Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Renata Mattos A voz e a invocação para musicar a vida: ressonâncias entre música e psicanálise Rio de Janeiro 2011 Renata Mattos A voz e a invocação para musicar a vida: ressonâncias entre música e psicanálise Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Psicanálise. Orientadora: Profa. Dra. Doris Rinaldi Rio de Janeiro 2011 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A XXX Mattos, Renata. A voz e a invocação para musicar a vida: ressonâncias entre música e psicanálise / Renata Mattos. – 2011. 174 f. Orientadora: Doris Rinaldi. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia. 1. Música – Psicanálise lacaniana – Teses. 2. Música pós-tonal – Teses. 3. Psicanálise – Teses. I. Rinaldi, Doris - II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. IV. Título. CDU XXX.XXX.XX Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese. _______________________________________ Assinatura _________________ Data Renata Mattos A voz e a invocação a musicar a vida: ressonâncias entre música e psicanálise Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Psicanálise. Aprovada em 03 de novembro de 2011. Banca Examinadora: _________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Doris Rinaldi (Orientadora) Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro _________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ana Maria Medeiros da Costa Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro __________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Heloisa Caldas Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ___________________________________________________ Prof. Dr. Jean-Michel Vivès Université de Nice Sophia-Antipolis _________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Tania Rivera Universidade Federal Fluminense Rio de Janeiro 2011 Aos pássaros em vôo... AGRADECIMENTOS Aos meus avós Luci e Almir, músicos por excelência em seu fazer ético cotidiano. A Doris Rinaldi, pela confiança e aposta em minhas “viagens” e devaneios, tendo me permitido ir bem mais além do que eu havia sonhado. A Jean-Michel Vives, cuja “côté carioca”, em um encontro entusiasmante, me fez conhecer o “accent français” em meu próprio pensamento. A Tania Rivera, que me faz trabalhar no ponto mesmo em que a psicanálise se lembra arte. A Ana Costa, por me fazer avançar em temas os mais enigmáticos e belos de Lacan. A Heloisa Caldas, com quem compartilho o encanto pela voz, pelas letras e pelo jazz. A Inês Catão, que, enquanto se tornava mais amiga, viu nascer esta tese em diálogos risonhos no Rio, Brasília, São Paulo, Nice, Cerisy, e até em Campos! A Rita Manso, pela confiança e pelos sorrisos em momentos de muito trabalho. Aos professores do PGPSA, que tanto me transmitiram, não apenas em aulas, não apenas sobre a psicanálise. A Marco Antonio Coutinho Jorge, pela delicadeza musical em abrir horizontes. A Edson de Sousa, poético e generoso em diálogos breves que mudam direções. A Paulo, amigo precioso, cujas conversas únicas e luminosas dariam infinitas outras escritas. A Bê, amiga constante e companheira, sem a qual, certamente, percorrer o cotidiano deste doutorado não teria sido possível. A Nadia, minha mãe, pelo sorriso dourado que me faz querer sorrir e voar mais. E a minha família, que agora ainda mais claramente se faz presente em mim. Aos bons amigos que ganhei como surpresa e presente a partir do doutorado. A vida se faz ainda mais colorida. E aos amigos queridos de uma vida inteira, com quem pude rir, contar e me renovar em momentos singulares deste percurso. A Jeroni, logicamente impossível/ilogicamente possível, por ter me esperado no Mediterrâneo e voltado ao Rio e… Aos que me deram a chance de escutá-los musicando e se afinando sessão após sessão. Aos funcionários da secretaria do PGPSA, que tornam nossa vida burocrática mais leve. A CAPES, pelo apoio integral nos quatro anos de doutorado, incluindo o período de estágio na França com bolsa PDEE. RESUMO MATTOS, Renata. A voz e a invocação para musicar a vida: ressonâncias entre música e psicanálise. 2011. 174f. Tese (Doutorado em Psicanálise) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. A articulação entre a psicanálise e a música, mais especificamente a produzida a partir do paradigma de Arnold Schönberg, renovado por John Cage, se mostra emblemática para pensar a constituição do sujeito em Sigmund Freud e Jacques Lacan, bem como para refletir sobre a escuta clínica, o ato analítico enquanto poético, e a escrita pulsional do sujeito como resposta à invocação da voz. O momento de estruturação do sujeito implica a dimensão de musicalidade da linguagem que permite o ato da fala. O sujeito nasce em um ponto em que o significante (simbólico) escreve no real do corpo um possível, um começo, uma marca que invoca uma nota e uma letra, sendo estes os dois aspectos da linguagem: a musicalidade (continuidade) e a fala (descontinuidade em movimento). Este ponto escreve e cria um vazio no sujeito que está e estará sempre em pulsação. Se o real grita caoticamente, é possível que se cante e se musique a vida com a criação de notas singulares, efeito do movimento desejante e de uma escrita pelo circuito da pulsão invocante na partitura já dada pelo Outro e face aos encontros com pedaços de real. A música tem a capacidade de retirar o sujeito de uma surdez de seu próprio desejo, o convocando a recriar a linguagem por seus atos. O paradigma de Schönberg, bem como a música criada a partir deste momento, nos dá a ouvir um saber-fazer com a voz no qual a dimensão equivocante (de equivoco e de invocação) da linguagem pode ressurgir por uma via nova. A transmissão de um saber-fazer com o objeto voz ele efetuado se apresenta como uma radicalização do efeito de verdade do real, ressoando borromeanamente RÉSUMÉ L’articulation entre la psychanalyse et la musique, plus spécifiquement celle produite à partir du paradigme d’Arnold Schönberg, renouvelé par John Cage, se montre emblématique pour penser l’émergence du sujet chez Sigmund Freud et Jacques Lacan ainsi que l’écoute clinique, l’acte analytique en tant qu’acte poétique et l’écriture pulsionnelle du sujet comme réponse à l’invocation de la voix. Le moment de la structuration du sujet implique la dimension de musicalité du langage qui permet l’acte de parole. Le sujet nait en un point où le signifiant (symbolique) écrit sur le réel du corps un possible, un commencement, une marque qu’invoque une note et une lettre : les deux aspects du langage – la musicalité (continuité) et la parole (discontinuité en mouvement). Ce point inscrit et crée un vide dans le sujet, dans le parlêtre, qui est (et sera) toujours en pulsation. Si le réel crie chaotiquement, on peut chanter et musiquer la vie avec la création des notes singulières, effets du mouvement désirant et d’une écriture par la pulsion invocante (à travers du circuit d’écouter, être écouté et se faire écouter) face aux rencontres avec des morceaux du réel, dans la partition déjà donnée du champ de l’Autre. La musique a la puissance de retirer le sujet d’une surdité de son propre désir, en l’appelant à recréer le langage par ses actes (actes de parole, on peut dire, et même d’une parole qui chante) impliquant son corps. La musique créée à partir et au-delà du paradigme proposé par Schönberg nous donne à entendre un savoir-faire avec la voix où la dimension équivocante (de l’équivoque et de l’invocation) du langage peut resurgir par une voie nouvelle. La transmission d’un savoir-faire avec l’objet voix qu’elle effectue se montre comme une radicalisation de l’effet du réel, de vérité, en résonnant borroméennement sur le symbolique et l’imaginaire et en évoquant le moment originaire de la surrection du parlêtre, d’un commencement, toujours à recommencer, qui se faire entendre comme invocation pour musiquer la vie, d’une façon éthique, esthétique et poétique. C’est à travers ces axes que nous pouvons soutenir ici une pratique clinique orientée pour aller au-delà de la répétition en direction d’un signifiant nouveau. Il s’agit d’une orientation qui part des rencontres avec le réel avec lequel le sujet se confronte, par hasard, visant un mouvement renaissant où il peut réécouter l’inouï du réel continu perdu pour que son rythme singulier en tant que parlant puisse être, une fois de plus et d’une manière nouvelle, réinventé. La psychanalyse peut donc être comprise comme une pratique invocante, comme ouverture pour que le sujet puisse, avec enthousiasme, musiquer la vie. Mots-clés : Psychanalyse. Musique. Voix. Pulsion invocante. Réel. SUMÁRIO PRELÚDIO UMA ABERTURA NOVA PARA O REAL NA MÚSICA ............................... 10 CAPÍTULO I UMA ESCUTA QUE INTERROGA: INVOCAÇÕES ..................................... 20 1.1 O real que pulsa e a abertura da música pós-tonal: o paradigma de Schönberg .............................................................................................................. 22 1.2 A escuta musical como norteador para a clínica analítica ................................ 41 CAPÍTULO II DA ESCUTA À PALAVRA: A CONSTITUIÇÃO DO FALANTE ENTRE MUSICAL E RESSONANTE .............................................................................. 47 2.1 A voz na estruturação psíquica: de ouvinte à falante ........................................ 52 2.2 Escuta, musicalidade e transmissão: a voz da mãe e do Pai .............................. 65 2.3 A voz entre o sujeito e o outro: o grito e o silêncio ............................................. 75 2.4 Falar: via desejante, com voz ............................................................................... 79 INTERLÚDIO A VOZ HUMANA NO DESEJO E NO QUE O EXCEDE ............................... 85 CAPÍTULO III UMA ESCUTA QUE ABRE: RESSONÂNCIAS .............................................. 93 3.1 Ressonâncias entre real, simbólico e imaginário: um começo a sempre recomeçar ............................................................................................................... 96 3.2 A criação poética e musical como apontamento para a verdade do sujeito .... 109 CAPÍTULO IV DA PALAVRA À ESCRITA: ÉTICA E POÉTICA DE UMA ESCRITA POSSÍVEL DA VOZ ............................................................................................ 117 4.1 Cage e o acaso: poetizar o real por uma escrita do radicalmente novo ........... 119 4.2 Da criação artística como escrita ética com restos ............................................. 134 4.3 Musicar a vida como proposição de uma construção clínica ............................ 145 CODA POR UMA CLÍNICA COM VOZ ........................................................................ 156 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 161 10 PRÉLUDIO UMA ABERTURA NOVA PARA O REAL NA MÚSICA O talento é a polidez em relação à matéria; consiste em dar um canto ao que estava mudo. Jean Genet Psicanálise. Música. Voz. Criação. Poesia. Real, simbólico e imaginário1. Em suas ressonâncias. Escuta. Escrita. Sujeito. Pontos que se entrelaçam ao longo desta tese buscando dar um encaminhamento a espantos que surgem de dois campos distintos, a música e a clínica. E que se convergiram em uma “construção” enigmática e logicamente antecipatória que sustentou a escolha do tema deste trabalho: a voz e a radicalização do efeito de real transmitido pela música para se pensar o sujeito e sua constituição. Trata-se de uma “construção” que pode ser sintetizada em uma frase: “a fala do sujeito na clínica soa como música pós-tonal”. Frase este com diversas variações, ora pensando na música de Arnold Schönberg, ora na de John Cage, ora na multiplicidade musical que nos rodeia na contemporaneidade. Todas ressaltando uma aproximação entre os termos com os se inicia acima este prelúdio, exigindo uma elaboração teórica que percorresse a psicanálise tendo como interlocutora a música. Seja a arte musical, a musicalidade na constituição do sujeito, e o fazer poético que igualmente se vale da musicalidade, do inefável musical, para a criação. Em outras palavras: o verbo em suas reverberações que invocam o criar. No início era o verbo. Porém, escutado em seu aspecto musical. Verbo chovendo melodiosamente. Uma chuva de significantes. E o sujeito a escutar com seu corpo os pingos, melodia de pingos, que depois se dão a ouvir como música assim criada. Com letras, lalíngua, significantes. Chuva... Melodiosa voz que, desejante e gozosa, invoca voz e escrita. Sujeito. Escrita da voz singular deste que só pode advir quando se esquece a voz incessante do Outro. Enigma ruidoso e insistente. Música Outra, criada ex nihilo, transmitida pela musicalidade do outro em sua fala sexualizante. Improvisos musicados como resposta. De uma escuta, a possibilidade de falar. Porque algo se inscreveu. Porque a escrita, a escrita pulsional, pode dar 1 Em Lacan, real, simbólico e imaginário são conceituados como os três registros psíquicos que, heterogêneos e não hierarquizados, constituem o sujeito. E, breves linhas, tendo em vista que trabalharemos mais detalhadamente tais conceitos, o simbólico abarca o campo da linguagem, do que é possível de ser falado, escrito, representado, compartilhado. Juntamente com o imaginário, ao qual se referem tanto a imagem 11 um destino ao que se escutou e que, silenciado e ausente, permanece como causa. De uma escuta, a possibilidade de cantar, mesmo que não se seja cantor, e de musicar e escrever alinhavando letras e significantes para além de um tom pré-determinado. Escutar, falar e musicar. Atos que mostram que o desejo impõe um movimento. Ritmo singular a cada sujeito. Ritmo que se apresenta na clínica tantas vezes pelas suspensões desse movimento, de um lado, e pela a insistência do desejo, de outro. Mais ainda, pela insistência do real em fazer re-ritmar, pulsar, movimentar, fluir. A fala se faz assim presente no espaço analítico não como música, mas musicalmente em dissonâncias, poli-tonalidades, modulações, síncopes, ritornelos... A incidência da musicalidade na constituição do falante se mostra evidente, quase óbvia, na clínica. Não por acaso, com Lacan, somos incitados a trabalhar com a dimensão de ressonância do significante, de homofonia, sem nos ater ao significado, quebrando sentidos para que um significante novo possa irromper. Algo que parece se aproximar intimamente ao paradigma da música pós-tonal tal como nossa cultura pôde ouvir desde Schönberg. Surgiu daí uma direção a seguir. E com questões tanto sobre o sujeito, questões por assim dizer metapsicológicas2, quanto sobre o trabalho em uma análise em sua dimensão de poiesis, de criação. A arte musical mostra que o sujeito pode criar música a partir de um centro, com uma tonalidade anteriormente definida e regras claramente determinadas. Mas não porque o sujeito porte em si um tom, uma tonalidade que lhe é dada de saída. Tanto é assim que o músico pode igualmente prescindir de um sistema de criação baseado em um centro, uma nota central que orienta a música, para criar com os sons sem que um tenha predominância sobre os outros. Cada som com igual valor. Podendo mesmo ser entrelaçados ao acaso. O sujeito, seria ele atonal, ou melhor, pós-tonal? Isso no sentido que a história da música delimita: um paradigma de criação, interpretação e escuta no qual um mais além da centralidade, da tonalidade, de um modo pré-definido, se apresentam. O que tem como conseqüência das mais notórias a acentuação da característica de singularidade de cada peça. O efeito do real se apresenta assim radicalizado. Sem surdina. Poeticamente apontando que o sujeito é ele também pós-tonal. Por outro lado, a psicanálise e a clínica psicanalítica evidenciam que o sujeito não pode ser de todo representado. Não poderia haver um tom que o representasse. Nem mesmo uma música. Contudo, cada sujeito musica e pode musicar para além da repetição do mesmo a partir de como lhe foi possível ouvir a música do Outro, dela se separar para se lançar, com sua própria 2 Podemos mesmo dizê-las como questões metapsicologicamente lacanianas, referendo-se ao ato constitutivo de ressonância entre real, simbólico e imaginário, produzindo enodamentos pulsantes e estruturalmente atravessados por um furo entre estes três registros. 12 voz, na criação e re-criação da vida num improviso constante e pulsante. Isso é o que o singulariza. * Antes do dia: Música Um grito e cada um começa * Desde Freud e mais intensamente com Lacan, a psicanálise promove um diálogo com as artes se interrogando a partir delas sobre o que é da ordem do humano e que passa pela criação e pela transmissão de um saber-fazer-aí poeticamente com o objeto a. Para além de uma via sintomática encontrada por um sujeito em particular, como ouvimos na clínica, o que está em jogo nas artes é um lidar com o real através do simbólico, não sem convocar igualmente o imaginário. O trabalho artístico, e, mais especificamente, o objeto que dele surge pode, neste sentido, fazer laço e ser tomado como causa de desejo. Mais do que qualquer outro campo cultural, a arte pode promover o encontro do sujeito com o vazio que o constitui, relacionado à das Ding tanto pelo aspecto de um gozo perdido e a ser parcialmente recuperado quanto pela instauração do movimento desejante do sujeito. Pelo manejo específico da criação artística com a linguagem, valendo-se de recursos estéticos próprios a cada corrente artística, é possível ao sujeito se aproximar deste vazio constitutivo tendo, contudo, um distanciamento necessário. Isto faz com que os efeitos de tal encontro possam igualmente ser colocados em direção de uma criação. É pela especificidade, então, do fazer e do material musical que a estética musical pode apresentar enigmas e questões ao psicanalista, sobretudo acerca da voz enquanto objeto que não se confunde com o aspecto fônico da fala nem com os sons e notas musicais. Estas podem ser entendidas como materiais significantes, como nas músicas modal e tonal, ou fazendo função de letra, conforme é possível propor ser o caso das correntes pós-tonais. 13 Nestas últimas, a ruptura com uma nota central que organiza e hierarquiza a relação entre as notas faz com que a tendência à tensão e distensão resolutiva entre as notas sofra uma queda. A escala, que confere a cada nota uma função dentro de uma estrutura pré-determinada e que determina a tonalidade de uma peça, deixa de ser o recurso fundamental para a escrita e a execução musical. E, do mesmo modo, rompe-se com a tendência à síntese e à representação formal. Acentua-se radicalmente com esse ato as dimensões de singularidade e de alteridade de cada peça face a todas as demais, exigindo que cada uma delas seja ouvida a partir de sua própria dinâmica e coerência. Isso tanto no ato da escrita e da interpretação, visando igualmente um escuta inédita. De uma maneira esquemática, a história da música – e de suas formalizações técnicas, expressivas e composicionais – é dividida em três grandes eixos: a música modal, a música tonal e a música atonal ou pós-tonal, termo este que será aqui adotado3. No primeiro caso, encontram-se reunidas as produções musicais nas quais a música possui uma função definida frente ao grupo que a cria e a frui, geralmente ritualística, podendo assim ser compartilhada e apreendida. No aspecto composicional, o que se destaca é uma determinada pré-configuração das notas musicais e da relação entre elas de tal forma que elas constituem um modo ao qual a peça musical se remeterá e terá como orientador. A música modal possui uma evidente característica cíclica, convocando a repetição deste mesmo modo ao longo da peça, podendo reaparecer com ou sem variações. A ela se atribui um significado socialmente aceito e difundido, ainda que deixe aberturas para que cada um possa dela se apropriar de forma singular. O contrário seria mesmo impossível, já que é próprio à arte a abertura, e esta se mostrando como uma via para que o sujeito possa se encontrar com o que escapa ao sentido, com a surpresa, com o desconhecido. Como exemplos da música modal, temos as músicas tribais, indígenas, a música medieval, sobretudo a ritualística e religiosa, a antiga música grega, a música oriental de uma maneira mais ampla. O que se destaca é um modo de criação e, mais que isso, um modo de escuta e de compartilhamento. É bastante comum que ocorra mesmo a associação de modos particulares a signos e símbolos de uma cultura, o que determina ainda mais quando, como e onde ela poderá ser executada. A sistematização e o estudo das regras de utilização da linguagem musical fez com que, no Ocidente, especialmente na Europa, os modos medievais dessem lugar a um outro tipo de organização dos sons formalizados como musicais. Com tal sistematização, 3 Embora haja uma certa cronologia destas formas de lidar e criar com o material musical, o que se vivencia atualmente é a convivência, a simultaneidade destas diferentes tendências composicionais. 14 denominada música tonal, a relação entre as notas passou a ser determinada por uma estrutura prévia e variável que estabelece as funções das notas entre si, orientadas em torno de uma. Não mais um modo, mas uma escala. E, nesta, a hierarquização de sete notas a partir da centralidade de uma, que determina a tensão e a distensão dos sons. A música passa a girar ao redor desta nota, a tônica, deixando de lado a tendência de uma repetição cíclica, que, virtualmente, se direciona ao infinito. Há, ao contrário, o desenvolvimento de um ou mais temas e melodias, exigindo uma resolução harmônica, em acordo com a tônica. Todo o arco de composições criadas a partir da música barroca, tendo em Johann Sebastian Bach seu maior expoente, até a música moderna, com compositores como Claude Debussy e Maurice Ravel, passando pelo classicismo de Wolfgang Amadeus Mozart e o romantismo de Ludwig Von Beethoven, é fruto deste paradigma tonal. Bem como a música assim chamada de popular em nossa época, desde grandes expoentes do jazz (com exceções como no free jazz), do rock, do blues, da bossa nova... A ruptura com tal sistema, já anunciada com Debussy, por exemplo, se concretiza na música de Arnold Schönberg, que cria assim um novo paradigma musical, o do póstonalismo. A partir das inovações inauguradas no campo musical por este compositor na virada do século XX, a música passa a mais explicitamente acentuar o que cada obra de arte, em especial a musical, traz em si. Ou seja, a criação de um novo objeto disponibilizado pela cultura que dará a ouvir um manejo possível com o real cunhando, com isso, um inédito, um nunca ouvido. O movimento de ir além que a própria linguagem musical busca ao enquadrar o sonoro a partir da inclusão de sons dissonantes ao que se encontra pré-estabelecido – algo que podemos encontrar em todas as correntes da história da música –, encontra-se no póstonalismo mais acentuado. A expansão da linguagem musical neste momento coloca em causa igualmente uma nova escuta, uma que inclua um inaudito e o contorno de pedaços de real4, sem girar em torno de um centro e sem propor um acabamento formal baseado na resolução das tensões anteriormente apresentadas. Uma escuta que, deste modo, igualmente se abre mais radicalmente ao real e aos efeitos deste para cada sujeito. Surgem daí questões sobre o que a música nos diz sobre o sujeito do inconsciente em sua relação com a voz, com lalíngua e com os vestígios do gozo que marcam e determinam o sujeito em sua constituição, recolocados em cena no fazer e na escuta musical. Há na fala, e igualmente na escuta, um aspecto que é impossível de se reduzir ou mesmo se creditar ao sentido, algo que, tal lalíngua, não se presta à compreensão, à comunicação, à inteligibilidade. 4 Expressão esta cunhada por Lacan (1975-76/2007, p. 133). 15 Trata-se justamente da musicalidade, dimensão poética da fala que se presta à transmissão não daquilo que faz com que a voz de uma pessoa seja fonada, mas sim que a voz do sujeito possa ser escutada. Tal musicalidade, que não se confunde com a música, com a arte e a criação musical, interessa de modo acentuado ao analista. É com e por ela que se pode escutar as ressonâncias daquilo que se diz para além do que se intenciona dizer. Ela articula e rearticula restos do que foi ouvido do Outro e que pôde fundar um sujeito singular, permitindo que o desejo possa ser assim escutado e trabalhado. Musicalidade, portanto, que se presta a dar a ouvir a dimensão desejante do sujeito. E que, na clínica, pode servir para o ato de interpretação pelas homofonias, dando um lugar diferenciado ao não sentido que tantas vezes comparece na fala do sujeito, o que abre à escuta, e à leitura, do mais além dos sentidos. Por este aspecto da musicalidade, podemos dizer que desde Freud, ainda que não explicitamente, a psicanálise se interessa e trabalha por uma via que se aproxima de um musical. Mais que isso, um musical que singulariza aquele que fala, bem como seu tempo e seu ritmo face aos demais. Não é como música que ouvimos um sujeito, nem como compositores ou intérpretes musicais que atuamos. Contudo, é com musicalidade, ou melhor, atravessada por musicalidade que uma análise pode se encaminhar. Isto na medida em que a análise labora com letras, significantes, restos e traços mnêmicos acústicos e visuais, com materiais inconscientes que se entrelaçam na construção do sintoma e da verdade do sujeito. Valer-se da musicalidade e mesmo das dissonâncias na fala, daquilo que faz ruído ao discurso, é fazer uma aposta de que a invocação primordial do Outro ao sujeito, que é feita para além das palavras e que veicula o objeto a em sua incidência de voz, pode ser renovada no processo analítico. Trabalhamos, assim, com a dimensão equivocante da linguagem, de equívoco e de invocação. É curioso notar que mesmo tendo ressaltado, sobretudo no apêndice Palavras e Coisas do artigo O inconsciente, de 1915, a importância no psiquismo dos traços mnêmicos acústicos, Freud não chegou a dar um passo a mais na direção da música propriamente dita. O que ocorreu quanto aos traços mnêmicos visuais. Ainda que não tenha assim explicitamente destacado, é a dimensão escópica que está em jogo em primeiro plano nos diversos estudos freudianos sobre as artes plásticas. A música, como é bem notório, tinha um efeito muito peculiar em Freud, o que o mesmo descreve em O Moisés de Michelangelo: Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. (...) Com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta (Freud, 1914/1990, p. 253). 16 Passagem que, para além de dizer apenas da posição de Freud frente à uma expressão artística, pode nos lançar a escutar o que de mais específico a música tem, sobretudo em seus efeitos naquele que a ouve: ser afetado por algo sem saber o que e como isso o afeta. O breve relato freudiano ressalta de forma precisa o aspecto inefável da música, que também se mostra nas demais artes, sendo nela mais acentuado. E é mesmo em direção ao inefável, ao impossível de falar, sondar, rememorar, contar, que uma análise caminha. Pesquisar, então, a expressão artística do inefável pela música não serviria ao analista em seu fazer clínico e igualmente nas considerações sobre como o sujeito se constitui? Se a música pode transmitir esse inefável, bem como o que na psicanálise se localiza como o objeto voz, ela a faz de diferentes formas e mesmo em diferentes gradações. E não podemos desconsiderar que a música se dá a ouvir fundamentalmente a um ouvinte, sendo apenas no encontro com um sujeito, e na singularidade surpreendente de tal encontro, que algo poderá ocorrer. Ou mesmo não ocorrer. Ainda assim, não podemos igualmente desconsiderar que há tradições musicais bem estabelecidas que atuam como paradigmas de criação e que se alteram ou se alteraram em diferentes momentos históricos e culturais. Cabe perguntar o que pode o paradigma musical do pós-tonalismo, com sua radicalização da incidência da face real do objeto a, pode nos dizer sobre o sujeito e sobre as heterogeneidades que o constituem em um enlaçamento borromeano e ressonante entre real, simbólico e imaginário. Avançar, então, neste campo significa fazer um mergulho na concepção lacaniana sobre a voz na constituição do sujeito, bem como naquilo que tal autor propõe sobre o conceito de real e dos demais registros psíquicos. Balizando este estudo, proponho me deter em apenas dois compositores deste vasto campo da música pós-tonal, artistas emblemáticos no que diz respeito ao movimento de ir mais além em direção ao real, promovendo novas escritas musicais e novas escrituras pulsionais: Arnold Schönberg e John Cage. O primeiro contemporâneo de Freud e o segundo de Lacan. Ambos, porém, à frente destes dois psicanalistas. Ambos, assim entendo, já colocando em cena um manejo com a voz que muito bem poderia ser lido como trilha sonora para os seminários lacanianos da década de 1970 nos quais o conceito de real revela toda sua força enquanto operador clínico e teórico. A música que será aqui abordada é, portanto, aquela em que se pode ouvir um correlato do rompimento com toda uma tradição nas artes que tinha como pressupostos fundamentais a predominância da representação. A descentralidade, aquilo que escapa à representação por colocar em xeque os limites desta, em especial no campo da voz e da invocação, e os efeitos disso para o sujeito, é a mirada desta pesquisa. É no sentido de buscar 17 recolher o que a arte musical indica sobre o sujeito do inconsciente, fazendo, com isso, caminhar a teoria psicanalítica, que esta tese se direciona. Como evidencia Lacan (1965/2003, p. 200): (...) a única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar de sua posição, sendo-lhe esta reconhecida como tal, é a de se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede e, portanto, ele não tem que bancar psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho. Certos eixos fundamentais para a arte moderna e contemporânea são de comum interesse à psicanálise, por serem estes espaços privilegiados para que o sujeito e o real, impossível de ser escrito, possam, respectivamente, em sua efemeridade e por seus efeitos, ser vislumbrados. Tanto o campo das artes quanto o analítico se aproximam a partir do pressuposto teórico de não mais haver um centro respectivamente na estrutura das obras com os quais trabalham bem como no sujeito5, o que pode ser lido a partir da delimitação conceitual de Freud sobre o inconsciente, evidenciando que para além e aquém do eu é onde o sujeito está. Este descentramento do sujeito é inicialmente apontado na obra lacaniana através da relação entre o sujeito e o eu, uma vez que é através deste último, pela fala, que a dimensão inconsciente bem como uma dimensão real do sujeito podem ser escutadas em análise, conforme indica Lacan: (1954-55/1985, p. 16): “o sujeito está descentrado com relação ao indivíduo. É o que [Eu] é um outro quer dizer”. O sujeito advém como dividido por efeito mesmo da ressonância da linguagem no real do seu corpo que, perdido, faz surgir uma unidade corporal, imaginária, que lhe é estruturante. Uma vez que o inconsciente é, para Lacan (1955-1956/2002, p. 139), “estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem”, será da linguagem que o sujeito se servirá para se identificar e se dizer, sem que isso dê conta de poder representá-lo de todo. Há algo, da ordem do real, que sempre escapará à simbolização/imaginarização. Deste modo, podemos entender a assertiva lacaniana de que um significante é aquilo que representa um sujeito para outro significante como um indício de que há algo do sujeito que não pode ser definido pelo próprio significante. Isso que escapa é estruturante. É o que fica ainda mais claro na proposta 5 E, aqui, o idioma francês nos ajuda ao nomear com o mesmo termo sujet sujeito e tema — o primeiro, relacionado ao campo psicanalítico; o segundo, ao musical, referente aos elementos, frases e construções musicais que se apresentam em uma obra como a base a partir da qual se é possível propor desenvolvimentos e variações. E é interessante ressaltar que Schönberg ao propor obras já sem a referência ao tonalismo abole a necessidade de temas na música, buscando a coerência da obra não nos aspectos temáticos, mas estruturais, fazendo com que possamos escutar o sujeito do inconsciente, em materiais musicais que não mais pretendem oferecer uma construção linear e facilmente identificável. 