro gozo que o gozo fálico,
193
Contardo Calligaris
porque certamente que há uma suposição lógica de outro gozo. Mas há
uma evidência clínica de um outro gozo que o gozo fálico? Aqui, duas notas:
primeiro a seguinte: a posição de Lacan é dizer que o gozo fálico está fora
do corpo, está fora do corpo, no sentido de que o gozo fálico é um usufruto,
então o corpo não tem que se gastar. É um gozo relativo ao significante
constitutivo do sujeito. Isso é algo que está desenvolvido nas primeiras 70
páginas mais ou menos do seminário Encore até a p. 80 e poucos, quando
Lacan diz que há outro gozo que o gozo fálico.
Agora, por outro lado, Lacan diz até aí (até a p.81) que só há gozo fálico e que o gozo sexual é fálico, que o gozo sexual sempre é fálico (p.17-18).
Então, mesmo antes de considerar a questão de um gozo feminino, vamos
pôr a questão seguinte: o gozo sexual masculino é um gozo fálico ou não?
Que o gozo relativo à ereção masculina seja um gozo fálico, isso tudo bem,
é uma coisa que parece bastante evidente, porque a ereção, a excitação
sexual, tem que ver com o fantasma e o fantasma tem que ver com a transformação da demanda do Outro pelo saber paterno.
Então, no fantasma, o sujeito sempre está constituído pelo significante.
Então ele está no gozo fálico. Está gozando de uma posição significante.
Mas o gozo mesmo, relativo à ejaculação, o gozo propriamente sexual,
é um gozo fálico? Quer dizer, o orgasmo é um gozo fálico ou não? Não seria
mais do lado do gasto que do lado do usufruto? Isso é uma questão muito
importante, e vocês conhecem certamente, há toda uma clínica, digamos
assim, uma clínica, por exemplo, do gasto de sêmen que é uma questão
muito importante, na neurose obsessiva em particular. Lacan vai falar disso
no seminário Encore, vai falar rapidamente quando vai falar do taoísmo, por
exemplo, dizendo: para ficar bem precisa reter o seu sêmen. Que quer dizer
para ficar bem? Para ficar no gozo fálico precisa reter o seu sêmen, precisa
não ejacular, e também toda a problemática da recuperação do sêmen, por
exemplo, comer o seu sêmen, não gastar. Aqui também tem uma questão,
toda essa clínica, será que é somente uma clínica da castração imaginária,
da resistência contra a castração imaginária, ou também uma clínica que
tem que ver com o encontro com o real do corpo e, por isso, com um gozo
outro que o gozo fálico? Porque o que passa na ejaculação, estamos falando da sexualidade masculina, o que passa na ejaculação é que algo aparece no real, algo do gozo aparece no real e algo do corpo também aparece
no real, porque tem uma produção real.
Então, vocês veem mais ou menos a direção que eu tomo, que seria
de pensar que o gozo seria sempre fálico, tudo bem, mas que no sexual, no
propriamente sexual a procura fálica encontraria um acidente real – o gozo
sexual – por que digo acidente real? Porque apresenta o corpo como real,
194
Questões sobre o Seminário Encore
como objeto possível do gozo do Outro. Como se o orgasmo sexual fosse
uma saída, digamos acidental, uma saída do gozo fálico, como uma confirmação do fato de que o gozo do Outro poderia existir. Poderíamos ser objeto do gozo do Outro. Do lado do homem, seria naturalmente com a aparição
do sêmen e certamente do lado da mulher isso tem a ver, no momento do
orgasmo feminino, do gozo feminino, tem que ver com a aparição da própria
posição do objeto para a mulher no fantasma do homem. Isso me parece
importante para pensar porque eu não acredito que o gozo sexual masculino seja gozo fálico, então não acredito que o homem seja inteiramente,
digamos assim, preservado de um gozo que seja no corpo.
O que quer dizer um gozo que seja no corpo?
Quer dizer um gozo real.
Segunda nota:
Vocês sabem também que o gozo fálico é um gozo que está numa
busca. É uma busca, por isso se fala em significação, porque é uma busca
de algum sentido acabado, completo. Uma busca dirigida por um lugar de
saber suposto digamos, um lugar de saber paterno. Uma fuga de significações fálicas possíveis, e um horizonte fálico que seria um encontro com um
sentido fálico acabado, algo que poderia instituir de uma maneira completa
a posição desse saber. Estaríamos perfeitamente reconhecidos por esse
saber, tal a busca desse sentido.
Agora, a questão é a seguinte: como é que a busca desse sentido se
apresenta sempre como uma busca de objetos? Sabemos que nosso horizonte fálico é o êxito, o êxito amoroso, social como diria Freud, não é muito
complicado. Um parêntese...
Porque isto deixa, vale a pena notar, deixa uma margem de liberdade,
porque acho que o tipo de horizonte fálico que cada um escolhe não é uma
necessidade. Acho que podemos ficar numa busca fálica perseguindo outras coisas que um êxito social, um êxito amoroso, por exemplo. Acho que
o modelo social estabelecido de êxito não é uma necessidade absoluta.
Isso é bastante importante, porque pensar que o gozo fálico não é necessariamente uma servidão social, por exemplo, alguém que está lutando por
causa política está também numa busca fálica. Todas as buscas fálicas não
se igualam, são diferentes. Então tem uma margem de liberdade na escolha
da busca fálica de cada um.
Mas está certo também que o êxito fálico estabelecido para nós é geralmente apresentado pela possessão do objeto – pelo menos é uma realidade
do mundo capitalista (mais ou menos todo o mundo), o que Lacan chama
de plus-de-jouir, mais de gozar. Que o plus-de-jouir seja um objeto de consumo, como se a proliferação de objetos fosse necessária para manter viva
195
Contardo Calligaris
a busca fálica; por exemplo, o que é dar um passeio no Iguatemi; é um fato
curioso, acho que o Iguatemi está indicado em toda a cidade como se fosse
o centro, o lugar do qual estamos esperando todo o sentido, ou melhor, o
lugar no qual se supõe que cada um está se dirigindo, porque sempre está
indicado em cada esquina: Iguatemi por aqui. Também há outro, Carrefour...
É interessante, é verdadeiramente a função do mais que gozar.
Se o gozo fálico produz restos que, enquanto objetos, parecem prometer um gozo outro, mas cuja possessão aparece no horizonte do gozo fálico
como sua realização. É algo como para dizer que; vocês veem, os objetos
estão lá ao alcance da mão, e o todo reside em ter condições, bastante êxito
para ter esses possíveis objetos.
É a mesma coisa que ocorre com a droga. A droga é uma consequência direta do mundo capitalista, não creio que se possa imaginar a relação
com a droga fora de um mundo capitalista. Porque o objeto droga – eu falo
de uma droga que se vocês quase não conhecem, da heroína, mas não se
inquietem porque isso vai chegar aqui – isso quer dizer que, na relação com
droga é exatamente disso que se trata, do fato de ter sempre ao alcance da
mão o objeto do gozo, como se fosse o objeto do gozo Outro. Na realidade,
é sempre do mais gozar que se trata, ou seja, trata-se de objetos que de fato
prometem uma realização do gozo fálico.
Por que digo isso? Porque acho que temos que pensar que o consumo
não tem nada a ver com o gasto no gozo do Outro, o que chamamos de
consumo numa sociedade de consumo não tem nada a ver com o gozo do
Outro, acho que tem que ver com o horizonte da realização do gozo fálico.
Isso era o segundo ponto. Agora vamos um pouco mais? Vocês podem
colocar questões sempre, a qualquer momento.
O capítulo seguinte é o célebre capítulo onde estão as fórmulas da
sexuação. Vocês conhecem, eu acho, muito bem.
Alfredo Jerusalinsky – Onde tu dizes que a questão de consumo está
ligada ao gozo fálico e não ao gozo do Outro. Tem um aspecto de consumo
que é se oferecer ao olhar do Outro, em função do qual se faz um gasto.
Contardo Calligaris – Sim, entendo bem, justamente se trata do olhar
do Outro, então eu acho que se trata do olhar paterno, sempre de uma referência a um ideal egoico, então sempre de uma posição fálica em relação
a uma posição ideal do lado paterno. Que seria verdadeiramente o gozo
do Outro? Seria um sacrifício real do corpo. Isso acontece também, mas
acontece, por exemplo, por um outro lado temos que trabalhar isso também;
trabalhamos uma outra hora porque é muito importante.
Eu não sei se vocês vão gostar disso, isso faz parte do meu pessimismo e também de uma das razões pelas quais eu não gosto de pensar que
196
Questões sobre o Seminário Encore
há um outro gozo. Porque me parece que cada vez que um sujeito produz,
por exemplo, uma reivindicação de liberdade, essa reivindicação é fundada
na frase de Lacan que eu citava há alguns instantes: Se tivesse um outro
gozo, que o gozo fálico não teria que ser este. Mas, no sentido de que se
tivesse um outro gozo, que o gozo fálico não teria que ser o gozo fálico,
então o que é o outro gozo? E quando a reivindicação de liberdade está fundada nessa posição, eu acho que inevitavelmente ela conduz ao sacrifício.
Conduz ao sacrifício real do corpo ao gozo do outro imaginário. E acho que
isso a psicanálise pode dizer no campo da política, por exemplo. E acho que
ela pode dizer algo sobre o fato de que as revoluções sempre se dão mal,
nunca dão certo. O que também é interessante, isto é, que há duas saídas
possíveis do gozo fálico, eu acho. Uma é do lado do sacrifício real, dizendo:
tudo bem, se há um outro gozo, é isso que eu quero, então, posição sacrificial no real a respeito da demanda do Outro. Então, por exemplo, sacrifício
real quer dizer – não sei – guerra e morte.
A outra possibilidade é a saída perversa do gozo fálico. O que é interessante é que a saída perversa, porque não temos razões morais em
nos opor à saída perversa; tudo bem, se a saída perversa fosse uma saída
possível e interessante, por que não? O que seria a saída perversa do gozo
fálico? Aqui estamos numa busca fálica, e como nunca se consegue um horizonte fálico no qual teríamos um sentido acabado, temos que nos apropriar
da posição do saber paterno e dessa posição ter um domínio desse gozo. O
problema é que essa saída nunca é uma saída verdadeira, porque quando
o sujeito está nessa posição perversa – o domínio do gozo do Outro – ele
sempre ainda está procurando o gozo do Outro. Isso é um fato que a história mostra muito bem. O que a história mostra é que cada vez que tem, que
há uma saída perversa, por exemplo, numa construção totalitária, o êxito
sacrificial nunca está longe, sempre se dá, sempre se apresenta. A história
mostra que os sistemas totalitários chegam à morte, à morte de todos, sempre chegam
à guerra, por exemplo. Então,
eu tenho razões ideológicas
para considerar que a ideia
mesma de um gozo outro é
uma ideia a considerar com
muito cuidado. É o que vou
tentar desenvolver nestes
dias. Às vezes seria mais interessante pensar no que pode197
Contardo Calligaris
mos fazer de mais interessante com o gozo fálico, de um jeito diferente que
pensar no que poderia ser um gozo outro que o gozo fálico. Então, voltemos
às fórmulas da sexuação. Aqui está, no alto das fórmulas da sexuação; eu
acho que vocês já devem ter o saco cheio disso, portanto não vou repetir.
À esquerda existe um X que escapa à castração; então todo X é castrado; à direita não existe um X que escape à castração, então não todo X
é castrado. Seria mais interessante dar uma olhada no que está em baixo:
nestas fórmulas da sexuação.
Do lado do homem, estaremos de imediato todos de acordo: o sujeito
então goza no gozo fálico, é constituído por um significante – pela castração, sujeito barrado ($). Do lado da mulher, Lacan escreve como vocês sabem: S (Ⱥ). E outra coisa que poderíamos escrever... mas vamos remeter a
esse S (Ⱥ) porque, se vocês leem esse capítulo do seminário Encore que se
chama “Letra de uma carta de almor”, Lacan diz coisas muito contraditórias
sobre esse S (Ⱥ). Ele diz, de um lado: O Outro é aquilo com que a mulher
está profundamente em relação. Ela está em relação com o significante
desse Ⱥ. É por isso que nada se pode dizer da mulher. Mas, por outro lado,
ele diz também: É no lugar do gozo do Outro, do gozo opaco do Outro que a
mulher, se ela existisse é claro, estaria situada. Também diz o seguinte: que
vale a pena ser lido... se nesse S(Ⱥ), eu não designo nada além do que o
gozo da mulher é, seguramente, porque é aí que eu aponto que Deus ainda
não fez a sua saída. Isso é muito importante.
Se vocês lembram aquilo que eu lembrei a vocês em dezembro, que
a relação de Lacan com o gozo feminino é uma relação de crença religiosa, uma vez que no final do capítulo precedente ele diz: eu creio no gozo
feminino enquanto seria algo além, à condição de que esse além vocês
possam esperar um pouco para que eu possa explicar de outro modo. Isso é
uma frase que está no meio do que está escrito na 4ª p. da capa. É um ponto
muito importante. Isso quer dizer que, se de um lado Lacan fala como se ele
cresse no Outro, como se ele acreditasse no Outro, é muito importante, pois,
se acreditamos no Outro, então podemos pensar que o gozo do Outro existe
talvez fora da implicação lógica do gozo fálico. Mas, por outro lado, ele fala,
o Lacan, como se o gozo do Outro não fosse senão apenas o lugar, um lugar
onde se situaria a mulher; o que faz com que as fórmulas que eu citei, o Outro
é aquilo com que a mulher está profundamente em relação, “são fórmulas
muito problemáticas”, pois elas parecem testemunhar a ideia de que o Outro
existe. Mas agora vamos um pouco mais longe nesta historia de S (Ⱥ). Eu
deixo para amanhã a consequência daquilo que vou dizer. Pois, na minha opinião, é a partir disso que se pode entender alguma coisa de loucura histérica.
O que quer dizer afinal esse S (Ⱥ)?
198
Questões sobre o Seminário Encore
Num primeiro nível podemos dizer o seguinte: isso quer dizer que no
Outro, é o que está escrito na parte de cima, não há nenhum que escape
à castração, mas isso não seria suficiente para escrever essa fórmula. É
preciso que pensemos que fazer como diz a mulher, dizer, pois que não há
nenhum que escape à castração, isso tem consequências não somente sobre o pai, mas também sobre a posição do outro enquanto tal porque, pela
seguinte razão, retomo meu velho desenho.
... Defesa D◊a
S² . D = S2 1
D a
s
Se a defesa que é a metáfora paterna, ou seja, a referência ao saber
suposto do pai, se essa defesa também é, portanto, aquilo que faz existir a
demanda do Outro contra a qual a gente se defende, e vocês sabem que
isso está implícito na posição do gozo fálico: “se tivesse outro gozo que o
gozo fálico não teria que ser este” isso quer dizer também que, na medida
em que há gozo fálico, existe um horizonte do gozo do Outro. A defesa neurótica mesma faz existir um gozo do Outro possível, como um que seria o
contra o que estamos nos defendendo. Isso é algo que já está em Freud: é a
proibição do incesto que existe em primeiro lugar, não é a vontade, o desejo
do incesto. A vontade do incesto é uma consequência da proibição do incesto. Trata-se aqui da mesma coisa, é na medida em que estamos na defesa
que a demanda do Outro nos angustia. Ou seja, que nos defender faz existir
a demanda do Outro, então o que se passa se o sujeito suposto ao saber
da defesa, ou seja, o pai, se esse sujeito então aparece como castrado?