18 lacaniana a partir da década de 1970 de uma estrutura do sujeito na qual não há uma hierarquização entre real, simbólico e imaginário, estando estes enodados borromeanamente, dando o suporte do sujeito. E é para esta concepção de sujeito que a música pós-tonal de Schönberg e Cage parece nos levar. Se Freud nos diz de um mais-além, e Lacan de um real impossível de ser simbolizado, nas artes, o fruidor é lançado exatamente para esse além/aquém do que se vê, ouve e lê, não sem estar ancorado na linguagem, no simbólico e também no imaginário através de sua própria posição subjetiva. E, se toda arte tem esse ponto como fundamental, a partir da arte moderna há um movimento de levar a uma radicalidade as experimentações de seus próprios limites, extrapolando-se o que já estava em jogo no fazer artístico e na relação do sujeito com o objeto pelas artes, o que no campo musical tem em Schönberg seu marco inaugural. Como, então, essas transformações podem ressoar no sujeito, interessando à psicanálise e fazendo-a caminhar? Como isso que ressoa e se transmite na música pode retornar para a psicanálise evidenciando efeitos da voz na fundação do sujeito e nos encaminhamentos possíveis que ele dará face ao continuum real que, mesmo silenciado, está sempre em causa para o falante? Poderia o paradigma musical a partir do pós-tonalismo ser tomado pelo analista como um interlocutor para refletir sobre a clínica e mesmo a teoria? A partir da lógica borromeana trazida pela psicanálise de Lacan, poderíamos supor que a música pós-tonal se valeria menos da dimensão imaginária e representacional da estrutura linguageira da qual a música se utiliza, fazendo com que o simbólico se articule ao real revelando-o com maior intensidade? Poderia ela assim radicalizar os efeitos que toda obra de arte porta em si de promover um encontro de cada sujeito com o vazio que o habita, invocando um recomeço em sua radicalidade? Proponho, inicialmente, que a música atua psiquicamente nos sujeitos que se abrem a escutá-la e que são por ela tocados, podendo, em casos especiais, possibilitar giros estruturais no sujeito. Ainda que pontualmente, ela pode mudar a posição subjetiva dos sujeitos, propiciando um modo novo de enlaçar e fazer ressoar os registros heterogêneos que o compõem. Esse aspecto musical, veiculado e transmitido pela voz, sobretudo a materna, desde as marcas por ela deixadas através de lalíngua, será posteriormente reorganizado inconscientemente pelo sujeito através da linguagem, e utilizado, eventualmente, na criação poética com o objeto voz na música. Deste modo, a música musica, isto na medida em que há no sujeito e em sua constituição uma abertura para a musicalidade e para o musical, o que tem ligação direta com a incidência do ritmo e a temporalidade da fala materna, primeiramente 19 ouvida em sua dimensão de musicalidade, quando da emergência do sujeito. Tais aspectos da voz da mãe, entendida aqui enquanto função, promoverão um corte no continuum sonoro real do bebê, marcando o corpo deste com o desejo enigmático que ela transmite. Isso faz com que um convite seja lançado ao infans para que ele saia do estado de um gozo absoluto para, através de uma perda estrutural, poder emergir. Isto contornando o vazio que aí se instaura a partir da linguagem. Se é comum a toda expressão artística uma experiência com o vazio, ou seja, uma organização em torno do furo real da linguagem, fazendo com que a obra seja elevada à dignidade de Coisa, como propõe Lacan (1959-1960/1997, p. 140-141) no seminário A ética da psicanálise, e se a linguagem nos oferece um distanciamento necessário à Coisa (Ibid., p. 89), na música pós-tonal esta característica se apresenta radicalizada justamente pelos contornos mais flexíveis e imprevisíveis de sua estrutura lingüística. Nesse caso, poderíamos pensar que há o estabelecimento de uma outra lógica na criação artística, principalmente no que se refere à temática da escrita. Não simplesmente a escrita literária, mas a escrita no sentido lacaniano, e mesmo freudiano, de escrita do inconsciente a partir do limite real que se impõe ao sujeito. Colocando-o em movimento e podendo levá-lo à criação. Tratar-se-ia aí da escrita de um radicalmente novo, de um significante novo para o sujeito. Buscarei, portanto, percorrer temas caros à psicanálise freudiana e, especialmente, à lacaniana, assim como determinados aspectos da música pós-tonal, tomando o cuidado para não sobrepô-los ou confundi-los, mantendo a heterogeneidade de seus campos de origem. O ponto de aproximação entre eles se dará pelo inarticulado que ambos visam, seja a psicanálise ao lidar com o real, seja a música pós-tonal ao propor novos limites ao que é possível de ser representado acusticamente. É sobre esse inarticulado, este inaudito, que a voz porta, que na obra musical nos lança para além dos sentidos, que me deterei aqui. Para isso, procurarei pensar a voz em sua dimensão litoral, indicando, assim, um limite que pode levar a uma torção entre pontos heterogêneos, a saber: sujeito/falasser e Outro, lalíngua e fala, letra e significante, corpo e linguagem, desejo e angústia, satisfação e gozo... Procurarei, com isso, destacar os pontos em que, através da voz, real, simbólico e imaginário se tocam em ressonância, podendo colocar a pulsão invocante em ação em re-movimento de alienação e separação do sujeito para com o Outro, movimento este que, de saída, não é estanque e que nos exige novos esforços e posicionamentos. Movimento que exige que se musique a vida. 20 CAPÍTULO I UMA ESCUTA QUE INTERROGA: INVOCAÇÕES A psicanálise permite ouvir significantes inconscientes. A música permite escutar a articulação que há entre significantes, os significantes puros que são as notas de música. Essa articulação tem um nome: ritmo. Há imediatamente um enigma. Se a proposta que faço é verdadeira, a de que a música permite ouvir um ritmo, é porque esse ritmo, essa escansão, preexiste, e um terceiro ouvido em nós o ouve. Alain Didier-Weill Um enigma que invoca/evoca o inefável: a música. Um enigma que relança – e reenlace, talvez – o inefável poético da vida. Que traz a dimensão de um latente despertar. Que exige uma resposta. Que nos relembra que o sujeito já é, de saída, uma resposta a um enigma. Um enigma que nos pode ser dado a ouvir sob as mais diversas tessituras de simbólico, real e imaginário em suas infinitas combinações ressonantes. E que é transmitido pela criação de um sujeito que, em uma abertura de artesão ao real que pulsa e fura e invoca, cunha um objeto novo feito de tempo, espaço e notas, de letras e de significantes, de lalíngua6, de sede de musicar a linguagem. Enigma. Escuta. A cada vez, podendo ser de uma maneira nova. Ou, ao menos, invocando um novo. Escutar um sujeito a vir. Escutar, no real, um sujeito que é assim invocado a se fazer. Música. Enigma. Escuta-se na música um fazer possível que poetiza o impossível do real de modo que simbólico e imaginário são forçados aos seus limites, limites reais, de onde partem, e, nesse ato, se reenlaçam e ressoam uns sobre os outros. Musica-se porque há um enigma originário. Musica-se porque esse enigma continua a pulsar, a ecoar, a invocar, a exigir criações. E o que se escuta nesse musicar é que o real, ao encontrar o corpo do infans sexualizado pela linguagem, pôde passar de uma pulsação que invoca a um ritmo invocante que humaniza. Humanizando, o real insiste em cada sujeito na direção de um mais além. A música, assim, interroga sobre uma pulsação do real, sobre um impossível de apreender tal pulsação, e sobre a possibilidade de, a partir de uma perda, a partir de um ponto de não escuta dessa pulsação, se construir um ritmo que singulariza. Um ritmo que se faz pela possibilidade de falar: falar é passar de ouvinte da voz do Outro a um sujeito que, por não 6 Lalangue. Dentre as duas traduções comumente usadas em nosso idioma, alíngua e lalíngua, adotarei a última, seguindo a proposta de Haroldo de Campos (1989, p. 14): “Diferentemente do artigo feminino francês (LA), o equivalente (a) em português, quando justaposto a uma palavra, pode confundir-se com o prefixo de negação, de privação (...). Ora, LALANGUE, pode-se dizer, é o oposto de não-língua, de privação de língua. É antes uma língua enfatizada, uma língua tensionada pela ‘função poética’”. 21 mais tudo ouvir, por se fazer surdo em um ponto à voz do Outro, pode responder com uma voz própria que, da perda, se faz ato. Parto, então, de alguns espantos frente à música: O que se escuta quando se escuta música? O que essa escuta remete ao ato em si de escutar? O que tal escuta pode indicar da escuta à qual o analista é chamado a fazer e que abre a via do próprio analisante escutar algo de si de uma forma nova? Com a música pós-tonal, é possível apreender uma lógica de se escutar cada fala a partir de singularidade. Escutar cada fala que nos chega como uma peça musical, mais especificamente, uma peça musical sem tom, com múltiplos tons, com modulações, com aberturas ao acaso, ao imprevisível, ao novo em sua radicalidade. Uma peça musical pós-tonal, schönbergeniana, cagiana... Uma peça musical de um sujeito que, reescutando um vestígio da pulsação do real, é chamado a musicar sua vida, a um recomeço, a novamente dizer sim à invocação da voz e se recolocar em movimento, em um ritmo singular, face a seu desejo. Para avançar neste sentido, proponho me deter inicialmente nas modificações do manejo da linguagem musical efetuados por Arnold Schönberg, cuja escrita composicional trouxe ainda mais fortemente uma abertura para o real a partir da criação artística. * musicar musique air ar music erre r r musicar ar o ar no espaço de um tempo l’acte l’air ler 22 1.1 – O real que pulsa e a abertura da música pós-tonal: o paradigma de Schönberg Outro ponto a ser futuramente lembrado é o fato de Lacan nos ter iniciado na teoria do significante do Nome-do-Pai, que é um significante que cria hierarquia, o Um, podendo por isso ser comparado à tonalidade, em que há um ordenamento (...). Quando Schönberg rompeu a tonalidade, acreditando que assim se tornava louco, o que ele fez além de liberar 12 sons, que se tornavam iguais uns aos outros, não mais unificados como os 12 deuses do Olimpo? Alain Didier-Weill Pois os mistérios são um reflexo do Inconcebível. Um reflexo imperfeito, quer dizer, humano. Mas se através deles nós aprendermos somente a tomar o Inconcebível por possível, nós nos aproximaremos de Deus, porque não nos exigiremos mais compreendê-lo. Porque não queremos mais mensurá-lo com nossa entendimento, criticá-lo, negá-lo, posto que não podemos reduzilo à essa insuficiência humana que é nossa clareza7. Arnold Schönberg O campo da música se estabelece a partir do corte e de uma escolha frente ao sonoro, que faz com que o continuun sonoro seja perdido na medida em que uma linguagem musical é estabelecida, com regras e leis específicas. A música, ao lado da poesia e do teatro, como indica Lacoue-Labarthe (2005, p. 20-21) acerca da concepção platônica sobre o artístico, pode ser pensada como uma arte para escutar, ao passo que as artes plásticas (pintura, arquitetura e escultura) seriam “artes do silêncio”, que interessam à visão. Aquilo que a música veicula, como é possível destacar desde a Grécia Antiga até os dias atuais, é dado a ouvir. O que ela transmite diz respeito ao que, na lógica do sujeito, é da ordem da voz, do imaterial da voz que é capaz de ecoar no sujeito, chamando-o a advir e, em momentos posteriores, a se recolocar em relação a seu próprio desejo e gozo. Porém, o que cada época poderá veicular a partir da música terá suas especificidades, sendo estas que podem nos ensinar sobre o sujeito com o qual a psicanálise opera, o sujeito do inconsciente, tal qual foi descoberto por Freud e conceituado por Lacan. E, dentre as diversas correntes da tradição musical, aqui se escolheu a música pós-tonal naquilo como paradigma que radicaliza o que a música modal e a tonal já apresentam. 7 Proponho a seguinte tradução a este trecho, ressaltando que escolhi metodologicamente apresentar nesta tese em notas de rodapé os originais consultados em francês, quando não há publicação dos mesmos em português, deixando as traduções livres por mim realizadas no corpo do texto: “Car les mystères sont un reflet de l’Inconcevable. Un reflet imparfait, c’est-àdire humain. Mais si à travers eux nous apprenons seulement à tenir l’Inconcevable pour possible, nous nous approchons de Dieu, parce que nous n’exigeons plus de le comprendre. Parce que nous ne voulons plus le mesurer avec notre entendement, le critiquer, le nier, puisque nous ne pouvons pas le réduire à cette insuffisance humaine que est notre clarté”. 23 A música pós-tonal, conforme apresenta Cope (2001, p. 1-2) rompe com três conceitos fundamentais da música tonal: um primeiro sobre a clave e a definição de uma tonalidade musical pela utilização de escalas pré-determinadas construídas a partir de intervalos ordenados de sons em relação entre si; um segundo acerca das relações de estabilidade (consonância) e tensão (dissonância) entre as notas e o material musical; e um terceiro sobre a hierarquia entre as notas, que exige a resolução da obra a partir da tônica – nota que organiza a escala e as relações desta. Ao quebrar tais parâmetros, a composição musical estabelece uma nova forma de lidar com o material sonoro, expandindo a linguagem da música. E é sobretudo o terceiro conceito que é rompido com a música pós-tonal que nos permite uma aproximação com aquilo que a psicanálise coloca em cena, desde a experiência clínica quanto sua escrita teórica. A não-hierarquia das notas musicais, fazendo com que cada uma delas seja ouvida com igual valor e que a relação entre elas seja apreendida em um après-coup, em muito se aproxima com a escuta clínica proposta por Freud e Lacan para além de uma ordenação prévia ou de um sentido. O que a música dá a ouvir em diferentes formas ao longo de sua história toca um ponto em comum com a psicanálise, acerca do real, do que escapa ao sentido e à simbolização. Ou seja, sobre aquilo que, inefável e impossível de ser representado, dito ou musicado, impõe os próprios atos de falar e musicar. O que pode indicar ao psicanalista como o sujeito, sendo ele mesmo resposta ao real, busca cunhar eticamente um modo de responder ao enigma que o constitui a partir da criação artística pelo contorno do objeto voz. Neste ato, ocorre a transmissão da verdade do sujeito de uma maneira cifrada, revelando como esta se organiza. Faz-se necessário, assim, avançar em aspectos delimitados por Lacan sobre os registros do real, do simbólico e do imaginário, que, entrelaçados e não hierarquizados, constituem o sujeito. Bem como é igualmente preciso enfocar a temática da voz naquilo que ela invoca um sujeito a advir e nos subseqüentes manejos estruturais que a ele será possível fazer. A voz percorre, em surdina, quase que a totalidade da obra lacaniana, voltando-se às construções freudianas presentes desde o Projeto, e avançando-as consideravelmente. A partir de uma perspectiva lacaniana, é possível entender que um saber-fazer com a voz possibilita não apenas sua transmissão, em seu aspecto real, mas igualmente um distanciamento, pelo simbólico e pela fantasia (articulando simbólico e imaginário), ao que de real ela veicula. A esta idéia, evoco as considerações de Miller (2000, p. 68) sobre a música como a arte do tempo, capaz de regular as incidências imprevisíveis do objeto voz. Sobre isso, me pergunto se não podemos afirmar que o real se apresenta de maneira mais intensa nas obras pós-tonais, por suas características de imprevisibilidade e não obrigatoriedade de temas e 24 frases melódicas, o que, na música tonal, facilitam uma síntese, memorização e identificação com a obra (Schönberg, 1967, p. 8), podendo ter um papel tranqüilizador (Boulez, 1992, p. 100). Assim, neste capítulo, pretendo articular música e psicanálise a partir do que uma buscou expressar e a outra delimitar: a constituição de uma estrutura como resposta ao real. Por outro lado, em Freud, com a criação da psicanálise e a descoberta do sujeito do inconsciente, descentrado e irredutível a ser de todo representado, há uma ruptura radical a toda tradição de pensamento e de prática clínica até então efetuada. Se Freud pôde, a partir do encontro com a histeria, ouvir a expressão de algo que não se submetia à lógica consciente até então delimitada e enfatizada com o advento da Modernidade, no campo da arte musical, o mesmo, sob diferentes formas, foi também ouvido e expresso por diversos compositores, principalmente a partir de Claude Debussy8, mas, sobretudo, com Arnold Schönberg. Com este, efetua-se uma ruptura com todos os sistemas de escritas musicais até então existentes, o que faz surgir a possibilidade de se escutar de uma maneira nova algo sempre presente na música, que nela insiste, e que se apresenta como radicalmente estranho e inquietante. Escutando a música de Schönberg, podemos observar que aquilo que Freud descobriu estava sendo expresso pela via de um questionamento e de experimentações com o som que proporcionaram um modo de saber-fazer novo com a voz a partir de parâmetros até então não utilizados no campo musical. A Modernidade, ao mesmo tempo em que forjou a concepção de uma substância pensante subsumida a um eu, através da máxima cartesiana “penso, logo sou”, produziu também, pela via do dejeto, o sujeito do inconsciente, que somente assim pôde ser formalizado a partir da teoria freudiana, ainda que a leitura de tal formalização só tenha sido feita com a psicanálise de Lacan. Freud pôde, através da instauração do método da associação livre com as histéricas, colher na fala evidências de que o psiquismo não poderia mais ser reduzido à consciência, sendo preponderante no humano o inconsciente e o pulsional, como 8 Não me parece por acaso que seja sobretudo a música de Debussy que seja ouvida no primeiro e único filme mudo experimental brasileiro, Limite, dirigido em 1931 por Mário Peixoto e considerado pelos críticos da época como cinema de vanguarda. É a música moderna, de Debussy, Satie, Franck, Borodin, etc., que dá voz às personagens em uma narrativa na qual os limites e a falta de sentido da existência humana são questionados e abordados a partir de uma estética visual atravessada por planos contínuos e fluídos, bem como por cortes abruptos da câmera, predominantemente “guiados”, ritmados e costurados pela música. Peixoto definiu seu filme como um “grito” que, se afirnando “como um diapasão”, exige a não a compreensão mas a ressonância. O filme se inicia com a imagem de uma mulher que olha o expectador, tendo à altura de seu pescoço, de sua garganta, as mãos algemadas de um homem que a “abraça”. Uma cena que se repete, com modificações e deslizamentos, durante o filme, e que é sucedida pela cena de um naufrágio de três pessoas à deriva no mar. Os limites temporais são igualmente questionados; é a atemporalidade que se mostra determinante nesta obra, que, a partir das experimentações cinematográficas, aproximando-se da criação da música moderna, explicita a condição do sujeito no fio e no limite da linguagem. 25 bem se faz notar no campo da estética pelo fenômeno do estranho. Com isso, ocorreu um descentramento no sujeito em relação ao paradigma cartesiano, sobretudo com a delimitação da segunda tópica freudiana, quando o inconsciente deixou de ser uma instancia psíquica e passou a ser uma qualidade dos processos psíquicos, presente mesmo no eu, que passou a abarcar também os processos conscientes. Eu, isso e supereu apresentam características inconscientes, e o que governa o psiquismo não é um mecanismo econômico que visa a estabilidade através da eliminação das tensões e da busca do prazer. O mais além do princípio de prazer, regulado pela pulsão de morte e visando a obtenção de um objeto absoluto perdido desde sempre, das Ding, apresenta desde a obra freudiana a incidência de um impossível em nossa estrutura, de um irrepresentável, que faz fissura em toda e qualquer tentativa de unidade imagética ou mesmo lingüística. Com a experiência psicanalítica freudiana, aprendemos que a temporalidade para os falantes é de uma ordem não cronológica, tendo seus efeitos apenas no a posteriori. Não é, portanto, por acaso que os efeitos da ruptura cartesiana para com o pensamento e a ciência antiga, inaugurando o sujeito da Modernidade, pôde apenas ser colhido com um intervalo de séculos, e justamente através de sintomas, que revelaram a Freud a existência e a dinâmica do inconsciente, ou através dos limites formais de campos que colocaram em xeque os paradigmas de uma dada cultura, como nas artes. O sofrimento de um sujeito e a exaustão de uma tradição artística colocam em cena a incidência de algo que escapa à representação, à unidade, à consciência, e deixando transparecer que, em ambos os casos, há uma posição ética do sujeito do inconsciente que pode ser vislumbrada tanto na experiência analítica quanto por aquilo que a estética apresenta e nos ensina. Na música, e quase que numa sincronicidade histórica, a queda da centralidade fez surgir um ruidoso processo de desconstrução, reconstrução e experimentação com a linguagem musical e seus elementos. A ruptura com o tonalismo a partir da década de 1900 efetuada por Schönberg e seu atonalismo livre, seguindo-se à formalização de uma não hierarquia dos elementos musicais elementares, as notas, com a criação do dodecafonismo na década de 1920, fez com que a concepção de uma tensão e uma resolução como regra para o manejo de tais elementos fosse abolida9. Chama a atenção o fato de que foi neste mesmo período, apenas três anos antes de Schönberg, que a concepção freudiana acerca do aspecto imperioso do humano ganha maior destaque com a reformulação pulsional em 1920. Cabe ressaltar que ambas estas revoluções ocorreram após o término da I Guerra Mundial, o que 9 Ainda que momentaneamente e por certas correntes da música pós-tonal, uma vez que o tonalismo continuou e continua largamente a ser utilizado como parâmetro de composição. 26 não pode ser entendido como uma ingênua coincidência. É evidente, em especial nos escritos freudianos sobre a cultura após esse evento, o quanto a guerra revelou explosivamente um aspecto caótico e irruptivo que subsistia mais silenciosamente em cada sujeito e na própria civilização10. Diante deste aspecto disruptivo, que remete a um inaudito e impronunciável, a linguagem, também a musical, será sempre precária. E tal precariedade é bem destacada pelo compositor brasileiro Livio Tragtenberg (1991, p. 12): “Sob o signo de uma precariedade e fragmentação constante se articula um discurso possível. (...) Sob o signo da fragmentação, os estilos e fórmulas pessoais de concepção do material musical se proliferam”, ao que ele complementa, ao falar da música contemporânea: Ainda hoje a criação e concepção musical se organizam sobre dois eixos principais: o desejo de estruturação e articulação linear de um sistema, através de um ou mais princípios unificadores (como a série foi para a música dodecafônica segundo Schönberg); e a nãolinearidade como elemento constitutivo da elaboração estrutural, seja como estrutura aberta (acaso), assimetria ou aplicação de mais de um tipo de sistema referencial e construtivo. Os limites da representação formal são levados a seu ponto máximo na arte moderna e contemporânea, evidenciando a falha inerente ao representacional, assim como também à imagem, à palavra e ao sonoro, trazendo mais radicalmente a dimensão inconsciente que toda arte põe em cena e revelando o vazio estrutural que organiza toda obra humana. Podemos mesmo dizer que o que se evidencia é a falha do significante em se fazer, de todo, semblante. Com isso, a dimensão de gozo na música que se cria sob tais parâmetros fica mais evidenciada. No encontro com as obras de arte modernas, o sujeito é convocado em sua divisão, para além de uma pretensa unidade ou racionalidade. É de uma perda, de uma queda que se trata, colocando em xeque a posição de mestria do eu e daquilo que é tomado como uma realidade compartilhada, ou como imagem ou som ou escrito harmônico. E se a Modernidade teve como efeitos um novo paradigma estético e mesmo ético nas artes, ela também fez ser escutada uma outra cena que causa os sujeitos. Ao defender a existência e a legitimidade do conceito de inconsciente, Freud (1915/2006b, p. 163) evidencia o calcanhar de Aquiles do cogito cartesiano ao sustentar que “o eu não é mais senhor na sua própria casa” 10 Também é significativo que tanto na psicanálise quanto na música, esta dimensão revolucionária e inquietante que tanto Freud quanto Schönberg desvelaram em suas obras tenham sido, posteriormente, submetidos a uma racionalização que buscou dar novamente lugar à uma certa centralidade. Os pós-freudianos com sua ênfase no eu, e as próprias regras schönbergenianas de lidar com a série criada no dodecafonismo. Neste sentido, meu interesse é o de avançar até meados da década de 1940 e a de 1950 quando, com a teoria de Lacan e a música de John Cage, houve uma retomada da característica de descentralidade do sujeito e na obra musical. 27 (Freud, 1917[1916-17], p. 261). O “penso, logo sou” de Descartes cairá e deixará transparecer o “sou onde não penso” de Lacan, o Isso freudiano, ou mesmo o irrepresentável nas artes. Ao tirar conseqüências da máxima freudiana acima citada, relacionando-a ao espaço e à imagem nas artes plásticas, a psicanalista Tania Rivera (2008, p. 223) traça este paralelo lógico entre a Modernidade nas artes e a criação da psicanálise, paralelo que avança igualmente nos nossos tempos atuais a partir da teoria lacaniana. Não é por acaso que Merleau-Ponty toma o élan de sua reflexão da pintura desse grande contemporâneo de Freud que foi Paul Cézanne. Dos contornos ilusórios que definem a priori a imagem, das coordenadas geométricas que predeterminam o espaço mimético, Cézanne passa, com suas pinceladas de pura cor, seus pequenos azuis, seus pequenos marrons, a fazer de um quadro algo diferente de um espelho da realidade. Ele faz da pintura um depósito de algo que convoca o sujeito a se reconstituir, dividido, assujeitado a um espaço não mais pacífico, mas vertiginoso, em que ele próprio quase cai. É disso que trata a arte moderna, que surge no mesmo momento que a psicanálise, e tratará a arte contemporânea, desenvolvendo-se em torno das mesmas questões que o pensamento lacaniano. Nas artes plásticas, podemos localizar igualmente um rompimento com a idéia clássica de representação, sobretudo em movimentos e artistas como o impressionismo de Manet e o pós-impressionismo de Cézanne, Gauguin e Van Gogh, o expressionismo de Kandinsky – intimamente próximo de Schönberg – que passaram a experimentar as concepções tradicionais de espaço, de cores e da necessidade de representar a realidade através da figurabilidade. Destas correntes, decorreram as grandes vanguardas do século XX, iniciandose com o fauvismo na França, e abrindo a gama de experimentações com diferentes aspectos pictográficos, e mesmo ideológicos, com o cubismo, o futurismo, o construtivismo, o surrealismo, a antiarte de Duchamp, o abstracionismo, o minimalismo, a pop arte... Há nesses movimentos, em especial os que inauguraram a arte moderna, um afastamento da tendência a se representar o que é visto, incluindo, assim, o olhar – tanto o do artista quanto o do espectador, que é convocado a olhar a obra para além dos parâmetros da unificação ou da harmonização e da proximidade com a dita realidade. A representação passa a ser questionada, colocando em questão a imagem, o espaço e o objeto. E podemos ler com a psicanálise que se a representação é questionada é na medida em que ela não dá conta de enquadrar o real que nela opera. O mesmo se pode observar é no campo literário com expoentes que mudaram substancialmente, cada um a seu estilo, o curso da criação literária, tais como James Joyce, Virgínia Wolf, Erza Pound, Paul Valèry, Stéphane Mallarmé, Franz Kafka, dentre outros. Na música, tal explosão dos limites da representação é ouvida em Schönberg, que abriu o leque para as principais vertentes na música moderna e contemporânea (música atonal, 28 serial, dodecafônica, politonal, minimalista, concreta, eletroacústica, experimental, dentre outras). A música pós-tonal busca se aproximar o máximo possível do impossível de tocar, musicar, interpretar e ouvir. Ela busca dar a ouvir um novo, mas sem decretar, com isso, o fim da produção musical que lhe é anterior. É mesmo uma das principais características do campo musical a partir de Schönberg a co-existência de modos distintos de criação, leitura, interpretação e escuta. É Schönberg (1995, p.: 40) quem elucida: “Sim, quando uma arte nova busca e encontra novos meios de expressão, quase tudo o que já foi adquirido é, em um primeiro tempo, enviado ao diabo; ao menos em aparência; pois, na verdade, isso permanece; mas de uma maneira diferente”11. Uma maneira diferente que pode ser lida como os efeitos do novo paradigma atuando retroativamente nos que já se estabeleceram, como sustenta Barico (1998) acerca de uma interpretação paradigmaticamente moderna. Entretanto, é importante frisar que esta ruptura com o tonalismo pressupõe uma ruptura anterior e uma certa recuperação de aspectos musicais que foram deixados de ser trabalhados neste sistema, avançando, ainda, para aspectos outros até então nunca ouvidos. Dessa forma, o próprio tonalismo, constituído sob a base dos estudos dos sons musicais, dos acordes hierarquizados e das leis destes, assim como sobre a acústica, formando um sistema lógico e racional, se estabeleceu como um rompimento com toda uma tradição que o antecedeu, o sistema modal. Neste, há uma primeira organização de notas escolhidas do campo “natural”, sonoro, fazendo com que elas sirvam de base fixa para a criação das músicas, sendo que elas se encontram em relação entre si dentro de uma escala. Nos modos, as escalas, sejam as de cinco notas (pentatônica) ou as de 7 notas (diatônicas), organizam a música a partir de uma nota fundamental, que, entretanto, não apresenta, como a tônica, uma tensão a ser resolvida com o desenvolvimento da música, dela partindo e a ela retornando. Há o estabelecimento anterior, neste caso, dos intervalos entre uma nota e outra em cada um dos modos, sem que ocorra a inclusão de “acidentes”, de alterações, que mudem esta distância. Será mesmo pela inclusão desta idéia de acidentes, flexibilizando a relação entre as notas e expandindo a linguagem musical com aquilo que lhe escapa, que a música tonal será estabelecida. Aquilo que pode ser representado, escutado, assimilado pelo sujeito de cada cultura tende a mudar consideravelmente com as experimentações artísticas que se direcionam a um inédito, a um nunca ouvido, no caso da música. As dissonâncias, ruídos, indizíveis, inaudíveis, o que está fora da significação, nada disso é imutável. O que permanece sempre é 11 “Oui, quand un art neuf cherche et trouve de nouveaux moyens d’expression, presque tout ce qui a déjà été acquis est, dans un premier temps, envoyé au diable ; du moins en apparence ; car en vérité, cela demeure ; mais d’une manière différente”. 29 um limite, um impossível de representar. A história da música ocidental evidencia este trabalho sobre a linguagem norteado e revirado por encontros com o real, fazendo-a se voltar sobre ela mesma em uma recriação de seus limites. A concepção medieval conhecida como diabolus in musica (o diabo na música) soa bastante emblemática. Com a consolidação do sistema tonal e o estabelecimento da escala de sete notas (escala diatônica) como base da criação musical, houve uma tentativa de abolição de sons dissonantes, em particular um composto por três tons, o trítono – intervalo de quarta aumentada ou de quinta diminuída. Tal intervalo tem uma particularidade especial: ele provoca sempre uma tensão que exige uma resolução. Portanto, ele evoca e solicita necessariamente um movimento espaço-temporal ascendente ou descendente para formar um novo intervalo. Na época medieval, esta tensão era considerada insuportável, tendo recebido o nome de diabolus in musica e sendo considerada perigosa, não apenas tendo sida evitada como proibida. Há explicitamente nesta proibição implicações políticas e sociais, uma vez que, com isso, a Igreja e o Estado passavam a ter controle sobre o sujeito em diferentes esferas, desde a cívica, religiosa e mesmo quanto ao acesso às práticas culturais e de entretenimento. Porém, ela mostra igualmente uma impossibilidade do sujeito de se aproximar excessivamente de um ponto de tensão “pura”, ou, dito de outro modo, de uma fissura na própria linguagem, que abre para o real. Ainda após a utilização e incorporação do trítono pela linguagem musical, sobretudo a partir de Bach e mais fortemente com o Romantismo, ele se apresenta como um ponto limítrofe desta linguagem, uma torção que faz apelo à harmonização e à resolução, à estabilização dos contornos da obra. Retomando Schönberg, a ruptura por ele proposta aos valores musicais vigentes até o fim do século XIX se mostra de tal forma crucial e inédita que a crítica musical da época, como bem demonstra o musicólogo Esteban Buch (2006), chega a denominá-lo “o caso Schönberg”, fazendo referência ao ensaio de Nietsche sobre O caso Wagner12. Buch, entretanto, não eleva Schönberg a caso por seus aspectos psicológicos, por tomá-lo como exemplo sintomático de uma cultura da qual se origina, ou por representante de um conflito desta cultura. Escutando atentamente as primeiras reações da critica vienense às composições atonais de Schönberg – extremamente agressivas e refratárias –, bem como o público em 12 E que associo igualmente ao ensaio O caso Nietzsche-Wagner, de Max Graf – pai de Herbert Graf, conhecido entre os psicanalistas como o pequeno Hanns de Freud, e freqüentador da Sociedade da quarta-feira igualmente criada e mantida pelo inventor da psicanálise. Neste texto, Graf (1999) busca analisar a obra de Wagner tanto por suas características psicológicas, baseando-se em sua apreensão estética do ensino freudiano, quanto por seu lugar na cultura, recorrendo, parar tanto, a Nietzsche, não apenas a seu ensaio sobre Wagner como também à influência deste filósofo no pensamento do século XIX. 30 geral13, Buch localiza neste compositor o nascimento da vanguarda musical, considerando seus precedentes e seus efeitos na música ocidental e no modo de pensar o homem moderno. Destaco um trecho crucial desta obra. De acordo com Buch (2006, p. 7): Arnold Schönberg é de saída um nome com ressonâncias misteriosas. Sua obra permanece até hoje mal conhecida, mesmo mal amada, em todo caso muito pouco executada. Entretanto, sua importância histórica é incontestável, que resumem estes dois termos esotéricos: atonalismo, dodecafonismo. Enquanto herói do grande tema sobre a “dissolução da tonalidade”, ele domina, do alto de sua pequena figura calva com olhos penetrantes, o cânone musical do século XX14. Em Schönberg é ainda mais evidente que as artes podem propiciar um encontro com o real, convocando os sujeitos a partir de uma posição ética. Schönberg radicaliza o limite do audível, do já representado pelo discurso musical até então predominante, mostrando nesse limite que cada peça musical tem sua própria lógica, ligada à dinâmica particular do simbólico – nele inscrita –, porém, dando-se a ouvir em sua singularidade, em suas diferenças que assim a tornam singular. Tal lógica é ela também expressa nas tramas em que a peça musical se constrói e que permanecem em ação a cada escuta, a cada execução, a cada vez que ela se faz presente. A proposta inicial de Schönberg, denominada pelos musicólogos como atonalismo livre, tem por vocação primordial liberar a música da tonalidade e da necessidade formal de um sistema lógico de construção e composição estabelecidos a priori. Philippe Albèra (1995, p. 15), na introdução francesa da correspondência de Schönberg com Vassili Kandinsky e Ferruccio Busoni, afirma que o que se busca com esse novo ato de escrita musical é a expressão de um aspecto ilógico, inconsciente, em fluxo, como nos processos de escrita em associação livre presente na literatura moderna, que apresenta pelas dissonâncias uma abertura, uma diversidade, uma flexibilidade, uma liberdade da música ela mesma. A expressão da musica coloca-se, assim, para além dos contornos das formas musicais. 13 Sobre isso, Schönberg (1995, p. 136) chega a dizer, em carta a Kandinsky, que: “É provisoriamente recusado às minhas obras de ganhar as massas; elas atingirão mais facilmente os indivíduos. Estes indivíduos de grande valor são quem somente conta para mim. É uma grande alegria para mim que seja um artista praticando uma arte diferente quem encontre correspondências comigo. Há certamente, entre os milhares que pesquisam atualmente, uma tal relação desconhecida, um tal ponto em comum, que não são por certo fatos do acaso” (“Il est provisoirement refusé à mes œuvres de gagner la faveur des massas ; elles n’en atteindront que plus facilement les individus. Ces individus de grande valeur qui sels comptent pour moi. C’est une très grande joie pour moi que ce soit un artiste pratiquant un art différent qui trouve des correspondances avec moi. Il y a sûrement, entre les meilleurs de ceux qui cherchent aujourd’hui, telle relation inconnue, tel point commun, qui ne sont certes pas le fait du hasard.”). 14 “Arnold Schoenberg, c’est d’abord un nom aux résonances mystérieuses. Son ouvre reste à ce jour mal connue, voire mal aimée, en tout cas assez peu jouée. Pourtant, son importance pour l’histoire de la musique est incontestable, que résument ces deux termes ésotériques : atonalisme, dodécaphonisme. En tant que héros du grand récit sur la « dissolution de la tonalité », il domine, du haut de sa petite figure chauve aux yeux perçants, le canon musical du XXe siècle”. 31 Passemos a palavra ao próprio Schönberg (1995 p. 35-36), em carta a Busoni, em agosto de 1909: Eu aspiro a: uma liberação completa de todas as formas de todos os símbolos e da coerência e da lógica. Então: acabar com o “trabalho motívico” Acabar com a harmonia como cimento ou como pedra a edificar de uma arquitetura. A harmonia é expressão e nada de outro. Em seguida: Acabar com o pathos! Acabar com as partituras intermináveis que pesam toneladas; com as torres, os rochedos edificados e construídos e outras fatras gigantescas. Minha música deve ser breve. Concisa! Em duas notas: não mais construir, mas “exprimir”!! E o resultado que espero: nada mais de emoções estáveis, estilizadas, estéreis. Isso não existe nas pessoas: é impossível para uma pessoa de ter apenas uma emoção por vez. Temos milhares ao mesmo tempo. E esses milhares de emoções não se deixam facilmente adicionar como uma maçã com uma pêra. Elas se dispersam. E essa diversidade, essa multiplicidade, esse ilogismo que mostram nossos sentidos, esse ilogismo do qual nos dão provas as associações, que o menor afluxo de sangue, a menor reação nervosa ou dos sentidos apresentam, é isso o que eu gostaria de ter na minha música. Ela deveria ser a expressão do sentimento, e no que o sentimento é na realidade, ele que nos coloca em ralação com nosso subconsciente, e não como um híbrido monstruoso de sentimentos e de “lógica consciente”. Nesse momento, já fiz minha confissão e podem me queimar15. A concisão e a brevidade, como em um haicai, abrem para um encontro em potencial com um fluxo contínuo, tal como o do real, que se deixa mostrar na medida em que toca e ressoa nas tramas linguageiras do trabalho artístico. O estilo aforístico, como igualmente é chamado o atonalismo livre16, busca a expressão de um maior número de elementos possíveis, e dissonantes, em um tempo breve, sem se fechar em si, mas com uma 15 “J’aspire à : une libération complète/de toutes les formes/de tous les symboles/de la cohérence et/de la logique./Donc :/en finir avec « le travail motivique »/En finir avec l’harmonie comme/ciment ou comme pierre à bâtir d’une architecture./L’harmonie est expession/et rien d’autre./Ensuite :/En finir avec le pathos !/En finir avec les partitions interminables qui pèsent des tonnes ;/avec les tours, les rochers édifiés et construits/et autres fatras gigantesques./Ma musique doit/être brève./Concise ! En deux notes : non pas construire, mais « exprimer » !!/Et le résultat que j’espère:/pas d’émotions stables, stylisées et stériles./Cela n’existe pas chez les gens:/Il est impossible pour une personne de n’avoir qu’une émotion à la fois./On en a des milliers en même temps. Et ces milliers d’émotions ne se laissent pas plus facilement additionner qu’une pomme avec une poire. Elles se dispersent./Et cette diversité, cette multiplicité, cet illogisme que montrent nos ses, cet illogisme dont font preuve les associations, que le moindre afflux de sang, la moindre réaction nerveuse ou celle des sens présentent, c’est cela que j’aimerais avoir dans ma musique./Elle devrait être l’expression du sentiment, tel que le sentiment est en réalité, lui qui nous met en rapport avec notre subconscient, et non pas comme un hybride monstrueux de sentiments et de « logique conscient »./Maintenant, j’ai fait ma confession et l’on peut me brûler”. 16 Uma vez que o próprio Schönberg se opunha à expressão “atonalismo”, que daria margens a pensar em uma negação do tom, enquanto que o que se mostra como direção da música a partir deste momento é um além da lógica e dos cânones da tonalidade. 32 lógica própria que pode ser apreendida pela escuta. A este movimento, segue-se o dodecafonismo, que se baseia na composição a partir de utilização de 12 sons – os doze semitons presentes nas sete notas musicais sistematizadas, sem que haja, contudo, uma hierarquia entre elas ou a idéia de uma atração e repulsão, de uma tensão e distensão, como no caso do tonalismo. Longe se colocar como sistema rígido visando o estabelecimento de um a priori à criação, o dodecafonismo é tomado por Schönberg como possibilitando a expressão do fluxo da linguagem musical que, a cada obra, se renova e se abre. É também nesta perspectiva que se impõe a criação do serialismo, no qual há, de saída, para a criação musical uma série de notas a partir da qual toda uma combinação de variações se fará possível. Mesmo com maior estabilidade e com pontos mais bem delimitados para a escrita das peças, o que atravessa a obra schönbergeniana é este vetor de uma “lógica” ilógica que se será ouvida. Retiradas e liberadas de uma determinação significante que as ordena, como no caso do tonalismo, as notas em Schönberg se apresentam como letra, numa função de construção a partir da qual uma escrita posterior e singular poderá ser exigida. Com a escrita musical, há a inscrição (Freud, 1950[1895]/2006, p. 274) de marcas no sujeito17, o que colocará o sujeito, de acordo com as coordenadas singulares nele deixadas pela Coisa (Lacan, 1959-1960/1997, p. 69), em uma maior ou menor abertura para o trabalho pulsional com a voz. Isso se dará ou no movimento de fazer com estas marcas, em rearranjo a posteriori, e com o vazio do objeto voz por seu contorno na composição e na interpretação de uma música, ou, ainda, pela abertura para ser tocado pela arte musical, na escuta, que chama o ouvinte a se (re)posicionar como sujeito. A expressão a que visa Schönberg se apresenta, assim, como expressão do sujeito do inconsciente para além da “personalidade” do compositor, podendo este ser revelado e vislumbrado pelo ato de criação. Em carta ao pintor Kandinsky datada de 24 de janeiro de 1911, Schönberg, que era ele mesmo também pintor, explicita que o trabalho de criação artística exige que o compositor se apague como pessoa para que algo de mais estrutural do sujeito possa irromper para além de uma lógica consciente, já conhecida. É fundamental destacar uma proximidade, explicitamente estabelecida, entre Kandinsky e Schönberg, que participam ambos do movimento expressionista nas artes e que, ao longo de anos, mantiveram uma rica correspondência em que questões da pintura e da música se entrelaçam por tocarem um mesmo ponto em comum: a radicalização da arte para que um além da consciência possa 17 Sendo que a ênfase aqui dada se refere às marcas sonoro-musicais. 33 surgir e ser expresso. Diz Schönberg (Ibid, p. 136-137), ao destacar pontos em comum com o pensamento de Kandinsky: (...) isso que você chama de ‘ilógico’, e que eu chamo a “eliminação da vontade consciente na arte’. Igualmente, eu creio, isso que você diz sobre o elemento construtivo. Toda busca tendendo a produzir um efeito tradicional mais ou menos marcado pela intervenção da consciência. Mais a arte pertence ao inconsciente! É o si mesmo que deve ser expresso! Exprimir-se diretamente! Não exprimir seu gosto, sua educação, sua inteligência, isso que se sabe ou isso que se sabe fazer. (...) Somente a elaboração inconsciente da forma, que se traduz pela equação: “forma = manifestação da forma”, permite criar formas verdadeiras; somente ela engendra tais modelos dos quais as pessoas sem originalidade encontram as “fórmulas” as imitando 18. Nesse sentido, também a intenção consciente de exprimir algo se ausenta, deixando emergir algo da dimensão de um inesperado, de uma surpresa inquietante, que promove cortes e aberturas. Desta maneira, o “si mesmo” ao qual Schönberg se refere pode ser lido não como o eu, mas sim como o próprio sujeito do inconsciente. A busca do compositor passa a ser, com isso, a de um trabalho com o material musical que faça a transmissão de uma verdade que não se encerra na verdade de um sujeito especificamente. Em carta de 24 de agosto de 1909 a Busoni, Schönberg (Ibid., p. 43) esclarece: Minha única intenção é: não ter nenhuma intenção! Nem formal, nem arquitetônica, nem artística em qualquer sentido que isso tenha (cernir a atmosfera de um poema, por exemplo), nem estética – absolutamente nenhuma; ou nenhuma outra que esta: não colocar nada através do fluxo de minhas sensações inconscientes. Não deixar nada se infiltrar aí que seria efeito da inteligência ou da consciência19. Sem intenção, mas com direção, podemos propor, uma direção norteada pelo real que, simultaneamente, força a escrita musical, sem a ela se subsumir. Para além do sentido, do lógico, o real se coloca como invocação à escrita musical. É interessante notar como o real, sendo aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar, faz avançar o simbólico, faz vibrar o 18 “(…) ce que vous appelez l’«Illogique », et que j’appelle l’ «Élimination de la volonté consciente dans l’art ». Également, je crois, ce que vous dites sur l’élément constructif. Toute rechercher tendant à produire un effet traditionnel plus ou moins marqué par l’intervention de la conscience. Mais l’art appartient à l’inconscient ! C’est soi-même que l’on doit exprimer ! S’exprimer directement ! Non pas exprimer son goût, son éducation, son intelligence, ce que l’on sait, ou ce que l’on sait faire. (…) Seule l ‘élaboration inconsciente de la forme, qui se traduit par l’équation : « forme = manifestation de la forme », permet de créer de véritables formes ; elle seule engendre ces modèles dont les gens sans originalité font des « formules » en les imitant”. 19 “Ma seule intention est:/n’avoir aucune intention !/Ni formelle, ni architectonique, ni artistique dans quelque sens que ce soit (saisir l’atmosphère d’un poème, par exemple), ni esthétique – absolument aucune ; ou tout au plus celle-ci:/ne rien mettre en travers du flux de mes sensations inconscientes. Ne rien y laisser s’infiltrer qui serait l’effet de l’intelligence ou de la conscience”. 34 imaginário para além das identificações imaginárias, faz torções nas articulações entre os registros por haver entre elas um vazio que não se deixa de todo fechar, tamponar, preencher. De acordo com Schönberg, cada música deve ser sempre escutada a partir das articulações entre forma e conteúdo. O mais crucial seria, portanto, o trabalho, sempre inédito e a ser construído a cada peça, sobre a linguagem musical. (...) nós amamos Beethoven não porque seu estilo era novo para a época, mais devido ao caráter sempre novo de seu conteúdo. Naturalmente, um estilo moderno é um meio cômodo de estabelecer uma ligação com um autor, por isso que sem o qual não se compreende nada de nada. Mas isso não me interessa. Eu gostaria muito que se considerasse isso que eu digo e não como eu o digo. É somente quando se terá percebido isso que se verá que isso é inimitável 20. Um breve comentário à margem se faz necessário quanto ao que Schönberg traz na carta de 04 de setembro de 1910 endereçada a Busoni quanto ao estilo: o que se diz, e não como se diz, também é trabalho do estilo, sem, evidentemente, que esse “isso que se diz” seja atrelado ao significado. É sobretudo pela via da transmissão. E nisso se faz estilo. Músico, e não psicanalista, Schönberg (1995, p. 55) localiza no estilo um real: o estilo, uma vez que ele é uma característica real de uma arte (e não somente uma característica imaginária ou não essencial), não é de modo algum associado aos dados técnicos obtidos pelos teóricos, mas depende de algo que é completamente diferente. Da personalidade em sua integralidade21. Podemos mesmo ler nesse último termo, “personalidade”, a partir de outras leituras das propostas schönbergenianas, como a dinâmica inconsciente atuando e se exprimindo através do trabalho de criação. Ou, com Lacan, pensar o estilo pela via de um lidar com o objeto que é, pela criação, disponibilizado no simbólico – contendo em si um furo, portando sua coisidade –, que articula as três heterogeneidades que constituem o sujeito, real, simbólico e imaginário. Porém, é Schönberg mesmo a apontar que o que se ouve do estilo, o que nele insiste, é real. Ainda sobre o estilo, pensado a partir da tensão entre forma e conteúdo como o coloca o campo musical, se consideramos que, na música, como bem mostra Jankélévitch (1983), o conteúdo é mais fortemente ligado ao inefável, podemos avançar e refletir sobre como esse 20 “(…) nous aimons Beethoven non parce que son style était nouveau pour l’époque, mais à cause du caractère toujours nouveau de son contenu. Naturellement, un style moderne est un moyen commode d’établir un rapport avec un auteur, pour celui qui sans cela ne comprend rien à rien. Mais cela ne m’intéresse pas. J’aimerais bien que l’on considère ce que je dis, et non comment je le dis. C’est seulement lorsqu’on l’aura perçu qu’on verra que c’est inimitable”. 21 “le style, lorsqu’il est vraiment une caractéristique réelle d’une art (et non seulement une caractéristique imaginaire ou inessentielle), n’est nullement lié aux données techniques retenues par les théoriciens, mais il dépend de quelque chose qui est complètement différent. De la personnalité dans son intégralité”. 35 inapreensível pela linguagem é transmitido pela música contemporânea lançando o ouvinte, às vezes, aos limites do insuportável, de um desamparo estrutural do sujeito face à sua constituição. Indo mais além, podemos mesmo questionar os efeitos que uma forma musical assim mais radicalmente flexível, imprevisível, não consoante, pode ter sobre os ouvintes. Lembro-me ainda da proposição de Pascal Quignard (1996, p, 42) sobre a ligação entre música e morte: “O som belo é ligado à bela morte22”. Ou: “O som, a língua, se escutam e não se tocam nem se vêem. Quando o canto toca, 1. Ele transpassa, 2. Ele mata23”. Esta proximidade com a morte, com a pulsão de morte, com o real, e com a possibilidade de, a partir daí, o sujeito se lançar em um recomeço, um novo, me interroga fortemente na música, sobretudo a criada sob o paradigma schönbergeniano, uma vez que podemos entender/escutar a pulsão de morte como essa “vontade de recomeço, de outra coisa”. Ainda, nas palavras de Lacan (1975-76/2007, p. 121): “A pulsão de morte é o real na medida em que ele só pode ser pensado como impossível”. Outro ponto importante a ressaltar na escrita de Schönberg são as diversas referências às construções arquitetônicas, não sendo mero recurso de linguagem. Normalmente associada ao tempo, a música tem uma dimensão eminentemente espacial, ela cria um espaço sonoro. E, como bem sustenta Francis Bayer (1987), tal espaço é profundamente afetado e alternado com o paradigma schönbergeniano. Já a relação entre as notas, retiradas no atonalismo livre de uma hierarquização, se mostra não mais associada a um retorno a uma dada região, a tonalidade, nem tampouco a uma simetria formal ou uma orientação pré-determinada das linhas de força entre o material musical. Diz Bayer (Ibid., p. 29): O campo espacial não sendo mais, como no sistema tonal, pré-formado ou pré-determinado por uma rede de direções e de linhas de força a priori, o compositor se encontra livre para construir não importe qual tipo de espaço sonoro e de lhes imprimir as determinações de sua escolha. (...) Este caráter libertador da música atonal provoca, no mesmo ato, uma modificação decisiva na natureza da relação entre o ato composicional e o espaço sonoro. Enquanto que o compositor tonal se esforçava para fazer ouvir uma voz pessoal no seio de um espaço banalizado que o pré-existia e do qual ele procuraria se servir, o compositor tonal poderá ao contrário imprimir a marca da sua personalidade criativa ao elaborar ele mesmo um espaço sonoro original e específico, próprio a cada uma de suas obras24. 22 “Le beau son est lié à la mort belle”. “Le son, la langue, s’entendent et ne se touchent ni ne se voient. Quand le chant touche, 1. Il transperce, 2. Il tue”. 24 “Le champ spatial n’étant plus, comme dans le système tonal, préformé ou prédéterminé par un réseau de directions et de lignes de force a priori, le compositeur se trouve libre de construire n’importe quel type d’espace sonore et de lui imprimer les déterminations de son choix. (...) Ce caractère libérateur de la musique atonale entraine, du même coup, une modification décisive dans le nature du rapport qui existe entre l’acte compositionnel et l’espace sonore. Alors que le compositeur tonal s’efforçait de faire entendre une voix personnelle au sein d’un espace banalisé qui lui préexistait et auquel il se trouverait asservi, le compositeur atonal pourra au contraire imprimer la marque de sa personnalité créatrice en élaborant lui-même un espace sonore original et spécifique, propre à chacun de ses œuvres”. 23 36 Detenho-me nesta questão de um movimento de, pelo espaço musical, se imprimir uma marca, um estilo do sujeito por me parecer uma indicação preciosa, embora extremamente enigmática, sobre uma via de se pensar a relação do sujeito com o Outro. Ouvimos na música a possibilidade, e mesmo flexibilidade, de, em cada peça, reorganizar os elementos de base que a constituem e determinam. Tal flexibilidade é posta não apenas pelos recursos estéticos, mas fundamentalmente pela linguagem e pelo simbólico, colocando-se igualmente possível a cada vez que se fala. Não se trata, portanto, de pensar que não haveria uma regra, uma Lei, uma ordenação que se impõe e que já se impôs. Há e haverá. Há mesmo um espaço entre sujeito e Outro que já se estabeleceu, caso o recalque originário tenha se feito presente e atuante. Porém, não se poderia pensá-lo como indo além de um espaço, de uma pauta musical já rigidamente estabelecida, com tonalidade indicada de saída, na qual o sujeito poderia ali improvisar dentro de linhas de força já previstas? Não poderia essa escrita musical ser pensada comportando novas direções, não por fugir da regra, por subvertê-la ou ignorá-la simplesmente, mas por a regra, a Lei, configurar ela mesma um espaço que se apresenta sob uma outra lógica? Não incluiria a Lei a possibilidade de haver e co-existir diferenças formas de se estruturar a escrita, diferentes tipos de partitura? Evoco, quanto a isso, uma passagem de um artigo de Dulce Duque Estrada (2011, p. 62). Cito-a: Há tempos, escutava uma musicista, que me dizia estudar arranjo e improviso. Esta última palavra me intrigou: não sabia que se aprendia a improvisar! Ouvi, sem entender muito bem, as explicações dadas por ela sobre escalas e acordes, harmonias e arpejos, e o que posso só agora perceber, apesar de óbvio, é que até mesmo os solos de jazz, que parecem nascidos da pura liberdade criativa, não são assim tão livres, mas seguem regras sem as quais a beleza, que tanto nos toca, seria simples ruído. Dentro desse tema, ocorre-me que a função fálica poderia ser comparada a uma clave musical: inscrita logo no início da pauta, não faz parte da melodia, mas sem ela não há um ordenamento, as notas não sabem que lugar ocupar e tornase impossível executar a peça... Se pensamos no jazz ou nas correntes as mais diversas do pós-tonalismo, em que a transmissão do discurso musical é feita a partir de escritas igualmente diversas, parece ficar ainda mais claro que, como sabemos, a lógica da marcação do desejo do Outro no sujeito se dá a ouvir sempre num a posteriori e não num a priori comum a todos. O que é comum a todos é a marcação do desejo do Outro, invocando, ainda que nem sempre seja isso possível, a queda da voz. E isto para que possa haver, com uma voz própria, com a linguagem e com a incidência da dimensão do Nome do Pai, uma ordenação que diga de um sujeito em movimento possível de fazer laço. 37 Abolir a lógica tonal, de uma pré-configuração anterior à peça musical, é, portanto, e sobretudo, se servir da linguagem para reinventá-la a cada novo ato de escrita/leitura/escuta a que a música se presta. É recolocar em cena a dimensão de equívoco radical e pontuado por pedaços de real a que o sujeito é confrontado, ainda que sem saber, a cada vez que se arrisca no improviso que é tomar a fala portando em si, e com isso ex-sistindo, uma fala que não seja vazia. Reinventar a linguagem, fazer, uma vez mais, ressoar no simbólico o real e o imaginário, no imaginário o real e o simbólico, no real o simbólico e o imaginário – e todas mais combinações possíveis a cada vez. Borromeanamente, fazer vibrar um endereçamento que, assim, poderá ser ouvido. Mesmo ouvido como novo. Ouvir um inaudito que insiste naquilo que já foi ouvido. Nesse sentido, a ruptura promovida por Schönberg recai, retorna e age a posteriori também sobre a produção musical feita anteriormente a ele, ressaltando o elemento real presente em cada objeto. Com Schönberg, ou melhor, com o paradigma musical por ele pose 38 cessar no que já foi dado e luta contra a instauração de toda forma de hábito ou de inércia. A novidade/o novo no coração da criação é imprevisível. (...) Esse imprevisível nada que muda tudo, é isso que se espera de uma obra25. Contudo, Verdier destaca que, na posição do músico, tal novo parte de uma busca, de uma antecipação lógica, uma orientação presente no ato criador que possibilita uma ruptura com algo que o antecede e que, deste modo enquanto novo e nunca ouvido, é transmitido e expresso. Do lado do compositor, ela localiza assim um “projeto de recomeço” (projet de recommencement) que exige uma radicalidade contextual (radicalité contextuelle) por visar instaurar um novo, algo que será ouvido pela primeira vez, mas fazendo uma ruptura com um já dado (Ibid., p. 302). Seguindo o paradigma de Schönberg, tal proposta aponta para a necessidade da escuta se dar a partir do encontro com o que cada peça musical coloca em jogo: “Cada obra, a fim de ser apreendida em sua novidade, deve ser então percebida por ela mesma26” (Ibid, p. 308). Algo que se mostra, como já indicado aqui anteriormente, como direção mesma do trabalho analítico: escutar cada fala do sujeito a partir do que ela traz em jogo e que, adianto brevemente o ponto ao qual pretendo chegar ao fim desta tese, poderá se encaminhar clinicamente como uma direção de musicar a vida (musiquer la vie27), com entusiasmo. É este um dos pontos nodais desta tese, o qual desenvolverei ao longo dos próximos capítulos, mas que não poderia deixar de aqui já anunciar. Mais uma vez, caminho com Verdier (Ibid., p. 310) e com o que ela indica sobre uma força de transformação que a música contemporânea traz em si, associada a uma alegria (joie) tanto para o músico quanto para o ouvinte: A experiência do novo coloca assim uma dimensão quase utópica na medida em que ela pode transformar o ser em questão desde o presente e pela simples presença perceptiva de uma obra. Este momento único não se esgota nele mesmo. Ele suscita um desejo de reiteração. (...) A fecundidade do novo designa o fato de que o novo se abre a um futuro que é ele mesmo criador ou que leva à criação. Esta fecundidade represente a potencialidade de uma obra de colocar ou recolocar o criador ou o Erdei 9Td [(E)-2.6838.159441(e)3.748 39 Trago um trecho datado de 12 e 13 de março de 1912 do diário de Schönberg, escrito em Berlim entre os anos de 1912 e 1915, que lanço aqui como um norte, sobre aquilo que o compositor busca e transmite, sobre os efeitos da criação para aquele que a faz, e sobre um enigma que persiste sobre o continuum real que insiste exigindo escrita, sem se deixar escrever, e que, cada um, poderá lhe dar um destino singular, e, igualmente, um lugar em sua vida. Sem mais comentar, deixando mesmo como fala enigmática, marcando aqui minha surpresa, cito Schönberg (1990, p. 55): Durante a manhã, tive subitamente um grande desejo de compor. Enfim, depois de tanto tempo! Eu tinha mesmo já entrevisto a possibilidade de não mais compor. Parecia ali existir numerosas razões para isto. A obstinação com a qual meus alunos caminham sobre meus passos, buscando exagerar minhas proposições, me expõe ao perigo de me tornar imitador deles, o que me dificulta a terminar a construção, justamente no ponto em que cheguei. Eles elevam tudo à décima potencia. E isso é justo! É verdadeiramente bom. Mas não sei se é verdadeiramente útil. Sou levado então a escolher com ainda mais discernimento se devo compor como antes. Com efeito, não atribuo mais uma importância particular à minha originalidade, ainda que ela me dê por vezes grande prazer e, de toda forma, ela [me] pareça preferível à falta de originalidade. (...) Ontem, 12 de março, eu escrevi o primeiro melodrama do Pierrot Lunaire. Creio ser bom. Isso me excita muito. Tenho a convicção de ir ao encontro de uma expressão nova, sinto. As sonoridades bestiais se transformam imediatamente em pulsações nas quais se misturam as vibrações dos sentidos, da alma. Como se fosse diretamente uma transcrição. Estou curioso para ver como tudo isso vai evoluir. Contudo, eu conheço agora a origem disso: a primavera!!! Desde sempre meu período fausto/favorável. Sinto renascer em mim vibrações. O que aparenta-me quase a uma planta. A cada ano é a mesma coisa. Quase sempre compus na primavera29. Sonoridades. Pulsações. Vibrações. Escrita. No caso da música pós-tonal, uma escrita que mais acentuadamente inclua e aponta a dissonância. Todavia, cabe ressaltar que tal inclusão é direção mesma da arte musical. Será com a radicalização desta tensão sempre presente na música, com o movimento de ir além do tonalismo, que ocorrerá a “dissolução da representação tonal” (Wisnik, 1989, p. 209) que escutamos a partir de Schönberg30. Segundo Imberty (2005, p. 40): 29 “Dans la matinée j’ai eu soudain une grande envie de composer. Enfin, après si longtemps ! J’avais même déjà envisagé l’éventualité de ne plus jamais composer. Il semblait y avoir de nombreuses raisons à cela. L’obstination avec laquelle mes élèves marchent sur mes talons, en essayant de renchérir sur mes propositions, m’expose au danger de devenir leur imitateur, ce qui me gêne pour parachever la construction là où justement j’en suis arrivé. Ils élèvent tout à la puissance dix. Et c’est juste ! C’est vraiment bien. Mais je ne sais pas si c’est vraiment utile. Je suis donc contraint de choisir avec encore plus de discernement si je dois composer, comme avant. En effet, e n’attache pas une importance particulière à mon originalité bien qu’elle me fasse parfois plaisir et de toute façon elle [me] semble préférable au manque d’originalité. (…) Hier 12 mars, j’ai écrit le premier mélodrame du Pierrot Lunaire. Je crois que c’est bien. Cela m’excite beaucoup. J’ai la conviction d’aller à la rencontre d’une expression nouvelle, je sens. Les sonorités bestiales se transforment immédiatement en pulsations où se mêlent les vibrations des sens, de l’âme. Comme si c’était directement une transcription. Je suis curieux de voir comment tout ça va évoluer. Par contre, j’en connais maintenant l’origine : le printemps !!! Depuis toujours ma période faste. Je sens renaître en moi des vibrations. Ce qui m’apparente presque à une plante. Chaque année c’est la même chose. J’ai presque toujours composé au printemps”. 30 Seria importante avançar a partir deste ponto pensando como a música pós-tonal, em sua proposição de abolição dos princípios do tonalismo, cria, a cada vez, uma lógica implícita à peça musical, tocando a questão de uma origem na arte e também da própria constituição do sujeito. Dito de outra forma, ela pode, assim, evocar o tema da diluição da linguagem, aproximando-se da temática da morte, da pulsão de morte, e, mais, do nascimento do sujeito do inconsciente, da qual poderse-ia pressupor uma relação entre o horror que comumente se tem como reação à música contemporânea e a estrutura do 40 No sistema tonal clássico, a tonalidade é a referência no interior do qual se desenvolve a temática e que assegura a coerência desta ao longo de diferentes passagens. Ou seja, esta coerência é reforçada pela predominância da sintaxe harmônica. Ao buscar retirar as bases desta sintaxe, Schönberg chega a uma linearidade e a uma polimelodicidade que não mais se apoio em tal sintaxe, unicamente porque se trata de saída de evitá-la31. Podemos inferir desta passagem que ao buscar uma nova forma de lidar com o material simbólico pertinente à música e à sua linguagem, o imaginário é também colocado em xeque, exigindo-se dele, talvez, uma função inédita e diferenciada daquela que exercia sob os moldes paradigmáticos do tonalismo. Retornarei a este posteriormente, tirando maiores conseqüências de como a proposta schönbergeniana pode nos revelar uma maneira borromeana de pensar as ressonâncias entre os registros do real, do simbólico e do imaginário tal qual definidos no ensino lacaniano. No entanto, vale aqui pontuar e trazer à memória o que ambos, Freud e Lacan, dizem acerca de uma antecipação lógica das artes frente ao que a psicanálise, tempos depois, consegue ouvir do sujeito. O que está em jogo na clínica pode, assim, ser iluminado pelo que a arte traz à tona e que a psicanálise, num só depois, consegue ouvir. Assim, neste paradigma de criação inaugurado por Schönberg, os contornos das peças musicais são bem mais flexíveis, podendo, entretanto, ser apreendidas pelos ouvintes em um à posteriori – ainda que despertando um forte estranhamento devido à suspensão de uma base comum, prévia e sucessivamente tornada familiar com a escuta das músicas tonais, mais abundantemente executadas e criadas na cultura ocidental. A surpresa, o estranhamento familiar, o desconhecido, a não centralidade e não unidade musicais, que tocam o sujeito desejante, podem enfatizar os efeitos de uma vertigem frente ao que se ouve, convocando uma escuta mais além do eu. Com isto, penso que, na proposta da música pós-tonal em que o ouvinte se confronta não mais com uma centralidade, há um convite para que ele se despoje, ainda que brevemente, de suas identificações imaginarias que o amparam para ouvir como sujeito do inconsciente32, ou seja, para além do eu e, assim, a partir de sua posição deslizante e sujeito em sua dimensão de desamparo tal qual ressaltada por Freud no Projeto para uma psicologia científica. Pascal Quignard (1996, p. 43) bem demonstrou o quanto este horror é uma das características mesmas da música, ainda que possa se apresentar de modo acentuadamente velado: “a música é um espantalho sonoro. (...) um terrificatio”. 31 “Dans le système tonal classique, la tonalité est le cadre de référence à l’intérieur duquel se développe la thématique et qui en assure la cohérence tout au long des différents épisodes. En outre, cette cohérence est renforcée par la prédominance de la syntaxe harmonique. En voulant supprimer le poids de cette syntaxe, Schönberg revient à une linéarité et une polymélodicité qui ne s’appuient plus sur cette syntaxe, uniquement parce qu’il s’agit d’abord de l’éviter”. 32 Lembro aqui o que Lacan (1964/1998: 46) afirma sobre o movimento de pulsação temporal do inconsciente de abertura e posterior fechamento. 41 desejante33. A imprevisibilidade da obra musical pós-tonal, de uma determinada maneira, apontaria para o tempo imprevisto do objeto voz, o que poderia exigir um novo arranjo do sujeito, ou melhor, um novo enlaçamento, através de giros estruturais, dos três registros do qual é constituído, fazendo com que eles possam reinventar a ressonância inaugural a partir da qual se fundam – fundando assim o próprio sujeito. A música a partir do pós-tonalismo apresentaria assim um menor velamento do real, efetuando, assim, um confronto maior do sujeito com ele e, mais ainda, com a dimensão de invocação e de recomeço que aí está em jogo. Haveria, com isso, uma espécie de “desorganização” e estranhamento no sujeito para que seja possível uma nova organização. Criação e escuta pensadas como ato ético e poético de (re)criação do sujeito. Com a música e o paradigma schönbergeniano, podemos escutar o movimento desejante do sujeito a partir dos efeitos do real. O que em muito se aproxima com a concepção de clínica que, com Lacan, buscamos sustentar: pela fala e pela escuta, dar lugar ao novo, à escrita do novo, ao inaudito, para que, com isso, o sujeito possa se recolocar num ritmo próprio, se recolocar assim em um movimento musicante, invocante, consoante e ressoante com sua verdade singular. 