Que se passa desse lado? Ou seja, quais são as implicações em relação à
demanda do Outro? Para dizer de uma forma banal, se a mãe, naquilo que
ela tem de aterrorizante, é uma consequência da posição paterna, que é
suposta a nos defender contra ela, o que ela se torna quando essa função
paterna está castrada? Enfim, não é a função que é castrada.
O que se passa quando não há nenhum suposto a esse saber? O que
acontece é que é atingido o próprio Outro imaginário. E isso tem consequências muito interessantes, no meu entender. Isso explica o que faz com que a
loucura histérica não seja uma psicose. Eu digo isso brevemente hoje, mas
talvez vá poder desenvolver amanhã. Eu creio que o que se passa na loucura histérica, que no meu entender é a realização máxima da histeria e, como
vocês sabem, apresenta fenômenos extremos que vão até uma paródia da
esquizofrenia, ou seja, chega mesmo à automutilação. É preciso dizer com
mais peso: a automutilação sem dor. Creio que o que se passa é que a his199
Contardo Calligaris
térica situa a mulher, como vocês sabem, no lugar do nome-do-pai. Mas que
quando ela consegue, tem êxito para ela mesma situar a mulher no lugar do
pai, o que se encontra situado no lugar do nome-do-pai não é a mulher, mas
a mãe. Isso é devastador, mas eu lhes digo isso hoje brevemente, mas é
algo que vamos tentar ver melhor, inclusive com exemplo clínico. Eu vou terminar – o que é interessante, por enquanto atenhamo-nos a isto, é que esse
S(Ⱥ) escreve alguma coisa a mais além da castração do lado do pai. Isto
escreve que o Outro, o Outro dessa demanda, ele está barrado. Essa barra
não é a mesma que está sobre o “ao menos um”, é a barra sobre este Outro
aí, o Outro da demanda. Isso quer dizer que a mulher não estaria, portanto,
na posição de ser tomada como um objeto dessa demanda, pois, pelo fato
de não estar às voltas com um pai incastrado, ela não estaria tampouco às
voltas com o Outro onipotente. Por isso que o objeto que o homem vem situar
aí no seu campo não se confunde com a falta no Outro, ou seja, não é o mesmo objeto que é aspirado por essa demanda. É por isso que a sua posição de
objeto é escrita pelo desejo masculino. O que escreve a flecha suplementar,
como vocês sabem, é uma coisa diferente do que escreve a outra flecha,
pois escreve algo que é um empreendimento, de empresa, ou seja, escreve o
empreendimento histérico tirado como consequência do fato de que a mulher
não é toda, ou seja, ela sabe que o pai é castrado e que essa demanda não
é onipotente. Tira-se a consequência de que ela própria pode encarnar o falo.
Mas isso é o que nós vamos trabalhar particularmente amanhã.
Vocês estão seguindo o fio do meu empreendimento, a provocação
que eu tento fazer para incomodá-los é evidentemente chegar à conclusão
de que a única evidência que se tem de um outro gozo é a evidência que
aparece nesse empreendimento, ou seja, quando a histérica se autoriza de
um pretenso outro gozo, ela pretende se situar no lugar do falo e eventualmente no lugar do pai. Essa é uma posição muito provocadora. Normalmente vocês deveriam saltar no meu pescoço.
Eduardo Mendes Ribeiro – Tu colocavas que ao invés de encontrar a
mulher no lugar do nome-do-pai, se encontraria então a mãe. Gostaria que
(inaudível) se tem um certo hábito de falar: a mulher no sentido lacaniano;
a mãe, menos. Tu poderias falar se existe uma diferença? Qual seria exatamente a diferença entre a mãe com m maiúsculo e a mãe com minúsculo?
Calligaris – Lacan diz uma coisa engraçada, que vocês irão encontrar
no seminário Encore, no capítulo O saber e a verdade, muito perto do fim (8º
parágrafo), antes do complemento, p.133: “Se a libido é apenas masculina,
a querida mulher não é senão de lá onde ela é toda, quer dizer, lá de onde
o homem a vê, não é senão de lá que a querida mulher pode ter um inconsciente. E de que lhe serve isto? Isto lhe serve como todo mundo sabe, para
200
Questões sobre o Seminário Encore
fazer falar o ser falante, aqui reduzido ao homem, quer dizer – não sei se
vocês chegaram a notar na teoria analítica – a só existir como mãe”.
Nós vamos retornar a esse trecho, mas eu creio que é uma indicação
muito interessante de Lacan, mesmo sendo muito provocadora, pois é realmente muito forte dizer que as mulheres não têm inconsciente.
É o que ele diz, não é certamente aquilo que ele pensava. Mas eu creio
que, respondendo um pouco mais à questão, ainda que eu vá desenvolver
isso um pouco mais amanhã, eu creio que para que a mulher possa situar
um nome-do-pai é preciso que ela exista como toda – ou seja – que ela não
seja barrada, que ela esteja toda alhures, num gozo que não seja fálico. Que
ela seja toda mulher – a mulher não barrada.
Essa posição da mulher não barrada, é o sentido dessa frase de Lacan, é uma posição muito fácil para o homem. O homem não cessa de
acreditar que a mulher existe. É o seu trabalho de idealização permanente
tentar fazer existir a mulher. Todos os homens creem que a mulher existe.
O que é muito incômodo é quando ele a encontra. Sim, porque eu conheci
alguém que encontrou A mulher, e ele jamais se recuperou disso, ele se tornou
louco. Era um rapaz muito legal, um escritor muito bom, um dia encontrou uma
mulher que era A mulher, que era A mulher para ela também. Que é ser A mulher?
Por exemplo, o seguinte: vocês estão com uma mulher no hall de uma
estação de trem com as bagagens para fazer uma viagem de amor que
dura uma semana. E vocês estão esperando o trem, então tomam um café
juntos, tecendo um perfeito amor. E, subitamente, então a mulher diz a você:
desculpe querido, eu vou ao banheiro, e ela retorna dois meses mais tarde.
Essa é A mulher.
Quando vocês passam por esse tratamento durante um ano, ou vocês
mesmo vão ao banheiro, ou então vocês ficam loucos. Ele ficou louco. E ele
escreveu um livro muito bonito, durante o tempo em que estava com ela;
ele não sabia nada de psicanálise, mas escreveu um livro que se chama
O território do outro. Ele veio me ver um ano depois, tinha vendido tudo, virando quase mendigo, tinha se retirado para criar cabras e naturalmente as
cabras morreram todas de uma epidemia. Ele veio me ver, queria fazer uma
análise. O mais engraçado é que, para pagar a sua análise ele, como tinha
sido escritor, tinha conseguido obter um contrato junto a uma editora para
publicar uma coletânea de todas as versões de todas as religiões do mundo,
vocês sabem do quê? Do apocalipse. E se recuperou um pouco depois.
Mas o que é mais interessante para nós: o que se passa quando uma
mulher torna-se A mulher?
Quero dizer no sentido em que ela consegue ter êxito em sua histeria.
O que se passa, eu creio, é que ela consegue situar no lugar do pai A mu201
Contardo Calligaris
lher, não barrada, a mulher toda – mulher, ou seja, ela consegue situar como
sujeito do saber de defesa A mulher, então nesse lugar, aquilo que ela instituiu
como sendo A mulher se transforma na mãe. Se transforma na mãe, pois
tanto para o homem, A mulher pode ser idealizada como toda nesse lugar,
como para mulher, para que, A mulher seja toda, ela não pode ser nada mais
que mãe. Eu me dou conta de que isso pode parecer um pouco breve, mas
eu vou tentar mostrar isso a vocês amanhã, sobretudo vou tentar lhes mostrar
as consequências desse fato de que A mãe encontra-se, vê-se situada como
nome-do-pai. Isso tem consequências terríveis, e vocês vão ver logo por quê.
Pois o lugar do sujeito do saber paterno é o lugar em relação ao qual temos
uma filiação simbólica. Mas se se trata da mãe, essa filiação é real, ou seja,
nos vemos situados numa filiação enquanto objeto real, enquanto filha real.
Uma filiação em relação à mãe é uma filiação real, não pode ser somente uma filiação simbólica. E isso tem consequências, na posição do
sujeito, muito importantes.
Sérgio Spritzer: Quando tu enuncias que tu acreditas que o gozo masculino não é um gozo fálico.
Contardo Calligaris: o gozo sexual.
Sérgio Spritzer: Sim, me faz lembrar um momento que Lacan escreve
que o homem que pensa que come a mulher está enganado. Isso não vai
de acordo...
Contardo Calligaris: Acho que isso tem que ver com o fato de que –
com o fato das fórmulas – o homem que pensa que come a mulher de fato
ele está comendo com o Outro. Está transando com o Outro pelo intermédio
do objeto do fantasma. Eu creio que é isso que Lacan quis dizer, ou seja,
jamais se faz amor com o parceiro, mas fazendo sempre amor com o Outro
pelo intermediário do objeto do fantasma, com a exceção que é a perversão.
Lacan diz justamente no seminário Encore, num certo momento: “O homem
não encontra jamais o seu parceiro, a não ser na perversão”.
Sérgio Spritzer: Tu achas que quando o Lacan diz isso ele não está se
referindo à posição ativa ou passiva?
Contardo Calligaris: Não, certamente não. Pois a mulher tampouco faz
amor com o homem.
No sentido, a título da sua neurose, pois na perversão, sim, se faz
amor juntos. É por isso que a sexualidade constituída é perversa.
Vocês sabem que na perversão a gente pode se juntar por uma razão que
é a seguinte: que na perversão podem-se ficar os dois no mesmo fantasma.
Cabem dois ou mais no mesmo fantasma. Aí está o lado interessante da coisa.
Em contrapartida, o que é curioso em relação ao gozo masculino é que
Lacan diz, três vezes eu creio, no seminário Encore, que a masturbação é o
202
Questões sobre o Seminário Encore
gozo do idiota. Isso é muito curioso, porque a masturbação é algo que está
totalmente ligado ao exercício do fantasma, ou seja, que é um exercício o
mais banal possível do gozo fálico. Quero dizer que o masturbador é muitas
vezes alguém que sabe muito bem que, de qualquer forma, na sexualidade
neurótica não está em questão o parceiro, não há parceiro. Sendo assim,
por que não sozinho? Em que seria o gozo do idiota? Para mim isso permanece um mistério. Não sei se vocês já tiveram oportunidade de entrar em
contato com enfermos motores cerebrais graves, que são, na maioria das
vezes, masturbadores terríveis, ou seja, se masturbam o dia inteiro, aí, sim,
eu entendo que seja o gozo do idiota. Pois é sem fantasma. Isso é um outro
gozo, pois não é um gozo fálico, é verdadeiramente um gozo real.
Será que é nisso que o Lacan pensa, quando ele diz isso, será que ele
pensa, por exemplo, que o masturbador é alguém que se masturba para
gozar, isso não me parece de forma alguma uma evidência clínica. Não
creio que aquilo que busca um masturbador seja a ejaculação. Enfim, não
corresponde em nada à experiência clínica sobre a masturbação. Eu diria
mesmo que os maiores masturbadores são taoístas, como diz Lacan, eles
tentam não gozar nunca no sentido do orgasmo.
Sérgio Spritzer: Estás falando assim que dentro de uma relação sexual
normal existe essa busca...
Contardo Calligaris: sim.
Alfredo Jerusalinsky – O homem faz o amor com o Outro por mediação
do objeto do fantasma, e com quem a mulher faz o amor?
Contardo Calligaris: Eu acho que, enquanto fálica, a mulher, enquanto
toda, ela é estruturada como o homem, eu penso que as mulheres têm fantasmas, mesmo um fantasma, ou seja, elas têm uma relação com o seu parceiro
pela mediação de um objeto. Mas o que é mais interessante, penso então
que, enquanto mulher, isto é, enquanto não estando toda na função fálica, ou
enquanto não estando na função fálica, a sexuação predispõe as mulheres a
receber, se é o que ouso dizer, receber como cabide o objeto do fantasma do
homem. E, por conseguinte, a desempenhar o papel de cabide desse objeto.
Eu creio que a mulher está tanto mais à vontade nessa função, porquanto ela sabe que esse objeto, pelas razões que já vimos, não é o objeto
possível da demanda do Outro. Pois esse Outro aí não é onipotente, ou
seja, porque ela sabe que o Outro é (Ⱥ) barrado. Eu creio que isso lhe permite, com um homem, aceitar desempenhar esse papel do seu fantasma.
E, normalmente, é assim que as coisas se dão. O problema que faz com
que as coisas não andem bem é porque desse saber, sobre o objeto do
fantasma do homem, a mulher tira o pretexto histérico para se situar como
nome-do-pai, ou seja, para fundar aí a sua própria reivindicação.
203
Contardo Calligaris
Quando a mulher recusa desempenhar o papel do fantasma do homem, geralmente é para encarnar o falo para ele, isso quer dizer, por exemplo, morra de desejo por mim, mas não me toque.
Agora, isso quer dizer que a mulher faz amor com o homem, eu creio
que ela faz amor com o homem na perversão, mas na perversão também o
homem faz amor com a mulher.
Senão creio que aquilo que ocorre é que a mulher geralmente consegue convencer o homem de que ele está fazendo amor com ela. Uma
mulher que é forte é isso mesmo. Uma mulher bem, eu creio que é isso. Do
que a mulher goza nessa posição? Será que ela goza do fato de se permitir
carregar esse objeto porque o Outro é barrado (Ⱥ)? O que significaria que
ela já está no gozo fálico, isto é, que está sempre no gozo fálico. Ou seja,
que ela goza do fato de que ela sabe algo a mais sobre o desejo do homem.
Ou então será que ela goza verdadeiramente pelo fato do Outro ser barrado? Nesse caso haveria um gozo feminino.
Alfredo Jerusalinsky – Benjamim Domb propôs uma escritura onde o a
fica em cima da barra. Propondo essa oscilação... me pareceu interessante.
. a­
La
←
←
a mulher se propõe como objeto de
desejo do homem
O único lugar onde a mulher obtém a
sua certeza: o de seu gozo
Contardo Calligaris – Sim, mas mantendo a ideia de que esse a está
escrito a partir do lugar do homem. A questão é a seguinte: será que desse
lado, da relação em que essa posição de objeto e o Outro barrado, será que
dessa posição jorra, nasce algum gozo próprio da mulher? É tanto mais problemático porquanto esse a é escrito a partir da posição masculina.
Como estou insistindo, batendo na mesma tecla, eu estaria inclinado
a pensar que o real do gozo sexual feminino, o real orgásmico, não é nem
mais nem menos fálico que o real do gozo sexual masculino, ou seja, eu
estaria inclinado a pensar que o gozo sexual efetivo, o orgasmo, é algo que
é no corpo, para os dois sexos.
Marta Pedó – Tu colocaste assim que seria uma coisa de aproveitar
no momento em que a mulher veste a casaca de objeto a, ela, pelo cabide,
poderia aproveitar isso para se colocar do lado do Outro. No texto, eu tinha
entendido que isso seria uma condição sine qua non, que já estaria dado: no
momento em que ela está vestindo a casaca de objeto a ela está na relação
sexual com o homem no lugar do Outro. Então ela não tem saída da histeria,
foi isso que eu entendi do texto.