1.2 – A escuta musical como norteador para a clínica analítica Escutar o que se deixa musicar a partir de uma peça de arte ou de uma fala de um sujeito. Escutar a dimensão sonora, propensa a transmitir a voz e, mais, a equivocidade da linguagem. Escutar as homofonias, o que faz ruído, a dissonância ao sentido, o não-sentido. Escutar. Estar à escuta. Escutando. Ascoltando. Indicações que o filósofo Jean-Luc Nancy (2001, 2002) nos oferece. Escutar como ato privilegiado do sujeito face ao real e na clínica, tanto do pólo do analista quanto, e fundamentalmente, do analisante. Se um analista pode se voltar à música, em suas tessituras para além de uma ordenação pré-estabelecida, de uma configuração tonal que mais acentuadamente se presta à dimensão representacional da linguagem, é na medida em que ela se oferece como paradigma para refletir sobre o sujeito e, assim, poder escutá-lo – um a um, no caso a caso – clinicamente. 33 É deste modo que entendo a afirmação de Vladimir Satafle (2006, p. 185) de que há na música de John Cage uma “dissolução do eu”, uma vez que as funções de síntese e de determinação do sentido das totalidades, atribuídas a este registro psíquico, não são nela presentes. 42 O que aqui é tratado sobre o campo musical já se coloca sob o efeito das rupturas que Arnold Schönberg realizou, não apenas na criação e na recriação da música ela mesma, mas igualmente em como a música – tanto a deste compositor quanto a dos que o sucederam – pôde passar a ser escutada. Peter Szendy (2000, p. 31), também filósofo e musicólogo, propõe, nesta perspectiva, que houve neste ato uma “construção de um regime modernista da escuta”. Nesta mesma direção, Alessandro Barico (1998) propõe que o efeito da Modernidade na música, sobretudo após Schönberg, faz prevalecer uma ampla convivência de diferentes correntes composicionais. Isto como uma via de liberar a força subversiva de toda e qualquer música, mesmo a composta antes deste período. Barico defende, portanto, que é pela interpretação assim dita moderna, contemporânea, que a música pode ser escutada enquanto nova e diferente, independentemente da época em que tenha sido criada. Em outras palavras, uma interpretação em que se possa ouvir o paradigma schönbergeniano, no qual é convocado a reinvenção, o novo, a instabilidade, a imprevisibilidade, o inaudito, a abertura a um mais além do sentido. Escutemos Nancy (2001, p. 7-8) no que ele aponta sobre a escuta, que considero precioso para pensar o que a música transmite, toda música e mais acentuadamente a que passou a ser criada sob a égide do pós-tonalismo a partir de Schönberg: Ascoltando, é esta a indicação secreta de toda execução musical. Ela designa em música um elemento que não falta a nenhum fenômeno da sensibilidade e que, por conseqüência, não está ausente de nenhuma das outras artes, mas que encontra todo seu relevo na música: é o elemento de um reenvio constitutivo, de uma ressonância ou de uma reverberação, de um retorno sobre si pelo qual somente o “si” em questão pode ter lugar. (...) Pois “si” não é jamais que a si, em si ou por si: isso não é jamais que um reenvio, um apelo, um relato, uma transcrição, e no fundo de toda esta revisão uma repetição originária, generativa, pela qual advém o a si34. Escuta, pois, associada à ressonância, que não deve ser confundida com consonância, com complementaridade. A ressonância refere-se à característica de um elemento reverberar sobre ele mesmo – como um som musical que se desdobra e se revira sobre si em seus harmônicos, seu timbre, seu próprio eco. Ainda, ela se define igualmente pela possibilidade de resposta simultânea entre dois ou mais elementos, mantendo-se a heterogeneidade, a alteridade, a singularidade, de cada parte. Trabalharei mais atentamente estas idéias ao abordar a constituição do sujeito como ressonância, via voz, entre real, simbólico e 34 “Ascoltando, c’est l’indication secrète de toute exécution musicale. Elle désigne dans la musique un élément qui ne manque pas à aucune phénomène de la sensibilité, et par conséquence qui n’est pas absent d’aucun des autres arts, mais qui prend tout son relief dans la musique : c’est l’élément d’un renvoi constitutif, d’une résonance ou d’une réverbération, d’un retour sur soi par quoi seulement le « soi » en question peut avoir lieu. (…) Car « soi », ce n’est jamais qu’à soi, en soi ou pour soi : ce n’est jamais qu’un renvoi, un rappel, un rapport, un report, et au fond de toute cette réversion une répétition originaire, générative, par laquelle advient l’à soi”. 43 imaginário. Por enquanto, vale acrescentar que em termos musicais a ressonância está ligada ao ritmo e ao timbre, o que não é sem conseqüências para o campo psicanalítico. Neste, a ressonância deve ser associada à expulsão de das Ding, da Coisa – objeto radicalmente perdido, e a um reenvio constitutivo, a um retorno. O que pode ser lido com Freud e Lacan como um endereçamento do sujeito ao Outro e como o próprio vetor do circuito pulsional em três tempos, passivo, ativo e reflexivo. Em um tempo originário, tal endereçamento passa pelos processos de alienação e separação, fazendo surgir simultaneamente sujeito e Outro. Endereçamento ressonante, que, borromeanamente, entrelaça real, simbólico e imaginário, tocando o vazio no sujeito e no Outro, o que convoca a se sair de um “ensimesmamento”, indo a uma posição para além do eu. Ou seja, o sujeito do inconsciente e algo que o ultrapassa, que lhe é ex-timo. Assim, uma vez mais, coloca-se a possibilidade de cunhar algo novo, isso pelo reenvio do sujeito a um ponto originário, de um começo a se recomeçar. Continuemos com Nancy (Ibid., p. 8-9) e como ele propõe tomar a obra musical como sujeito do próprio ato de escuta, o que me parece ser frutífero como lógica de escuta clínica: Mas qual é o sujeito que se constitui assim na escuta como sujeito ascoltando? Não é mais o indivíduo que interpreta a obra, nem aquele que a compôs, nem aquele que a escuta. O sujeito que se constitui da ressonância, o sujeito-escuta, não é nada de outro nem ninguém de outro que a música ela mesma, e, mais precisamente, que a obra musical. A obra é isso que reenvia a si, e de uma certa forma todo obrar da obra consiste neste reenvio pelo qual é somente possível – e necessário – que a obra reenvie e se envie para fora35. Este sujeito que se escuta, conclui Nancy (Ibid., p. 10-11), é um sujeito “em geral”, bem como “um ritmo”, lançando-se, contudo, para além de si: “A música coloca para fora de si36”. Não há, portanto, um fechamento deste sujeito-escuta sobre si mesmo. Ao se colocar à escuta, abre-se, igualmente, a possibilidade de um laço com o que se está além. Algo que Peter Szendy (2001) enfatiza a partir da sua própria experiência enquanto ouvinte que se coloca à escuta da música como música e não para entendê-la (entendre/comprendre) ou para afirmar uma escuta que se encerra naquele que a vive. É na dimensão de um endereçamento – enigmático, podemos acrescentar – que a escuta se coloca, fazendo, com isso, surgir um sujeito e um Outro, um “je” (e não um “moi”) e um “tu” amplificado que não será, assim, passível de ser encarnado por um outro semelhante, como na concepção freudiana. Diz 35 “Mais quel est le sujet qui se constitue ainsi dans l’écoute ou comme sujet ascoltando ? Ce n’est pas plus l’individu qui interprète l’œuvre que celui qui l’a composée ou que celui qui l’écoute (…). Le sujet qui se constitue de la résonance, le sujet-écoute n’est rien d’autre ou n’est personne d’autre que la musique elle-même, et plus précisément rien d’autre que l’œuvre musicale. L’œuvre est ce qui renvoi à soi, et d’une certaine façon tout l’ouvrage de l’œuvre consiste dans ce renvoi, par lequel seul il est possible – et nécessaire – que l’œuvre renvoie et s’envoie au dehors (…)”. 36 “La musique met hors de soi”. 44 Szendy (Ibid., p. 19): “(...) a escuta – e não a audição ou a percepção – começa com esse desejo legítimo de ser sinalado e endereçado. Aos outros 37”. No endereçamento está posta a possibilidade de uma ressonância, a ressonância de uma resposta silenciosa do Outro. Ou melhor, de uma voz silenciosa do Outro que pode colocar uma vez mais em cena a dimensão de uma pulsação contínua e real que é perdida quando um sujeito advém portando, assim, um ritmo e um timbre singulares. Vale acrescentar: “O ritmo não somente como escansão (colocação em forma do contínuo), mas também como pulsão (relançamento da ação de apreensão)38” (NANCY, 2002, 75). E, sobre o timbre: “(...) o timbre não é um dado uno. (...) O timbre é por excelência a unidade de uma diversidade cuja sua unidade não desaparece39” (Ibid., p. 79). Em outras palavras, dentro de uma perspectiva lacaniana e freudiana, o ritmo como escansão do contínuo real e como uma maneira própria de um sujeito ao lidar com o pulsional em sua dimensão de impacto constante. Enquanto que o timbre se colocaria como uma singularidade do sujeito, um traço radicalmente singular, que o marca em sua alteridade. Destaco, ainda, algumas questões de Nancy que nos permitem avançar na idéia de que a ressonância abre para um além da significação, para uma direção que não se atrela nem ao simbólico nem ao imaginário, que diz da força real presente enquanto furo da linguagem e da imagem sonoro-musical, mas que se transmite pela própria sonoridade – da música e, acrescento, da fala. Nancy (Ibid., p. 17) enuncia que há um segredo na escuta, em estar à escuta: (...) de qual segredo tratar-se-ia quando se escuta propriamente, quer dizer, quando há o esforço de captar ou de surpreender a sonoridade mais do que a mensagem? Qual segredo se entrega – tornando-se então público – quando escutamos por nós mesmos uma voz, um instrumento ou um barulho? (...) o que é, então, estar à escuta (...)? O que é que existe a partir da escuta, para ela e por ela, o que é que se coloca aí em jogo da experiência e da verdade? O que é que se toca aí, o que é que ressoa aí, qual é o tom da escuta ou de seu timbre? A escuta, seria ela mesma sonora?40 Questões que interessam igualmente a um analista por apontar uma via de se escutar na fala de um analisante sua dimensão sonora, material, musical como possibilidade de 37 “(...) l’écoute – et non l’audition ou la perception – commence avec ce désir légitime d’être signée et adressée. À d’autres”. “Le rythme non seulement comme scansion (mise en forme du continu) mais aussi comme pulsion (relance de la poursuite)”. 39 “(...) le timbre n’est pas une donnée une. (…) Le timbre est par excellence l’unité d’une diversité que son unité ne résorbe pas”. 40 “(...) de quel secret s’agit-il lorsqu’on écoute proprement, c’est-à-dire lorsqu’on s’efforce de capter ou de surprendre la sonorité plutôt que le message ? Quel secret se livre – donc aussi se rendre public – lorsque nous écoutons pour eux-mêmes une voix, un instrument ou un bruit ? (…) qu’est-ce donc qu’être à l’écoute (…) ? Qu’est-ce qu’existe selon l’écoute, pour elle et par elle, qu’est-ce qui s’y met en jeu de la expérience et de la vérité ? Qu’est-ce qui s’y joue, qu’est-ce qui y résonne, quel est le ton de l’écoute ou son timbre ? L’écoute serait elle-même sonore ?”. 38 45 transmitir a dimensão imaterial da voz enquanto objeto a, e de como se abre, assim, uma via de se escutar a verdade do sujeito que ali se apresenta. Por ora, cabe ressaltar que estar à escuta de um timbre, de um aspecto que singulariza o sujeito, sem se deter no sentido e no significado daquilo que ele diz, visando um segredo capaz de surpreender o sujeito, por portar uma verdade não sabida de si, é direção mesma da análise tal como desenhada e sustentada por Freud a partir de sua prática clínica de estar à escuta do inconsciente. A segunda passagem que agora colho das considerações de Nancy me parece ainda mais nitidamente dizer da relação entre ressonância e objeto voz, uma vez que, enquanto perda que escava um vazio no corpo do sujeito, traz a possibilidade de algo ressoar neste vazio, denominado por Jean-Michel Vivès (2005) de ponto surdo41, ponto em que a voz do Outro é subtraída para que a voz própria do sujeito se faça ouvir. Cito Nancy (2002, p. 21): Estar à escuta é estar sempre na borda do sentido, ou em um sentido de borda e de extremidade, e como se o som não fosse precisamente nada de outro que essa borda, essa franja, essa margem – ao menos o som musicalmente escutado, quer dizer, recolhido e escrutado por ele mesmo, não somente como fenômeno acústico (ou não somente), mas como sentido ressonante, sentido em que o sentido é suposto se achando na ressonância e achado somente nela42. É interessante ler estas passagens que trouxe do campo musical lembrando o que Freud traz como verdade sobre o sujeito do inconsciente, pontual e evanescente, que surge apenas, e descentrado, no instante mesmo da fala. Ao tomar a fala como “texto sagrado”, Freud revela que, para além do eu, a fala traz uma verdade não-sabida sobre o sujeito que se coloca desta maneira mesmo para aquele que fala e no instante em que fala. Uma fala para além de um “eu” falo, pela qual, pontualmente, o sujeito se expressa. É possível mesmo ouvir o que Nancy apresenta como sujeito-escuta relacionando-o mais precisamente à peça musical e não apenas à música como uma indicação do que está em jogo em uma análise. A saber, como a linguagem se fez incorporada e presente no ato da fala de um sujeito, transpassada, assim, pelo real que a fura e a faz existir, e o imaginário que a sustenta em um sujeito singular. 41 Sobre o qual me deterei mais aprofundadamente ao trabalhar a constituição do sujeito a partir da voz e da relação para com o Outro nos movimentos estruturantes de alienação e separação, visando propor uma maneira ressonante de pensar os enodamentos dos três registros psíquicos propostos por Lacan, real, simbólico e imaginário. Neste momento, porém, cabe ressaltar que é pela insistência mesma da voz real do Outro que a voz é perdida enquanto objeto a, objeto causa de desejo/mais-de-gozar/semblante, sendo assim incorporada cunhando um vazio a, potencialmente, ressoar no sujeito. A ressonância mesma entre os registros somente se pode dar por haver tal ponto surdo, que marca a perda do objeto a em sua incidência de voz. 42 “Être à l’écoute, c’est toujours être en bordure du sens, ou dans un sens de bord et d’extrémité, et comme si le son n’était précisément rien d’autre que ce bord, cette frange ou cette marge – du moins le son musicalement écouté, c’est-à-dire recueilli et scruté pour lui-même, non pas seulement comme phénomène acoustique (ou pas seulement) mais comme sens résonant, sens dont le sensé est censé se trouver dans la résonance, et ne se trouver qu’en elle”. 46 A escuta analítica, sob estes parâmetros, poderia ser, portanto, pensada como uma escuta que retorna para a própria fala, para o sujeito do inconsciente, para além de um “ensimesmamento” daquele que fala, e para além igualmente daquele que, enquanto função, se coloca à escuta para fazer a própria fala reverberar sobre si e tocar o sujeito da fala, do inconsciente, em sua relação com o Outro. Analista e analisante estariam ambos à escuta, numa abertura para estar ascoltando na fala o sujeito que ali emerge, enquanto falante e também enquanto escuta. A cada vez. Retomo, então, as perguntas com as quais iniciei este capítulo: O que se escuta, então, na e da música para além da centralidade da tônica, no assim chamado pós-tonalismo? O que se escuta da música a partir de uma radicalização do efeito de real por ela posta em cena? E o que tal escuta pode nos orientar sobre a escuta do sujeito na clínica e, mais, do próprio sujeito em sua relação com a voz? Uma primeira resposta: escutar o real, os efeitos ressonantes do real agindo sobre o simbólico e o imaginário, fazendo irromper um novo possível diante do impossível que ele mesmo põe em causa, invocando o sujeito à re-criação e sustentação de um ritmo e um timbre singulares. Parece-me ser essa a contribuição mais pulsante da música póstonal para a escuta analítica. 47 CAPÍTULO II DA ESCUTA À PALAVRA: A CONSTITUIÇÃO DO FALANTE ENTRE MUSICAL E RESSONANTE Os Sonoros precedem nosso nascimento. Eles precedem nossa idade. Esses sons precedem até o som do nome que ainda não carregamos e que só carregamos muito depois que ele ecoou em torno de nossa ausência no ar e no dia que ainda não contém nosso rosto e que ignoram ainda a espécie do nosso sexo. Pascal Quignard A psicanálise possui um cunho predominantemente clínico. Ainda que um psicanalista se proponha a recolher em outro campo de saber, como uma arte – proposta deste trabalho –, elementos que nos mostram algo sobre a verdade do sujeito, é na clínica que está sua mirada. Foi dela que Freud pôde propor uma nova prática, a partir da qual foi preciso construir um arcabouço teórico que pudesse dar conta daquilo que era nela revelado e encontrado. Já na psicanálise freudiana, a dimensão da voz se faz intensamente presente, ainda que em surdina, como se pode ser notado em pelo menos três pontos. Um primeiro pela via das expressões do sujeito em torno deste ponto entre o audível e o inaudível, como no caso dos sintomas histéricos de afonia. Um segundo pela própria técnica da associação livre, que procura escutar não aquilo que está sendo dito pela esfera do sentido, mas pelo que cai da fala do analisante evidenciando uma Outra cena. E, por fim, pela própria manobra em fazer com que o olhar de analista e analisante percam a ênfase, fazendo surgir a voz como operador clínico preferencial, que incide nas demais formas do sujeito se aproximar de seu desejo, daquilo que demanda e de seu modo de gozar. Não é à toa, então, que mesmo sem destacar a voz como um dos objetos que integram o circuito pulsional, Freud pôde, em diferentes momentos, refletir sobre a voz na constituição do sujeito. Encontramos já no Projeto para uma psicologia científica, de 1895, uma primeira e instigante referência a este respeito, relacionando a experiência primaria de satisfação com a emissão por parte do bebê de um grito que será ouvido e interpretado pelo seu cuidador através das coordenadas desejantes deste e do lugar que ele oferece ao sujeito que está por vir. Igualmente, ao propor, já mais para o fim de sua obra, na década de 1920, a constituição do psiquismo em três instâncias distintas (eu, isso e supereu), uma concepção tríplice, Freud (1923) enfatizará a importância da voz na fundação e na atuação do supereu – o que se ouviu 48 e fez marca das vozes dos pais assim incorporadas no sujeito e o que a voz própria deste exigirá de satisfação e gozo. A voz, portanto, desde Freud, deve ser pensada em sua função estruturante, não somente na fundação de um sujeito, mas nas mais diferentes experiências ao longo de sua vida, sobretudo no que diz respeito a uma resposta e a um endereçamento frente ao Outro. Assim sendo, ela estará em jogo, ainda que implicitamente, na fala e nos atos do sujeito, não se confundindo com o aspecto sonoro e fonético de um dito. Ela é predominante e fundamentalmente imaterial e inapreensível, mobilizando o desejo do sujeito por veicular o enigma do desejo do Outro e apontando para um gozo que não pode ser enquadrado. Há ainda no Projeto outras importantes indicações para se avançar no campo da voz e da invocação, bem como sobre a ritmicidade singular do sujeito em sua relação à Coisa, das Ding. Esta, enquanto perdida na mais pura radicalidade, impõe um fora do tempo, um sem tempo, que é causa da própria temporalidade possível do sujeito. Estabelece-se, assim, simultaneamente, um infinito, um sem tempo, um impossível de ser tratado pela linguagem, que, em ex-sistindo, faz surgir um tempo, um espaço, um possível de ser identificado ao traço unário e ao significante. Música e fala apresentam vias de lidar ritmicamente com o que escapa a todo instante de ser representado. A invocação e a voz, nesse sentido, se dão a contornar e a presentificar essa ruptura radical com o contínuo. Descontínuos, os sujeitos podem responder a um apelo contínuo, colocando-se à distância desse impossível através da linguagem e das criações linguageiras. Um contorno desse vazio – pela via da voz, colocando a voz do Outro em suspensão e à distância – faz barragem à violência mesma voz, podendo trazer vestígios dela por uma via estética que, eticamente, dá lugar à voz única e a se fazer escutada que o sujeito porta sem saber. Os desdobramentos da pulsão invocante, pedra fundamental da psicanálise para a temática da voz, que pode ser lida apenas num a posteriori em Freud e sob a luz de Lacan, se mostram nesta direção: invocar (referindo-se a um endereçamento ao Outro pela resposta com voz que é o próprio sujeito), revocar (tornando presente o ato de colocar-se à distância da voz do 49 apresenta e exige uma escrita43, das quais foi aqui escolhida a música. Na tentativa de apreender o objeto voz, o circuito pulsional – entrelaçando, ainda que assimetricamente, desejo e gozo – se estabelece, respondendo à invocação do Outro por uma via singular do sujeito através do significante, deixando ouvir um ponto real, inacessível, impossível de ser subsumido ao sentido e à duplicidade inerente à cadeia significante. Com Lacan, aprendemos que toda fala e todo ato de um sujeito envolve três registros heterogêneos, mas equivalentes: real, simbólico e imaginário. E proponho que, embora borromeanamente enodados, poderá haver a predominância de um deles, ou melhor, da ressonância entre um e outro registro dessa tríade. Isso nos indicaria rastros de como em um determinado momento o sujeito se colocará diante do Outro e em relação ao objeto a, este objeto perdido quando da constituição do sujeito, que se apresenta topologicamente no centro vazio do nó borromeano, tendo, portanto, uma face real, uma simbólica e outra imaginária. Na experiência analítica e na experiência artística, tais faces podem ser vislumbradas, nos transmitindo, por vias distintas, o que Freud e Lacan puderam tão exemplarmente escutar sobre o sujeito em uma dimensão ética, e porque não dizer, estética. As dimensões ética e estética abarcam ambas uma posição do sujeito do inconsciente frente ao desejo, podendo, deste modo, ser encontradas nas experiências da clínica, da arte e da vida cotidiana. Podemos dizer que há um fio invisível que orienta a experiência convocando esse reposicionamento ético desejante; há uma ação, um efeito, do real. Este se impõe para cada sujeito de uma forma singular e é a partir desta singularidade que uma resposta poderá ser tecida, eticamente, indicando a relação do sujeito com o desejo. Busco na literatura de Milan Kundera, no livro A insustentável leveza do ser, uma passagem que bem explicita esta aproximação entre real, ética e estética. Ao referir-se sobre o livro Ana Karenina, de Léon Tolstoi, e sobre a função que este tivera no encontro entre as personagens principais de seu romance, Tomas e Tereza, Kundera (1986, p. 57-58) escreve que: 43 A dimensão da escrita na estrutura do sujeito, e na instauração desta, já é colocada na psicanálise desde o início das formulações teóricas de Freud, especialmente na carta 52 dirigida a Flies, datada de 6 de dezembro de 1896. Nela, Freud (1896/2006, p. 274-276) estabelece um modo de pensar o aparelho psíquico pela ordenação de traços inscritos e transcritos, a posteriori, entre as diferentes instâncias psíquicas. Freud chega a afirmar que há uma tradução do material psíquico entre estas instancias. Da percepção à consciência, Freud localiza três reordenamentos e retrasncrições, a primeira, através dos signos de percepção (Ps), “por completo insuscetível à consciência e articulada segundo uma associação por simultaneidade”; a segunda, o inconsciente (Ic), ordenada por nexos causais, correspondente a recordações de conceitos, também inacessíveis à consciência; a terceira, o préc-consciente (Prc), que se liga a uma representação-palavra, correspondendo ao eu. Também em textos como a Interpretação dos sonhos, de 1900, ou, mais posteriormente, Nota sobre o bloco mágico, de 1925, a idéia de escrita voltará a aparecer no texto freudiano. Neste último, Freud (1925[1924]/2006, p. 245-247) se baseará na metáfora do bloco mágico (dispositivo composto por uma superfície suscetível à escrita em que são sobrepostas camadas de celulóide, sobre as quais se escreve com uma caneta sem tinta, de modo a fazer marcas simultaneamente no papel e na superfície primeira, porém, ao se levantar a segunda, as marcas e palavras escritas se apagam, permanecendo, como traços na anterior) para dizer das relações entre os diferentes registros psíquicos. 51 261) ao falar sobre as três feridas narcísicas que se abateram sobre a humanidade: o heliocentrismo de Copérnico, a teoria evolucionista de Darwin, e a descoberta do inconsciente freudiano. O eu, continua Freud (idem), dependerá de “umas notícias insignificantes sobre o que ocorre inconscientemente em sua alma”. O sujeito, assim, é aquele do inconsciente, sendo daí que podemos depreender a ética que nos guia como analistas e que nos recoloca, constantemente, na posição de repensar e recriar a própria clínica que se deixa teorizar para que alguma transmissão do real do qual ela é feita se efetue. Outro ponto importante a ser destacado a partir das palavras de Kundera é a dimensão do belo enquanto barreira para o desejo, tal qual Lacan (1959-60/1997, p. 208) indica ao trabalhar no seminário A ética da psicanálise a função do bem e do belo. Se, por um lado, “a dimensão do bem levanta uma muralha poderosa na via de nosso desejo. É mesmo a primeira com a qual lidamos em cada instante e sempre” (Idem), a expressão do belo intimidaria o desejo, sem atuar como engodo para o sujeito. O belo vela a Coisa, sem omitir o vazio que o objeto criado traz em seu centro. Na obra de arte, no objeto criado pela arte, o belo aponta para a verdade que o objeto traz. Assim, se, a princípio, pode-se ter a impressão de que há um afastamento do âmbito clínico quando um analista pesquisa uma expressão cultural, “fora” do seu fazer clínico, ao se ter em vista que é de um mesmo sujeito que se trata em ambos os “lugares”, tal falsa dicotomia se dilui. Neste ponto, a topologia lacaniana novamente nos auxilia, desta vez para pensar em como as separações entre clínica e “fora” da clínica, “privado” e “público”, se preferirmos, de um “interior” e “exterior”, são apenas aparentes. Lacan (1967/2003, p. 251) abordará tais dimensões cunhando a proposição da “psicanálise em extensão” para indicar, a partir do dispositivo da Escola, que a psicanálise encontra-se não somente na clínica, mas igualmente “no mundo”. Tais dimensões aparentemente distantes se encontram em uma continuidade paradoxal, uma que supõe uma inversão, ou melhor, uma subversão. Há uma torção estrutural que garante a alteridade entre cada um dos pontos desses pares, sem, contudo, extinguir a continuidade assimétrica que há entre eles. A imagem topológica da banda de Moebius – superfície não orientável de duas dimensões e um só lado, obtida pela junção das duas extremidades de uma fita após se efetuar em uma delas uma meia torção – parece ser a mais indicada para se pensar nestes pólos. A clínica, certamente, não se confunde com nenhum outro espaço. Sua singularidade é das mais radicais; supõe funções específicas, operações fundamentais que atuam sobre o sujeito e aquilo que lhe causa. Entretanto, o sujeito com o qual ela trabalha pode ser também vislumbrado para além da clínica. 52 Como Freud e Lacan deixaram claro em suas aproximações com as artes, nestas, o sujeito se dá a ver e ouvir com grande força, antecipando aquilo que o analista poderá dele dizer. Cada arte circunscreverá mais atentamente uma determinada incidência, e mesmo modo de representação, do objeto a e seus efeitos na experiência dos sujeitos. Neste capítulo, portanto, a proposta é poder, a partir de um ponto em comum com a música, a saber, a colocação em cena do objeto voz pelo circuito da pulsão invocante, pensar a função da voz nos sujeitos, em sua emergência e a posteriori em momentos nos quais há um sujeito buscando se fazer ouvir através de sua voz própria para além da voz do Outro. 2.1 – A voz na estruturação psíquica: de ouvinte à falante Isso que nos FALOU, nos falará para sempre44. Maurice Blanchot Voz, timbre, música. Seria por essas palavras que se abre a questão sem resposta do CONTRATEMPO? (...) CONTRATEMPO: é talvez diferentemente a espera do retorno de trás por uma retrospecção na qual se iluda um presente que é sempre já perdido porque nunca foi45. Maurice Blanchot Fala-se de um sujeito, ao qual se confere um lugar, lugar de desejo, que marcará aquele que o ocupar, podendo fazer advir ali, através da escuta daquilo que uma voz transmite, um falante. Ouve-se. Grita-se. Ouve-se. Simultaneamente, aposta-se que há um que ouve aquilo que é dito, que tem uma necessidade específica quando grita ou chora, que responderá ao que lhe é oferecido, um que é ouvido. Ouve-se e se é ouvido. Quando um novo tempo se instaura nesta lógica, estabelecendo um espaço entre estas posições, posto que uma perda se efetuou, um outro passo pode ser dado em direção a um fazer-se ouvir. E o que se ouve? O que é ouvido pelo Outro? O que um pode dar a ouvir? Seria simples dizer que é o significante, já que este antecede o sujeito e o determina em suas relações com o desejo. Sim, é o significante. Porém, mais primordialmente, ouve-se aquilo que de mais musical a linguagem porta, aquilo que a voz materna, com sua musicalidade e sua função musicante, faz 44 “Ce qui nous a PARLÉ, nous parlera toujours”. “Voix, timbre, musique. Est-ce que par ces mots s’ouvre la question sans réponse du CONTRETEMPS ? (…) CONTRETEMPS : c’est peut-être différemment l’attente du retour en arrière par une rétrospection où s’illusionne un présent qui s’est toujours déjà perdu, parce qu’il n’a jamais été”. 45 53 soar: sua invocação ao significante Nome do Pai com sua Lei. Simultaneamente, ouve-se na voz materna a sua lalação, seu além e aquém dos sentidos – lalíngua. Ouve-se um convite, que soa como música naquilo que uma música tem de mais abstrato, ou seja, o fato de nada significar, apesar de ter uma estrutura de linguagem. A este convite, se responde com um sim e alguns sons desprovidos de sentido, mas que serão ouvidos e interpretados por aquele/aquela que toca o bebê humano com esse aspecto sexualizante da linguagem que é lalíngua. Responde-se, ainda, e necessariamente para que uma separação ocorra fundando um sujeito e um Outro, com um não, com um passo que faz com que se perca um tanto do gozo de lalíngua para que o significante ganhe corpo, voz e fala. A voz começa a traçar no corpo do infans os caminhos da pulsão em sua vertente que invoca, a pulsão invocante, animando este corpo com um fôlego gozante que o fará soprar, ressoar, emitir uma voz e dizer. Se a aposta daquele primeiro “fala-se”, da doação de um lugar a um sujeito que ainda estar por vir, se concretiza, lalíngua produzirá marcas, traços, que, através da repetição, efetuará perdas e inscrições – traços apagados se fazendo letras e inscrevendo a queda de um objeto que era parte do próprio corpo. O enigma do desejo do Outro, que a voz carrega entre os significantes do que é dito e endereçado ao sujeito, está embrenhado em lalíngua e chamará a se fazer algo, a dar uma resposta a isso que se escreveu pulsionalmente e que fez traço. Destes traços, ou melhor dizendo, de um traço que se fez um – o traço unário, que abre a possibilidade de se contar o Um e de contar sobre esse um –, e desta letra, o verbo poderá surgir. Há neste momento de emergência de um falante uma simultaneidade lógica entre várias funções operando no infans. Sujeito, Outro e objeto a sendo fundados numa mesma temporalidade. Significantes ouvidos por entre lalíngua marcando o corpo do bebê, fazendo a inscrição de um traço unário, promovendo a escrita de uma letra, a queda de um objeto, a colocação em cena do circuito pulsional, a instauração de uma ordenação a partir de um significante Um, S1, que enganchará um outro significante, S2, cuja função, em relação a este anterior, será o de representar o sujeito. Nas palavras de Lacan (1972-73/1985, p. 196): “O significante Um não é um significante qualquer. Ele é a ordem significante, no que ela se instaura pelo envolvimento pelo qual toda cadeia subsiste”. Ao que acrescenta que, ao filiar tal significante à lalíngua: “o Um encarnado na lalíngua é algo que resta indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo o pensamento”. É deste real caótico de lalíngua que o campo do sujeito e do Outro poderão se destacar, e isso só poderá ocorrer se houver entre eles um corte, o estabelecimento de uma ordenação mínima que seja atrelada a uma perda, a um vazio. A voz e a pulsão invocante terão papel fundamental neste processo. A peculiaridade 54 deste circuito da pulsão invocante é que o objeto que dele cai neste momento originário precisará ser também incorporado, ressoando o vazio que ele instaura, vazio que, moebianamente, tange o sujeito e o Outro, e que, borromeanamente, permanecerá no primeiro fazendo com que as heterogeneidades que lhes estruturam, dos registros do real, do simbólico e do imaginário, sejam garantidas. Deste modo, a voz faz corpo. O corpo do bebê quando este passa a falasser46. A voz do Outro, enigmática, revestida pela musicalidade da voz da mãe, ou daquele que se ocupará dessa função para o infans, terá incidências diretas no corpo deste. E aquilo que chega aos ouvidos fará borda, cavará o vazio da voz, marcará todo o corpo do pequeno vivente, invocando-o a advir como sujeito pela fala. A voz faz corpo, faz sujeito, falasser. Ela o faz pela convocação própria da pulsão invocante, invocadora, “a mais próxima da experiência do inconsciente”, como nos diz Lacan (1964/1998, p. 102), alertando que se trata aí, nesse nível, do desejo do Outro. É, portanto, pelo desejo do Outro que podemos nos tornar sujeitos, passando de um corpo orgânico a um corpo erógeno, pulsional, corpo de gozo. Este desejo, ponto que permanecerá para sempre inalcançável e incompreensível, é transmitido para o falasser através da fala musicada da mãe. Ou, melhor dizendo, a voz da mãe será o instrumento pelo qual o desejo do Outro marcará o corpo do bebê, chamando-o a se escrever e a falar com aquilo que de musical e dúbio, escapando ao sentido, ele escuta. Este Outro primordial, que a mãe encarna e faz função, deixa cair para o bebê uma construção sonora que é ouvida por suas aliterações e inversões, como indica Lacan (1971/2009, p. 105) apontando para as possibilidades de jogos fonéticos entre as palavras. Lalíngua, que se presta ao gozo e a “coisas inteiramente diferentes da comunicação” (Lacan, 1972-73/1985, p. 188), marcará o pequeno vivente, fazendo-o dar uma resposta na tentativa de se inscrever no campo da linguagem, precisando, para isso, perder uma parte de si, de seu ser e de um gozo absoluto, para, já faltoso, passar da lalíngua à linguagem. Lacan (idem, p. 189) ressalta que: “a linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função da lalíngua”. Função que imprime uma ambigüidade primordial no sujeito, algo que será minimamente preservado pela característica equívoca do simbólico. Vale ressaltar que o simbólico, diferentemente do real, que escapa ao sentido, e do imaginário, que pode indicar um sentido específico 55 já que o simbólico colocará em jogo as dinâmicas metafórica e metonímica da cadeira significante. A ambigüidade estará, assim, sempre em jogo na dimensão da linguagem. Poeticamente, Lacan (idem, p. 163) apresenta, ainda, a metáfora da linguagem como uma nuvem que faz escrita, uma chuva de significantes que produz sulcos, ravinamentos devido à erosão no solo pelo escoamento das águas. Marca, com isso, a ação do significante constituindo o traço unário e a exigência de que este seja primeiro inscrito e posteriormente apagado para que um sujeito falante surja (LACAN, 1971/2009, p. 113). “A escrita, então, é um traço onde se lê um efeito de linguagem” (Lacan, 1972-73/1985, p. 164). Será frisado por Lacan (1971/2009, p. 114) que há aí uma oposição entre estes dois eixos, sendo que “a escrita, a letra, está no real, e o significante, no simbólico”. Nesta experiência originaria de fundação do sujeito, o traço unário será inscrito e se atrelará à repetição: a “repetição está enraizada neste unário original, que, como tal, este unário está estreitamente colado e co-extensivo a própria estrutura do sujeito, enquanto ele é pensado como repetindo” (LACAN, 19611962/2003, p. 177). Repetição que, já em Freud (1920), se liga ao mais além do princípio do prazer, a algo que diz respeito não ao eu, mas ao sujeito, ao pulsional e ao real do gozo. Neste momento fundante, a repetição promove a instauração desta marca primeira, “traço justamente tanto mais distintivo quanto está apagado quase tudo o que ele distingue, exceto ser um traço” (LACAN, 1961-1962/2003, p. 75), e o destacamento no corpo do infans de um objeto, que o retira de sua própria condição objetal. O apagamento do traço pressuporá o nascimento e a articulação do significante em três tempos. Diz Lacan (ibid, p. 136-137; grifos do autor): Uma vez constituído o significante, há forçosamente dois outros antes. Um significante é uma marca, um rastro, uma escrita, mas não se pode lê-lo só. Dois significantes é um qüiproquó, juntar alhos com bugalhos. Três significantes é o retorno daquilo de que se trata, isto é, do primeiro. É quando o passo marcado no rastro é transformado, no vocalise de quem o lê, em pas [não], que esse passo, na condição de que se esqueça que ele quer dizer o passo pode servir inicialmente, no que se chama de fonetismo da escrita, para representar pas e, ao mesmo tempo, para transformar o rastro de passo [la trace de pas] eventualmente em nenhum rastro [pas de trace]. É preciso frisar que isso que cai da fala materna, por entre a lalíngua materna, e que possibilita que haja a instauração do significante enquanto tal, que pode ser escrito, lido e vocalizado, é a voz. A voz como objeto a, “objeto caído do órgão da fala”, conforme apresenta Lacan (1963/2005, p. 71), e perdido neste ato. Será por existir esta falta na fala que o desejo poderá se movimentar no deslizamento da cadeia significante. “É o a que dá seu valor a todas essas unidades que vão se adicionar à cadeira significante, a (1+1+1...)” (Lacan, 1961-62/2003, p. 143). E é no campo do Outro que se extrai o objeto a em todas as suas 56 incidências, sobretudo, em um momento inaugural do falasser, o objeto voz. Desse modo, Lacan localiza que o lugar do Outro é não simplesmente o da miragem como também o da voz, ou seja, o da invocação, sendo a voz do Outro um “objeto essencial”. A isso, complementa que: “o Outro é o lugar onde isso fala” (Idem; grifos do autor), e que o sujeito, aquele “que fala no lugar do Outro”, deverá assumir a voz a cada vez que fala. Cabe ressaltar que, para Lacan (1972-73/1985, p. 156), a fala e o gozo estão intrinsecamente articulados, uma vez que: “aonde isso fala, isso goza”. No entanto, para que possa ocorrer a extração da voz, fazendo surgir daí um falasser, é preciso um passo além de aceitar o convite do Outro para entrar na linguagem. É preciso ouvir o convite dessa voz inaudita que porta um desejo para sempre misterioso, dizer sim a ele e, concomitantemente, não. É preciso ouvi-la e esquecê-la, cunhando um ponto de surdez fundamental à voz do Outro e, assim, ao fazê-la cair, se separar do Outro. Behajung e Austossung, nos termos de Freud (1925/2006). Alienação e separação, segundo Lacan (1964/1998). Continuidade e escansão, ambos operados também pela voz, ainda que a função de corte não seja unicamente a ela atribuída. Tais operações devem ser pensadas, com Lacan, sob sua dimensão linguageira, possibilitando que um sujeito, a partir da fala, possa ser apreendido entre os significantes, uma vez que é a própria linguagem que faz incidir no sujeito uma divisão fundamental, barrando um gozo infinito e possibilitando que o desejo possa advir. Para que um sujeito surja é preciso, então, passar por uma alienação e uma separação frente ao Outro. Como indica Rinaldi (1996, p. 30; grifos da autora): Alienação e separação, operações simultâneas, em que o sujeito se constitui como sentido e como perda, como metáfora e metonímia. É pela metonímia – pelo deslocamento –, onde se situa o desejo, que o sujeito do inconsciente se afirma enquanto sujeito do desejo. É neste sujeito do desejo, barrado entre simbólico e real, que se pode localizar a castração. A releitura que Lacan faz da obra freudiana articula o conceito de castração à estrutura da linguagem, onde a opacidade do significante indica a impossibilidade de um gozo pleno. Não podemos deixar de frisar aí a dimensão do recalque originário freudiano a partir da experiência primaria de satisfação, que estabelece a exclusão de um objeto absoluto, das Ding, que fará com que todo o aparelho psíquico possa ser fundado e organizado em torno de uma falta central. Freud (1925/2006, p. 255) localizará das Ding como fora do juízo, como um real que não fará parte do campo do sujeito, mas que terá implicações diretas sobre ele, o determinando. A busca por uma satisfação através da obtenção deste objeto perdido guiará todo o encaminhamento do sujeito, sendo que o que ele encontrará será apenas da ordem da representação desta falta – falta que instituirá a representação também da alteridade entre subjetivo e objetivo, ou, melhor, sujeito e Outro. Ainda mais cedo na obra de Freud 57 (1950[1985]/2006, p. 376-377), das Ding aparece como o primeiro objeto na relação do infans com o próximo que terá função de lhe possibilitar uma satisfação, sendo-lhe, porém, simultaneamente estranho e hostil. Neste complexo do próximo, com a exclusão de das Ding – como como uma “Coisa no mundo” (idem), constante – do campo perceptivo do sujeito, será aberta a possibilidade de se delimitar representações acerca da experiência de satisfação e dos movimentos do corpo implicados em tal experiência, dando ao infans “notícias do próprio corpo” (idem). A Coisa, este “objeto derradeiro” (LACAN, 1962-63/2005, p. 339), será nomeada por Lacan (1959-60/1997, p. 173) como “extimidade”, sendo excluído da linguagem, porém, fundando-a como aquilo que se constrói em torno do vazio que a Coisa instaura no sujeito quando de sua exclusão. A linguagem, assim, coloca uma distancia necessária entre o sujeito e a Coisa. E isto se dá porque é a própria linguagem, via voz materna, que instaura a dimensão da Lei para o sujeito a partir da castração e da instauração de uma possibilidade de um gozo parcial pela perda do gozo absoluto, impossível de ser obtido. Segundo Rinaldi (1996, p. 79): “É essa distancia em relação à das Ding que a Lei reafirma, que é condição da palavra, possibilitando o desejo humano. (...) A Lei introduz a questão do significante e das suas combinações possíveis, por referência ao impossível”. A vivência de satisfação em Freud (1950[1985]/2006, p. 363) tem como efeito a possibilidade de se acessar a representação do objeto perdido, “alucinando-o”, quando o infans se encontra mais uma vez diante de uma alteração tal de tensão psíquica ou de dor que, originalmente, devido à sua precariedade e desamparo estruturais, à sua incapacidade de realizar sozinho a “ação específica” que o faria suprir sua necessidade assim que esta aparecesse47. Com isso, efetua-se um desencontro primordial entre o objeto que poderia 47 Lacan tirará conseqüências clínicas fundamentais quanto ao modo como o sujeito pôde responder à perda da Coisa neste momento inaugural e a estrutura clínica que se estabelecerá a partir daí, cujos efeitos serão ouvidos na clínica através das tentativas de se reencontrar a Coisa no percurso de vida de um sujeito. Diz Lacan (1962-63/2005, p. 70-71): “Se o fim da ação específica que visa à experiência de satisfação é o de reproduzir o estado inicial, de reencontrar das Ding, o objeto, compreendemos vários modos do comportamento neurótico. A conduta histérica, por exemplo, tem como objetivo recriar um estado centrado pelo objeto, na medida em que esse objeto, das Ding, é, como Freud escreve em algum canto, o suporte de uma aversão. É na medida em que o objeto primeiro é objeto de insatisfação que o Erlebnis [vivência, experiência] específico da histérica se ordena. Em oposição – a distinção é de Freud e não há motivo para ser abandonada – na neurose obsessiva o objeto em relação a que a experiência de fundo se organiza, a experiência de prazer, é um objeto que, literalmente, traz prazer demais. Freud percebeu muito bem, e isso foi sua primeira percepção da neurose obsessiva. O que, nos diversos andamentos do obsessivo e em todos os seus arroiozinhos, indica e significa o comportamento do obsessivo é que ele sempre se regula para evitar aquilo que o sujeito vê, freqüentemente de modo bastante claro, como sendo a meta e o fim do seu desejo”. Nessa passagem lacaniana, podemos ouvir ecos da idéia freudiana sobre a escolha da neurose, encontrada no texto A predisposição para a neurose obsessiva. Contribuição ao problema da escolha da neurose, de 1913, no qual Freud (1913/2005, p. 338) se pergunta quais são as causas para que haja uma escolha pelo sujeito pelas diferentes formas de neurose e mesmo pela psicose, de onde podemos escutar que há, desde o momento da constituição subjetiva, uma posição ativa do lado do sujeito, um ato que ele efetua diante daquilo que, do campo do Outro, o determina. É o que podemos encontrar também em Freud com a idéia de uma sobredeterminação psíquica, isso tanto na etiologia das neuroses (FREUD, 1893-95/2006, p. 270) quanto na formação dos sintomas (FREUD, 1900/2005, p. 561; 1905[1901]/2007, p. 53). Tanto a escolha como a sobredeterminação indicam um posicionamento ético do sujeito frente ao Outro e frente ao próprio desejo. A própria emergência do sujeito, por 58 atender plenamente sua necessidade e o objeto que lhe fora oferecido por seu próximo cuidador. A necessidade, a partir deste momento, é de uma ordem perdida, é de um momento logicamente anterior e mítico, assim como a própria idéia de um gozo absoluto e de uma satisfação plena. Haverá, portanto, a construção da demanda e do desejo, que se ligam a um objeto igualmente perdido, mas capaz de ser representado no psiquismo, o objeto a. Em relação à voz, pode-se dizer que no desencontro entre a ação específica e a necessidade, o desejo do Outro, pela via da voz materna em sua interpretação a partir do grito do infans daquilo que ele quer, faz com que a mãe doe voz ao bebê, doe significante a este bebê que também aparece para ela como enigma. Como efeito, teremos, de um lado, a exclusão primordial de das Ding, e, de outro, a voz comparecendo como resto, como objeto a, ressoando no bebê e fazendo furo no corpo deste, chamando-o a incorporá-la. Coutinho Jorge (2003, p. 34; grifos do autor) enfatiza que é preciso fazer uma distinção necessária entre a Coisa e o objeto a: Porque o objeto a, objeto causa de desejo, ele é, simultaneamente, real, simbólico e imaginário. (...) O objeto a participa ao mesmo tempo dos registros do real, do simbólico e do imaginário, por isso Lacan o situa naquela região central de interseção dos três registros. O que é das Ding? A Coisa – objeto da pulsão de morte, objeto que propiciaria o gozo absoluto, caso ele fosse passível de ser atingido – é precisamente o nome de uma das faces do objeto a, a face real. Mas o objeto a (...), nós não temos acesso a ele enquanto falta. Nós temos acesso ao objeto a enquanto palavra (simbólico) e imagem (imaginário). As faces simbólica e imaginária do objeto a são as faces que são constituídas através da articulação do sujeito numa fantasia inconsciente. (...) Mas aquilo que está na base dessa palavra e dessa imagem é uma falta de palavra, assim como uma falta de imagem, que é das Ding. Assim, será sempre em relação ao objeto a que o sujeito poderá ter alguma possibilidade de contornar aquilo que é da ordem da Coisa, deste objeto que está no princípio do movimento do sujeito em direção a qualquer outro objeto. O objeto a pode ser, portanto, pensado como índice da Coisa. Continuando com Coutinho Jorge (idem, p. 32): “O que a pulsão quer é das Ding, mas o que ela recebe é o objeto a”. Isto estruturará o sujeito e o fará dar uma resposta singular a este real que foi perdido para sempre em sua constituição. Às manifestações do objeto a se ligam pulsões específicas e a modos de se situar diante do Outro, conforme Lacan indicará no seminário A angústia (1962-63/2005) e igualmente em O objeto da psicanálise (1965-1966/Inédito). Neste, na aula de 27 de abril de 1966, há a indicação de que o objeto a se relaciona ora à demanda ora ao desejo, sempre propondo uma ligação possível entre sujeito e Outro dentro de uma perspectiva topológica, a saber: demanda do Outro e fezes (pulsão anal), demanda ao Outro e seio (pulsão oral), desejo surgir a partir de uma escolha, já é em si um ato ético, assim como todos os demais atos que o sujeito fará, ainda que este só possa se dar conta disso a posteriori. 59 do Outro e voz (pulsão invocante) e desejo ao Outro e olhar (pulsão escópica). Há também a incidência do objeto a como falo, cuja função se liga igualmente ao desejo, porém, esta não pode se definir sem a referência ao significante, diferindo, assim, da voz e do olhar. Estes últimos terão um caráter de inacessibilidade e de imaterialidade fundamental, algo que será de outra ordem no caso do falo. A voz surge, então, topologicamente como litoral entre sujeito e Outro, na medida em que estes são simultaneamente constituídos e que ela pode, por mais que seja uma das incidências possíveis do objeto a, fazer função de letra para o sujeito, chamando-a, assim, a uma escrita em torno desta borda real que se estabelece com sua queda. É neste sentido que Catão (2009, p. 224) afirmará que a voz: “delimita as bordas que separam o corpo da mãe do corpo do bebê e funda, a um só tempo, sujeito e Outro. A voz faz litoral” (grifos da autora). Enquanto letra, a voz exige uma escrita e, igualmente, uma leitura. No entanto, será tanto por esta escrita com lalíngua e com a voz, quanto pela leitura desta operação, que uma fala poderá surgir. Portanto, partindo de uma escrita e de uma leitura, valendo-se de elementos que do real fazem marca no infans, que um sujeito poderá advir separado do Outro, constituindo-se, com isso, dois campos. E, como ressalta Caldas (2007, p. 54-55), esse Outro será, para o sujeito, da ordem de uma construção: A montagem de um quebra-cabeça se dá a partir dessas peças heteróclitas, e são os usos bemsucedidos ou malsucedidos dessa montagem nas condições de discurso que permitem a construção do Outro. Segundo essa lógica, o Outro do sistema é construído, ou seja, não é dado anteriormente e resulta da construção de uma leitura. (...) O falasser começa a falar valendo-se de fragmentos dúbios e singulares. Em seguida, monta e desmonta as peças do grande quebra-cabeça que é a linguagem, para construí-la como Outra de seu gozo. Ao tomar como ponto de partida esses engates primordiais da lalíngua, o que ele fala está bem próximo da escrita original de falasser, do ponto de seu nascimento como objeto, isto é, falado em uma língua estranha, que é a única porta de entrada no inexorável jogo da cultura: a letra como único meio de decifrar a escrita no corpo, que, de certa forma, sempre permanece ilegível, traço mudo de gozo. Esta passagem de uma escrita a uma leitura e uma fala, ou, dito de outro modo, de um posição de ouvinte a falante, somente se dá a partir de um ponto em que o sujeito se separa do Outro pela incidência da castração e do recalque originário, fazendo, com isso, que haja uma perda da voz do Outro que possibilita a instauração de uma voz própria do sujeito. Tal ponto é conceituado por Vivès (2005) como ponto surdo. Um ponto que diz da queda da voz como objeto a e que representa um ato primordial do sujeito em se fazer surdo à voz do Outro. Analogamente ao que Lacan (1964 e 1965-1966) propõe nos Seminários Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise e O objeto da psicanálise sobre o olhar e a função da mancha, que cunha um ponto cego entre sujeito e Outro, Vivès (2005) defende a existência de um 60 ponto surdo que estrutura o campo sonoro, acrescentando que não é possível escapar à voz do Outro. Ainda, é a dimensão do real da voz que está em jogo nesse processo: “Para se tornar falante, o sujeito deve adquirir uma surdez específica em relação a esse outrem que é o real do som musical da voz. (...) O sujeito, que era invocado pelo som originário, torna-se, pela fala, invocante” (VIVÈS, 2011, p. 34). O sonoro está, portanto, ligado tanto a esta imaterialidade quanto à dimensão vocal que promoverá a articulação de letras em significantes, possibilitando que de uma escrita pulsional, a voz possa colocar em cena um fazer com ela através da fala. Lacan (1961-1962/2003, p. 90) bem destaca esta orientação que a voz faz de um inarticulado à articulação significante: “o homem, desde que é homem, tem uma missão vocal como falante48”. Não somente isso: essa voz será novamente perdida ao ser emitida, já que, por ser um objeto caído do corpo, ela não se confunde nem com a fala, com o significante e sua articulação, nem tampouco com a significação ou o significado. Ela é o que resta da fala, aquilo que é impossível de ser dito, apontando para uma falta estrutural e real no sujeito e no Outro. O vazio no que se escuta: é aí que se localiza a voz enquanto objeto a. Recorro aqui novamente ao que Lacan (1972/2003, p. 448) escreve em O aturdito acerca desta dessimetria entre o que se diz e o que se escuta: “que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve”. Em toda fala, em todo dito, há algo que se presta à significação e algo que escapa sempre, que se coloca como impossível de ser significado, que, deste modo, “toca o real” (ibid, p. 449). A voz, se pudesse ser apreendida, seria encontrada exatamente nesta dessimetria. Esta é, de fato, efeito da função da voz. Nas palavras de Caldas (2007, p. 95): “(...) a voz como objeto ocupa esse lugar limite, litoral, entre a presença de um querer dizer e o silêncio como avesso do dito. Ela se articula como objeto indizível, indica justamente o que não pode ser dito”. Nem dito nem mesmo expresso para além das palavras, como nas artes, em especial na música e na literatura, a qual não abordarei aqui. Ainda que a voz, por sua ausência, se faça presente na música, as notas 48 Em Lacan (1961-1962/2003, p. 93-94), o aspeto da escrita não se dá sem a dimensão da voz, da vocalização que esta convoca, e que será diferente para cada língua, devido à estrutura sonora que cada uma delas apresenta. Cada língua possibilitará a instauração de uma lalíngua diferente para os sujeitos. E, em cada língua, este aspecto não poderá ser abolido. A escrita não se separa da fonetização da escrita. Nas palavras lacanianas (ibid, p. 93): “(...) a escrita esperava ser fonetizada, e é na medida em que ela é vocalizada, fonetizada como outros objetos, que a escrita aprende, se posso dizer assim, a funcionar como escrita. (...) Em outras palavras, o que representa o advento da escrita é o seguinte: que alguma coisa que já é escrita- se considerarmos que a característica é o isolamento do traço significante – sendo nomeada, vem a poder servir como suporte deste famoso som sobre o qual Gardiner põe todo o acento, no que diz respeito aos nomes próprios”. Lacan (Ibid, p. 101) dirá, ainda, sobre o nome próprio, que ele carregará este intraduzível entre as línguas, “já que ele apenas se transpõe, se transfere, e é exatamente essa sua característica – eu me chamo Lacan em todas as línguas e vocês também, cada um por seu nome”. 61 musicais não podem dizê-la. A música toca e contorna o vazio da voz por ação da pulsão invocante, que o tem como causa. Ao fazer isso, ela viabiliza uma transmissão do real. Antes de avançar um pouco mais em direção à pulsão invocante e às bordas corporais que a ela se articula, faço uma pausa para pensarmos em como a voz enoda real, simbólico e imaginário. Para tanto, trago uma contribuição de Bentata (Inédito, p. 2) sobre as três expressões gregas que designam a voz: phthoggos, op’s e aoïde49. Estas palavras abrangem aspectos distintos da voz, sendo, respectivamente, de acordo com o autor (Idem): o canto enquanto grito, ou seja, o inarticulado, referindo-se também ao grunhido e à morte; a palavra, em uma vertente de sedução e com predominância do sentido físico, com forte conotação de harmonia e freqüentemente associada a uma voz feminina; e, por último, a voz associada a um saber prometido, a uma transmissão simbólica, a um conteúdo. Bentata localiza nessas concepções gregas sobre a voz o real, o imaginário e o simbólico, que, no ensino lacaniano, seriam pensadas dentro da lógica dos três anéis que compõem o nó borromeano. Se pensarmos, didaticamente, nestas três dimensões na constituição do sujeito e em seus tempos lógicos, podemos propor que phthoggos traz o aspecto do real, do grito “puro”, grito que, segundo Lacan (1965-1966, aula de 17 de março de 1965) funda e causa o silêncio; enquanto que op’s se remete à voz da mãe que, ao se endereçar ao bebê, confere um sentido ao grito deste, interpretando-o como demanda e tomando-o como um grito “para50”; e aoïde engloba a transmissão da Lei, a subjetivação da voz e a entrada na linguagem e na fala propriamente dita. Igualmente Vivès (2005) aborda tal questão de um real que se perde para que ocorra um endereçamento da voz. Um real que pode ser escutado na expressão vocal do sofrimento do grito do bebê, que somente se tornará apelo a partir da resposta do Outro a esta emissão da voz que ressoa neste último, fazendo com que este doe ao infans algo da ordem do significante, da fala que será escutada como lalíngua. “De grito puro, ele se tornará grito para. É a fala do Outro que introduzirá o infans, para além da sua voz, à fala, ao processo de significação e o fará perder para sempre o imediatismo da relação da voz como objeto” (ibid, p. 13). Ocorre, portanto, pela criação de um ponto surdo à voz do Outro, uma perda da materialidade do campo do sonoro, cunhando um resto que permanecerá invariavelmente 49 Dentre os psicanalistas lacanianos que também se detiveram sobre o estudo da voz nestes termos, em especial na primeira e terceira terminologias gregas acima relacionadas, destaco Michel Poizat e Jean-Michel Vivès. 50 A proposta de um grito puro (cri pur) e um grito para (cri pour) foram também trazidas por Jean-Michel Vivès em conferência no I Colóquio Internacional do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, em 13 de abril de 2007, ao que Inês Catão, na banca de defesa de minha dissertação, em 16 de abril de 2007, recolocou como um movimento do cri pur ao cri pour até se chegar a uma écriture (escrita), e que tomo como grito puro, grito para, inscrição e escrita (enquanto tempos lógicos), destacando a constituição de marcas no sujeito que serão posteriormente rearranjadas na criação musical e endereçadas, como escrita, ao Outro neste ato. 62 inaudível. “A voz do Outro”, escreve Vivès (Idem), “invoca o sujeito, sua fala o convoca. É por uma certa deposição de seu grito que o infans simultaneamente perde e encontra sua voz. A partir daí, a voz é este real do corpo que o sujeito consente perder para falar”. É preciso igualmente ressaltar a dimensão de ressonância quando da instauração do sujeito em seu movimento singular, insistindo neste os atos de perda e de encontro da voz – ressonância entre o real do corpo do sujeito e da linguagem. Um real que não cessa de não se escrever e que invoca uma perda estrutural da qual uma voz singular poderá se fazer ouvir. É pela insistência mesma, real, da voz do Outro que uma voz própria do sujeito pode se constituir, ex-sistir. Se há um ponto surdo (que se instaura pela incorporação da voz, pela perda deste objeto do corpo real do infans que assim pode, em termos/com limites-bordas, se simbolizar/imaginarizar/representar/dizer/falar) é por ter havido um ponto de excesso de voz, ponto de excesso de gozo, em que o infans é, ele próprio, tomado enquanto objeto. Trata-se de um mesmo ponto: ponto de insistência da linguagem e de excesso de voz, por um lado, e ponto surdo, de queda/esvaziamento da voz, por outro lado, que invoca uma singularidade. Ponto em que real, simbólico e imaginário ressoarão, sem cessar, borromeanamente. E, mais que isso, por haver igualmente a insistência do Nome do Pai. Invocação que faz voz. Pulsão invocante que humaniza pela transmissão da voz e da função do Pai na voz/função materna. Esta dimensão de ressonância no vazio da incorporação da voz (ponto surdo) testemunha os ecos da presença da voz do Pai, do efeito de inscrição possível e inaugural do significante do Nome do Pai. Ele força inscrição e escrita. E continua forçando mesmo quando há uma “falha” neste tempo originário, de um começo (a sempre recomeçar) tributário do recalque primário. A alucinação na psicose dá mostras dessa insistência, desse excesso que sem um ponto de silenciamento da voz do Outro, se presentifica no real. Enquanto tentativa de organização psíquica, a alucinação faz uma mostração desse forçar uma escrita e uma queda da voz que é promovido pelo Nome do Pai. Este, na psicose, por estar forcluído, não funciona como agenciador terceiro promovendo a separação entre sujeito e Outro outrora alienador, como não da Austossung face ao sim estruturante e originário da Behajung, como corte que fará com que um mesmo ponto de excesso seja esvaziado, perdido, deixando cair algo do corpo do sujeito. Ato este que marca e inscreve no sujeito e no Outro um furo que os cria em simultaneidade e que, na imaterialidade da voz, ressoa contínuos inauditos que, eventualmente, podem ser ouvidos, ou melhor, transmitidos – como na música, em diferentes graus –, invocando assim um novo a ser dado a ouvir e a ex-sistir. Sujeito e Outro assim colocando-se, pela via da voz, em uma dialética que pode ser bem comparada ao contraponto em música, sendo que, para que o timbre singular do sujeito 63 seja ouvido, por ele mesmo, pelos outros e pelo Outro, faz-se preciso cunhar uma resposta esquecendo-se, em parte, do timbre inesquecível do Outro. É somente neste movimento contrapontístico, ouvindo, sendo marcando, escrevendo e lançando uma voz própria como resposta, que o sujeito pode se separar da voz e do campo do Outro, criando igualmente um ritmo que lhe é singular, rompendo com a continuidade real de onde emergimos. Quanto ao timbre, afirma Vivès (2011, p. 35): “Após ter ressoado o timbre do Outro e tê-lo a um só tempo, durante o processo do recalque originário, assumido (Bejahung) e rejeitado (Ausstossung), o sujeito deverá poder tornar-se surdo a ele, para que seu próprio timbre possa ressoar”. Ou seja: “a operação do recalque originário permite à voz ficar em seu lugar, isto é, num primeiro tempo, inaudível; depois, inaudita” (Idem). Avançando, então, com a pulsão invocante, esta, em seu circuito, exige que o sujeito efetue um movimento de ouvir, se ouvir e de se fazer ouvir. Isso passando pelo corpo, pela estrutura de borda da zona erógena que a ela se relaciona, e pelo campo do Outro, ouvido a voz deste e dele se separando. Tal pulsão é aquela que invoca o sujeito falante, trazendo ao mesmo tempo, além do ouvir, um chamar, como nos indica Vivès (2009, p. 330): Invocare, em latim, remete ao apelo, ao chamamento. O circuito da pulsão invocante se declinará, assim, entre um “ser chamado”, um “se fazer chamar” (eventualmente, de todos os nomes...) e um “chamar”. Mas para chamar, é preciso dar voz, depô-la, como depomos o olhar diante de um quadro. Para que isso ocorra, é preciso que o sujeito a tenha recebido do Outro que terá respondido ao grito, que ele terá interpretado como uma demanda. É preciso também que, posteriormente, ele a tenha esquecido, afim de poder dispor de sua própria voz sem estar saturado da voz do Outro. A voz é assim uma “voz que procura a voz”, como coloca Alencar (1997, p. 354), uma voz que tem um endereçamento, que procura uma resposta do Outro, por ter efetuado o ato de se fazer surdo à sua voz pelo recalque originário. Todavia, tal resposta nunca virá. É nessa medida que a música pode comparecer dando a ouvir uma resposta possível diante do impossível de se obter uma resposta do Outro, e que ela traz, cifradamente, algo sobre a posição singular de um sujeito para com este objeto. Além disso, a pulsão invocante apresenta uma peculiaridade. Não há apenas uma zona erógena a ser envolvida em seu circuito pulsional. Ele engloba ao mesmo tempo o ouvido e o aparelho de produção da voz, sem se confundir com os órgãos que aí estão envolvidos. O ouvido e o aparelho respiratório, juntamente com as cordas vocais e a cavidade bucal. O primeiro é definido por Lacan (19621963/2005, p. 299) como “uma caixa de ressonância”. Se assim ele o é, o ouvido é uma caixa oca, tal qual um instrumento de cordas da família do violino, porém com uma complexidade bem maior. Sua principal característica é de portar um vazio, de ser um canal, um tubo que 64 ressoa. Lacan (Idem) tira disso conseqüências ao dizer que: “O aparelho ressoa, e não ressoa qualquer coisa. Se quiserem, para não complicar demais as coisas, ele só ressoa em sua nota, em sua própria freqüência”. Ressalto que Miller (1996, p. 100) evidencia que “a ressonância é uma propriedade da palavra que consiste em fazer escutar o que ela não diz”, o que entendo dizer respeito também à característica da música em promover, poética e eticamente, esta mesma experiência. Por ressoar em sua nota, o sujeito, ao ouvir as notas musicais, receberia da música sua própria nota invertida, ou seja, a inversão da nota de sua própria voz enquanto objeto a na medida em que esta é desvinculada do sentido, esvaziada de sua substância, conforme nos indica Lacan (1974/1993, p. 74). O enigmático de seu vazio constitutivo retorna ao sujeito pela música que nele ressoa. A voz, quando de sua queda, cava no sujeito esse vazio. E será precisamente ele que a pulsão invocante contornará na tentativa vã de obter o objeto voz. Seguindo Lacan (1964/1998, p. 183-4), podemos apreender que o circuito próprio da invocação, por partir da produção da voz em uma borda do corpo específica e retornar na circularidade heterogênea da pulsão a uma outra borda, coloca com mais evidência a hiância e o vazio que a pulsão contorna. Há algo de mais radical na pulsão invocante por não retornar ao sujeito. Diz Lacan (Ibid, p 184): Os ouvidos são no campo do inconsciente, o único orifício que não pode se fechar. Enquanto que o se fazer ver in dica uma flecha que verdadeiramente retorna para o sujeito, o se fazer ouvir vai para o outro. A razão disso é de estrutura, importava que eu dissesse de passagem. Igualmente Quignard (1999, p. 63) aborda esta característica dos ouvidos, afirmando que “o que é orelha não conhece nem pálpebras, nem paraventos, nem reposteiros, nem muralhas”. Este autor (Idem) propõe que, desse modo, não há proteção possível ao som, sendo que este: “não é interno nem externo. Ilimitante, ele é inlocalizável. Ele não pode ser tocado: ele é impalpável. (...) O som penetra”. Seguindo estas coordenadas, pensamos que a voz e sua musicalidade sonora fazem e constroem o percurso moebiano entre o sujeito e o Outro, tornando-se êxtima ao sujeito quando de sua queda. A importância atribuída à estrutura de borda do ouvido e à função deste não fechamento para a pulsão invocante volta a ser frisada por Lacan (1975-1976/2007, p 18): (...) as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer. Esse dizer, para que ressoe, para que consoe (...), é preciso que o corpo lhe seja sensível. É um fato que ele o é. Porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não pode se tapar, se cerrar, se fechar. É por esse viés que, no corpo, responde o que chamei de voz. 65 A respeito da produção da voz, esta envolve tanto a respiração quanto a cavidade da boca. Sobre a primeira, Lacan, em 20 de maio de 1959, diz que embora a respiração seja “pulsação” e “alternância vital, ela não é nada que permita, sob o plano imaginário, simbolizar precisamente o de que se trata, a saber, o intervalo, o corte”. Essa função do corte ficará, nesse nível do orifício respiratório, a cargo da voz que é por ele produzido. A voz, afirma Lacan (idem), “é alguma coisa que se corta, que se escande”. Nesse sentido, há um dizer, um significante, que marca o corpo, constituindo-o e, assim, constituindo o próprio falasser, na medida em que este ressoa e responde a ele. A voz se coloca aí como alteridade do dizer, indicando a presença do Outro. Lacan (1975/1998, p. 11) nos diz ainda de “uma espécie de sensibilidade” do falante, sensibilidade esta que é estrutural e estruturante já que “a ressonância da palavra é algo constitucional” e que “escutar faz parte da palavra”. O ressoar da voz comparece, como afirmo acima, também na música. Há nela um real que nos toca, ao qual somos confrontados pela experiência do encontro com um vazio, e o qual não pode ser tocado, somente contornado. De acordo com Quignard (1999, p. 64): “ouvir é ser tocado à distancia”; e, ouvindo o som musical, somos tocados por um som que “nunca se emancipa totalmente de um movimento do corpo que o causa e o amplifica. Nunca a música se dissociará integralmente da dança que ela anima ritmicamente”51. Na mesma medida, cantar e tocar, e mesmo falar, é, de certa forma, tocar “à distancia”. 