204
Questões sobre o Seminário Encore
Contardo Calligaris – A questão é saber se uma mulher pode não ser
histérica, se há posição feminina que não seja histérica.
Marta Pedó – Não é uma condição lógica isso?
Contardo Calligaris – Eu gostaria de crer que uma posição não histérica seja possível para uma mulher. Acho que a demonstração não está feita
disso, é uma crença também. Acharia que, eu queria pensar que não seria
uma implicação lógica, seria possível de estar nessa posição sem fazer dela
uma reivindicação. Mais é uma escolha. Você pensa que se trata de uma
implicação lógica?
Marta Pedó – Eu entendi pelo texto, na parte que fala o que é uma
mulher, é o que o homem põe nela, e ela aí não tem outra saída.
Contardo Calligaris – Quanto a isso você tem toda a razão. Essa é toda
a crítica que eu estou fazendo ao seminário Encore. Quando Lacan diz eu
creio no gozo feminino, como se diz eu creio em Deus, isso quer dizer que
eu creio naquilo que a histérica diz sobre o seu gozo.
Marta Pedó – Mas seria uma crença ou uma implicação lógica?
Contardo Calligaris – Lacan crê numa implicação lógica. Será que é
uma implicação lógica? Será que é algo necessário? Não sei se podemos
responder de outra forma que não seja a partir do lugar da clínica. Não creio
que se possa responder por um cálculo, não creio que se possa dizer que é
uma implicação lógica simples. Nesta escrita se tem a impressão de que é
uma implicação lógica, você tem toda razão, o que faz com que Lacan diga
isso é o fato de que ele disse crer no gozo feminino.
Marta Pedó – Mas já não está implicado na forma em que ele coloca
o gozo fálico e a relação sexual a partir do homem? Porque já está o a ali,
colocado nessa posição a partir da posição masculina, e daí que posição
sobra para ela?
Contardo Calligaris – Mas essa posição, enquanto tal, não é uma posição histérica. A posição histérica começa quando, ficando nessa posição e
aceitando essa posição – também se trata de aceitar – encontrando-se nessa posição, esta se constitui como um lugar de saber que permite a A mulher
barrada por-se como única encarnação do falo. Isso supõe algo mais do que
cabe a essa posição, supõe um trabalho, que é o trabalho da histérica.
Eu não acho, queria não achar, que a implicação seja uma implicação
necessária; eu acho que a mulher pode muito bem – acho – que ela pode
sair da histeria porque pode, como dizer: será que é necessário, quando se
está nessa posição, se prevalecer dessa posição para reivindicar justamente um saber que poderia completar o saber do pai?
O que implica nessa operação não é, no meu entender, totalmente
necessário, porque não há saber sobre o gozo na mulher – isso é algo certo
205
Contardo Calligaris
e seguro. Não há saber sobre o gozo em ninguém, o que se passa é que
o homem, ele mesmo está totalmente disposto, normalmente, a encorajar
antes a mulher à histeria, a interrogá-la como se ela soubesse sobre o gozo.
Marta Pedó – A posição do homem supõe, ela a põe num lugar suposto.
Contardo Calligaris – Eu penso que a análise dá saída a isso. Eu penso que uma mulher deve poder sair de uma análise, e no caso estou sendo
otimista, deve sair de uma análise com a chance de não ser histérica.
Isso deixa intacta a questão das galinhas...
Vocês conhecem a história das galinhas, essa história foi retomada
pelo Woody Allen, a história de um louco que queria sair do hospital e pensava que era um grão-de-bico que foi curado e retorna aterrorizado, pedindo
ao médico: será que você informou as galinhas que eu estou curado?
A questão das galinhas é sempre uma questão muito importante quando se sai de uma análise, é preciso que as galinhas estejam informadas,
pois, às vezes, os galos incitam à histeria, então é preciso encontrar um
galo informado.
Yeda Swirski – Quando a gente faz essa leitura e pensa na posição
masculina e na posição feminina não se fica de certa forma naquele engano
de que há relação sexual? Por que não pensar que tanto o homem quanto
a mulher, na relação sexual, na busca do gozo, forçosamente ficam na posição do lado de cá?
Contardo Calligaris – Do lado do homem.
Yeda Swirski – Será que é absolutamente inevitável tentar pensar o
que se passa do outro lado, porque é sempre num sujeito...
Contardo Calligaris – Isso é verdadeiro. É verdade, mas também é verdade – e está no sentido dessa flecha que atravessa – que justamente na
medida em que a mulher não é toda, que ela pode jogar com o fantasma de
um homem de maneira diferente que faria um outro homem. Isso é um fato
ainda assim. É um fato muito espantoso, por exemplo, que, contrariamente
ao que se pensa, via de regra, um casal de homossexual masculino é constituído de uma forma totalmente diferente de um casal heterossexual. Não é
que haveria relação sexual entre semelhantes, é o fato de que a mulher está
numa posição de jogar com o fantasma de seu homem.
206
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 207-219, jul. 2012/jun. 2013
VARIAÇÕES
OS NÚMEROS DE LACAN
Ligia Gomes Victora1
A
partir deste número da Revista, apresentaremos a rubrica Os números
de Lacan, composta por três artigos que tratam sobre a teoria dos números em Lacan: 1) Os números irracionais de Lacan – parte 1 (o número fi
na obra de Freud e na de Lacan); 2) Os números irracionais de Lacan – parte 2 (as transmutações do fi); 3) Os números imaginários de Lacan.
Quando nos empenhamos em formalizar a psicanálise, percebemos
que nem tudo é passível de se escrever – parece que sempre sobra alguma
coisa. No próprio campo das matemáticas há muitas questões não-demonstradas – como os vinte e três problemas ditos insolúveis em 1900, apresentados por Hilbert, no congresso internacional de Paris – dos quais restam
seis ainda em aberto e três apenas parcialmente resolvidos. Existem, também, operações que só se realizam fazendo, por exemplo, as que exigem
a prova por exaustão – e nas quais a participação daquele que interpreta é
fundamental para que elas ocorram.
Da mesma forma, no trabalho analítico, somente durante o percurso de
uma psicanálise – uma por uma –, é que se pode confirmar a teoria freudiana:
a existência do inconsciente, por exemplo. Na estrutura única e singular, que
é cada tratamento psicanalítico, algo vai se construindo através da transferência: a leitura da rede de significantes do analisante. Lacan disse muitas
vezes que as letras estavam ali para serem lidas, que não significavam nada
sozinhas, mas precisavam ser decifradas. Freud também falara o mesmo em
relação aos sonhos.
Estes três artigos são frutos de nossa pesquisa sobre os números utilizados por Lacan para tentar dar conta da formalização dos conceitos psicanalíticos através das matemáticas2.
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e AnalistaMembro da Association Lacaniènne Internationale (ALI); Responsável pelos seminários e oficinas de topologia da APPOA. E-mail: [email protected]
2
E aqui se incluem os recursos: aritméticos, lógicos, algébricos, topológicos, da teoria dos nós.
1
207
Ligia Gomes Víctora
PARTE 1
OS NÚMEROS IRRACIONAIS DE LACAN3
Introdução
Os números são como processos mentais – enquanto alguns podem
ser total e imediatamente acessados (por exemplo: os inteiros de 1 a 10),
outros são completamente inacessíveis [(∞); (������������������������������
‫�����������������������������א‬
0)], ou parcialmente inacessíveis [(2p R); (x2 = 2x)].
Um número irracional – como seu nome diz – não é produto da razão.
Razão, no sentido matemático do termo, é uma fração, dada pela divisão
entre dois elementos. Um irracional, assim como os sonhos e os significantes recalcados, não se apresenta totalmente consciente, não é previsível, e
é preciso refletir muito, analisá-lo, interpretá-lo, para poder desvendá-lo – e
mesmo assim não todos – e apenas parcialmente.
Apesar de todos os cálculos com modernos computadores, alguns
mistérios sobre os números irracionais ainda permanecem: será que há um
padrão que se repete? Será que são mesmo infinitos? Enquanto não houver
provas, continuam sendo da ordem dos incomensuráveis e – embora por
vezes representem segmentos bem definidos de espaço – não são exatos.
Antes de falar dos irracionais de Lacan, só para lembrar: os números
racionais (Q) podem ser expressos em frações, provêm da razão entre dois
números inteiros. Entre eles, também há casos em que o número de casas
após a vírgula é infinito, mas pertencem aos racionais. São as chamadas
dízimas periódicas. Ex.:
4/3 = 1,33333333333333333333333333333...
5/3 = 1,66666666666666666666666666666...
10/3 = 3,3333333333333333333333333333...
17/13=1,307692307692307692307692307692... depois de um certo
número de cálculos, já se pode prever o que vem a seguir...
Já nos irracionais não se pode prever, e muitos matemáticos gastaram
suas vidas tentando calcular – qual o próximo número? Ou: será que essa
divisão terá fim? Pitágoras inventou para esses casos o método da exaustão.
Transcrição do Seminário de Topologia na APPOA (10/08/2012): Da formalização da Psicanálise através das Matemáticas.
3
208
Os números de Lacan
– Ai, que cansaço!... Quantos perderam a vida e a razão nisso?
O método da exaustão, embora bastasse como prova da infinitude das
grandezas incomensuráveis, ainda deixava em aberto o problema da natureza dessas mesmas grandezas. Esse problema só foi resolvido no século
XIX4.
Então, como é um número infinito, um irracional não pode ser calculado inteiramente. Para os matemáticos formalistas ortodoxos, um número
só é formalizado como tal se for possível caracterizar todos os seus dígitos.
E, como isso é impossível, por falta de tempo, de papel ou de telinha na
calculadora, eles inventam algoritmos que definem todas as operações para
dar-lhes sequência. Através disso, pode-se dar o estatuto de número a uma
grandeza – mesmo sem se conhecer todos seus algarismosI.
Um dos mais usados é o √2 (raiz quadrada de 2): a medida da diagonal do quadrado de lado L = 1.
– Como assim? Uma medida infinita para uma superfície finita?!
Um aluno da escola de Pitágoras5, Hipaso de Samos, que foi quem
anunciou a descoberta, porém, não viveu para receber as glórias. Tido como
traidor, por espalhar um segredo que pertencia só ao meio científico, ele pagou por sua ousadia e pela inconfidência. Como não há registros da época,
restam estórias e lendas sobre esses eventos6. Algumas fontes dizem que
Cf. Serra, Isabel.
Pitágoras de Samos, 569 a.C.- 475 a.C.
6
Cf. Seife, p.50.
4
5
209
Ligia Gomes Víctora
ele foi castigado, sendo jogado ao mar para se afogar. Outras, que ele foi
banido da escola e – como o Spinoza da época – ninguém mais deveria lhe
dirigir a palavra. E que, inclusive, um túmulo foi construído como símbolo de
sua morte.
As lendas sobre o fim da vida de Pitágoras são igualmente tenebrosas.
Algumas dizem que ele se deixou morrer de fome. Ou que sua casa foi atacada porque ele não quis receber os cidadãos enfurecidos, que, então, teriam incendiado sua casa e matado seus discípulos que fugiam. Ele mesmo
teria conseguido escapar para um campo de feijões lindeiro, mas, quando
encontrado, foi degolado...
O que aconteceu de fato, não se sabe. Mas o que importa é que temos, na descoberta de Hipaso, um bom exemplo de transmutação de um
segmento finito num número infinito. Essa transmutação não tem registro
anterior, era impensável – o que fazer com isso?
Esses números eram arredondados em duas ou três casas decimais
para serem utilizados no cálculo de áreas e volumes: isso servia às necessidades de ordem prática, pois permitia encontrar valores aproximados.
Os gregos denominavam esses irracionais de grandezas e não de números.
II. Irracionais: algébricos e transcendentes
Os irracionais, mesmo infinitos, podem ser algébricos, (quando é a solução de alguma equação polinomial). Por exemplo: √2 é algébrico, pois é
solução da equação x2-2=0.
De modo geral: um número real é dito algébrico quando for o zero de
um polinômio com coeficientes inteiros.
Existem irracionais de natureza ainda mais complicada, que não correspondem a nenhuma fração, nem tampouco a alguma raiz quadrada. São
os irracionais transcendentes ou transcendentais. Dito a grosso modo, se
um número real não for algébrico, então é transcendenteII.
Pi (π) – o mais conhecido entre os transcendentes é o pi =
3,141592653589... Que geralmente se usa simplificado para 3,14 ou
3,1416). Pi (π) é a letra inicial da palavra grega que significa perímetro, ou
circunferência. Seu primeiro registro consta do papiro de Rhind – documento egípcio, que é datado de cerca de 1650 a.C7. Atribuído ao copista Ahmes,
7
210
Hoje exposto no British Museum de Londres.
Os números de Lacan
que o teria reproduzido de um original duzentos anos mais antigo... Neste,
entre 84 problemas matemáticos diversos, o cálculo quase exato {4 (8/9)2 =
3.16} do valor da razão constante das medidas dos triângulos.
Desde 1794, quando foi levantada a hipótese de que pi seria um número irracional e infinito, tem-se pesquisado por um padrão no encadeamento
de seus infinitos decimais. Com o uso de computadores, os matemáticos
já conseguiram descobrir mais de 1 bilhão de casas após a vírgula, sem,
contudo, chegar ao fim8!
e – outro irracional transcendente é o número e – a base do logaritmo natural, em que e é um número irracional aproximadamente igual a
2,718281828459045... Também chamado de número de Euler, mais frequentemente designado como número de Napier (pronuncia-se néper)III e
os logaritmos de base e são chamados de logaritmos naperianos ou neperianos.
Φ – outro destes números transcendentais é o fi – do qual vamos tratar
hoje – no qual Lacan se inspirou para todos os seus fis.
III. O número de ouro
Ainda na escola de Pitágoras, surge a observação de que havia certas
proporções entre magnitudes diferentes, que se repetem – seja em modelos
numéricos, na natureza, nas obras de arte, na harmonia musical, etc9. Os
pitagóricos traduzem essa relação em números e aplicam essa fórmula de
diferentes maneiras. A mais importante é chamada razão áurea, também
conhecida como razão ou proporção divina.
Essa razão, designada então como número de ouro, foi batizada pela
letra Φ – fi – em homenagem a Fídias, um escultor grego (490 a. C.–430 a.
C.) que utilizava essa proporção em suas obras.
Coincidentemente ou não, quem deu prosseguimento ao estudo no
número de ouro, 1500 anos depois, foi Fibonacci – que também começa
Durante as minhas pesquisas, procurando pi, the film, cliquei em um site intitulado pi, the
number. Imediatamente começaram a aparecer na minha tela infindáveis dígitos de pi. Tentei
interromper, sem sucesso. O computador não respondia ao comando, e os números continuavam a se suceder... Desliguei, então, meu computador e saí. No dia seguinte, quando liguei
novamente, havia um e-mail na minha caixa de mensagens. Assunto: pi, the number. Quando
abri, como num pesadelo, recomeçaram a entrar infinitos dígitos de pi!!!
9
Razão ≠ proporção: a razão entre dois elementos é a divisão do primeiro pelo segundo. Já
uma proporção necessita de quatro elementos (que podem ser repetidos). Por exemplo: a/b :
b/c (a está para b, assim como c está para d).