2.2 – Escuta, musicalidade e transmissão: a voz da mãe e do Pai Na constituição do sujeito, a voz, a princípio na fala da mãe, carrega a invocação feita ao bebê para que este advenha como tal. Esta fala é ouvida pelo bebê, mas não na dimensão de um sentido, o que somente ocorre a posteriori. As palavras e a linguagem são ouvidas em sua ressonância, em sua musicalidade, que traz em si uma invocação especial para o infans se tornar sujeito a partir do abandono da posição de objeto do desejo materno, que é fundamentalmente uma posição que implica um gozo mortífero. Se a voz materna carrega em si tal proposta, isto se dá porque há nela a incidência da castração que a Lei paterna impõe. 51 O que me leva, fortemente, a me perguntar sobre as relações entre a música e o gozo do corpo em movimento, seja o dos músicos no ato de tocar/cantar, seja o dos bailarinos que são tomados pela música, ou o dos fruidores de ambas estas artes, o que pretendo pesquisar em outros espaços e tempos. 66 Tem-se, portanto, como ressalta MDMagno (1983, p. 1), uma “invocação do Nome do Pai, pois (...) este nome sustenta o desejo com a vigência da Lei”. Vale lembrar que, ao trazer à luz pela primeira vez explicitamente em seu ensino a conceituação sobre o objeto a e sua incidência como a voz, Lacan (1962-1963/2005) parte das considerações de Reik sobre o som do schofar52, propondo uma ligação desta com a voz de Deus. Anteriormente, contudo, a voz já encontra lugar na teoria lacaniana, sobretudo no grafo do desejo, como será tratado mais adiante neste capítulo. Sobre o schofar, Lacan (ibid, p. 274) indica que: “o interesse desse objeto está em nos apresentar a voz de uma forma exemplar, na qual, de certa maneira, ela é potencialmente separável”. A voz, sendo o objeto que não somente causará o desejo do sujeito, mas dirá especialmente do desejo do Outro incidindo sobre o sujeito, carregará esta dimensão de transmissão da Lei. Deste modo, a voz materna englobara em si a voz paterna. É possível mesmo pressupor que a função mais primordial, mais “pura” da voz seja a de corte, a da Lei que impõe e invoca a separação, e conseqüentemente a perda do objeto voz, à qual vem somar-se a função igualmente transmitida pela voz de ligação, de continuidade, tal qual posta em jogo metaforicamente pela voz da sereia em seu apelo para um gozo infinito, contínuo, ilimitado – e por isso mesmo mortífero. Se a voz, por um lado, chama o sujeito ao gozo absoluto e à alienação, primordialmente, a voz enquanto voz do schofar indica que só é possível um gozo pela ruptura, pela descontinuidade, pela perda. A voz materna, isolada da voz paterna, mortifica. A função da pulsão invocante, originalmente de invocar a humanização, é assim vivificada pela voz do Pai. É preciso, portanto, um exame mais atento quanto ao que Lacan traz sobre o schofar, e me chama fortemente a atenção a dimensão tríade que incide no ritual ao qual este chifre está associado na cultura e religião judaica, sendo seu som ouvido por três vezes. Dimensão esta a que associo de imediato aos três furos entre real, simbólico e imaginário, necessários para que o furo mesmo da perda do objeto absoluto e para sempre assim perdido, das Ding, possa ser instaurado53. Assim como a relaciono aos três momentos em que a palavra bate à porta do sujeito e aos quais ele deve responder para que o supereu seja fundado, tal qual propõe 52 Chifre, geralmente de carneiro, que é usado na cerimônia judaica do Yom Kippur – Dia do Perdão –, na qual é emitido por três vezes o som deste instrumento. Não se passa despercebido o formato peculiar deste chifre, o que nos parece indicar que a incorporação da voz, como sustenta Lacan, é de fato o que cria, pela passagem do sopro da voz do Outro, que precisa ser em parte esquecida e perdida, o vazio do sujeito, tal qual o oleiro que cria o vazio do vaso no exemplo paradigmático de Heidegger sobre a criação ex nihilo. 53 Real, simbólico e imaginário, eles mesmo já em três – os três registros sem os quais um sujeito não pode advir. Bem como também em são em três os termos da topologia freudiana para a constituição do psiquismo: isso, eu e supereu. 67 Didier-Weill (1997). E podemos mesmo relacioná-la ao terceiro do chiste como proposto por Freud (1905) e aos três tempos lógicos de Lacan (1945/1998). Como pensar essa insistência de uma concepção ternária na psicanálise e relacionando-a à voz? Podemos supor que é mesmo a voz, ao transmitir a Lei, que inscreve a dimensão de alteridade para o sujeito, precipitando a queda do objeto a, do qual ela mesma é uma incidência, e fechando assim um terceiro tempo lógico original do sujeito, cor2659(?)-16.2718ooondente a ao terceiro momento do ciruito ulsional, em que de ativo assivo e 68 sustentar a proposição de que a voz, enquanto objeto a, articula tanto o aspecto de um gozo absoluto que foi estruturalmente perdido e parcialmente incorporado (relacionando-o ao pai arcaico do minto freudiano da horda primeva) quanto a dimensão pacificadora da lei paterna. Não apenas isso, o autor sustenta que é mesmo pela dimensão sonoro-vocal do Outro que a transmissão da voz se efetua, sendo o sonoro-vocal aqui associado ao que resta à significação em todo significante. O que tais religiões monoteístas deixariam entrever é o entrelaçamento simbólico entre a voz de Deus e a lei de Deus de uma tal forma que a transmissão desta última, para ser efetuada, exige que ela seja recitada, cantada ou salmodiada. E o efeito, surpreendente até, ainda que evidente, é que tais atos a vivificam. A lei precisaria assim de um suporte vocal, o que se torna mais claro na análise feita por Vives a partir das leituras de Reik e Lacan sobre o schofar. Do primeiro, Vivès resgata a rica descrição quanto às três emissões do som do schofar, lendo-a sob o paradigma lacaniano. Escutemos Reik e, em seguida, Vivès: Os três grupos de notas (...) não se diferenciam que por uma mudança de ritmo, portando no ritual nomes diferentes, a “Tekîa” (longa emissão do sopro sem interrupção), o “Schebarim” (som interrompido), la “Terûa” (som brilhante ou “bem talhado”, “trêmulo”). Um quarto grupo, a “Tekîa gedola”, não é mais que uma longa “Tekîa” e não se distingue da forma primitiva que por uma longa quinta (REIK apud VIVÈS, inédito)57. Existe, portanto, três tipos de sons/chamadas. O primeiro, longo e sem corte, a Tekîa, poderia ser traduzido como estar fixo. Após esta primeira chamada, são produzidos três sons de uma duração igual, cada um sendo um terço da Tekîa; esta série é o Schebarin cuja tradução é rupturas. O terceiro, constituído de nove sons curtos de um tempo igual a um nono da Tekîa ou a um terço dos Schebarim, a Terûa pode ser traduzido por abalo, colocação em movimento (VIVÈS, inédito)58. Associando, então, não apenas a voz do schofar à voz de Deus, como feito por Reik e Lacan, mas igualmente ao pai da horda primeva, Vivès localiza neste ritual judaico uma evocação do gozo de antes da instauração da Lei, trazendo de Freud a idéia de uma identificação por incorporação quando da morte do pai da horda pelos filhos a quem o gozo era anteriormente excluído. A incorporação de um traço do Pai, no mito freudiano, representa simultaneamente a renúncia a um gozo absoluto e a garantia tanto de sobrevivência quanto de um gozo possível de ser obtido. Assim, enquanto metáfora, o schofar se mostraria como 57 “Les trois groupes de notes (…) ne se différencient que par un changement de rythme portant dans le rituel des noms différents la ‘Tekîa’ (longue émission du souffle sans interruption, le ‘Schebarin’ (son interrompu), la Térûa (son éclatant ou ‘roulé’, ‘trémolo’). Un quatrième groupe, la ‘Tekîa gedola’, n’est qu’une longue ‘Tekîa’ et ne se distingue de la forme primitive que par une longue quinte”. 58 “Il existe donc trois sortes de sonneries. La première, longue et sans coupure, la Tekîa, pourrait se traduire être fixé. Après cette première sonnerie, sont produits trois sons d’une durée égale, pour chacune au tiers de la Tekîa cette série est le Schebarim dont la traduction est brisures. La troisième, constituée de neuf sons courts d’un temps égal à un neuvième de la Tekîa ou à un tiers de chacun des Schebarim, la Térûa peut se traduire par ébranlement, mise en mouvement. Enfin, une nouvelle Tekîa conclut le cycle”. 69 dando vestígios de uma incorporação primeira da voz paterna que se relacionaria ao tempo mítico de das Ding, Coisa absoluta, impossível de nomear e para sempre perdida – voz, segundo Vivès (Idem), “contemporânea ao gesto fundador da Lei e por isso mesmo ocupando o lugar de origem”, ao que acrescenta: O som do schofar é uma articulação entre a expressão mítica direta da substância viva présimbólica e a fala articulada. Ele vem em lugar e em função do gesto pelo qual a substância de vida, em se retirando, abriu a via para a lei simbólica. Não estamos mais aqui apenas em uma oscilação entre fala legisladora e voz fora da lei, aqui a voz em seu excesso mesmo serve à instauração da fala articulada59. Como bem destaca Lacan, o schofar e a repetição contida em sua entoação, marca que a lei foi incorporada, que a aliança com Deus foi estabelecida, podendo ser celebrada e reestabelecida, rememorada. Como efeito primordial, o surgimento do sujeito e da voz enquanto objeto a “o mais original” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 279), a partir do qual se poderia fazer uma “topografia da relação [do sujeito] com o grande Outro (Ibid, p. 274). A voz como começo. Continuo com Lacan (Ibid., p. 275): O que está em pauta agora, para nós, é saber onde se insere esse objeto como separado, a que domínio ligá-lo – não na oposição interior-exterior, da qual vocês percebem aqui toda a insuficiência, mas na referência ao Outro e às etapas da emergência e da instauração progressiva, para o sujeito, do campo de enigmas que é o Outro do sujeito. Em que momento esse tipo de objeto pode intervir, em sua face enfim desvelada sob sua forma separável? De que objeto se trata? Daquilo a que chamamos voz60. A perda desse objeto separável por excelência que é a voz inscreve então a emergência do sujeito que, ao se separar do Outro, pode aceder à dimensão do desejo. A incorporação da Lei, pela incorporação da voz enquanto objeto a seria assim a possibilidade de passar do gozo, pela perda de gozo, à Lei e ao desejo. Cabe trazer a fala de Lacan (Ibid, p. 166) quanto a este ponto no seminário A angústia: “O desejo, portanto, é a lei. (...) É a chamada lei da proibição do incesto”; ainda: “o desejo se apresenta como vontade de gozo”. O gozo permanece como direção, como exigência, ainda que seja preciso, por estrutura, abrir mão do gozo absoluto, e mortífero, para que se possa dizer sim à invocação mais primordial da voz, que é a da humanização, de um começo enquanto falante. Com isso, com tal ponto de origem do sujeito, dá-se como possibilidade real a criação da realidade psíquica, da fantasia, e da 59 “Le son du schofar est une articulation entre l’expression mythique directe de la substance vivante pré-symbolique et la parole articulée. Il vient en lieu et place du geste par lequel la substance de vie, en se retirant a ouvert la voie à la loi symbolique. Nous ne sommes plus ici seulement dans une oscillation entre parole légiférante et voix hors la loi, ici la voix dans son excès même sert l’instauration de la parole articulée”. 60 É preciso notar, como já presente em Lacan desde as considerações acerca do grafo do desejo, que abordarei a seguir, que é enquanto enigma que o Outro se apresenta radicalmente para o infans, invocando-o a emergir via voz. 70 introjeção da Lei, assim mantida viva e vifivicadora, em parte pelo supereu, para além de seus imperativos, em parte pelo vazio que a voz carrega em si e para o qual ela aponta. Vazio este assegurado fundamentalmente pela voz do Pai, ainda que esta seja transmitida pela voz materna, já que, como bem indica Didier-Weill (1999, p. 151), esta será responsável pela transmissão primária do simbólico, situando “o som dessa voz como mediação entre o que a precede e o que a sucede: o que a precede remete ao significante do Nome do Pai que sustenta o simbólico, o que a sucede é o inconsciente por vir da criança receptora do som”. O significante Nome do Pai, que a mãe, por ser ela mesma um sujeito que o porta em sua própria castração, faz com que o convite que ela porta para uma continuidade seja rompido. Ele traz a dimensão de corte nesta voz musicada, oferecendo a possibilidade de uma ordenação primeira neste caótico pulsional em que se encontra o bebê, ou, nas palavras de Didier-Weill (2003, p. 37): “uma estruturação primordial do real originalmente caótico”. Se, por um lado, a voz materna transmite o significante e a Lei, ela transmite, primordialmente e numa temporialidade anterior, a letra através de lalíngua. De acordo com Lacan (1974/1993, p. 95): “não há letra sem lalíngua”, ao que ele se pergunta: “Como pode lalíngua precipitar-se em letra?”. Como resposta, Lacan caminha em direção à escrita e à dimensão de ciframento que lalíngua comporta – cifra de gozo localizada na letra. Contudo, se lalíngua diz de um gozo, ela articula também um saber, uma vez que, conforme enuncia Lacan (1971-72/1985): O inconsciente é o testemunho de um saber, no que em grande arte ele escapa ao ser falante. Este ser dá oportunidade de perceber até onde vão os efeitos da lalíngua, pelo seguinte, que ele apresenta toda sorte de afetos que restam enigmáticos. (...) A linguagem, sem dúvida, feita de lalíngua. É uma elocubração de saber sobre lalíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com lalíngua. E o que se sabe fazer com lalíngua ultrapassa muito o de que podemos dar conta a titulo de linguagem. (...) É nisso que o inconsciente, no que eu o suporto com sua cifragem, só pode estruturar-se como uma linguagem, uma linguagem sempre hipotética com relação ao que a sustenta, isto é, lalíngua. Propondo uma leitura sobre esta complexa relação entre lalíngua, letra, gozo, linguagem e inconsciente, MDMagno (1983, p. 35) busca fundamentos nos conceitos freudianos de processo primário e princípio do prazer para formular a existência de algo que, equivalendo-se a estes, seria a “condição da linguagem”, “o substrato significante de lalíngua”. A isto, ele denomina A Música. O inconsciente, feito de lalíngua, teria como condição fundamental esta A Música, o processo primário (ibid, p. 38): “lalíngua tem uma máquina para ela. Essa máquina é que chamo A MÚSICA – processo primário”, sendo que “essa máquina vai ser catexizada, essa maquininha hiperbólica que chamei de A Música, vai ser ocupada”. E a ocupação disso que é da ordem do processo primário, com suas leis 71 sintáticas de deslocamento e condensação, fundará um saber-fazer com lalíngua, que, posteriormente, abrirá caminho para os processos secundários e o princípio de realidade. É importante destacar que ao fazer a hipótese de A Música, MDMagno não a equivale, como é possível perceber, às músicas. Estas seriam efeito da ocupação que se faz sobre A Música, sobre o processo primário, e que parte de lalíngua. Diz ele (ibid., p. 60): “Uma música não se faz a partir da Música. (...) Ela se faz sobre a Música, assentada na Música, por sua ocupação, mas a partir da letra que se instala na lalíngua, e essa letra ocupa também a Música. A recíproca não sendo verdadeira”. Com isso, é possível ler nessas considerações de MDMagno uma ênfase na transmissibilidade daquilo que fundará a estrutura do falante através dessa musicalidade peculiar da voz materna, que invoca o Nome do Pai e a Lei simbólica, mas que fornece igualmente um enigma e uma equivocidade que permanecerão causando o sujeito em seus atos e construções com o significante. A respeito dessa dimensão musical da fala materna, Quignard (1999, p. 64), cunhou o termo sonata materna, ressaltando a uma dimensão sonora e musical no estabelecimento do laço entre bebê e mãe e na instauração da linguagem que se coloca antes mesmo do nascimento do primeiro e que este ouviria “em surdina”. A voz tem aí papel fundamental uma vez que, por sua função de corte, permitirá que o bebê passe de ouvinte a falasser, tendo o imperativo de incorporar a voz e buscando se fazer ouvir. O laço entre a criança e a mãe, o reconhecimento de um pelo outro, depois a aquisição da linguagem materna se criam no seio de uma chocagem sonora muito ritmada datando antes do nascimento, prosseguindo depois do parto, se reconhecendo pelos gritos e vocalizes, depois pelas canções e versinhos, nomes e apelidos, frases repetidas, que coagem, que se tornam ordens (Ibid., p. 126). Podemos também depreender deste trecho a importância da nomeação61 para se tornar um sujeito separado do Outro, ainda que a ele assujeitado, e da voz na formação do supereu, ponto, porém, que não avançarei por agora aqui62. Seguindo Quignard, Didier-Weill (1999, p. 9) defende que é por essa sonata materna que a Lei da linguagem é transmitida ao bebê, que a recebe como uma invocação que lhe traz a vocação para se tornar humano, sendo preciso, para isso, passar tanto pela fusão com a mãe quanto pelo corte para com esta. Nas palavras do autor (idem): 61 Lembro o que trouxe acima a partir de Vivès (2005, p. 5) acerca do “se fazer chamar de todos os nomes” que a invocação da voz nos coloca. 62 Demarco, entretanto, que Lacan (1962-1963/2005, p. 275) aponta que a voz é um objeto separado do sujeito no “campo de enigmas que é o Outro do sujeito” que intervém por “seus dejetos, as folhas mortas, sob a forma das vozes na psicose, e seu caráter parasitário, sob a forma dos imperativos do supereu”. Por ser inexistente, quando o objeto a, incluindo aí a voz, intervém para o sujeito, ou seja, quando surge um objeto ali onde deveria haver a falta, tendo como conseqüência que a falta falta, decorre disso a angustia (Ibid, p. 98). 72 A vocação para tornar-se humano nos é originalmente transmitida por uma voz que não nos passa a fala sem nos passar, ao mesmo tempo, sua música: a música dessa “sonata materna” é recebida pelo bebê como um canto que, de saída, transmite uma dupla vocação: está ouvindo a continuidade musical de minhas vogais e a descontinuidade significante das minhas consoantes? Chamou-me fortemente a atenção a escolha pelo termo sonata dentre os diversos outros que a teoria musical nos disponibiliza. Nenhum dos dois autores traz considerações sobre essa escolha ou sobre como a sonata é pensada e construída no campo musical. Seria, de fato, a voz nesse momento inicial para o sujeito ouvida como uma sonata? O que a música poderia nos auxiliar nessa reflexão? O termo sonata em música, de acordo com Beaussant (1997, p. 72), é relacionado tanto à forma sonata (ou forma-sonata), ou seja, à estrutura interna que determina um movimento musical instrumental, quanto ao gênero musical sonata. No primeiro caso, tem-se uma estrutura bem definida, composta pela exposição de um tema, seu desenvolvimento e reexposição, que pode ser utilizada em quaisquer movimentos (iniciais, lentos ou finais) de diversos gêneros (concertos, sinfonias, sonatas, quartetos)63. Esta forma surgiu no final do século XVIII e foi utilizada mais fortemente no período clássicoromântico. Enquanto gênero, a sonata se define por ser uma “composição que compreende vários movimentos, destinada a um numero reduzido de instrumentos, geralmente dois ou três e, mais tarde, apenas um ou dois” (Ibid, p. 91). Tendo surgido no século XVII, é interessante notar que as sonatas não ultrapassavam o número de três instrumentos, o que não deixou de chamar minha atenção pela importância estruturante deste número para a psicanálise, e que a terminologia moderna restringe esta palavra exclusivamente a peças para instrumentos solo e peças para dois instrumentos, em geral um piano e um instrumento de corda friccionada. A sonata, nessa medida, é uma voz solo que se dirige ao Outro, ou uma voz que procura uma resposta em outra voz dentro da própria obra, e vice-versa, ambas voltando-se ao ouvinte e ao Outro. Há ainda que ser levado em consideração que sonata é a palavra italiana para “soada”, e, por isso, designa de um modo mais geral as peças soadas por instrumentos de sopro ou de cordas, ao passo que para peças de instrumentos de teclados costuma-se utilizar toccata. Já para obras cantadas, o termo empregado é cantata que também designa um gênero musical vocal pra uma ou mais vozes de estrutura bastante plástica, podendo apresentar um coro, 63 A forma sonata por vezes é antecedida por uma abertura e frequentemente seguida de uma coda. Esta pode ou explorar idéias musicais já apresentadas na obra ou introduzir outras novas, podendo ter uma função tranqüilizadora ou inquietante por trazer “um novo matiz de mistério” (Beaussant, 1997, p. 74). 73 solistas e mesmo partes instrumentais, e distinguindo-se em cantatas sacras e profanas. O que ressalto neste gênero é que há neles a dimensão tanto da voz enquanto pura musicalidade e também da voz que veicula um texto. Há aí uma modulação, de um lado, e uma articulação, de outro, sem que, entretanto, se vise um sentido. A partir destes parâmetros, proponho que a voz e a fala maternas são ouvidas pelo sujeito tanto quanto sonata, por aquilo que soa, modula e faz ressoar, como quanto cantata, pela articulação significante e do que disso produz marcas distintivas nele64. Deste modo, se a voz tem sua função de litoral entre sujeito e Outro, no caso da neurose, isso se dá uma vez que ela não se alia somente ao que aqui chamamos de dimensão sonata ou de dimensão cantata. Ela não se presta separadamente à modulação ou à articulação. A voz se encontraria, mais precisamente, entre sonata e cantata, sendo assim escutada pelo sujeito por sua função de enodar ambos estes aspectos quando de seu advento. Com isso, se consegue, pela instauração de um ponto de surdez à voz do Outro, algum fazer com o objeto voz, como na música, que traz vestígios do impossível de dizer próprio da voz. O que nos leva a pensar que tal posição entre, tal função de litoral, não seja operada pela voz na psicose, podendo assim aparecer no real, como canto ensurdecedor que não promove a separação. O impossível de dizer, entretanto, permanece atrelado à voz como um ruído real, que nunca será capturado ou simbolizado. Por mais que se possa avançar em direção ao real, orientado por ele, e se criar novas palavras que tentem dizer o indizível, este último se manterá como um ponto que retorna e destoa tanto do soar quanto do falar, da sonata e da cantata, ficando entre as letras, ou aquém delas, próximo do grito puro para sempre perdido. Quignard (1999, p. 10) pergunta-se acerca dos laços entre a música e o sofrimento sonoro tomando como base o mito de Atenas quando esta inventou a flauta “para imitar os gritos que ouvira sair da goela dos pássaros-serpentes de asas de ouro e presas de javali. Seu canto fascinava, imobilizava e permitia matar instantaneamente de terror paralisante”. Também a voz materna tem essa dimensão de um terror mortífero e paralisante, em sua promessa de gozo absoluto, num tempo logicamente anterior à transmissão da Lei que ela mesma faz, possibilitando um corte neste gozo e a instauração de um gozo parcial, fálico. A voz materna carrega em si o ruidoso estrondo do corte que ela opera, da castração, do traumático da castração. Algo que, de algum modo, como nos indica Quignard (ibid, p. 11), a música parece permitir que a voz se faça ruído para o velar: “(...) a musa ‘amuse’ (diverte) a dor”. 64 É interessante destacar que mesmo na fala, em que a articulação é visivelmente encontrada e desejada, a modulação também está presente, já que a emissão da fala se dá pelo ar através de tons, de ondas sonoras produzidas pelas cordas vocais, que são moduladas por ação da musculatura da cavidade bucal. Desse modo, as ondas acústicas deste ato são interpretadas e escutadas pelo ouvido como fala. 74 Terror e música. Mousikè e pavor. Esses nomes me parecem inevitavelmente ligados – por mais alógenos e anacrônico que sejam entre si. Como o sexo e o pano que o reveste. * Os panos são o que enfaixa uma ferida que sangra, o que dissimula uma nudez que envergonha, o que envolve a criança quando ela sai da noite materna e descobre sua voz, emitindo seu primeiro grito, desencadeador do ritmo próprio à respiração “animal” que será a sua até a morte (idem). Terror este que também pode ser encontrado na dimensão mortífera da voz materna que tão bem ilustra a figura mítica das sereias. Na Odisséia de Homero (1993, p. 114-115), encontramos uma passagem na qual Ulisses, orientado pela deusa Circe, instrui seus companheiros de viagem a utilizarem um tampão feito de cera para que se tornassem surdos à voz e ao canto das sereias de forma que eles pudessem dar seguimento à sua travessia. Ulisses, entretanto, pediu para ser amarrado ao mastro de sua nau com o maior número de laços possível. Em seu canto, com uma “sua voz divinal”, as sereias prometem um saber absoluto65, atraindo os navegantes com uma beleza sem igual que, porém, os leva à morte. Seguindo as recomendações de Circe, Ulisses consegue sobreviver ao “canto harmonioso” das sereias. Tal canto não é apenas harmonioso, ele é também grito, como indica Guignard (1999, p. 100), phthoggos e aoïde. Assim sendo, a metáfora do canto das sereias para dizer da voz materna indica que há um real e um simbólico que dela se desprendem e que marcam diferentemente o sujeito. Tais marcas não se apagam, continuam tendo função e efeitos. A voz materna carrega também sua vertente de ruído, que mesmo sendo esquecida, em parte, pelo recalque originário, poderá retornar e causar estranhamento, ou mesmo angústia ou inibição, naqueles que se defrontarem com esse real da voz. Essa característica ruidosa e terrificante da voz materna enquanto representante da voz do Outro poderia ser pensada também como permanecendo nos sujeitos no imperativo superegóico, no caso das neuroses, ou mesmo na alucinação auditiva das psicoses, chamando para um real de um gozo tal qual o canto das sereias promete. E penso que na estrutura mesma da pulsão há um ruído da voz que se faz presente. Coutinho Jorge (2003, p. 26) observa que Freud falava da “melodia das pulsões”. Haveria, na perspectiva freudiana, um aspecto silencio das pulsões relativo à pulsão de morte e um outro ruidoso, barulhento, ação da pulsão de vida. Porém, se pensarmos que é do lado do real que mais se aproxima aquilo que a pulsão de morte traz na teoria psicanalítica, vale inverter tal lógica. O real é o que de 65 Nas palavras de Homero (1993, p. 115): “Vem aqui, decantado Ulisses, ilustre glória dos Aqueus; detém tua nau, para escutares nossa voz. Jamais alguém por aqui passou em nau escura, que não ouvisse a voz de agradáveis sons que sai de nossos lábios; depois afasta-te maravilhado e conhecedor de muitas coisas, porque nós sabemos tudo quanto, na extensa Tróade, Argivos e Troianos sofreram por vontade dos deuses, bem como o que acontece na nutrícia terra”. 75 mais absurdamente gritante, pulsante e ruidoso pode haver, ainda que um grito tal qual aquele destacado por Lacan, no seminário Problemas cruciais para a psicanálise (Inédito), ao falar sobre o quadro O grito de Eduard Munch, um grito tão alto e tão ensurdecedor que não se ouve, que se torna mudo, que ao mesmo tempo funda e se funda no silêncio. Um “silêncio absoluto”, segundo Lacan (1968-1969/2008, p. 219), em torno do qual se centra tal grito. Todas as produções barulhentas da pulsão de vida seriam feitas para tentar silenciar esse ruído real, esse grito constante, que a pulsão de morte apresenta. 2.3. A voz entre o sujeito e o outro: o grito e o silêncio Um grito nasce com a manhã que o funda. O canto. O grito. E a voz percorrendo ambos, de maneiras distintas, porém, em um e outro, convocando uma resposta singular do sujeito pela via de um ato que a faz calar e, simultaneamente, faz com que o sujeito possa se dar a ouvir. O norte para esta reflexão sobre sujeito, canto, grito e, conseqüentemente, silêncio, será uma frase pinçada da canção Soul, do cantor e compositor Pedro Luís: “Minha garganta canta ou grita”. Nela, pude ler, de maneira sintética e poética, tanto a máxima freudiana sobre a pulsão enquanto conceito limítrofe entre psíquico e somático, quanto o que, no caso desta incidência do objeto a, se pode fazer para buscar satisfazer o circuito da pulsão invocante. O canto e o grito, portanto, como duas respostas singulares e possíveis frente ao impossível do real – mais especificamente ao real da voz do Outro tornado silencioso quando da incorporação da voz pelo sujeito. É mesmo a voz que possibilita, com sua queda e o conseqüente contorno do vazio que ela instaura, que uma fala possa ser articulada e posteriormente endereçada ao Outro na tentativa de responder àquilo que do desejo deste nos marca. “Che vuoi? – Que queres?”. Uma resposta se faz necessária, estruturando a posição em que nos colocaremos, a cada vez, diante deste campo de alteridade de onde emergimos através da mediação de um outro próximo que o encarna. Há, assim, um movimento pulsante e contínuo que é inerente ao processo de emergência do ser falante, implicando em uma separação, um corte, que o faz 76 surgir, sem que, contudo, se esgotar. O enigma quanto ao desejo do Outro permanece e nos acossa. Separação e alienação, corte e tamponamento. Entre estes pólos, o objeto a. Se, por um lado, pode ser ouvido um saber-fazer com o objeto voz através do contorno de seu vazio na criação musical, por outro, é possível recolher no grito não apenas um endereçamento ao Outro, também presente na música, mas igualmente um aquém dos sentidos, um ponto de irrupção do real inarticulado que a linguagem, via voz, carrega. Um ponto que pode ser atravessado pela angústia, uma vez que esta nos diz de um limite do sujeito frente à falta instaurada pela castração quando esta lhe é, de algum modo, tamponada. Ou melhor, nas palavras de Lacan (1962-1963/2005, p. 52), a angústia irrompe quando “a falta [da castração] vem a faltar”. É interessante notar que Lacan (Idem, p. 192-193) localiza a angústia entre o gozo e o desejo, afirmando que: “é depois de superada a angústia, e fundamentado no tempo da angústia, que o desejo se constitui”. Como, então, pensar a voz aí? Penso que um caminho de reflexão se dê quando nos detemos sobre a dimensão deste inarticulado que a voz carrega. Para isso, é preciso pensar a voz em sua dimensão litoral, indicando, assim, um limite que pode levar a uma torção entre pontos heterogêneos, a saber: sujeito e Outro, desejo e angústia, fala, fonema e sonema – conceito estabelecido por LéviStrauss (1997, p. 71) para definir a estrutura mínima da linguagem musical, assim como para destacar o aspecto sonoro presente na linguagem (Idem, p. 75). A voz abre a possibilidade tanto da articulação quanto do inarticulado, ou, dito de outro modo, da representação e do irrepresentável, do que se pode ouvir e do que é inaudito. A partir dela, real, simbólico e imaginário se tocam e ressoam, colocando a pulsão invocante em ação. É possível mesmo afirmar que tais heterogeneidades podem começar a se delimitar a partir de um grito que o infans dá a partir da invocação humanizante que a pulsão invocante, via voz do Outro, lhe coloca. É um grito que, conforme apresenta Lacan na lição de 17 de março de 1965 do seminário Problemas cruciais para a psicanálise, promove uma “implosão” e uma “explosão”, forjando e cavando tanto um silêncio quanto a própria possibilidade de uma verbalização. Neste momento primeiro, o grito estabelece um silêncio puro, que pode ser lido como um real mítico de um gozo absoluto que foi necessariamente perdido com o próprio ato do grito. Lacan avança esclarecendo que o silêncio estabelece um laço, um nó, para com o Outro e que este nó ressoará quando o grito o atravessar e escavar. Com isso, podemos dizer, seguindo Lacan, que o grito tem primordialmente função de corte e, num momento segundo, nos arranca de uma proximidade aterrorizante e angustiante para com o Outro, que poderia tamponar tal corte. O grito, porém, faz com que seja sustentado um vazio – o do silêncio – entre o Outro e nós, e permitindo um gozo possível com 77 a voz. Diante da angústia, uma saída se apresenta através do grito, fazendo com que, novamente, o objeto voz possa cair, restabelecendo a hiância que nos separa do Outro. É o que ressalta Gómez (1999, p. 155) ao afirmar que: “o grito surge ante a queda e a queda é o prenúncio do nada do vazio”. Com o vazio posto em cena, o sujeito poderá se endereçar ao Outro na busca de se ouvir e de se fazer ouvir: “Quem grita necessita fazê-lo também para escutar-se” (Idem). Porém, o que o grito veicula não é da ordem de uma articulação, de um sentido, de algo que porta uma demanda (visto que essa já se articula com a linguagem) ou mesmo uma significação. O grito surge quando o real irrompe, quando há um afrouxamento dos laços entre o real e simbólico, real e imaginário ou mesmo dos três registros, podendo mesmo visar um restabelecimento destes laços através da descarga disso que excede a palavra, mobilizando o corpo. Deste modo, há um endereçamento da voz, colocada em ato e sonorizada não por uma verbalização, mas por um sonema, ou mesmo um fonema, como no caso das interjeições, que faz com que um gozo possa ser, através de uma descarga que envolve o corpo tão nitidamente, obtido. O grito estaria, então, muito mais próximo da letra e do real do que do significante e do simbólico. Entretanto, já está nele indicado uma relação com o Outro, já há um endereçamento, ainda que mínimo, estabelecendo, no caso do momento de constituição do sujeito, uma primeira aproximação da linguagem, passando a uma tentativa de apropriação e incorporação da linguagem pela voz. Em outros momentos, posteriores, o grito, ante ao real, pode visar à função de se direcionar para o imaginário ou para o simbólico. Se o grito coloca em cena a voz, ele indica o movimento da pulsão invocante na tentativa de obtenção deste objeto, e, igualmente aponta para o se fazer ouvir que tal pulsão abarca. Se fazer ouvir pelo Outro, pelo outro e mesmo por si. Há algo do grito que vai para o campo do Outro, como Lacan (1964/1998, p. 184) já nos alerta sobre a peculiaridade estrutural da pulsão invocante, e algo também que retorna para o sujeito, fechando o circuito pulsional. Todavia, Gómez (1999, p. 154-155) ressalta que pode haver uma vertente autoerótica no grito que prescinde do próximo: “o grito, como veículo que suporta a mais pura emissão de gozo, é profundamente inconsciente e particularmente autoerótico”. O grito, então, pode ser pensado em diferentes funções, ou mesmo tempos. Um grito primoridal, grito puro, que faz com que a o pulsional possa ser colocado em movimento como uma resposta primeira do infans frente à voz do Outro que o marcou. Um grito que já comporta um endereçamento e que, após a passagem pela experiência da satisfação e pela exclusão de das Ding, pode abrir a dimensão do desejo e igualmente ser ouvido como demanda de amor (de ser cuidado, alimentado, erogeneizado, significantizado) pelo outro. 78 Um grito que localiza um gozo possível diante da queda do objeto voz e da própria condição do sujeito como objeto. Mais que isso, o grito, com o silêncio que ele funda a partir do recalque originário, criando um abismo entre sujeito e Outro, possibilita que a voz cumpra esta função de corte e de estabelecimento destes dois campos distintos, de alteridade. A partir daí, uma resposta poderá ser dada ao Outro, pela voz, mas não somente por ela. Essa resposta será dada através do encaminhamento pulsional no contorno do objeto a, fazendo com que o desejo enigmático do Outro funcione como causa do desejo do próprio sujeito. É preciso ressaltar que também na música, em especial a moderna e a contemporânea, o grito tem se feito presente, revelando ainda mais nitidamente que a voz é ali colocada à serviço não das palavras que ela pode veicular nas canções, mas principalmente deste resto que é a voz como objeto a recuperado pelo canto ou mesmo pelas vozes instrumentais. Schönberg (1990, p. 20), dentre muitos músicos, já defendia que “a música exprime mais do que as palavras”. Se o grito comparece neste tipo de música, ele aponta para o aspecto de gozo puro, primordial e perdido que a voz traz em sua dimensão inarticulada. Segundo as coordenadas estabelecidas por Lacan sobre este grito primeiro que é a expressão vocal de uma tensão do infans interpretado pelo Outro como demanda, aspecto muito bem destacado por Freud (1950[1895]/2006, p. 362) no Projeto, e um grito posterior, já participando da relação do infans com o desejo do Outro, Poizat (1986, p. 145) nos apresenta as concepções de, respectivamente, um “grito puro” e um “grito para”. E entendo que o grito na música simultaneamente evoca esse primeiro grito e convoca um endereçamento. Um exemplo do primeiro caso, da evocação, pode ser ouvido na música lírica, na qual as divas atingem o ápice das óperas sustentando uma nota aguda que se aproxima do grito. Neste ponto limítrofe, as divas revelam um “comparecimento da voz do Outro, que surge na ópera no estranhamento do canto feito grito pela suspensão da escansão significante nas notas extremamente agudas, rompendo com a palavra e a inteligibilidade do texto” (Mattos, 2008, p. 218). O segundo caso, o da convocação, me remete à entrevista, destacada por Alencar (1997, p. 355), com a cantora Janis Joplin em um programa de um canal norte-americano no qual a mãe desta aparece fazendo comentários à filha: “uma mãe que elogia sua ‘filha maravilhosa’ e que, ao final, atira a questão: ‘Eu só não consigo entender, minha filha, porque é que você grita tanto!?’, ao que, de pronto, Janis retruca: ‘É pra ver se você me escuta’”. Retomando a frase da canção do cantor Pedro Luis, ela parece colocar com a idéia da garganta que “canta ou grita” uma resposta ao Outro que passa pelo corpo e enlaça borromeanamente os três registros lacanianos, sendo um modo de lidar com o objeto a, objeto voz, que fura a angústia e desidealiza a questão da criação artística e da sublimação. 79 Incorporar o grito na música faz com que um paradigma para além do harmônico e do Belo seja configurado, um paradigma que comporte o gozo e o objeto em sua vertente mais próxima ao real. Minha aposta é, assim, que, sob um paradigma musical que não exclui o limite para o qual aponta o grito e o silêncio, ou seja, o paradigma de Schönberg, o canto e a música evidenciam um outro limite que contorna o vazio, enlaçando simultaneamente os três registros, fazendo isto a partir do simbólico, velando e revelando o real, e tendo efeitos singulares em cada sujeito que a toca e/ou escuta (S – > R – > I). Já o grito em si, apartado de uma função estética, contudo em uma dimensão ética, nos dá pistas para escutar um limite que anuncia o vazio, fazendo com que o real engendre um enlaçamento renovado entre o simbólico e o imaginário (R – > S + I). Neste sentido, a música seria um campo propício para que ocorra uma torção da voz entre os registros do real, do simbólico e do imaginário, um reverberando nos outros, produzindo efeitos de sujeito naquele que a ela se abre. 2.4 – Falar: via desejante, com voz O enigma que Lacan nos apresenta sobre a voz não tem sua primeira incidência quando ocorre a conceituação da voz como objeto causa de desejo a partir das reflexões sobre o Schofar no seminário A angústia, como aqui trabalhado anteriormente. Bem antes desse passo decisivo, temos uma indicação preciosa sobre o que é a voz, como ela marca um sujeito, fundando-o na relação deste com o Outro e com o significante. Relacionada ao desejo, a voz surge nas construções teóricas dos seminários As formações do inconsciente e O desejo e sua interpretação e do escrito Subversão do sujeito e dialética do desejo no esquema que foi denominado de “o grafo do desejo”. Num patamar em que está em jogo a estruturação do eu e da imagem do outro, algo que podemos logicamente localizar no estágio do espelho, chama a atenção que apareça a voz, e não o olhar, como um operador fundamental. A voz parece, assim, indicar uma incidência mais pura, mais real, do desejo do Outro sobre o infans. Será somente depois, tendo sido incorporada a voz, que o desejo, via olhar, poderá se dirigir ao Outro. Há um movimento de introjeção e de projeção/expulsão, de ser marcado (e esburacado) pelo desejo do Outro, para que o desejo possa ser tomado como próprio do sujeito (ainda que sempre enquanto enigma e sempre como desejo do Outro) e ser a este 80 campo direcionado. E este movimento exige uma temporalidade própria, que pressupõe que a pulsão enquanto força constante, como conceitua Freud (1915/2006a, p. 114), possa ser colocada em ação em circuitos que se abrem e se fecham, conforme já delimitado na teoria freudiana e retomado por Lacan (1964/1998, p. 183), o que dá margem para pensar em uma ritmicidade que não se confunde com os ciclos próprios do instintual. É de um ritmo desejante que se trata, um ritmo que inclui o fracasso no fechamento do circuito pulsional, que deixa sempre um resto, um objeto que dele cai. E tal temporalidade parece igualmente nos indicar a torção inaugural do desejo do Outro para o desejo ao Outro, do objeto voz para o olhar. Destaco desde já que esta característica de uma temporalidade está nitidamente em questão naquilo que Lacan procurou transmitir com a elaboração do grafo do desejo. Nele, podemos observar a ação da linguagem regida uma sucessão, por uma diacronia, se desenrolando no tempo que terá efeitos cruciais na “implicação do sujeito no significante” (Lacan, 1958-1959/2002, p. 23). Estes efeitos serão sentidos dentro da lógica do a posteriori, por retroação. Isso nos ajuda a compreender, de partida, porque a voz encontra-se neste grafo e não o olhar. A voz atua primordial e originariamente no infans, transmitindo o desejo enigmático do Outro, e o invocando a se colocar como sujeito para além da posição objetal. No início, era o verbo. E o verbo se fez carne. Voz marcando o desejo. Sujeito em emergência podendo responder se endereçando ao Outro com sua voz e fazendo com que o seu desejo se dirija ao Outro pelo olhar. Estádio do espelho. Constituição da imagem unificada e do eu. Voz do Outro ratificando este processo. Por retroação. Vemos assim neste grafo que tal 81 temporalidade lógica que pressupõe a antecipação de um lado, por parte do sujeito, e a retroação de outro, por efeito do significante, indicará como do campo da necessidade, de um sujeito mítico (ponto de saída do grafo), surgirá um sujeito dividido, perpassado pela demanda e fundamentalmente tomado pelo desejo. A voz aparece no primeiro andar do grafo como prolongamento direto do vetor do significante. Porém, é preciso levar em consideração que, topologicamente, há a implicação do oito interior nesta figura, fazendo com que este primeiro prolongamento dê lugar ao que de fato se trata: a continuidade entre o gozo e a voz e, ao mesmo tempo, do significante com a castração. E porque há a implicação da castração que o Outro surgirá para o infans como aquele que porta o enigma de seu desejo, como aquele que ao mesmo tempo lhe dirige uma pergunta, Che vuoi?, e que pode lhe dar uma resposta sobre ela, a qual o sujeito procurará em suas escolhas e enunciações de maneira metonímica. Isto implicará a dimensão de desaparecimento, de fading, da alienação ao significante que vem do Outro, que pressupõe uma identificação primeira, ao traço unário, que, segunda Lacan (1960/1998, p. 822), “por preencher a marca invisível que o sujeito recebe do significante, aliena esse sujeito na identificação primeira que forma o ideal do eu”. Há aí a ação da voz na constituição do ideal, fazendo com que a própria possibilidade do eu através da imagem, do olhar, pelo estádio do espelho, se dê, como encontramos na segunda etapa do grafo. Lacan (1958-59/2002, p. 41) destaque que: “Esse segundo andar do grafo não é outra coisa que o sujeito na medida em que ele passa sob os desfiladeiros da articulação significante. É o sujeito que assume o ato de falar: é o sujeito enquanto Eu”. A marcação do significante através da voz e do desejo do Outro faz com que seja possível, a partir desta “primeira rubrica, signum, da sua relação com o Outro” (Ibid., p. 24), incorporar a linguagem, fundando o objeto a e o eu no estádio do espelho. Constrói-se aí uma ausência que pode ser sentida como presença, incidindo a dimensão do desejo de um sujeito que advém. É neste ponto que o desejo do Outro ressoará no sujeito operando um intervalo entre a demanda e o desejo, possibilitando, na terceira etapa do grafo, através da experiência especular com o semelhante, que o sujeito possa enquadrar o objeto a na fantasia, “esse lugar de saída, esse lugar de referência por onde o desejo vai aprender a se situar” (ibid, p. 29). O que Lacan aí evidencia com essa “mostração” da constituição da fantasia é que há nela uma resposta do sujeito ao real a partir de elementos do simbólico, previamente inscrito pela voz, e do imaginário, em sua relação com o olhar e o desejo ao Outro. Em sua versão completa, lida retroativamente, o grafo nos indica que a fantasia regula o desejo, e que este somente pôde surgir porque de objeto do Outro, o sujeito pôde advir, 82 portanto uma divisão, uma Spaltung, da qual resta um objeto que, embora inapreensível, fará com que o circuito pulsional se encaminhe. O grafo se fecha, assim, fazendo, pela lógica do oito interior, uma continuidade complexa com seu ponto de partida, propondo uma organização, uma estruturação puslsional possível àquilo que era da ordem de um real caótico e pulsante. Vemos, aí, uma passagem da voz à fala, ou, como Lacan (1960/1998, p. 832-833) escreve, um “efeito da enunciação inconsciente”. Resta ainda articular a questão do gozo que se coloca a partir do grafo do desejo e sua implicação com a voz. O que o a barra do recalque propõe é uma interdição ao gozo absoluto, ao mesmo tempo em que evidencia que esta possibilidade foi perdida para sempre com o advento do sujeito enquanto faltoso e desejante. Através da castração, opera-se a perda deste gozo pleno e entra-se na lógica de um gozo possível, gozo fálico, mediado pelo significante e concernindo o corpo. A Coisa é perdida, mas ela deixa rastros, que podem ser seguidos e circundados através do objeto a. O ser é perdido e chega-se ao sujeito, como sustenta Lacan (ibid, p. 834), baseando-se Paul Valéry: “Sou no lugar onde se vocifera que ‘o universo é uma falha na pureza do Não-Ser’. E não sem razão, porque para se preservar, esse lugar faz o próprio Ser ansiar com impaciência. Chama-se o Gozo, e é aquele cuja falta tornaria vão o universo”. A relação entre gozo e voz fica aí destacada na escolha lacaniana do termo verbo “vociferar”, que aponta para um dos movimentos da pulsão invocante, de emissão da voz como resposta ao desejo do Outro, estando a ele endereçado. Novamente, Lacan (ibid, p. 836) evidencia esta articulação quando, ao tratar da incidência da Lei da castração na produção deste gozo parcial e dos vestígios que ela deixará no sujeito através do supereu e de seu imperativo de gozo, pontua que: “Com efeito, viesse a Lei ordenar ‘Goza’, o sujeito só poderia responder a isso com um ‘Ouço’, onde o gozo não seria mais do que subentendido”. Cabe aqui ressaltar a homofonia no idioma francês entre jouis (goze) e j’ouïs (ouço), que acaba por nos levar ao retorno da pulsão invocante sobre o corpo do sujeito, fechando o movimento de se fazer ouvir. Com isso, podemos pensar, a partir do grafo do desejo, que há uma articulação fundamental entre a possibilidade de um sujeito advir e a marcação neste da voz do Outro. Parafraseando Lacan, cabe dizer que: Sou no lugar onde, da voz do Outro, esquecida, pude vir a falar com minha própria voz. A enunciação sustentada e veiculada pela voz traz ressonâncias dos ditos dos pais que constituirão no sujeito o ideal do eu, o eu ideal, estes dois por uma via ligada ao imaginário e ao estádio do espelho, e igualmente o supereu enquanto uma instância estrutural que porta em si resquícios e vestígios, mesmo sonoros, da Lei que rompe com a alienação inicial do infans, 83 fazendo com que possa se tornar um sujeito separado do Outro, ainda que a ele assujeitado. E, neste processo, as vozes parentais serão de maior relevância na formação do supereu, como já defendia Freud (1923/2006: 36). Como indica Assoun (1999, p. 57): “As vozes do supereu, seus vocalizes, seriam, portanto, literalmente as vozes, efetivamente dantes percebidas, dos pais (acústicos), mas cuja reminiscência se opera a partir da força pulsional”. E tais vozes “denunciariam”, ainda, que é no Outro que o sujeito advém: (Idem, p. 56): “Se há vozes no sujeito, é que isso falava (dele) na origem, no Outro (nomeadamente, parental)”. O supereu se faz assim, não apenas um “herdeiro do complexo de Édipo”, como definiu Freud (1923/2006, p. 49), mas um “herdeiro vivo (ASSOUN, 1999, p. 59), na medida em que tem um valor estrutural para o sujeito e igualmente atualiza o vetor pulsional, ordenando o sujeito que busque o gozo. Seu imperativo se resume em: “Goze!” e se faz ouvir posto que houve a incorporação da voz. Lacan (1962-1963/2005: 275) aponta que se a voz é um objeto separado do sujeito no “campo de enigmas que é o Outro do sujeito”, ela intervém no sujeito e que pode ser conhecido clinicamente por “seus dejetos, as folhas mortas, sob a forma das vozes perdidas da psicose, e seu caráter parasitário, sob a forma dos imperativos interrompidos do supereu”. À pergunta Che vuoi? vinda do Outro acerca do desejo do próprio sujeito, este poderá dizer um sim ou um não, ao que ele atribui uma dimensão das incidências do supereu, em sua construção, no sujeito, como propõe Didier-Weill (1997, 34). Este defende uma “tripla concepção do supereu” (Ibid, p. 35), que pode ser lida como o próprio imperativo superegóico sendo instituído no sujeito em três temporalidades lógicas distintas. Segundo Didier-Weill (Ibid, p. 33), para que a palavra possa fundar o sujeito enquanto falante, ela deve ser ouvida e repetida três vezes, sendo que em cada uma das vezes que “a palavras bate à porta”, uma resposta precisará ser dada. Relacionando tais respostas a estes três movimentos da construção superegóica, este autor indica que (Ibid, p. 34-35): Seremos, portanto, levados a distinguir três supereus: a injunção do primeiro supereu, o supereu arcaico, que tende a introduzir um silêncio absoluto, é traduzível por: “Nem uma palavra!”. Através de seu segundo mandamento, o supereu, tendo que levar em conta que uma primeira palavra foi enunciada pelo sujeito, tenderá, enquanto censura, a significar ao sujeito: “Não insista; você disse uma palavra, não dirá duas!”. Quanto ao terceiro supereu, confrontado ao fato de que o sujeito transgrediu a censura para se engajar na insistência, ele cessará de ser injuntivo para se tornar o suporte da seguinte questão: “Encontrará você a terceira palavra capaz de transmutar sua insistência em perseverança?”. A terceira palavra, o assim dito terceiro supereu, concebido nos moldes freudianos do Édipo, seria estruturante na medida em que mais faz perseverar a própria posição do sujeito, ainda que esta possa se reatualizar. O movimento do sujeito em assumir uma tal posição 84 singular como falante passa portanto por uma resposta que se dá através da voz – simultaneamente assim perdida e encontrada. Trata-se de tecer respostas a se dar ao Outro a partir de uma posição própria, mas não sem trazer em si as vozes Outras que o determinam, e ressaltando que nenhuma resposta poderá ser definitiva. A relação do sujeito para com o Outro é a todo instante recolocada em cena. Alienação e separação são processos nunca de todo findos, ainda que, quando há a incidência da barra do recalque, a estrutura traga nela mesma os vestígios de que uma separação mais radical já foi tida como ponto de partida, originário, sendo daí que se recomeça a cada nova vez. A invocação a dizer sim e não, a recomeçar e se recolocar diante da linguagem a partir de um efeito e de uma direção real, estão constantemente em jogo. A partir dos diversos pontos destacados ao longo deste capítulo, podemos caminhar na questão da voz nos perguntando por que não basta apenas passar de ouvinte à falante, por que é preciso igualmente uma criação que passe pela escrita, ainda que sempre parcial, da voz. Ou, outramente dito: o que da voz se deixa escrever? O que ressoa da voz que faz escrita? E o que dessa escrita recoloca a dimensão de invocação e de direção real a que a voz se presta a transmitir? Antes de mais claramente continuar nesta direção, faço a seguir um breve interlúdio, tendo ainda em mente a relação entre sujeito e Outro pela via da voz, e deixando para o capítulo final desta tese a música de John Cage e a dimensão de uma escrita possível, com restos, face ao acaso dos encontros com pedaços do real. 85 INTERLÚDIO A VOZ HUMANA NO DESEJO E NO QUE O EXCEDE Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto – é para lá que eu vou. À ponta do lápis o traço. Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia – é para lá que eu vou. Clarice Lispector Não é apenas na constituição do sujeito que a voz tem seus efeitos na relação entre o sujeito e o Outro. A voz, enquanto litoral entre estes dois campos heterogêneos, permanece colocando ao sujeito a dimensão sempre enigmática de seu próprio desejo, fundado do desejo do Outro, comparecendo igualmente naquilo que, em sua fala e atos, o excede. Neste sentido, proponho um interlúdio entre as reflexões norteadas pela música de Schönberg e as que se seguirão no capítulo final desta tese a partir de Cage. Interlúdio no qual busco me deter sobre as ressonâncias no encaminhamento do sujeito em direção a seu desejo a partir da marcação da voz aí presente, destacando a ação desta e da pulsão invocante no campo musical tomando como interlocutor o drama lírico A voz humana de Francis Poulenc, composto a partir da peça homônima de Jacques Cocteau. * Ouça mas não sem cantar * 86 Fui levada a escrever estas reflexões acerca da voz na música, pensando nos efeitos de corte que a primeira tem, por uma vontade antiga de escrever sobre A voz humana, que inicialmente conheci pela ópera em um ato (também “classificada” como tragédia lírica) do compositor francês Francis Poulenc. Somente depois fui saber que ela foi construída com base na peça homônima de Jean Cocteau. Há algo nestas obras que se mostra excessivo, por demais presente. Um canto feminino em língua francesa que, por vezes, se torna grito. “Allô, allô”... Grito endereçado a alguém que aparece ausente, ao Outro, clamando por uma resposta, uma voz chamando Outra voz. “Allô!”, canta/grita a mulher ao telefone, e não somente esta palavra. Voz que canta, silencia e grita acompanhada de uma orquestra incessante, com temas musicais que se repetem, ampliam e terminam subitamente. De início, recorro ao historiador de arte Jorge Coli (2003, p. 20) para refletir sobre a ópera e a relação entre palavra e música neste gênero no qual nem a música “pura” nem seu libreto se sustentam sozinhos. Para ele, a música “incorpora (...) a materialidade da palavra” (Ibid, p. 54; grifos meus). A palavra, a materialidade significante, passando pelo corpo do músico, ganha existência corporal. Na ópera, a música e o músico dão corpo e voz à língua. Ainda citando Coli (Ibid, p. 54): “A música investe assim as palavras de uma existência palpável, corpórea, dando a elas materialidade definitiva, e, aos personagens, uma existência profundamente física através da voz”. Ao trazer à cena a materialidade da voz, o que a ópera visa é seu efeito de ressonância, para além dos significados. Trata-se dos efeitos da modulação da voz no sujeito que escuta a ópera, e não dos sentidos que a palavra veicula. A idéia de uma incorporação e de uma ressonância da voz encontram-se em primeiro plano nas considerações lacanianas sobre o objeto voz. Já na estrutura pulsional da qual a voz participa isto se apresenta. As bordas corporais envolvidas no circuito da pulsão invocante não se resumem a uma zona erógena da qual ela parte a ao qual retorna. A voz é emitida pelo complexo aparelho fonador, que mobiliza um grande numero de órgãos e músculos do corpo (diafragma, aparelho respiratório, aparelho bucal, cordas vocais, etc.), e retorna através da “caixa de ressonância” (Lacan, 1962-63/2005, p. 299) que é o ouvido humano. Neste ponto, lembro o que Lacan (1964/1998, p. 184) nos diz sobre o ouvido e o movimento de se fazer ouvir da pulsão invocante, movimento que se orienta para o campo do Outro, passando igualmente pelo outro. Por não retornar ao sujeito, há no caso da pulsão invocante e da tentativa de apreensão do objeto voz uma hiância exemplar da relação entre sujeito e Outro (Ibid, p. 196). A voz, portanto, afirma Lacan (ibid, p. 300) ressoa “no vazio que há no tubo acústico”; mais que isso, ela: 87 ressoa num vazio que é o vazio do Outro como tal, o ex nihilo propriamente dito. A voz responde ao que é dito, mas não pode responder por isso. Em outras palavras, para que ela responda, devemos incorporar a voz como alteridade do que é dito. É por isso mesmo, e não por outra coisa, que, separada de nós, nossa voz nos soa com um som estranho. É próprio da estrutura do Outro constituir um certo vazio, o vazio de sua falta de garantia. O vazio que a voz comporta aponta, então, para o próprio vazio que a castração funda nos sujeitos. É dessa forma que a “voz humana” desta mulher ao telefone surge: ressoando, apontando para um indizível, um impossível de dizer, uma alteridade entre o que é dito e o que é ouvido que desvela a alteridade entre sujeito e Outro, da qual a voz participa no limiar destas heterogeneidades. A escolha, portanto, do titulo desta obra é preciosa. Ainda que seja apresentada a voz de uma mulher em um momento específico, da despedida de seu amante, é do próprio vazio constitutivo do sujeito, no qual a voz ressoa, que ela trata. Vazio este que é cavado no decorrer da peça, até que ocorra a queda do objeto voz quando de uma das quedas da ligação, a mais importante no texto, e o contorno desse vazio pela trama musical que nele ressoa, como ondas, vagas. Por se tratar de uma ópera, há igualmente um vazio que é dado a ver, o que bem pode ser sentido na experiência de vê-la encenada, em que temos a sensação de que esta mulher está ali se esvaziando66, trazendo uma forte carga dramática e lembrando que é também o olhar que essa obra convoca – voz e olhar em uma torção do desejo do e ao Outro67. Esta incidência do olhar ocorre não apenas na ópera, mas igualmente na peça de Cocteau e em seu texto, diagramado de forma singular, destacando as vozes que não são ouvidas e os intervalos de vozes em suspenso, marcando a espera de sua única protagonista, com pontos em seqüências maiores ou menores. Tal modo de escrita, que diz do estilo do autor, apresentando as palavras e frases mescladas por estes pontos indicativos de um intervalo, não deixa de causar estranhamento e impacto, conferindo à peça um ritmo próprio, com vazios que furam uma compreensão “racional”, que nos encaminha para além dos sentidos. Faço um pequeno parênteses. Uma vez que não é, diretamente, meu intuito aqui tratar a ampla questão do estilo, mas que não me furtei de mencioná-la, trago duas referencias que me ajudam a refletir sobre o estilo relacionando-o ao objeto, conforme propõe Lacan (1966/1998, p. 11). Para ele (Idem), o estilo deve ser pensado pela queda do objeto, “reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e 66 O que foi me foi, em parte, “esclarecido” quando li a orientação de Cocteau (1949, p. 20) para as intérpretes de sua personagem, pedindo que elas dessem a impressão de sangrar, de perder seu sangue, de tal modo que parecesse que o ato fosse terminado com a sala, o cenário único da peça, ensangüentada. 67 O que me faz lembrar o que Lacan (Ibid, p. 266-267) afirma sobre as repercussões de um sobre o outro: “Une-os uma solidariedade íntima, que se expressa na fundação do sujeito no Outro por intermédio do significante, e no advento de um resto em torno do qual gira o drama do desejo”. 88 como suporte do sujeito entre verdade e saber”. A segunda referência me chegou através da fala da psicanalista Ana Costa68 ao propor que “o jogo com o ritmo faz o estilo”. A estas duas colocações, acrescento que é pela incorporação da voz que, na constituição do sujeito, se dá a escansão, o corte, onde antes era continuidade. A voz, ao fazer corpo e sujeito, faz igualmente ritmo e temporalidade. Ambos como uma resposta, com a voz, à força contínua do real. Parênteses findo, indico que Lacan trata brevemente desta peça de Cocteau na aula de 20 de maio de 1959 do seminário O desejo e sua interpretação, destacando, após falar sobre a função de corte da voz69 e de localizá-la na psicose, que temos aí um caso exemplar da “incidência pura” da voz, da voz como articulação. Ressalto, contudo, que na ópera, uma vez que o texto é tratado pela métrica e musicalidade das palavras, o que o aproxima da poesia, o aspecto da modulação ganha o primeiro plano. O ritmo da escrita, agora a musical, é outro, se altera em relação ao textual. Em ambos os casos, porém, é do contorno do vazio do objeto voz, de uma tentativa de apreendê-la, que se trata. E penso mesmo que a voz aí aparece em sua incidência pura para, efetuando cortes, convocar a articulação e um laço possível para com o Outro. Para continuar, é preciso trazer mais alguns elementos do monólogo de Cocteau. A história se desenrola na sala desta mulher que recebe uma derradeira ligação, esperada e combinada de antemão, daquele que foi seu amante durante cinco anos e que a abandonou. Já de início, há interferência de uma linha cruzada, recorrente ao longo da peça; constantemente há a eminência da queda da ligação, que de fato ocorre, o que faz com que a mulher solicite, angustiada, repetidas vezes, à telefonista, e mesmo ao amado, que tente mantê-la, melhor, que tente manter a ligação. É mesmo por uma queda brusca da ligação, acima mencionada, que o ritmo do texto e da ópera são radicalmente alterados. Antes marcado por uma presença excessiva da voz, que ameaça cair, mas que se coloca no lugar da falta, tentando, em vão, tamponá-la, esse corte crucial e radical na ligação faz com que ocorra uma virada no texto. Se 68 Na aula de 10 de setembro de 2007 da disciplina Aspectos específicos da psicanálise II do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 69 Cabe ressaltar que neste momento do ensino lacaniano o conceito de objeto a ainda não havia sido formalmente efetuado, o que veio a ocorrer apenas no seminário A angústia em 1962-1963. No entanto, a função de corte, que posteriormente será atribuída ao objeto a, já pode ser apreendida quando Lacan tece um breve comentário sobre a emissão da voz e sobre a peça de Jean Cocteau nesta lição do seminário O desejo e sua interpretação. Cito Lacan (Inédito): “Se a voz se apresenta bem e belamente como tal, como articulação pura, e sendo efetivamente quem faz o paradoxo disso que nos comunica o delirante quando nós o interrogamos, e que tal coisa que ele tem a comunicar sobre a natureza das vozes parece se subtrair sempre de maneira tão singular, é que não há nada de mais firme para ele que a consistência e a existência da voz como tal. E, certamente, é justamente porque ela se reduz sob a forma a mais cortante no ponto puro onde o sujeito pode tomá-la apenas como a ele se impondo” (“Si ici la voix se présente bel et bien et comme telle, comme articulation pure et c’est bien ce qui fait le paradoxe de ce que nous communique le délirant quand nous l’interrogeons et que quelque chose qu’il a à communiquer sur la nature des voix paraît se dérober toujours de façon si singulière, rien de plus ferme pour lui que la consistance et l’existence de la voix comme telle. Et bien sûr, c’est justement parce qu’elle est réduite sous sa forme la plus tranchante, au point pur où le sujet ne peut la prendre que comme s’imposant à lui”.). 