8
211
Ligia Gomes Víctora
com “fi”. Fibonacci – matemático nascido por volta de 1170, chamava-se na
verdade Leonardo de Pisa, também conhecido por filho de Bonacci – seu
pai era um importante mercador e representante comercial da Toscana.
A sequência de Fibonacci {1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21...} é encontrada em
diferentes aspectos10. Para seguir a sequência, basta somar os dois últimos
números: 13 + 21 = 34; 34 + 21 = 55... A razão entre os termos da sequência
de Fibonacci → (tende a) 1,618...∞.
– Façam a prova, à exaustão...
O Φ é um irracional transcendente, muito utilizado quando tratamos
de formas geométricas e na arquitetura – como o retângulo áureo – para
um parque, cartões de visita, etc. E nas artes, para obter uma proporção
perfeita do corpo humano, se faz a razão entre a altura da pessoa e a altura
do chão até seu umbigo, do ombro até a ponta do dedo maior e do cotovelo
até a ponta do dedo maior... Seu valor é 1,6180339887..., mas é mais usado
como 1,6111.
Φ = (x2 = x+1) = + 1+ √5 = + 1,618
2
Qual o número que, elevado ao quadrado, é o mesmo que ele próprio
subtraído de 112?
(x2 = 1-x ) que é o mesmo que dizer:
IV. O número Φ na obra de Freud e na de Lacan
Na obra de Freud, o fi aparece no Entwurf (Projeto), junto com os sistemas psi e ômega:
Freud postula três categorias de neurônios: fi, psi e ômega. Ressalta
que a diferença entre os neurônios não é de ordem material e, sim, conforme a posição que eles ocupam em relação à fonte de excitação.
L. Víctora e Martins (2005).
Leia mais: http://www.ebah.com.br/content/ABAAABjekAJ/significado-matematica#ixzz22o5MsBcK
12
Resposta: 0,618. [0,6182 = 1 – 0,618 = 0,381]
10
11
212
Os números de Lacan
Os neurônios fi são permeáveis, não oferecem resistência ao escoamento de Q e são destinados à percepção;
Os neurônios psi são impermeáveis, dotados de resistência, retentivos
de Q, portanto, portadores de memória;
Os neurônios ômega são responsáveis pelas sensações conscientes,
o que implica ser permeável.
Na obra de Lacan: este também utiliza a letra fi – seja em maiúscula ou
minúscula – em diferentes ocasiões, simbolizando:
I.O fi minúsculo (j) – que simboliza para Lacan o falo imaginário – aparece:
No esquema r (1953) e no ϑ (1955)13;
No centro do cross-cap (1962)14;
- j (menos fi ou fi-minúsculo, negativado) (1966)15;
Como imagem fálica ou insígnias fálicas, e também enquanto objeto a
(1965)16;
Fi como a “comum medida” entre A e a (1968-69)17;
Quando se converte de minúsculo a maiúsculo (1956)18.
II. Enquanto que a letra fi maiúscula (Φ) – equivalente ao falo simbólico
para Lacan – aparece:
Como significante Phallus, no grafo do desejo, introduz a falta no campo do Outro19;
Como o incomensurável da função simbólica;
Como representante da castração simbólica;
Nas fórmulas da sexuação [∃x Φx;etc...]20.
Então, será que todos se tratam da mesma coisa21?
Lacan. De una cuestión preliminar a todo tratamiento posible de la psicosis, 1956, p. 3419.
Lacan. Seminário La Identificación, lição XIX, 1962 – onde apresenta o cross-cap, p. 1482
e seg.
15
Lacan. Seminário La lógica del fantasma, 1966-67, p. 2047.
16
Lacan. Seminário El Objeto del Psicoanálisis, 1965-66, p. 1898.
17
Lacan. Seminário De un Otro al otro, 1968-69, p. 2278.
18
Lacan. Subversión del sujeto y dialéctica del deseo en el inconsciente freudiano, p. 3528.
19
Lacan. Seminário Las Formaciones del Inconsciente. Lição XVII, 1958.
20
Lacan. Seminário Aún, 1972-73, p. 2776.
21
Essa é uma questão levantada por Bernard Vandermersch (2005) a Marc Darmon (2005),
que tentaremos reproduzir aqui.
13
14
213
Ligia Gomes Víctora
IV.1 φ no esquema r
O esquema r foi inventado por Lacan para explicar a construção do
campo da Realidade para um sujeito na relação com a mãe – o Outro primordial22.
Os lugares iniciais são os do Esquema Z, onde: S = sujeito; a’= moi; a
= objeto; A = Outro23. Aqui ainda estão somente mãe (A) e filho (S). A mãe
pode dar um lugar ao pai (1º passo). Quando entra o falo (2º passo) como
organizador da relação – logo, a relação é simbólica desde o início, pois é
através da fala da mãe (significante voz, no grafo) que o filho é introduzido
na realidade. No 3º passo, a mãe se desloca – pois seu desejo é voltado
para o “pai” (que pode ser qualquer coisa), e assim ela cria um espaço vazio. Em seu lugar fica só sua imagem [i (a)] – com a qual o bebê vai tentar se
identificar (estádio do espelho). Ele deseja o desejo da mãe: quer ser amado, então, vai atrás da imagem da mãe. Sucessivos deslocamentos desses
vão criar um tecido, onde antes não havia nada – chamado de Realidade.
Essa fase corresponde à parte baixa do grafo [i (a) → moi ].
Lembrando que no esquema I, utilizado para as psicoses, o lugar do
falo – assim como o do pai – se perde no infinito. Seria uma distorção do R,
quando o falo não entra como organizador.
O interessante para nós é que na conferência Função e campo da fala
e da linguagem24 aparece, em uma nota de rodapé de 1966, que o esquema
r evidencia um plano projetivo!
IV.2 Do esquema r ao cross-cap...
Ora, é evidente que quando Lacan criou o esquema r, bidimensional,
plano, não pensava nesse salto. Quando faz a passagem para o Esquema
I25, vê-se que o esquema perdeu as bordas, é distorcido, como se estivesse
Ver, por exemplo, o seminário A relação de objeto. Ou As formações do Ics. (Lição VIII, de
08/01/1958. PDF, p.696). Ou seu resumo em De uma questão preliminar a todo tratamento
possível da psicose (1958) (PDF, p.3419). Ver tb. Marc Darmon, p. 185.
23
No esquema L (Seminário A relação de objeto), Lacan fecha com uma linha pontilhada de A
a S, e orienta o grafo.
24
Lacan. Seminário La Identificación, 1961-62, p. 3309.
25
Lacan. Seminário Las estructuras freudianas de las Psicosis, 1955-56, p. 315. V. também do
mesmo autor, De una cuestión preliminar a todo tratamento de las psicoses, 1957.
22
214
Os números de Lacan
mesmo sendo mergulhado em outra dimensão (D4). Ali o Φ, assim como a
função Pai, aparecem soltos no espaço infinito.
Seria possível pensar nesta identificação entre o esquema r e o crosscap de Lacan?
IV. 3 O Φ no cross-cap de Lacan
No seminário A identificação (1961-62) aparecem as estruturas topológicas26. Estas têm textura e são passíveis de representação em D3. Têm
corpo – como os toros e o cross-cap – então se pode pegá-las e até mesmo
recortá-las, revirá-las, colar de novo, etc...
Plano-projetivo
Aliás, a definição que Lacan usa, para estruturas, é analítica e matemática: estrutura é um
grupo de elementos formando um conjunto covariante. Significa que varia conforme o contexto,
conforme o que for falado – e escutado –, logo é um processo dialético e analítico.
26
215
Ligia Gomes Víctora
Lacan o representa esquematicamente, assim: o cross-cap de Lacan.
Enquanto que o cross-cap dos topólogos possui uma borda.
Figura: o cross-cap dos topólogos.
Os cortes no cross-cap e a localização do fi.
No seminário A identificação27, Lacan trata de justificar a localização do
phallus no centro do cross-cap.
27
216
Lacan. Seminário La Identificación. Lição 20, 1962, p. 1546 e seg.
Os números de Lacan
Estas últimas figuras se referem aos cortes, que resultam no fantasma
(S barrado ◊ a)28.
Toda lição XX desse seminário29 trata sobre essa superfície unilátera
invaginada, revirada sobre si mesma, que contém essa linha imaginária proposta por Lacan, que, segundo ele, culmina no ponto Φ. (Ele informa que se
trata do plano-projetivo, mas que chamará de cross-cap mesmo assim...). O
fi Φ que aparece no centro do cross-cap (na lição XX deste seminário) e que
é o Φ que promove o a ao lugar de objeto do desejo.
Os cortes são fundamentais, para compreender as operações do fantasma. A simples intervenção do corte muda a estrutura unilátera onipresente em todos os pontos da superfície.
28
29
Figuras da lição citada acima.
Idem, ibidem.
217
Ligia Gomes Víctora
Algoritmo é uma sequência finita de instruções bem definidas: é como uma receita, que pode
ser repetida sempre que se queira realizar uma operação qualquer. Se for bem aplicado, o
resultado será correto. O conceito de um algoritmo foi formalizado em 1936 pela Máquina de
Turing, de Alan Turing, e pelo cálculo lambda, de Alonzo Church, que formaram as primeiras
fundações da ciência da computação. Em Lacan, temos como exemplo de algoritmo, a fórmula
do fantasma.
II
Números algébricos e transcendentes: um polinômio é uma expressão algébrica composta por mais de dois termos separados pelos sinais + ou -. Um binômio possui dois termos, mas também pode, genericamente, ser denominado de polinômio. Exemplo: [3 x -6]
O “zero” de uma função é o valor que a torna igual a Zero. Usando o exemplo acima, o
Zero da função (3x – 6) é = 2 porque, sendo (x = 2) então (3X 2 – 6) = 0. Existem funções
com múltiplos zeros. A função (x 2 – 1), por exemplo, possui dois zeros: (x = 1) e (x = -1).
Um número real é dito algébrico quando for um zero de um polinômio com coeficientes inteiros. Os dois exemplos citados mostram números algébricos, só que o primeiro possui um número algébrico do primeiro grau (x 1) e o segundo possui um número algébrico do segundo grau (x2). O grau é indicado pelo maior grau da função.
Se um número real não for algébrico, então é um número transcendental. Por exemplo, a base
dos logaritmos naturais e = 2.71828...; pi = 3.14159... São transcendentais.
III
John Napier (pronuncia-se ‘Néper’) (1550-1617), Barão de Merchiston, Escócia, ficou conhecido pela invenção (descoberta?) dos logaritmos (pouco antes de morrer, em 1.614). Mas
ele também foi um menino prodígio, era filósofo, inventor, matemático e conselheiro do rei
– o Rei Jaime I da Inglaterra, que, após a unificação do UK, reinou também sobre a Escócia
como Jaime VI de 1567 a 1625. Além disso, ainda achou tempo para guerrear e se dedicar a
organizar a igreja anglicana – dissidente da católica. De seus inventos, os mais conhecidos
são os instrumentos para ajudar no cálculo aritmético, principalmente para o uso de sua primeira tabela de logaritmos. A obra de Napier envolvia de uma forma não explícita o número
que hoje se designa por e. Nem ele, nem ninguém se apercebeu da importância dessas
invenções à época. Somente um século depois de sua morte, com o desenvolvimento do cálculo infinitesimal, se reconheceu tal coisa. Em suas pesquisas para emparelhar progressões
aritméticas e geométricas, Napier percebeu que, para obter uma base cujas potências não se
afastassem muito umas das outras, tinha de escolher um número muito perto de 1. Fixou-se
em 1- [1/(107)]. Para evitar muitas casas decimais, multiplicava, depois, as potências por 107.
Por exemplo: seja N um número e L o respectivo Logaritmo (nome dado por Napier). Daí a
fórmula: N = [107 X {1- (1/107)}L], a qual também se pode escrever: N = 107 X [(1- (1/107)10 7]
I
L [10 (7) ]
REFERÊNCIAS
DARMON, Marc. Rubrique topologie. Bulletin de l’ Association Lacanienne Internationale, n. 113. Paris, juin 2005.
LACAN, J.M. Seminários e conferências. As páginas citadas se referem à versão em
PDF da Escuela Freudiana de Buenos Aires. Edição para uso interno da E.F.Bs.As.
SEIFE, Charles. Zéro, la biographie d’une idée dangereuse. Paris: J.C. Lattès, 2002.
SERRA, Isabel. 2002. Transmutações do infinito. Centro Interdisciplinar de Ciência,
Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa. Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências de Lisboa. Disponível em http://www.triplov.com/coloquio_4/iserra.html. Acesso em: 08 ago. 2012.
218
Os números de Lacan
VANDERMERSCH, Bernard. À propos du phallus. Bulletin de l’a Association Lacanienne Internationale, numéro 114. Paris, outubro 2005.
VÍCTORA, Ligia; MARTINS, Ricardo. 2005. À procura do P(a)i. Revista da APPOA no
28. A masculinidade. APPOA. Porto Alegre, abr., 2005.
Recebido em 02/07/2013
Aceito em 25/11/2013
Revisado por Renata Almeida
219
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p. 220-230, jul. 2012/jun. 2013
VARIAÇÕES
DITIRAMBOS PSICANALÍTICOS:
sobre a musicalidade
da voz na psicanálise
Denise Maurano1
D
e origem asiática os ditirambos aparecem na Grécia antiga como um
canto coral de caráter apaixonado (alegre ou sombrio), que se popularizou em rituais dedicados à celebração de Dioniso, um deus estrangeiro
ao Olimpo grego. No final do século VI, o coro se dividia em duas partes:
uma cantava os poemas relativos às aventuras de Dioniso, era o corifeu, e
outra, executada por vários personagens vestidos de faunos e sátiros (meio
homem, meio bode), respondia propriamente em coral.
Os sátiros cantavam, tocavam e dançavam em volta de uma esfinge de Dioniso. Diz-se que usavam falos postiços nessa cerimônia, que tinha caráter religioso. Acredita-se ainda que nela haveria o sacrifício de um
animal,provavelmente, o bode. O sacrifício vem aí representar a passagem
da consciência animal à humana. A estrela de cinco pontas (pentagrama),
que alude à figura humana tal como mostrada por Leonardo da Vinci, de
cabeça para baixo, alude a um bode (dois chifres, orelhas e barba).
Com o nascimento da cidade e a invenção do direito para regular as
trocas, o ditirambo foi evoluindo na Grécia para a forma teatral e deu origem
Psicanalista; Doutora em Filosofia pela Université de Paris XII e pela PUC/RJ; Membro do
Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro; Prof. Associada da UNIRIO
(Universidade Federal do Estado do RJ) no Programa de Pós Graduação em Memória Social e
no Curso de Direito; Escritora, dentre outras publicações, de Torções: a psicanálise, o barroco
e o Brasil. Paraná: ed. CRV, 2011. Editora de Psicanálise e Barroco em Revista (www.
psicanaliseebarroco.pro.br). E-mail: [email protected]
1
220
Ditirambos psicanalíticos
à tragédia e também à comédia, como modos de representação da vida
em sua potência expressiva. Estas tiveram um papel bastante importante
na constituição da democracia grega nesse momento do surgimento da
pólis. Pisístrato (560-527 a.C.) elevou a devoção a Dioniso a culto oficial
de Atenas e organizou as festas dionisíacas urbanas, que vieram a se
tornar os festivais dionisíacos, evoluindo para as festas da primavera, nas
quais a fertilidade da natureza encontrava na representação sua expressão na cultura.
Aliás, não é à toa que o falo era o elemento reverenciado, mas é preciso lembrar que não era reverenciado enquanto propriedade de um, mas
enquanto símbolo da plena potência vital, potência da qual todos participavam, e que era inapreensível a um indivíduo.
Originariamente, a tragédia é um gênero de arte, nascida do culto a
Dioniso, criada pelos gregos no séc. V a.C., em sucessão à poesia épica e
lírica, e precedendo a constituição da filosofia. O apogeu grego das grandes
produções trágicas durou apenas oitenta anos, período correspondente ao
momento de expansão política de Atenas; a tragédia foi uma verdadeira
“instituição social”, tendo um lugar de grande valor ao lado dos órgãos jurídicos e políticos da cidade, via os concursos em que era apresentada à
cidade mesma, essa forma de organização estava aí em seu nascedouro.
Diferentemente da epopeia, e posterior a esta, a tragédia não pretendia apenas cantar em versos, ao estilo literário e mítico, os feitos de seus
heróis, mas valia-se da representação cênica, que focalizava musicalmente
a trajetória da queda do herói e seus efeitos no povo, representado pelo
coro que, impotente e emocionado, a acompanhava.
Nietzsche (1992), em seu livro O nascimento da tragédia, elogia a sabedoria da sereno-jovialidade grega, destacando que esse povo, na inauguração da cultura citadina, não recalca as manifestações bárbaras da natureza, nem os horrores do existir, mas lhes dá expressão artística ao ter
gerado a tragédia ática, conseguindo transfigurá-los em algo que tivesse
lugar na cultura.
Menciona, entretanto, que o imperativo da morte, prefigurado no desejo de “antes não ter nascido, não ser, nada ser”; ou no é “melhor logo
morrer”, pronunciado pelo sábio Sileno, companheiro e servidor de Dioniso,
inverte-se na teogonia olímpica do júbilo em “a pior coisa de todas é morrer
logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia” (Nietzsche, 1992, p.3637). E isso é o que vemos difundido em nossa cultura ocidental.
Sublinha ainda que o elogio à tragédia que nasceu no espírito da música, ou seja, que se vale do encorajamento por esta propiciado, vai aludir à
pertinência dessa produção artística ao ter acolhido a luta incessante entre
221
Denise Maurano
o apolíneo e o dionisíaco, como impulsos responsáveis pelo desenvolvimento da arte. Ficando a arte apolínea como referida à figuração plástica e
a arte dionisíaca como responsável pela música, pela não-figuração.
Na tragédia, apresenta-se por um lado, o mundo do sonho, da bela
aparência do princípio de individuação e, por outro, o mundo da embriaguez, no qual “o subjetivo se desvanece em completo auto esquecimento”,
e o homem torna-se” a força artística de toda a natureza, para a deliciosa
satisfação do Uno-primordial” ̶ o lugar de origem ou o fim de toda efêmera
individualidade, princípio metafísico de toda a realidade. Esses dois universos tão estranhos um ao outro ficam na tragédia, miraculosamente, articulados (Nietzsche, 1992, p.29-30).
Fazendo uma separação entre o bárbaro dionisíaco e o grego dionisíaco, criador do teatro trágico, o autor refere-se às festas que consistiam
numa desenfreada licença sexual, na qual as pessoas se esqueciam de
todas as convenções e referências sociais, para que, agindo como “bestas
selvagens da natureza”, se entregassem “a horrível mistura de volúpia e
crueldade” (Nietzsche, 1992, p. 33).
Destaca que apenas a rigor a música era conhecida como arte apolínea. A música de Apolo era arquitetura dórica em sons. Muito diferentemente, a música dionisíaca, tocava
[...] a comovedora violência do som, a torrente unitária da melodia
e o mundo absolutamente incomparável da harmonia. No ditirambo dionisíaco o homem é incitado à máxima intensificação de todas as suas capacidades simbólicas; algo jamais experimentado
empenha-se em exteriorizar-se, [...] Agora a essência da natureza
deve expressar-se por via simbólica; um novo mundo de símbolos
se faz necessário [...] Com que assombro devia mirá-lo o homem
apolíneo! (Nietzsche, 1992. p. 34-35)
Na arte trágica, a dimensão de horror que isso porta­ o- “antes não ter
nascido” (Sophocle, Œdipe à Colone,1964), que também participa do texto
da tragédia de Édipo-rei, de Sófocles, e que ganha tantas versões em diferentes tragédias – é transfigurada pela presença da música e pela beleza
das ações e da cena, o que a purifica de toda a amargura e desencorajamento que aí poderiam se alojar, e lhe dá uma perspectiva de celebração
da vida em todas as suas dimensões, mesmo aquelas em que se abriga o
sofrimento. Não se pretende, nela, a destituição do sofrimento da vida, o
que amputaria da vida uma de suas dimensões fundamentais. É a expansão
da vida, e não sua conservação, o que aí vigora.
222
Ditirambos psicanalíticos
Nesse ponto que expressa uma orientação ética, um savoir-faire com
a vida, a ética trágica e a ética psicanalítica se encontram. Se a ética da
psicanálise implica um não recuo da entrada nessa zona de horror tão bem
expressa nas tragédias, o que atuaria como elemento transfigurador para
tornar possível a abordagem desse insuportável na perspectiva analítica?
Afinal, já na epígrafe d’A Interpretação dos sonhos, Freud, ([1900] 1988)
tomando de empréstimo Virgílio, vaticinou “Já que no céu nada alcanço,
moverei as potências do inferno” (Virgílio, Eneida, VII, (1900),V.1, 2012).
Então, temos que nos perguntar: o que comparece na psicanálise como
elemento de transfiguração, para que possamos efetivamente sustentar a
ética da psicanálise?
Proponho, por um lado, que a regra fundamental da psicanálise, na
qual o sujeito é convocado a dizer não importa o quê, marcando-se com
isso a primazia do significante sobre o significado, evidencia a dimensão
fundamental do som, da musicalidade da fala, da potência musical da voz
como o elemento que encoraja o adentramento em terrenos de outro modo
impossíveis de serem penetrados. Sem dúvida há uma dimensão de sentido
na psicanálise, manifestada na busca da lógica do fantasma, com o qual o
sujeito veste seu eu. Mas esse percurso de apelo ao sentido é realizado
exatamente para ser ultrapassado, na medida em que isso é possível, donde advém a ideia do final da análise como travessia do fantasma ̶ travessia
desse campo cativado pela significação onde se alojou para o melhor e para
o pior, a espaçosa subjetividade.
Por outro lado, há ainda o que anima este trajeto. Sugiro que a dimensão da beleza, enquanto o outro elemento transfigurador, participa também
da psicanálise por meio da relação, atestada desde Platão, do amor com o
belo, não como busca, mas como meio de encorajamento.
Afinal, o processo psicanalítico tem como motor o amor, nele contextualizado como transferência. Da forma como se maneja o amor na análise
depende o efeito de beleza, que transporta o sujeito para além do apego ao
objeto, dando-lhe uma dimensão de infinitude. Ou seja, o efeito de beleza é
uma consequência, não das propriedades de um objeto que se encerra nele
mesmo, mas de sua qualidade de servir de meio de transporte a uma relação com a infinitude, com a própria potência da vida. Para além de qualquer
objeto em especial.
Dessa maneira, busca-se na análise que a ênfase na demanda de ser
amado se desloque para a celebração da atividade de amar, para o “dom
ativo do amor”. Entendemos que nessa perspectiva o amor toma a forma
inapreensível do belo. Opera como um véu, que manifesta como imagem
o que se localiza além, enquanto falta. Se, por um lado, o amor coloca em
223
Denise Maurano
função a dimensão imaginária da relação de objeto, por outro lado, por sua
relação com a falta, mostra a dimensão do real intangível que vigora no seio
dessa mesma relação, na medida em que nenhum objeto pode responder à
existência do sujeito, nenhum objeto pode autenticá-la. O manejo do amor
na psicanálise tem essa direção ética, o que o coloca não como meio de
complementaridade, promessa de obturação da falta, mas como via de reconciliação com a atividade desejante. Isso é o que leva Lacan a dizer que
só o amor pode fazer o gozo ceder ao desejo.
Assim, podemos dizer que o horror suscitado por movermos os infernos, com a provocação advinda de nossos imensos ouvidos abertos a todas
as falas, só é passível de ser enfrentado via a transfiguração operada pelo
espaço concedido no trabalho analítico à musicalidade da fala e à beleza da
cena analítica via o manejo que nela é feito do amor inerente à transferência. Porém, não será essa questão da beleza que trataremos no presente
trabalho, mas a dimensão da musicalidade da fala.
O título ditirambos psicanalíticos alude à função musical da voz na articulação da fala no trabalho analítico, na perspectiva de contribuir para pensar as condições de possibilidade de sustentação de sua ética. Ética que,
como sabemos, implica um endereçamento ao real, portanto endereçamento ao limite do que pode ser sustentado pelo humano, lugar de horror, que
para poder ser enfrentado necessita ser transfigurado. Acatamos enfrentar o
horror, porém, desde que possamos dar voz a ele. Dar voz ao horror é muito
mais do que dar-lhe palavras.
Diferentemente do que muitos pensam, a psicanálise não é uma hermenêutica, uma filosofia da interpretação, do sentido. Se a dimensão da
significação não lhe é estranha, é porque esta cativa, promove a ilusão de
um asseguramento , que vivemos todos ansiosos por ter. Porém, com Freud
e, posteriormente, com Lacan, via sua subversão da teoria linguística de
Ferdinand de Saussure, revelando a sobreposição do significante em relação ao significado na unidade linguística (S/s) – grosso modo, sobreposição
do som, sobre o sentido –, vemos toda a pertinência da regra fundamental
da psicanálise, que implica o convite a se falar o que vier na cabeça, sem
deixar prevalecer a preocupação com o sentido do dito. Trata-se aí do lugar
da produção da fala na psicanálise como o lugar da besteirada, do refugo
da ciência e da argumentação racional: – Fale o que lhe vier, mesmo que
seja esquisito, obsceno, bobo! Dê voz a Isso! Vamos lá! Esse é nosso modo
próprio de movermos os infernos, fazermos algo com eles.
Com isso, estamos focalizando a musicalidade da fala em seu poder
transfigurador dos horrores que ela tem a enunciar. E, para entendermos
melhor essa questão, é interessante adentramos o campo da prosódia, ori224
Ditirambos psicanalíticos
ginariamente, atinente à fonaudiologia, mas, atualmente, área da mais ampla interdisciplinaridade. Trata do envelope musical da fala, dizendo respeito
ao ritmo, tempo e melodia relativa à produção da fala. A entonação, como
a melodia ou o contorno da altura da voz que acompanha a produção da
fala, diz do modo particular como cada um se acomoda na língua materna.
A prosódia, pelo menos na perspectiva na qual nos interessa abordá-la,
deixa entrever o sujeito em seu modo de se haver com alingua, neologismo
lacaniano que indica o modo como cada um se apropria da língua materna
ao aprender a falar. Ela expressa a enunciação, mais do que o conteúdo do
dito, o significado, consegue fazê-lo. Ela é portadora dos elementos mais
inconscientes da situação. Ela é muito mais do que o discurso fonológico ou
fonético (Catão, 2009). Esse viés de valorização da dimensão musical da
fala coaduna-se com o interesse sobre a questão: o que é a voz?
Bem sabemos que a voz é o meio mais primitivo de relação com o Outro. A voz é o que se situa entre o sujeito e o Outro, a alteridade. Pesquisas
apontam que o sentido da audição está presente desde a vigésima semana
de vida intrauterina. O bebê é atraído pelo ritmo e pela melodia da voz humana a ele dirigida. Não é à toa que quando algo não funciona no estabelecimento do laço entre o sujeito nascente e o Outro, a voz vira barulho, se
autonomiza enquanto espaço de alteridade mal-vindo.
Os traços melódicos da voz do Outro expressam algo de seu gozo. Antes que a fala seja cativada pela dimensão de significação, a voz comparece
como articulador primordial entre o real e o simbólico. Ela vem preencher
o espaço vazio que se coloca na separação mãe-bebê. Comparece como
a vibração do sopro de vida (Gonçalves, 2001) que, dirigido ao Outro, tem
na boca uma borda orificial privilegiada. Faz-se instrumento fundamental do
circuito pulsional, contorna o abismo entre o sujeito e o Outro.
Diferentemente da orientação instintual própria dos animais, para a
qual, para cada necessidade, há um objeto específico que a satisfaça, o sujeito humano, movido pela pulsão, a qual não tem objeto específico de satisfação, acaba por satisfazer-se sempre parcial e lateralmente, via objetos os
mais variáveis. Há gosto para tudo! Esse objeto que falta na perspectiva da
plenitude e que se trata de reencontrar é o que Lacan propôs como objeto a.
É ele que comparece como causa de desejo na divisão do sujeito – presença de um vazio a ser ocupado por uma diversidade de objetos.
Pensando a relação de objeto via uma teoria de estágios libidinais,
Freud destacou a importância dos objetos primordiais, o seio (objeto oral)
e as fezes (objeto anal), e aludiu a uma convergência desses objetos no
encaminhamento libidinal para o objeto genital, embora sempre tenha deixado sob suspeita essa finalidade. Desviando-se dessa teoria de estágios
225
Denise Maurano
libidinais, Lacan, via uma perspectiva estrutural, propõe a voz (objeto vocal)
e o olhar (objeto escópico) destacando que, no que diz respeito aos objetos
pulsionais, não se trata de nenhum estágio, não se trata de progressão ou
regressão, mas se trata de uma questão estrutural.
O sujeito na psicanálise não é tratado como um indivíduo em desenvolvimento, mas como efeito do fato da existência da linguagem. Ele é suposto
pela estrutura da linguagem. Por isso o sujeito é sujeito do significante. Em
contrapartida, o objeto que interessa na relação de objeto não é fenomênico. A relação do sujeito com a linguagem que o constitui tem como condição
lógica a incidência do vazio de objeto, a perda de sua substancialidade, o
que chamamos de castração. Por isso, o objeto a é uma função lógica, se
remete ao que cai do corpo, para torná-lo um corpo linguageiro. E, dessa
forma, o objeto não é um elemento da estrutura linguística, entretanto ele é
definido inversamente, como suposto pela estrutura de linguagem.
Nesse jogo, o objeto aparece como elemento causal do sujeito. Vê-se
bem que o problema da relação de objeto deixa de ser temporal e deixa de
ser formulado em termos de sucessão. O objeto vocal, bem como o olhar,
evidenciam uma relação de exterioridade em relação ao sujeito. Indicam
bem esse lugar do entre o sujeito e o Outro. É nessa perspectiva que Miller
([1994] 2013) propõe a instância da voz como um terceiro entre a função da
fala e o campo da linguagem.
Como já pode ser pressuposto, a voz que aqui nos interessa não é a
referida à fala no sentido do remetimento à significação, mas ao limite do
que pode ser dito. A entonação de que se trata de escutar não é a que contribui para revelar o sentido da frase ou das palavras, mas a que decanta um
gozo que mostra de que forma os efeitos da fala são suportados pelo sujeito, tanto em sua enunciação, quanto na reflexividade relativa à autoafetação
que o ouvir-se implica.
Aliás, quando se toma a voz como objeto a, esta só pode ser pensada
em princípio como afônica, como não pertencente ao registro sonoro. Isso,
porque só assim, estrito senso, ela perdendo toda a substancialidade, que
ela vem servir para indicar o vazio da castração. Mas é verdade que se tem
aí um paradoxo.
Embora Miller diga que “a voz como objeto a, não pertença de nenhuma
maneira ao registro sonoro” (Miller, 1989, p.178), é importante ressaltar, como o
faz Catão, que “se a voz não se confunde com o som, ela também não o recusa” (Catão, 2011, p. 23). “Afinal, o som, implícito na fonação que vem suportar
o significante” (Lacan, 2007, p.74.) “tem sua função no que diz respeito à voz.
Dado a dimensão incorporal da voz, o som vem vesti-la. Assim o som modela
nosso vazio e faz- se veículo do imponderável da voz” (Catão, op. cit.).
226
Ditirambos psicanalíticos
Destacando os três tempos dos registros pulsionais, tal como sugere Lacan, em sua releitura do texto freudiano Pulsões e suas vicissitudes
([1915] 1988), Catão (2009, p.125), no que concerne ao objeto a, voz, propõe que o primeiro é o tempo de ouvir. Neste se coloca a função de chamamento cumprida pela voz do Outro primordial. Incidência primeira da
pulsão invocante. Eu diria que, com isso, inaugura-se o primeiro tempo do
circuito pulsional, numa atividade que, na melhor das hipóteses, favorece a
bejahung – afirmação primordial, que não é alheia ao fato de o ouvido ser o
único orifício que não se fecha.
O segundo tempo é o tempo de se ouvir. O grito emitido pela criança e
vazio de significação retorna do Outro sob a forma de demanda. Perspectiva reflexiva na qual trata-se de receber sua própria mensagem advinda do
Outro, agora sob a forma invertida.
No terceiro tempo, trata-se de se fazer ouvir, “fazer-se ao Outro”. É
quando se constitui a possibilidade de simbolização e a consolidação da
operação do recalque originário, correlativo à fundação mesma do inconsciente.
É nesse terceiro tempo que Didier-Weill (1997) destaca a presença do
impulso simbolizador relativo a uma nova incidência da pulsão invocante,
como o pôr em jogo de um significante especial cujo poder não é o mesmo
que o da música, dado que, por sua função simbólica, vem ressoar a ausência na presença de um corpo.
Sustentada em seu ponto de partida pelo suporte materno, para só
depois ser de algum modo apropriada pelo sujeito, a voz destaca-se como
uma espécie de “música a várias vozes”. O que se evidencia de modo patente na experiência do psicótico de ser “habitado, possuído, pela linguagem”, como Lacan menciona no Seminário As Psicoses (Lacan, [1955-1956]
1985, p.284), indicando a diferença do neurótico, que vive prioritariamente a
experiência de habitar a linguagem. Entretanto, o ser habitado pela linguagem não é experiência exclusiva da psicose. Ao contrário, é a experiência
de base da própria condição humana.
Efetivamente, nossa fala é música a várias vozes, sobretudo na forma
como se apresenta na clínica psicanalítica. Trata-se de uma voz sempre
polifônica, que brota na alteridade e carrega sempre consigo um coro, um
ditirambo. A voz própria é um malogro, como me dizia Lucas Oliveira, um
colega que também é músico.
Didier-Weill (1999, p.11-12) observa que essa estranha, que é a música, nos surpreende. Ao crermos que escutamos a música, somos, paradoxalmente, escutados por ela. A música torna audível o inaudível que nos
habita, isso que está silencioso nesse estranho que é o sujeito do incons227
Denise Maurano
ciente. Nessa perspectiva, escutar esse inaudível não implica uma experiência psicótica, dado que aqui não se trata de uma identificação imaginária,
mas implica uma identificação metafórica, uma dupla negação: “Sim, tu não
és estranha ao estranho que sou eu” (Didier-Weill,1999, p.12). O sujeito do
inconsciente diz sim à invocação da música.
A música, no caso, entra no lugar do que é indizível, tal como a voz.
Remete-se ao mais de gozar. Tal como a poiésis, que, no sentido original
grego, comentado por Diotima, no Banquete, de Platão, expressa a causa
que faz passar o que quer que seja do não ser ao ser; colocando-se, portanto, como fundamento da criação, a música que faz ressoar o inaudito em
nós, possibilita o acolhimento do estranho, que antes só nos causava horror.
Essa condição de falta a ser pode ser assim, celebrada.
O impactante da música não se apoia na rememoração, mas refere-se
à comemoração de um tempo mítico no qual o que “era absolutamente exterior ̶ a música da voz materna – encontrou o lugar absolutamente íntimo
onde as notas poderão dançar” (Didier Weill,1999, p.16). Por isso, a música
apresenta-se como “empuxo à extimidade”.
Com a música, o sentido cede sua força de cativação e ganha vigor a
invocação que se expressa como “pura possibilidade”. Para Didier Weill, o
que se coloca como o soar musical endereça o sujeito ao ponto azul – ponto
de causa absoluta do sujeito, enquanto sujeito do inconsciente ―, indicando o que se situa num porvir possível, de onde o sujeito é convocado como
pura possibilidade (Didier-Weill,1999, p.17). E não se trata de um ponto ideal, porque esse ponto é causa, já está aí, num tempo chamado “anistórico”.
A linguagem, por mais que seja um instrumento fundamental da constituição do humano, encontra-se limitada para responder à questão da existência, e é disso que sofremos sintomaticamente. A existência é muito mais
do que se pode dizer acerca dela. Por isso, a fala que nos interessa sobremaneira no acionamento do dispositivo analítico não se refere à enunciada
para responder a uma anamnese, ou mesmo à prosa na qual o sujeito sabe a
priori o que vai dizer e tenta manejar como será escutado. É fundamental que
o sentido da invocação esteja presente quando convocamos o analisante a
dizer o que quer que lhe ocorra, quando, pelo desejo do analista, presentifica-se a função do Espírito Santo (Lacan, [1956-1957] 1995), qual seja, a de
anulação das significações esperadas para que possa advir o novo.
A fala visada na análise é aquela na qual, tal como se dá na produção
artística trágica, a dimensão mítica se imbrica na dimensão musical dionisíaca. A perspectiva mítica atrelada ao saber relativo à diferenciação fálica
é posta em xeque para o comparecimento do novo. Do espírito da música
dionisíaca, ou seja, do coro, destaca-se o ator, referido ao logos, ao mito, à
228
Ditirambos psicanalíticos
cidade, mas não para aí instalar-se em oposição e manter a descontinuidade entre a palavra e a música.
Na tragédia, o ato da fala e a invocação do canto são revirados em
linha de continuidade. Pela operação de torção trágica, a oposição revelase paradoxo, no qual polos antinômicos, via torções moebianas, são postos
em continuidade. Ultrapassam-se aí os limites entre o som e o sentido. Pela
operação artística realiza-se um imbricamento sincrônico entre o sujeito e
o Outro. Na música, o sujeito habita a alteridade. A música vem significar a
dimensão do inaudível, do invisível e do imaterial relativa a esse ponto de
falta, de ausência, no qual se sustenta a existência humana e a fala vem
tentar nomeá-lo.
Como observa Portes de Castro, em sua leitura de Didier-Weill,
Neste sentido, a voz do ator passa, de forma contínua, da vocação, ato da fala – próprio de Apolo – à invocação, ato de canto
– próprio de Dionísio. É por isso que a música se dirige a uma
“subjetividade absoluta”, uma pura escuta, onde som e sentido
não estão dissociados (Castro, 2009).
Se a castração, limite radical ao qual está confrontado o humano falante, traz um descompasso sonoro intransponível entre o sujeito e o Outro,
a astúcia presente na arte trágica consegue, pela poiésis sublimatória, o
milagre de fazer o não ser, vir a ser, aproximando, por esse ato de criação, o
mortal do imortal. Eis aí um desafio que cada um de nós, analistas, enfrentamos, ao convocarmos à fala na análise, de modo a que muito além de ela
remeter-se a uma rememoração, ela se expresse como uma comemoração
da experiência do inconsciente, na qual a voz tomada pela musicalidade
que lhe for própria possa transfigurar o que de outro modo nos aterrorizaria
enquanto inaudito, invisível e imaterial. Desse modo, a convocação à fala
na análise comparece como uma invocação que visa promover o empuxo à
fala enquanto um ato sublimatório, poiésis psicanalítica que é a causa que
faz o não ser vir a ser. Eis a nossa aposta!
REFERÊNCIAS
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CATÃO, Inês. O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo:
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229
Denise Maurano
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DIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção do
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VIRGÍLIO, Eneida, VII. In: FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900), V.1. Porto
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Recebido em 30/10/2013
Aceito em 15/12/2013
Revisado por Maria Ângela Bulhões
230
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 43-44, p.231- 245, jul. 2012/jun. 2013
VARIAÇÕES
ELEMENTOS PARA UMA CRÍTICA
DO USO DO SIGNIFICANTE
NOVO EM PSICANÁLISE1
Alfredo Gil2
A
ntes de tudo quero situar dois pontos que delimitam meu trabalho: o
primeiro é que, apesar do fato de que as questões que abordarei vêm
sendo bastante trabalhadas aqui no Brasil, não quero incorrer no risco, já
pontuado no campo das letras, mas não somente, pelo crítico literário Roberto Schwarz, de tratar com as “ideias fora do lugar”. São duas histórias
psicanalíticas bastante diferentes, a brasileira e a francesa, contextos políticos atuais muito diferentes, mas dos quais nós, analistas, não podemos nos
subtrair, em todo caso certamente não na França. Essas diferenças exigem,
portanto, prudência quanto a toda tentação comparativa, apesar dos vários
denominadores comuns. O segundo ponto de delimitação é muito simples:
os elementos críticos que trarei aqui valem, sobretudo, para a orientação
que me interessa, que é a lacaniana, mesmo se a referência a ela não é
mais censurada como já foi nos dois grupos franceses filiados à Associação
Psicanalítica Internacional (IPA), que são a Sociedade Psicanalítica de Paris
(SPP) e a Associação Psicanalítica da França (APF).
Nos últimos anos tornou-se um truísmo, nos debates analíticos, dizer
que as configurações clínicas de hoje não são mais as mesmas do tempo
de Freud, que haveria outras que não existiam no seu tempo ou que elas
se modificaram. Ou as duas coisas. Donde uma série de nominações apre-
Trabalho apresentado em abril de 2012 na Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS.
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association
Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]
1
2
231
Alfredo Gil
sentadas: novas patologias, patologias contemporâneas, novos sintomas,
um novo sujeito, um neosujeito, uma nova economia psíquica. E acrescento
que a estas se segue uma outra série, vindo consolidar a ideia de uma clínica do social: psicose social, perversão social, perversão ordinária, psicose
ordinária. Necessária na minha exposição por uma questão de clareza, essa
distinção é, na verdade, um pouco artificial, na medida em que essas categorias são condicionadas umas às outras e têm sido evocadas de modo
insistente nesses últimos quinze ou vinte anos.
É uma discussão bastante ampla e polêmica entre os colegas, sendo
possíveis diferentes ângulos de leitura. Para uma introdução sobre o que
poderia haver de novo no trabalho clínico, podemos começar colocando
questões bastante banais, mas com um toque pretensioso, talvez de um
certo fundamento epistemológico: por exemplo, dizer que algo é novo supõe
no mínimo modificação de algo anterior, daquilo que precedia3. Mas pode
também conter a ideia de que o novo em questão venha em ruptura com as
condições de emergência daquilo que organizava, estruturava o antigo, o
precedente. Vejam bem que a simples formulação que indica passagem daquilo que era anterior ao novo implica uma temporalidade, infiltrando aí imediatamente um velho debate, talvez um pouco esquecido no meio analítico,
sobre as relações entre estrutura e história, que outrora eram antinômicas.
Uma outra maneira de formular essa questão tem sido de saber se aquilo que se diz novo é novo enquanto novas manifestações da(s) estrutura(s)
ou se haveria uma mutação na própria estrutura e, por conseguinte, novas
estruturas. Em outros termos, trata-se de saber se, apesar das modificações
nas manifestações de uma estrutura, manter-se-ia a noção de continuidade
com os elementos que lhes são constitutivos, ou se haveria a prevalência
de uma ruptura radical com esses elementos. Existe uma dificuldade que
é intrínseca a essa formulação, que se deve à relação entre as estruturas
clínicas propriamente ditas e a estrutura que as organiza onde elas tomam
forma, que é a da linguagem. Em outros termos, o fato de que as estruturas
clínicas, enquanto estruturas de defesa, no sentido freudiano do termo, no
modo como um sujeito é estruturado pela operação da castração, encontram seu substrato comum, sua materialidade, na estrutura da linguagem.
Alguns colegas têm descartado a pertinência, nesse debate, sobre o
que haveria de novo na clínica, ou têm tentado denunciar o equívoco, afir-
3
232
Sobre esse ponto do novo no trabalho clínico veja também Costa (2009).
Elementos para uma crítica...
mando que não há nada de novo em dizer que cada época produz sua
novidade4. Isso é verdade.
Nesse sentido, tomemos três exemplos, a título comparativo. Podemos
ler em Des maladies mentales, de Etienne Esquirol, de 1838, uma bela passagem que diz o seguinte:
O estado das sociedades modernas modificou as causas e a feição
da monomania, revelando-se sob novas formas. Com o enfraquecimento das convicções religiosas, a demonomania, as loucuras supersticiosas desapareceram. Tendo-se enfraquecido a influência da
religião sobre a conduta dos povos, os governos, para manterem
os homens na obediência, recorreram à polícia: desde então, é a
polícia que perturba a imaginação dos fracos, as casas de loucos
estão cheias de monomaníacos que temem essa autoridade, delirando sobre a ação que ela exerce e acreditando serem perseguidos. Não existe um período, um momento histórico, que não tenha
sido caracterizado por algumas monomanias marcadas pelo caráter
intelectual e moral de sua época (Esquirol, [1838] 1989, p.198).
O uso que faço desse parágrafo ficará bem aquém do que ele mereceria: após a Revolução e a Restauração, Esquirol constata que as mudanças
dos elementos que constituem um delírio são correlativas às mudanças do
regime na articulação do teológico-político.
O segundo exemplo é bem mais próximo de nós: A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa moderna, de 1908, Freud cita Wilham Erb em Sobre o crescimento da doença nervosa na nossa época, que diz o seguinte:
A questão principal é de conhecer as causas da doença nervosa
na nossa existência moderna [...] a literatura moderna se ocupa
essencialmente de problemas que vasculham as paixões, promovem a sede de gozo e desprezo de todos os princípios éticos e de
todos ideais, ela apresenta ao leitor figuras patológicas, problemas sexuais psicopáticos [...] nosso ouvido é excitado e irritado
por uma música importuna administrada em alta dose [...] mesmo
as artes plásticas se dirigem de preferência para o que é repugnante, feio, provocador, sem deixar de colocar diante de nossos
Ainda sobre essa questão do novo sugerimos mais algumas referências de obras de Guérin
(2009); Porge (2005) e Tort (2005).
4
233
Alfredo Gil
olhos de forma concreta repulsiva aquilo que na realidade há de
mais horrível (Freud, 1895, p.29).
Mais próximo ainda cito Charles Melman:
Nós assistimos a essa mutação que faz com que as relações coletivas se caracterizem hoje pela reunião explícita em torno de objetos que antes eram recalcados e pelas trocas e discursos que têm
por princípio a dispensa de todo recalque. Discursos e trocas que
têm atualmente um caráter deliberadamente pornográfico, para
usar o termo que convém [...]. É raro escutarmos artistas, vermos
um programa de tevê, um filme, sem que uma crueza desenfreada
não seja o ponto que reúne o auditório (Melman, 2009, p.172).
Com essas três citações – sendo que duas delas datam de mais de cem
anos – poderíamos então efetivamente nos perguntar o que de novo poderia
haver em apenas, foi o que propus, quinze ou vinte anos? Primeiramente, no
que estou trazendo aqui não há nada de muito original. Essa apreensão do
novo pode ser facilmente constatada por qualquer um de nós, nos congressos
e jornadas de diferentes grupos, mas também nos vários meios de publicações. O recorte que proponho é de minha responsabilidade, certamente. Mas
vocês vão constatar uma onipresença destas nominações – e aqui trago o
primeiro ponto importante a ser salientado – que exigem uma articulação entre o individual e o coletivo, e, que apesar das semelhanças entre essas três
citações, para além do simples fato de que cada época produz sua novidade,
constato que há uma nova perspectiva, e que o ângulo de ataque na apreensão do real se modificou, equivocadamente ou não.
Seja numa posição de desacordo ou de adesão, esse debate tem propiciado um trabalho conjunto entre os diferentes grupos analíticos, no qual
não se trata simplesmente de demarcar suas diferenças. Quero dizer que o
que está em jogo atualmente é o modo como os psicanalistas, os clínicos,
os agentes do campo da saúde em geral – psicólogos, psiquiatras, fonoaudiólogos – exercem suas práticas, quer seja num terreno terapêutico ou
educativo, englobando a educação especializada, quer seja num trabalho
mais social – a partir do momento em que sua prática é guiada pela psicanálise. Mais precisamente, o que está em jogo nesse debate, o pano de fundo
de tudo isso, o denominador comum, é a dimensão política e militante pela
preservação das condições de trabalho, pela manutenção de uma prática,
sobretudo no campo institucional, na França, regida pela ética que a fundou,
ou seja, a da psicanálise.
234
Elementos para uma crítica...
Esse aspecto político-militante, sobre o qual voltarei mais adiante, é
fundamental. Gostaria de indicar que esse debate se produz num contexto
político especial no que diz respeito à forma como a coisa pública tem
sido tratada pelas instâncias políticas, num contexto político atual extremamente adverso à incompletude do Outro, consubstancial à divisão do
sujeito, e à consideração do real como impossível, próprios da psicanálise.
Nessa lógica, por exemplo, não se trata mais de prevenir, – no que seria
um trabalho de prevenção –, mas de predizer, de antecipar aquilo que não
aconteceu, numa atitude de predição. É o efeito de um regime de tolerância zero numa sociedade que promove a vitimização. Enquanto a moeda
que organizava as trocas supunha uma dívida para com o outro, hoje ela
se traduz em demanda de reparação. Os homens políticos, de esquerda
ou de direita, não são sempre animados por más intenções, mas se encontram tomados por uma lógica inflacionária de legiferação das relações
sociais: nas escolas por contratos, nos hospitais por projetos de cuidados,
nas reformas recentemente aprovadas, no 5 de julho de 2011, modificando o enquadramento da internação compulsória psiquiátrica, puramente
alarmista e estigmatizante, nas diferentes reformas do Direito de família,
todas essas relações tornaram-se absurdamente contratualizadas. Essa
política estatal, que tenta regular as relações sociais multiplicando as leis
do código, deve ela mesma responder a uma outra, que são as normas europeias, totalizantes, de uniformização, que são por sua vez submetidas à
lógica do mercado mundial que caracteriza o homo economicus da nossa
modernidade.
Agora temos que voltar às diferentes maneiras de nomeações evocadas anteriormente – psicose social, perversão social, perversão ordinária
–, porque são categorias que nos obrigam a repensar as articulações, as
imbricações entre a psicologia individual e a psicologia coletiva, social, de
massa; preocupação essa que, como sabemos, já estava em Freud.
Um primeiro ponto a destacar, que me parece indiscutivelmente novo
hoje em relação a Freud, relativo a essas nominações, é a união, numa mesma equação, de uma categoria clínica – psicose ou perversão – ao social,
na qual se diagnostica o coletivo. Freud nunca uniu em uma única equação
o que era da estrutura clínica ao social. No Mal-estar na civilização ele fala
de neurose social, de neuroses coletivas, diz que se pode esperar que um
dia tenhamos uma compreensão da “patologia das sociedades civilizadas,
que existem semelhanças entre a evolução da civilização com a do indivíduo”
(Freud, 1929, p. 106). Semelhanças que ele traça em outros textos também.
Mas ele insiste que “temos que ser prudentes e não esquecer que se trata
unicamente de analogias”. Enfim, Freud nunca diagnosticou o social.
235
Alfredo Gil
Podemos também lembrar, nesse mesmo sentido, Psicologia de massas e análise do eu (Freud, [1921] 2010), onde a oposição entre psicologia
individual e psicologia coletiva ou de massas é uma oposição quase factícia.
Freud mostra que há uma forte continuidade entre a análise microscópica, a
análise do Eu, e a análise, digamos, macroscópica, a psicologia de massas.
Por que estou lembrando esse paralelismo em Freud? Por duas razões. A primeira, porque ele tem sido frequentemente utilizado, à guisa de
argumento principal, para justificar ou fundamentar as nominações a que
me referia acima, para autorizar a palavra do analista sobre o laço social, na
medida em que eventualmente este as condiciona, indicando que não podemos pensar uma psicologia individual que não derive de uma psicologia
coletiva, que esta e aquela são inseparáveis. É o caso de J. P. Lebrun (1997,
2001), L. Sciara (2011), R. Mezan (2011) no seu último livro, por exemplo,
entre muitos outros.
Isso é incontestável. Mas se ficarmos somente nisso, lembrando que
essas categorias são inseparáveis – e aqui quero introduzir a segunda razão pela qual estou trazendo esse paralelismo entre a dimensão coletiva
e a individual – não vamos perceber uma modificação importante, de 180°
graus, que se tem produzido entre o método de Freud na leitura do social e
o método dos dias de hoje. Modificação do ponto de vista do analista, quando ele se apoia nessa afirmação de Freud e que parece não estar sendo
tomada em conta.
O que gostaria de ressaltar é que atualmente o ponto de vista da articulação entre o social e o individual não me parece mais estar vetorizado no mesmo sentido em que estava para Freud. Como assim vetorizado?
Quando Freud abria a porta de seu consultório ou a janela – ao contemplar
a cena social, o homem do lado de fora, fora do consultório – sua percepção
tomava consistência nos termos em que ele tinha teorizado e elaborado a
experiência da cura analítica, daquilo que se revelou na transferência, ou
seja, a metapsicologia. Digamos que havia um movimento que saía do centro em direção à periferia, e que esta era apreendida nos termos em que ele
havia conceituado o centro.
Freud estende os conceitos, aplicando-os, no melhor sentido do termo,
à sua leitura da psicologia de massas; é o caso, por exemplo, das noções
como eu-ideal, ideal do eu, a escolha do objeto pela via da identificação.
Atualmente, o que se nota é que a apreensão da estrutura do paciente,
das configurações clínicas, é orientada desde o social. Ou seja, o analista
escuta antes de tudo um paciente cujas coordenadas subjetivas são radicalmente o efeito, como um puro eco, do discurso social. Mais exatamente
como efeito das mutações socioantropológicas do laço social nestes últimos
236
Elementos para uma crítica...
anos, e isso se faz, frequentemente, calcado na destituição, no declínio da
imago paterna, da queda de ideais coletivos, que deixam de fornecer os
alicerces à subjetividade. Mutações essas que seriam efeito do cientificismo
fabricado pelo discurso do capitalista. A partir do momento em que o analista vai buscar a compreensão do que se passa com seu paciente, saindo
completamente do consultório, e descobrindo assim uma redução na densidade do tecido simbólico, os efeitos do declínio (social) da imago paterna,
da função paterna, do patriarcado ou do nome-do-pai5, da queda dos ideais
coletivos, da passagem de um mundo sólido a um mundo líquido como diz
Z. Bauman (2004), a concepção da clínica se modifica e, em consequência,
suas elaborações. Isso pode se constatar nos argumentos preparatórios de
muitas jornadas de diversos grupos analíticos nesses últimos anos. Tomemos aqui alguns exemplos:
1) Jornada em Paris, intitulada Fobias e angústias nas crianças e adolescentes, lemos “[...] nota-se o quanto um espaço social pontuado de injunções de todo tipo (telas, câmeras onipresentes, gadgets falantes, labirintos
comerciais abarrotados de painéis indicadores etc.) deixa o sujeito angustiado diante destes sinais que soam para ele como imperativos. Parece possível relacionar as manifestações clínicas à lógica do discurso onde elas
se constituem, discurso do Outro, discurso dos mais próximos ou discurso
social, onde se nota a labilidade do simbólico, característica dos discursos
tecnocientífico e consumistas ambientes”.
2) Jornada na Bahia, intitulada Quais são as condições de emergência da subjetividade na criança hoje?: “[…] a clínica do agir, do gozo do
objeto sem espera, o professor deslegitimado na educação [...] esta clínica
é indissociada das condições de emergência da subjetividade, que são a
linguagem do mercado e do neoliberalismo que substituíram o bom e velho
capitalismo”.
3) Jornada sobre as psicoses, também em Paris: “ [...] visto o impacto
das modificações do simbólico que estão em jogo nas mutações do laço social contemporâneo: haveria modificações sensíveis na clínica das psicoses
e por conseguinte no tratamento de uma transferência delicada?”
4) Argumento de um seminário proposto há dois anos, também em
Paris, quando a responsável propunha uma leitura cruzada entre diferentes
A referência, como sabemos, vem inicialmente de “Les complexes familiaux dans la
formation de l’individu” ([1938] 2001), onde Lacan fala de um “declínio social da imago
paterna”. Vale observar, sem aqui tirar consequências, que “social” praticamente desapareceu das diversas citações, em contraponto, o declínio se estende à função paterna,
ao patriarcado ou ao Nome do Pai.
5
237
Alfredo Gil
autores, de Freud aos dias de hoje: “Iremos analisar as incidências da fragmentação que, do declínio do Nome do Pai, promove a instalação estrutural
de um matriarcado, que já constatamos na clínica atual. Algumas apresentações de doentes servirão como apoio à nossa reflexão”.
O questionamento da incidência sobre a subjetividade do fato das
transformações que caracterizam o laço social, questionamento que se tornou uma evidência que repetimos e que, como tudo o que entra no automatismo de repetição, corre o risco de esvaziar-se de sua substância, não era
de modo algum tratado como tal nos anos 70 ou mesmo nos 80. Vejam as
intervenções de Lacan nas conclusões das jornadas da Escola Freudiana
de Paris, ou mesmo as de seus alunos, J. Clavreul, O. Mannoni, S. Leclaire.
Evidentemente que Lacan antecipou de modo assustador o que acontece
hoje “que o futuro da psicanálise dependeria dos efeitos da chuva do discurso da ciência com consequências irreparáveis sobre o Real”6. Mas isso
não era tão onipresente e não ocupava o mesmo lugar na análise do que se
passava no real da clínica.
Então, com a mudança de perspectiva do analista, o que se constata é
que ele passa a se interessar, equivocadamente ou não, por referências que
eram inabituais até pouco tempo atrás no campo lacaniano.
O interesse abundante e repentino dos analistas pela categoria de
“borderline”, “caso-limite”, ou “estado-limite”, que às vezes tem-se adotado,
a meu ver, com muita facilidade, parece criar um verdadeiro anacronismo
nesse debate. Muito ouvi os colegas denunciarem essa nominação como
um “saco de gatos”, acreditavam que se havia analistas que se apoiavam
em tal categoria era por falta de rigor estrutural na clínica e de um diagnóstico estrutural. Evidentemente que não se trata de contestar a noção de uma
clínica que seja estrutural7. Mas eu me lembro que quando dizia aos meus
colegas na Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS),
no discurso ambiente da época – que fiquei sabendo mais tarde ser o mesmo na França –, que eu tinha ido assistir em Gramado, em 1988, O. Kerneberg, que na época era presidente da IPA e o papa da borderline personality
disorder, eles se mostravam bastante críticos, afirmando que “não tem essa
de borderline entre neurose e psicose, ou nem neurose nem psicose, ou é
psicose ou é neurose...”
Não se trata tampouco de criticar o interesse que se possa ter pela
categoria de borderline, mas com relação ao novo acho problemático o uso
6
7
238
Entrevista a Roma – 1974, documento audio inédito.
Ver resposta de C. Calligaris (1989) a C. Kessler.
Elementos para uma crítica...
que tem sido feito dessa noção, que aparece como sinônimo do que se tenta definir como sendo novo: novas patologias, novos sintomas, patologias
contemporâneas, ou seja, para falar sobre o que haveria de novo nas manifestações clínicas se faz indiscriminadamente referência a uma nominação
já bastante elaborada e definida conceitualmente. Quando digo bastante
elaborada, não precisamos recorrer aos textos dos anos 30, de Adolf Stern
(borderline cases), nem aos de Helene Deutch (as if), mesmo se eles são
referências nos estudos sobre os estados limites. Um exemplo próximo de
nós aparece no último número da Revista da APPOA [nº 38], no texto do
Eduardo Mendes Ribeiro (2010), que traz esse problema, mesmo se não é o
que há de mais importante no seu texto. Ele retorna a Pinel e a Esquirol para
situar os limites do normal e do patológico, passando por Philippe Chaslin,
encontrando um título que é tentador, borderland of insanity, soando próximo a borderline e, assim, acaba extrapolando tanto na retomada histórica
que indiquei, mas, sobretudo, na aproximação a meu ver demasiadamente
forte entre borderline e novas patologias.
Para precisar o anacronismo que evoquei, temos que considerar, a partir dos anos 50, trabalhos importantes como os de Margareth Little, bastante
retomados por Lacan, ou de D. Winnicott e, é claro, os de O. Kerneberg, a
partir da metade dos anos 60, que tinham a intenção de definir conceitualmente uma clínica borderline. Onde está o anacronismo em solicitar essa
categoria para falar do que haveria de novo? Primeiro sobre o plano clínico.
Não é por acaso que, como presidente da IPA, Kerneberg fez a promoção
do conceito de contratransferência – lembrando que cada presidente tem a
missão de promover, de dar destaque a uma noção particular durante o seu
mandato; por exemplo, D. Widlocher era a empatia, já nosso conterrâneo,
Cláudio Eizirik, foi a neurociência. Notem que a contratransferência é um
conceito central também em M. Little, Winnicott. Esses clínicos estavam
centrados naquilo que faz o osso duro de um tipo de trabalho transferencial,
lugar que o analista é convocado a ocupar, tornando-se receptáculo muitas
vezes insuportável de uma demanda incondicional de amor impossível de
ser acolhida, na medida em que sua recusa em ato é consubstancial à demanda feita. Cabe lembrar a análise de M Little com Winnicott, que tinha
que hospitalizá-la durante as férias. Algo similar encontramos na análise
do Homem dos Lobos, com Ruth Mack Brunswick (1928), num tipo de “relação de dependência”, extremamente difícil de suportar, como dizia nos
anos 50 M. Bouvet, que será uma referência francesa nos trabalhos sobre
estado limite. Lembremos também o modo como o Homem dos Lobos circulava entre dermatologista, dentista e alfaiate e como tudo isso repercutia
na transferência com sua analista; havia aí um trabalho transferencial extre239
Alfredo Gil
mamente delicado, era um inferno a vida dele. Não é por acaso que essas
duas noções – borderline e contratransferência –, tendo sido elaboradas
conjuntamente, serão recusadas conjuntamente na perspectiva lacaniana
durante muito tempo8.
Há um outro aspecto que se acrescenta ao se solicitar uma categoria
já bastante elaborada como a de borderline para falar das novas patologias. Citei acima os anglo-saxões. Mas, na França, desde o início dos anos
70 com J. Bergeret, menos conhecido aqui no Brasil, e A. Green, temos
um denominador comum: vocês não encontrarão nunca uma referência ao
social. Nunca a ideia de que aquilo que se passa com o paciente, no laço
transferencial, teria relação com qualquer transformação do laço social. Isso
é válido ainda hoje na leitura feita pelos analistas atuais da IPA9: J. André,
C. Chabert, por exemplo.
Por outro lado, não me parece suficiente o simples fato de que Lacan
utilize a categoria de borderline uma única vez durante todo seu ensino, no
seminário da Angústia10, a respeito do Homem dos Lobos11, para justificarmos o emprego atual do termo, como o faz, por exemplo, R. Chemama, J. P.
Lebrun, Ch. Melman, M. J. Sauret, M. Bousseyroux, entre outros.
Então estamos diante de duas possibilidades. De um lado, estendemos
a noção de borderline até os dias de hoje, incluindo-a na nova economia
psíquica, nas patologias contemporâneas, mas nesse caso temos que nos
perguntar em relação a que podemos atribuir o novo? Basta lembrar que
o Homem dos Lobos nasceu no final do século XIX, na aristocracia russa.
Mas também os casos dos anos 30 (A. Stern, H. Deutch) e 50 (M. Bouvet),
casos muito difíceis para o analista. Ou, por outro lado, sejamos rigorosos e
restrinjamos a noção a um tipo de quadro clínico, com suas variantes, uso
que temos encontrado muito em R. Chemama, em seus estudos sobre a
depressão, ou no que eu consideraria uma apatia em promover um ato, não
digo nem de assumir um desejo por inibição e mil razões neuróticas, mas
falo da incapacidade de identificar um objeto que animaria um desejo, por
mais efêmero que ele seja. Isso na cura com crianças salta aos olhos, não
tanto pela dificuldade delas, mas muito mais pelas dos pais em criar seus
filhos, pais que se encontram desnorteados, às vezes infantilizados, sem
Sobre essa questão ver o que diz Guyomard (2011).
Não se trata de afirmar que eles não levem em consideração o social: ver os excelentes trabalhos de J. André (1987 e 1993).
10
Que por sinal foi omitido na edição do Seuil.
11
LACAN, Jacques. L’angoisse, lição 19 dezembro 1962, Paris, éditions de l’Association Freudienne Internationale, 2001.
8
9
240
Elementos para uma crítica...
saber dizer o que é certo e errado, o que é bem e mal, temerosos de impor
um arbitrário, com o medo de traumatizá-los, infligindo esse “horror” que é
a castração. Nesse terreno encontramos uma modificação: o que mudou foi
a transmissão da castração para além de toda contingência inerente a essa
operação no encontro com a linguagem
Ainda há um outro ponto que gostaria de abordar, relativo à primazia
do social na escuta do analista. Algo que considero importante, que não
se tem abordado, e que diz respeito à relação entre estrutura e história. O
que se modificou são as considerações da relação entre estrutura e história no trabalho do analista. Me parece, aliás, necessário retomar o velho
debate entre essas duas disciplinas, que durante os anos 50, 60 e 70 eram
antinômicas, sobretudo na psicanálise. Sabe-se bem que, em psicanálise,
mas não somente, o estruturalismo veio se opor à história no sentido geral
de historicizar. Na concepção estrutural, o que importa são as invariantes:
interdição do incesto como universal, por exemplo. Havia uma dimensão
profundamente a-histórica, desprovida da história, como processo.
Um exemplo sutil, mas que ilustra muito bem esse tipo de oposição,
na apreensão estruturalista para com todo tipo de consideração histórica,
do estruturalismo no seu apogeu, encontra-se na escolha de J. A. Miller no
estabelecimento do seminário sobre os Escritos técnicos, no subtítulo de um
capítulo em que ele dá destaque à frase seguinte “A história não é o passado”12. Trata-se de uma frase de Lacan, num momento em que a linguística
e a antropologia iluminam o seu retorno a Freud. A escolha feita por Miller é
uma evidência nesta época, digo na época da publicação, 1975, mas teria
sido igualmente em 53-54, ano deste seminário: que seja nos anos 50, com
a primazia do registro simbólico no trabalho de Lacan ou nos anos 70, com
a primazia do real, tudo o que é relativo à dimensão histórica, inclusive à do
próprio paciente, era reduzido ao imaginário, registro que era assimilado ao
desconhecimento da palavra vazia, do ego.
A partir dessa articulação entre estrutura e história, que não fazia de
modo algum parte do repertório do analista, podem-se avançar algumas
consequências. Primeira, evocada anteriormente, sobre a onipresença do
registro do social nas considerações clínicas, ou seja, quando se fala de declínio, de mutação, de modificação do laço social produzindo algo de novo
com relação ao que precedia, temos que considerar que não se pode fazê-lo
sem um mínimo de considerações históricas. Refiro-me ao fator tempo, que
“L’histoire n’est pas le passé. L’histoire est le passé pour autant qu’il est historisé dans le
présent – historicisé dans le présent parce qu’il a été vécu dans le passé”.
12
241
Alfredo Gil
deve ser reintroduzido nas considerações estruturais. Há um livro publicado
recentemente, de um colega e amigo, L. Sciara (2010) intitulado Banlieues:
pointe avancée de la clinique contemporaine, em que desenvolve uma análise da evolução e das modificações de inscrição simbólica e social em três
gerações da imigração argelina. Sobre essa relação tão forte entre Argélia
e França, e tão traumática, fala do sentimento de pertencimento que existia
nas duas primeiras gerações e que, hoje, na terceira geração, os jovens não
se sentem nem franceses nem argelinos, já que a transmissão argelina está
distante e teve que ser eventualmente recalcada pelos avós. Por que insistir em tudo isso? Pelo fato de que a análise pura e dura estruturalista, que
destaca que a “A história não é o passado” não se sustenta sem considerações históricas. O ângulo de Sciara (2010) seria inimaginável no apogeu do
estruturalismo psicanalítico.
Uma observação paralela importante é que nos anos 50, 60, 70 estamos no apogeu do estruturalismo e os objetos da história que vão interessar
aos psicanalistas estão apenas em fase de gestação. O historiador que tem
sua raiz na École des Annales vai contemplar objetos que até então não
eram objetos de pesquisa, e vão interessar à psicanálise particularmente. A
partir dos anos 50, o historiador não fará mais somente o estudo dos grandes acontecimentos: guerras, grandes revoluções, história das civilizações,
de acontecimentos e fatos que são sempre coletivos.
P. Ariès (1975), historiador das mentalidades, faz da morte, da família, da
infância, objetos de estudo. Tudo isso é muito recente. Thomas Laqueur (2005)
vai trabalhar o “sexo solitário”, retraçando a história cultural, não da masturbação como ato, mas das modificações da sua “natureza psíquica”, que se tornara “moralmente suspeita” numa cultura que vai se preocupar com a “autonomia
do sujeito” a partir do século XVIII. Vocês acham que antes dos anos 50 alguém
ia pensar que se poderia fazer a história de um objeto parcial como a merda,
como o fez em 1978 Dominique Laporte, em Histoire de la merde?
Existe um outro aspecto, que aqui só tenho o tempo de evocar, sobre a relação entre estrutura e história em termos de oposição, não em relação à história do laço social e de suas mudanças, suas mutações, mas mais propriamente
no âmbito da clínica, que era a da oposição entre estrutura e psicogênese. Digo
de oposição, pois toda a consideração psicogenética em termos de diferentes
fases do desenvolvimento libidinal associada à ideia de regressão temporal ou
tópica e que segundo o ponto de “fixação” teríamos tal ou tal quadro clínico –
projeto de um Karl Abraham – era, do ponto de vista estruturalista, reduzido
inteiramente ao imaginário. Toda ideia de gênese, no caso psicogênese, reintroduz noções como as de processo e de desenvolvimento e, por conseguinte, de
uma temporalidade que era incompatível com a análise estruturalista.
242
Elementos para uma crítica...
Para terminar, gostaria de abordar novamente uma questão atual de
grande importância a respeito da presença do Estado, do poder político,
burocrático, na gestão da saúde mental, a propósito do que dizia no início
sobre a regulamentação das relações sociais, institucionais, familiares. É
importante lembrar que, na França atualmente, com a criação do “hospitalempresa”, os médicos estão subordinados aos diretores administrativos,
sendo constantemente avaliados por agências de qualificação, que quantificam e contabilizam a saúde, tendo sempre a rentabilidade como horizonte.
Trata-se de cifrar a saúde, evacuando toda a possibilidade de consideração
de uma prática que visa decifrar o inconsciente. Desse ponto de vista, notase um efeito de forclusão da dimensão do sujeito. Nesse tipo de sistema,
não há lugar para tudo o que hesita, vacila, própria à estrutura da dúvida
que, como diz Jurandir Freire Costa13, é consubstancial à estrutura da verdade, não podendo ser completamente recoberta por um saber, salvo em
regime totalitário. Nesse tipo de sistema, a psicanálise e a psiquiatria na sua
tradição têm sofrido muito.
Darei dois exemplos: projeto de lei do início de 2006, no qual o governo
N. Sarkozy14 propunha um plano de prevenção contra a delinquência, buscando detectar precocemente “problemas de comportamento e de conduta”.
Os profissionais que se ocupavam de crianças seriam solicitados a identificar sinais indicativos de risco de delinquência futura, tais como: “traços
de caráter como frieza afetiva, tendência à manipulação, cinismo, indocilidade, heteroagressividade, falta de controle emocional, impulsividade [...]”,
ou seja, todas aquelas características que finalmente podem também atestar que uma criança está em boa saúde mental passam a ser patológicas,
caracterizando o TOP (trouble oppositionnel avec provocation), transtorno
de oposição com provocação. Estamos somente no oposto de quando um
Victor Tausk dizia, em 1919, que a capacidade de mentir de uma criança é
prova de autonomia psíquica, de um processo necessário de individuação
e de diferenciação para com o outro, a fim de certificar-se de que ela não é
transparente aos olhos do outro e de que seus pensamentos não serão lidos
pelo outro, como na psicose. Mas, segurem-se. Segundo o relatório desse
projeto, o trabalho de rastreamento deveria aplicar-se já às crianças de 36
meses, ou seja, aos três anos de idade. Delinquentes potenciais aos três
anos de idade. Como eu dizia no início, isso não é prevenção, mas predição.
13
14
Historia da subjetividade no Ocidente, Cpfl – cultura: https://www.youtube.com/watch?v=5vRjf1Z5nOU Presidente francês de 2007 a 2012.
243
Alfredo Gil
Segundo exemplo. A Alta Autoridade de Saúde – que é um organismo
público consultivo, mas muito importante, uma instância pública de recomendação, de perícia profissional do Ministério da Saúde – decretou no final
do mês passado, no mês de março, que a psicanálise, após trinta anos de
trabalho institucional com autismo, não havia sido aprovada, pois não havia
trabalho científico que pudesse atestar sua eficiência com esse tipo de paciente; lembremos que neste ano o autismo foi eleito como causa nacional
na França. Conforme essa nova orientação, a psicanálise, em sua prática,
teria obtido por resultado apenas a culpabilização dos pais, sobretudo das
mães, e que o que seria recomendado, a partir de então, seriam as técnicas de educação comportamental. Coloquemos tudo isso no contexto: dois
meses antes, o psiquiatra, psicanalista, Pierre Delion e David Cohen, chefe
do serviço de psiquiatria infantil no hospital Pitié-Salpêtrière, haviam sido
convocados pela Ordem dos médicos, pois estariam sendo acusados por
uma associação de pais de autistas de torturarem crianças autistas com
uma técnica que se chama “packing15”, que visa envelopar o corpo da criança com um tecido, o que é prescrito em poucos casos graves, com risco de
automutilação, por exemplo. O objetivo da contenção é de dar um pouco
de consistência a um corpo que está reduzido à angústia de um corpo fragmentado. Esses dois médicos tiveram que ir se explicar sobre algo que se
prática há muitos anos.
Nesse contexto, com essa política, democrática, certamente, – pois
tudo isso é feito em nome do interesse coletivo, mas que, no apogeu do
individualismo, produz um retorno kafkaniano no campo social e assume
uma forma totalitária – o analista é obrigado a defender a posição ética que
define seu trabalho, intervindo no campo social, de onde deriva essa primazia do social nas elaborações desses últimos anos. E a dificuldade tem sido
de sustentar politicamente uma prática e uma posição ética sem cair numa
postura nostálgica, ou mesmo reacionária, segundo a qual no passado, pelo
fato dos mitos fundadores coletivos serem sólidos, tudo era melhor.
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Recebido em 10/08/2013
Aceito em 26/09/2013
Revisado por Gláucia Escalier Braga
245
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IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕES
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Ex: Freud ([1914] 1981).
As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas, acrescidas
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V REFERÊNCIAS
Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem
alfabética pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:
OBRA NA TOTALIDADE
BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gramática
inconsciente. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [19571958]. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1999.
PARTE DE OBRA
CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al. O
laço conjugal. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24.
CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo. São
Paulo: Comp. das Letras, 1993. p. 21-9.
FREUD, Sigmund. El “Moises” de Miguel Angel [1914]. In: ______. Obras completas. 4. ed. Madrid: Bibl. Nueva, 1981. v. 2.
ARTIGO DE PERIÓDICO
CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? Cadernos da APPOA, Porto Alegre, n. 71, p. 12-20, ago. 1999.
HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 14, p. 43-53, mar. 1998.
ARTIGO DE JORNAL
CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com Maria Rita Kehl. Zero Hora, Porto Alegre, 5 dez. 1998. Caderno Cultura, p. 4-5.
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
KARAM, Henriete. Sensorialidade e liminaridade em “Ensaio sobre a cegueira”,
de J. Saramago. 2003. 179 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
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TESE DE DOUTORADO
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DOCUMENTO ELETRÔNICO
VALENTE, Rubens. Governo reforça controle de psicocirurgias. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff01102003 23.htm>. Acesso em: 25
fev. 2003.
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