89 num primeiro momento, pode-se propor que a falta estava ali faltando, com tal corte, a falta se reinstaura. Quando a falta falta, ou seja, na angústia, estaria novamente o sujeito alienado ao Outro, precisando ocorrer a queda do objeto para que se opere a separação? A voz precisaria uma vez mais ser extraída e surgir como resto, tal qual ocorreu no momento de fundação do sujeito – momento determinante de uma estrutura –, para voltar a ocupar a função de litoral entre o sujeito e o Outro? A voz humana parece nos afirmar isso. Quando a ligação telefônica cai e a protagonista é levada a ligar para o amado, sem esperar que este torne a chamá-la, ela descobre que ele não estava ligando de casa, como supunha, mas de um restaurante. Com isso, ela mesma cai da mentira que estava tentando sustentar (que era forte e estava lidando bem com a separação ao ponto de dizer o indizível de sua dor pelo telefone). Há a queda do objeto voz, e a verdade é dita, mas não-toda: que ela havia tentado se matar por acreditar que não viveria sem o amado. A partir deste ponto, o texto torna-se mais contínuo, sem tantos intervalos na fala da mulher. O tom desta fala, de uma angústia nítida, passa a um tenso desamparo, em que ela não mais esconde sua fragilidade, chegando a chorar repetidas vezes, reconhecendo a separação e solicitando que o amado desligue o telefone. Gastão Cruz (1999, p. 12), na introdução da edição portuguesa da peça, afirma que com a descoberta da mentira do amado, há um “desmoronamento da ficção que (...) também ela estivera construindo acerca de si própria”, acrescentando que, com isso, “a ansiedade dá lugar ao desespero, o discurso torna-se totalmente desamparado e mais fluido”. Um desamparo, entretanto, que a localiza enquanto sujeito e que, num a posteriori, lhe poderá dar a ler indícios de seu próprio desejo. É nessa medida que entendo ser A voz humana, em seu sumo, uma alegoria da função da voz na emergência do sujeito e na criação artística em que a invocação se coloca mais eminente. Neste caso, a voz evocaria o vazio do sujeito, convocando-o a, mais uma vez, incorporar a voz caída e a advir, a cada vez, segundo Lacan (1963/2005, p. 71; grifos do autor) no “lugar isso fala”. Com a queda do objeto, é possível construir uma borda, fazer um contorno em torno do vazio que se instaura. De algum modo, é o que Pedro Almodóvar parece nos mostrar na encenação da peça de Cocteau em seu filme A lei do desejo. Seguindo uma direção diferente da peça e da ópera, neste filme, há no início e no término da obra a inserção da canção Ne me quitte pas, de Jacques Brel, na interpretação de uma menina que apenas a dubla, sem lhe dar sua própria voz material. Não se trata de uma repetição do mesmo: se no começo da peça, esta canção anuncia um corte, assim como na peça o telefonema combinado se dá após o abandono da mulher, ao fechar a encenação com ela, a música tanto confirma o corte quanto efetiva a separação. Não somente isso, ela aponta para a 90 possibilidade de um novo endereçamento, desvelando que é preciso haver a falta para movimentar o desejo. No filme, a atriz que vive a protagonista da peça está cuidando da menina que interpreta a canção porque a mãe desta a havia deixado para viajar com um novo amante. Tomamos conhecimento disso antes de A voz humana começar a ser encenada n’A lei do desejo. Ouvimos a Ne me quitte pas pela primeira vez, já cientes disso e acompanhando o estreitamento do vínculo entre Tina, a atriz, e Ada, a menina, vínculo este que parte de uma escolha por parte de ambas. Ainda assim, Ada ainda se mantém unida, alienada à mãe. Somente quando esta retorna, no meio da apresentação da peça impondo seu desejo excessivo à Ada, que lhe diz não, é que ela, sustentada pela voz de Tina, pode se fazer ouvir pela mãe, fechando o circuito da pulsão invocante, que efetiva a queda do objeto voz ao contornar seu vazio, e ratificando a separação70. Voltamos a ouvir a canção, agora com esta função de, pela arte, promover uma recuperação do objeto, como Lacan (1965/2003, p. 203) afirma na Homenagem a Marguerite Duras. De modo análogo, a peça e a ópera nos apresentam esse objeto voz recuperado, espalhado em toda a obra, embora em posições distintas: no primeiro momento, demasiadamente presente para, pela queda, surgir como ausência. A criação artística, assim, pela sublimação, permite que se faça a transmissão possível do objeto a pela via discursiva de uma arte, visando uma inscrição daquilo que, sendo da ordem da letra, insiste em repetir e exigir escrita. Se a arte assim o faz, como escreve Lacan (Idem), ela traz uma satisfação que “não deve ser tida como ilusória”. Ou seja, esse saber-fazer com o objeto fura o imaginário e o simbólico, apontando o real, o encontro enigmático com o real, abrindo uma via de fazer escoar o gozo (Lacan, 1971/2003, p. 21). Entendo que há, assim, na obra A voz humana, em suas variadas encenações, uma tentativa de “capturar” e “mostrar” a voz pela escrita, tanto a que se cunha com a linguagem verbal quando com a musical, o que tem como efeito a constituição de um leitor e de um ouvinte. Podemos dizer que há um reenvio da voz, ou, para brincarmos com a peça em questão, uma rediscagem. O enigma do desejo é posto novamente em cena mesmo com a escrita, esse fazer que vai da letra (pela marcação no corpo via significante e lalíngua, sem que a letra se confunda com um ou outro) ao traço (que já traz uma inscrição simbólica) e ao fazer com os traços e marcas do sujeito. Em outras palavras, a criação faz com que da queda 70 É interessante observar que, de um certo modo, as personagens de Tina e Ada fazem oposição às de Pablo, escritor irmão de Tina, protagonista do filme, e, em especial, de Antonio. No caso dos dois, vemos um exemplo do um “desejo sem lei”, ou melhor, seguindo a proposta de Almodóvar, da lei do desejo agindo sem a interpolação da Lei, sem que ocorra uma distinção entre sujeito e Outro, o que se torna, literalmente, mortífero a Antonio. 91 do objeto, que funda o desejo, haja um fazer que o recupere e que, com ele, se cunhe, talvez, um estilo. Encaminho-me para fechar este interlúdio a partir da proposta de que a música evoca o momento da constituição do sujeito, momento que define uma estrutura, e que seus efeitos não param aí. Ela igualmente convoca e invoca o sujeito, articulando as dimensões de desejo e de gozo, não de maneira simétrica, mas na medida em que põe em ação a pulsão invocante, tendo a função de ser, segundo Miller (2000, p. 68), “o depósito do objeto a, voz”. Com isso, pode ser tomada como causa de desejo para o músico que a cria e interpreta e para o ouvinte. A música, portanto, evoca, invoca e convoca. Podemos ouvir notícias dessa evocação que a música nos traz no diálogo fictício entre os compositores franceses Sainte Colombe e Marins Marais que Pascal Quignard (1993, p. 91-92) nos presenteia em seu romance Todas as manhãs do mundo: - (...) A música aí está para falar apenas daquilo de que a palavra não pode falar. Nesse sentido, ela não é completamente humana. Descobristes então que ela não é para o rei? Descobri que ela era para Deus. E enganaste-vos, porque Deus fala. Será para o ouvido? Aquilo de que não posso falar não é para o ouvido, Senhor. Para o ouro? Não, o ouro não é nada de audível. Para a glória? Não. Não passam de nomes que se nomeiam. O silêncio? Esse é apenas o contrario da linguagem. Os músicos rivais? Não! O amor? Não. O lamento do amor? Não. O abandono? Não e não. Será para um biscoito dado ao invisível? Também não. Que é um biscoito? É coisa que se vê. Que tem gosto. Que se come. Que não é nada. Já sei, Senhor. Creio que é preciso deixar um copo para os mortos... Então matai-vos. Um pequeno bebedouro para aqueles que a linguagem abandonou. Para a sombra das crianças. Para as marteladas dos sapateiros71. Para os estados que precedem a infância. Quando estávamos sem hálito. Quando estávamos sem luz. “Quando estávamos sem luz”, já ouvíamos, já estávamos sendo marcados pelo significante, por sua materialidade sem substância que veicula a voz e sua musicalidade. A 71 Vale indicar que Marins Marais, segundo nos conta Quignard (1993), era filho de um sapateiro e, aos 6 anos de idade, foi levado para a Escola da Capela Real de Saint-Germain-l’Auxerrois, onde integrou o coro até completar 16 anos. Devido à mudança de voz, foi obrigado a retornar à casa dos pais, e, diante das marteladas da oficina do pai, insuportáveis a ele, decidiu abandonar a família e continuar a carreira de músico como violista da gamba e compositor. Tornou-se pupilo de Sainte Colombe antes de ocupar o cargo de maestro na corte de Luis XIV. 92 música toca esse ponto em que a linguagem, já entalhada em nós como marca, encontra seu limite. Caminhando em harmonia ao que encontramos no diálogo acima citado, mas trazendo outra nota sobre o que é a música para aquele que a faz, mesmo que em sua escuta, recolho duas falas do compositor Paulo Guicheney72: “Eu componho porque tenho um problema com o som. Desde criança tenho um problema com o som, com o mundo sonoro. É por isso que componho: para diminuir meu problema com o som”, e, ainda: “Componho para não ser engolido pelas coisas que me atormentam. Essa é a minha ilusão, a minha resposta”. Vemos aí com clareza a incidência do objeto voz causando o músico e o levando ao trabalho com a materialidade específica do campo musical no intuito de cunhar um modo de lidar com este inapreensível da voz. Um modo que traz um certo escoamento singular do gozo a esse sujeito, apresentando, portanto, uma resposta ao que do desejo do Outro permanece como mistério incompreensível. Lembro aqui o que Miller (1997, p. 17) afirma sobre o que criamos em torno da voz e a função disto para os sujeitos: “Se falamos tanto, se fazemos nossos colóquios, nossos charlatanismos, se cantamos e escutamos os cantores, se fazemos música e se a escutamos, a tese de Lacan, segundo meu ponto de vista, comporta que tudo isso é feito para fazer calar aquilo que merece chamar-se a voz como objeto a”. A música, assim, nos oferece um meio de lidar com o imprevisível da voz, fazendo com que seu vazio seja garantido ao ser contornado. 72 Em entrevista a Jamesson Buarque para a revista eletrônica Ruído Branco, encontrada em no endereço eletrônico http://www.ruidobranco.net/cdur.html, edição de janeiro de 2008. 93 CAPÍTULO III UMA ESCUTA QUE ABRE: RESSONÂNCIAS Nos instantes mais raros, poderíamos definir a música: qualquer coisa de menos sonoro que o sonoro. Qualquer coisa que liga o barulhento. Para dizer outramente: um pedaço de sonoro atado. Uma ponta de sonoro em que a nostalgia escuta permanecer no inteligível. Ou este monstrum mais simples: um pedaço de sonoro semântico desprovido de sentido73. Pascal Quignard O que se escuta da chuva de significantes faz, para cada sujeito, uma espécie de música particular que inscreve e instaura um ritmo próprio, uma voz singular, quando é possível responder ao enigma mais primordial que vem do Outro: Che vuoi?, Que queres?. Posicionar-se frente a isso, com a resposta ao real que é o próprio sujeito, é igualmente aceitar o convite da pulsão em sua face invocante, assim posta em ação, incessantemente, ainda que, em determinados momentos, mais silenciosa ela possa se encontrar. Constituir-se como sujeito desejante é dizer sim à invocação de tornar-se humano que é transmitida nessa chuva inaugural, chuva escutada inicialmente como lalíngua para, só depois, advir o significante quando o sujeito toma a palavra. Dessa música inicial, restará uma dimensão igualmente musical e, além disso, poética que se atualizada em cada sujeito direcionando-o em um movimento pulsante de musicar a vida. E quando, por ventura, tal movimento encontra-se estancado, suspenso, o trabalho de uma análise pode aí se enlaçar e ter efeitos na medida em que tem como uma de suas funções recolocar em cena a invocação da voz. Orientada pelo real, uma análise pode levar o sujeito a re-escutar o convite à criação que é de saída colocado ao sujeito: criação de si pela re-criação com e da linguagem. Invocante, uma análise se dá pela dimensão poética, de poiesis, da linguagem, em direção a um mais além dela mesma, e sustentada pela posição singular daquele que fala e que, em análise, trabalha. Recolhendo enigmas que Lacan nos lança continuamente ao longo do ensino por ele proferido entre seminários e escritos, alguns deles ecoam ainda mais fortemente, tornando-se mesmo norteadores, fios condutores paradigmáticos. Ao longo do eixo borromeano, na década de 1970, Lacan bem localiza no fazer do escritor, do poeta, uma via possível de um 73 “Dans les instantes le plus rares, on pourrait définir la musique : quelque chose de moins sonore que le sonore. Quelque chose qui lie le bruyant. Pour dire autrement : un bout de sonore ligoté. Un bout de sonore dont la nostalgie entend demeurer dans l’intelligible. Ou ce monstrum plus simple : un morceau de sonore sémantique dépourvu de sens”. 94 fazer, com letra, significante, cortes, nós e vazio, que ultrapassa o saber fazer com (savoirfaire) e constituindo/inventando, um saber fazer aí com isso (savoir-y-faire). O poeta, equivocando a língua, revirando o simbólico, tocando o real, renovando o imaginário, e o fazer poético, poiético, mostram-se como paradigmáticos à análise, ao analista, ao analisante. Ainda que não tenha se detido na arte musical para dela tirar maiores conseqüências do que esta dá a ouvir a partir do fazer com o objeto voz, Didier-Weill (1998, p. 11) propõe que Lacan “manifesta sua não surdez ao real musical” a partir da poesia: A outra face pela qual o significante se apossa da invocação musical é a face pela qual a linguagem, subtraindo-se à prosa, se faz poesia: a poesia não seria o que extrai o significante do código lexical para alçá-lo ao ponto de onde o não-sentido, próprio da música, dá a ouvir o que tem de inaudito? O músico, poeta dos sons, talvez mais nitidamente radicalize o ato poético de equivocidade por fazer ressoar, uma vez mais, vivamente, o equívoco mais originário, de lalíngua, o além/aquém dos sentidos que imprime uma marca primeira de um gozo perdido e de um desejo que, assim, se torna possível. Desejo do Outro que, na queda do objeto a, na expulsão primeira e fundante de das Ding, deixa rastros que determinam, sobredeterminadamente, como ensina Freud, a relação desejante do sujeito face ao mundo, ao Outro, à vida. Fazer poeticamente com os sons, em sua ausência e presença – notas, ruídos, incidências sonoro-musicais e pausas, silêncios, suspensões –, é fazer escrita com a voz. Como igualmente faz o poeta, aproximando-se e revelando ainda mais o equívoco em jogo a cada vez que se fala, que uma língua – aqui, proponho, uma “língua musical74” transmitida 95 próxima ao esforço de se cunhar uma escrita que passe pela letra comouma escrita possível a partir do objeto a. Nesta medida, propomos aqui avançar nas considerações sobre a música a partir do que, na obra de Lacan, se apresenta relacionado à poesia, ainda que haja diferenças e particularidades em cada um desses campos artísticos. Será deste modo que, na escuta, a música pode será apreendida em sua lógica estruturante que dá consistência à própria peça – dá corpo ao fazer com a linguagem. Um equívoco ainda mais intimamente ligado à invocação da voz que se escuta do Outro ao sermos lançados no banho de linguagem do qual nos constituídos. Lalíngua, voz, pulsão invocante evocados no fazer do músico, que, poeticamente, propõe cortes e trançamentos com simbólico e imaginário causado por pedaços de real que ele pode, sem saber, musicar sem, de todo, apagar seus vestígios – ausente, permanece no que se ouve a voz muda do real. A música em sua função poética e equivocante. Não seria esta, igualmente, uma direção para a análise? Fazer ressoar a partir da fala do analisante, pela escuta e pelo ato do analista, a dimensão de equívoco, de homofonia, de além do sentido, invocando a potência poética do sujeito que, com seus restos, vestígios, marcas, e não sem seu sintoma, poderia cunhar um novo, uma escrita nova, um recomeço inédito? Fazer nova música ou mesmo musicar sua vida. Antes de prosseguir... poesia... François Cheng (2009, p. 25/159), com quem Lacan dialogou intensa e vivamente ao longo da década de 1970: Toujours familier Toujours inconnu Vide médian À l’heure de l’abandon Tu consens à nous confier ton dessein : Activant le souffle Tu nous fais passer du non-être à l’être Préservant le souffle Tu gardes pour longtemps 96 Le centre est là D’où jaillit Le souffle rythmique En vivifiante vacuité Sans qu’on s’y attende Autour de soi droit au cœur Voici les ondes Natives et vastes Résonant Depuis l’ici même Jusqu’au plus lointain De leurs toujours déjà là De leurs toujours commençante Mélodie76 3.1 – Ressonâncias entre real, simbólico e imaginário: um começo a sempre recomeçar Os bons músicos fazem soar a casa mais antiga que esteja no corpo (a casa precedente, o ressonador, o ventre, a gruta uterina). A música é sem dúvida a arte mais antiga. A arte que precede todas as artes. A arte que toca os ritmos deslocados do coração que bate e ensangüenta o tórax e os pulmões que inspiram e expiram o ar com o qual a boca pode tomar uma pequena parte para falar. Associando-o em seguida aos ritmos das pernas que martela, das mãos que batem77. Pascal Quignard A linguagem do pensamento e a linguagem que se estende no canto poético são como direções diferentes que participam deste dialogo original, em um e no outro, e a cada vez que um e outro renunciam à sua forma apaziguada e remontam sobre sua fonte, parece que recomeça, de uma maneira mais ou menos “viva”, este combate mais original de exigências indistintas, e podese dizer que toda obra poética, no coração de sua gênese, é retorno a esta constatação inicial e que mesmo, tanto quanto ela seja obra, ela não cessa de ser a intimidade de seu eterno nascimento78. Maurice Blanchot O sujeito enquanto atonal, pós-tonal, que, ressoando e se desejando ressoar, não cessa de voltar a um começo recomeçante. E com voz, não sem olhar, posto que eticamente com 76 “O centro é aqui/de onde jorra/O sopro rítmico/Em vivificante vacuidade/Sem que se o espere aí/Em torno de si/direto ao coração/Estão aqui as ondas/Nativas e vastas/Ressoante/Desde o aqui mesmo/Até o mais longínquo/De seu sempre já aqui/De sua sempre começante/Melodia”. 77 “Les bons musiciens font sonner la plus vieille maison qui soit dans le corps (la maison précédente, le résonateur, le ventre, la grotte utérine). / La musique est sans doute l'art le plus ancien. L'art qui précède tous les arts. L'art qui joue des rythmes décalés du cœur qui bat et ensanglante la chair et des poumons qui inspirent et expirent l'air sur lequel la bouche peut prélever une petite part pour parler. Puis qui les associe à ceux des jambes qui martèlent, des mains qui frappent”. 78 “Le langage de la pensée et le langage qui se déploie dans le chant poétique sont comme les directions différents qu’a prises ce dialogue originel, mais, dans l’un et dans l’autre, et chaque fois que l’un et l’autre renoncent à leur forme apaisée et remontent vers leurs source, il semble que recommence, d’un manière plus ou moins ‘vive’, ce combat plus originel d’exigences plus indistinctes, et l’on peut dire que toute œuvre poétique, au cœur de sa genèse, est retour à cette contestation initiale et que même, tant qu’elle est œuvre, elle ne cesse pas d’être l’intimité de son éternelle naissance” 97 desejo, marcado por um vazio pulsante, reverberante, que torna possível que heterogeneidades, elas mesmas igualmente atonais, se entrelacem, se enodem, se façam um sujeito. Poeticamente. Insistentemente. Renascente. Partimos, então, no início desta tese, do paradigma schönbergeniano, que põe em causa fundamentalmente a não hierarquia entre os sons musicais pelos quais uma música pode emergir, deixando assim em aberto a possibilidade de se pensar em uma orientação real e não apenas simbólica quanto à organização singular destes elementos a cada texto criado para ser ouvido, uns atuando sobre os outros. As experimentações com a flexibilidade da linguagem musical a partir de Schönberg fizeram com que o simbólico se apresentasse como um velamento mais fino face ao real, o que faz com que seja possível pensar, então, a maneira como o imaginário atua e pode atuar tanto na constituição do sujeito quanto posteriormente nos encaminhamentos desejantes da vida deste. Em outras palavras, podemos entreouvir neste paradigma uma hipotrofia do simbólico dialogando com um real, desta forma hipertrofiado, cabendo perguntar sobre como o imaginário aí comparece e o que ele deixar assim apreender. De uma maneira surpreendente, a música pós-tonal pode nos dar a ouvir as ressonâncias estruturais entre os registros, e, no caso do imaginário, a função deste na estruturação psíquica, pré estágio do espelho, bem como na construção e organização da imagem e dos objetos com imagem especular após a queda do objeto a. Caminhando com estes pontos, proponho trabalhar as dimensões borromeana e tórica do ensino lacaniano a partir da década de 1970 pela proximidade com o que se escuta na música pós-tonal e o que ela nos transmite, isto para voltar à Freud no que tange um ponto originário do sujeito. Ponto este atrelado à constituição do mesmo a partir da incidência do objeto voz, como visto anteriormente, e a partir do enlaçamento dos registros psíquicos. Minha hipótese é simples: o sujeito emerge da ressonância estruturante entre real, simbólico e imaginário de tal forma que, a partir de um furo real que os atravessa – o vazio da incorporação do objeto a enquanto voz –, cada um dos registros permanece em constante reverberação para com o outro constituindo assim ressonâncias estruturais: o simbolicamente real e o realmente simbólico, como propostos por Lacan na lição de 15 de março de 1977 do seminário L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre, e o imaginariamente real e o realmente imaginário, tal qual aqui procurarei mostrar. É mesmo pela ressonância do furo real no simbólico e no imaginário que estes dois podem ressoar e consoar de modo a se organizar estruturalmente como a resposta frente ao real que, em Freud Lacan, é entendida como a fantasia. Daí podermos propor que as ressonâncias que resultam no imaginariamente simbólico e no simbolicamente imaginário seriam efeitos de um momento inaugural, dando-se 98 ambos como criações e produções, mesmo culturais, do sujeito. E é possível ainda pensar no momento originário, de fundação do sujeito, como igualmente sendo ouvido em Freud quanto às três instâncias psíquicas (isso, eu e supereu) e nas relações, também fundamentalmente ressoantes, que elas estabelecem entre si. Embora fique claro que tanto em Freud quanto em Lacan não há uma predominância de uma instância ou de um registro psíquico sobre os demais, notamos que há uma orientação, uma vetorização entre eles que diz da própria estruturação do sujeito. Isso – > eu – > supereu. Real – > simbólico – > imaginário. Quando já fundados, atuando mais e ainda mais no sujeito, tal vetorização comporta uma ressonância fundamental e contínua: isso < – > eu < – > supereu < – > isso... Real < – > simbólico < – > imaginário < – > real... Há ainda, em Lacan, quanto ao nó borromeano, um vetor destrógiro e um outro levógiro que evidenciam a orientação do real, êxtimo ao sujeito, é preciso frisar. Orientação esta que se mostra com clareza na construção do pensamento lacaniano: “Não é à toa que escrevi essas coisas em uma certa ordem, a saber, RSI, SIR, IRS” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 51). O que parece indicar que em tais movimentos pode haver a ênfase de um determinado registro não por este ser predominante, e sim por apresentar o ponto a partir do qual tal orientação se efetua em um momento particular. Ainda que atonal, o sujeito pode se colocar em uma tonalidade tal que dê a ouvir clinicamente uma das seguintes faces, faces momentaneamente dominantes, do discurso na análise: RS, SR, RI, IR, SI, IS. Faces, insisto, cuja dimensão de ressonância entre seus elementos não pode deixar de ser ressaltada. A ressonância entre os três registros continua atuante e é mesmo por ela que o movimento do sujeito pode ser recolocado. Tal pensamento, baseando-se em Lacan, pressupõe uma revisão do inconsciente por ele estabelecida não apenas tomado-o como simbólico, mas como real, como efeito do furo do real no simbólico e, simultaneamente, do simbólico no real. Se o significante faz furo, ele o faz no corpo do infans que recebe assim uma primeira marcação simbólica no real de seu corpo, real este que se presta neste encontro a ser, em parte, imaginarizado. Dito de outro modo, o corpo portando igualmente sua dimensão de passível de ser imaginarizado; o corpo, se recorremos à Freud como superfície, projeção de uma superfície. É por efeito do furo do simbólico no real e, simultaneamente, do real no simbólico, que uma ressonância específica se dará como furo também no corpo, sem que este seja tomado como uma consistência fechada em si. Tal abertura, presente igualmente nos demais registros, se dá pela existência de tal furo que, de fato, se faz a partir de três furos. A figura do nó borromeano e a proposta do toro evidenciam que há um furo igualmente em cada fio que compõe o nó, ou seja, em cada registro. É da interseção que se estabelece entre os 99 furos do real, do simbólico e do imaginário, que um furo se inscreve e funda um sujeito. O nó borromeano se apresenta como uma formalização, um suporte real, das relações estruturais entre os três registros psíquicos que assim se encarnam no momento originário do sujeito e que permanecem atuando nos movimentos posteriores que ele poderá fazer. O furo que faz existir o nó borromeano deve ser lido a partir destas ressonâncias, sendo, como sabemos, efeito igualmente da queda do objeto a, fundadora de um sujeito, e que é simultaneamente, ou melhor, logicamente, seguida da inscrição de um traço ao qual o sujeito, em ato, se identifica, o incorporando, para que tal traço seja apagado. Em tal processo, pode-se mesmo ousar dizer que o imaginário é forçado a comparecer e a se fazer enquanto tal como efeito do real. Por outro lado, é também por efeito desse corte feito na carne do infans que há tanto a queda do objeto a quanto a inscrição de um traço a se apagar. Haveria portanto um efeito e a possibilidade do imaginário, antecipadamente, no registro do real. O estádio do espelho mostra com maior clareza tal antecipação do imaginário a partir do real, o que pode ser mais precisamente destacado no que Lacan (1949/1998, p. 100) pontua ser este processo “um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação”. Voz e olhar são fundamentais nesta precipitação, que faz com que do corpo despedaçado uma imagem do corpo próprio e, mais que isso, a matriz simbólica do eu se fundem. Voz da mãe que diz: “tu és isso”. Olhar pelo qual se forma e ratifica a imagem unificada do corpo. O júbilo, ou assunção jubilatória, que se encontra presente neste momento pode ser lido como um encontro com isso que, no real, já se coloca como uma torção tal que fará surgir o imaginário. Assim como no grafo do desejo, é pela lógica do oito interior que voz gozo, de um lado, significante e castração, de outro, devem ser pensados, assim também, em uma temporalidade lógica, real e imaginário se articulam neste estádio. Com Lacan (1975-1976/2007, p. 19), pode-se mesmo avançar e pensar em uma homogeneidade entre o imaginário e o real, como por ele proposto na lição de 18 de novembro de 1975 do seminário O sinthoma, relacionando-os à consistência e a ex-sistência do corpo: “É preciso apreender essa ex-sistência e essa consistência como reais, posto que apreendê-las é o real”. A consistência só se sustenta pelo furo real que ela contém, ou seja, pelo o que a ela ex-siste. Indo além, é possível, e talvez mesmo preciso, afirmar: o imaginário se funda no real. E na ressonância entre real e simbólico. Ao responder a uma pergunta ao fim da lição de 9 de dezembro de 1975 quanto à alternância do corpo e da fala, Lacan (Ibid., p. 40) afirma que: 100 Digamos que o que posso solicitar como resposta é da ordem de um apelo ao real não como ligado ao corpo, mas como diferente. Longe do corpo, existe a possibilidade do que chamei (...) de ressonância, ou consonância. É no nível real que essa consonância pode ser achada. Em relação a esses pólos que o corpo e a linguagem constituem, o real é o que faz acordo. Surge aí algo que poderia soar como paradoxo, mas que se mostra tão claro e esclarecedor que chega a espantar. O que o suporte do nó borromeano põe em cena, em jogo? As articulações estruturantes entre real, simbólico e imaginário, em todas as suas combinações possíveis, de forma que, como é bem conhecido, se um dos elos do nó se desfaz as demais não se mantém. Mais sinteticamente, o nó põe em jogo a topografia, a topologia dos registros. Mais abstratamente, a relação fundadora, criacionista, de um registro invocando o outro, puxando o outro, ressoando no outro, que se dá enquanto tal como resposta. O imaginário podendo mostrar uma “homogeneidade com o real”, sem que a heterogeneidade dos dois se perca. Ou que o real seja simplesmente atrelado ao corpo. Há mesmo uma dobradura do real que se faz imaginário e que assim se torna viável pelo furo ressonante que os une e os separa. É esta a direção de Freud quando ele afirma que o eu é uma parte organizada do isso. Na topologia freudiana, analogamente, o isso é o que se presta à diferenciar-se na criação das demais instâncias psíquicas. Longe de propor uma equivalência entre a topologia lacaniana e a freudiana, o que se coloca aqui em pauta é o reviramento que existe dos próprios registros e instâncias sobre si mesmos e a articulação que eles têm uns com os outros. Proponho com isso uma relação não simétrica entre Freud e Lacan, mais explicitamente, entre a topologia/tópica freudiana e a topologia lacaniana. O sujeito do inconsciente, melhor dizendo, o parlêtre, nascendo e renascendo nessas composições ressonantes e atonais entre real, simbólico e imaginário – composições essas estruturais e estruturantes que se modulam em quatro: o simbolicamente real, o realmente simbólico, o imaginariamente real e o realmente imaginário. Dos furos entre os três registros, que os atrelam e os separaram heterogeneamente, o psiquismo se organiza contendo um furo central e fundador, da expulsão e perda de das Ding, que se sexualiza no sujeito como queda do objeto a, mais originalmente como queda da voz, da qual poder-se-á constituir uma voz enquadrada dentro da fantasia. E é justamente deste furo originário que, ressoando e perpassando o furo que há no simbólico e no imaginário que estes dois registros poderão ressoar entre si e se enlaçar na constituição da fantasia, esta resposta com uma gramática mínima e enigmática de um sujeito diante do real que o acossa e o faz emergir. Daí podermos pensar que o que se apresenta como ressonância entre simbólico e imaginário, a saber, o imaginariamente simbólico (que se apresenta como a verdade da poesia, como veremos mais detalhadamente a seguir) e o simbolicamente imaginário (que Lacan localiza em 15 de março 101 de 1977 como sendo a geometria) se dão como criações do sujeito, como efeitos, podemos dizer, da estrutura da fantasia. Como efeitos, exigem um ato de um sujeito que, paradoxalmente, se compartilha por recolocar a questão da origem de todo sujeito. Vale dizer que é da orientação real que se coloca como invocação originária para que um sujeito se funde, que encontramos em Lacan como o Che vuoi? lançado como enigma pela voz do Outro. Sendo que, invariavelmente, uma resposta precisará ser cunhada para tal pergunta. Sem ela, real, simbólico e imaginário não poderão ressoar entre si fazendo com que, como efeito, um sujeito advenha portando a radicalidade de um furo que o faz ir além, desejante, gozoso, faltoso, e com uma voz cujo timbre é singular. Freudianamente falando, esse nascimento e renascimento do sujeito do inconsciente a cada vez que este ganha voz, se mostra nos entrelaçamentos das instâncias psíquicas do isso, eu e do supereu. E ainda mais fortemente em Freud do que em Lacan o imbricamento de tais instâncias dá a ver e a ouvir uma temporalidade antecipatória na orientação, na direção, que se coloca, de saída, pelo apelo à humanização. Minha aposta é de que o supereu, enquanto herdeiro vivo do complexo do Édipo, ratificador da incorporação da voz, via voz dos pais, se apresenta antecipadamente como torção do caos do isso sobre si, sem em si se fechar. Enquanto desdobramento do isso, o supereu pressupõe o eu como instância, como parte organizada do isso, e como terceiro tempo de um movimento humanizante que não se faz sem a simultaneidade dos dois primeiros e de um ainda mais radicalmente anterior: um momento zero, mítico, momento de das Ding em sua expulsão – momento de Behajung, de um sim, que invoca Austossung, um não. Sim, ouço; mas não tudo, daí falo, desejo, posso gozar um gozo não apenas mortífero. Os abalos nessa temporalidade tríade, com ponto mítico originário e inaugural, teriam conseqüências as mais distintas e variáveis possíveis na relação, ela mesma também topológica, entre o sujeito e o Outro, entre ouvir a voz do Outro e poder esquecê-la para que uma fala se sustente com voz singularizadora. Ensaiarei agora dar passos mais lentos, recorrendo às palavras de Lacan, de Freud e de Didier-Weill. Começo pela invenção lacaniana do real que tem sua mostração com o nó borromeano. Este nó tem por mérito ser real na medida em que oferece um testemunho deste na imbricação entre os três registros de tal modo que estão enodados uns com os outros havendo entre si uma interseção vazia. E por haver entre eles uma relação em que se uma das amarrações é cortada, as outras se desamarram, Lacan propõe a existência de um quarto elo que garantiria a permanência e atuação dos três registros. Isto que Lacan chamou de o sinthoma e que pode ser ouvido pela via da invenção, da nomeação, do que se faz com os restos do sujeito que insistem desde sua constituição, exigindo um saber-fazer-aí radicalmente 102 singular, sem fechar a possibilidade do laço para com o Outro. Muito pelo contrário, abrindo, de forma nova, este caminho. É assim que o real se coloca na teoria lacaniana como uma invenção, como um conceito cuja novidade revira a concepção sobre o que é o inconsciente. O encaminhamento de tal proposição se coloca de modo a sustentar que o real do nó borromeano é que ele mostra a impossibilidade de representar o real, sendo que este continua ex-sistindo e incidindo no sujeito enquanto exigência de uma escrita, uma escrita nova, é preciso enfatizar, que visará encadear real, simbólico e imaginário: Digamos que o forçamento de uma nova escrita, dotada do que é preciso chamar, por metáfora, de um alcance simbólico, e também é forçamento de um novo tipo de idéia, se assim posso dizer, uma idéia que não floresce espontaneamente apenas devido ao que faz sentido, isto é, ao imaginário (Ibid, p. 127). Tal nova escrita teria ainda por peculiaridade usufruir da cadeia significante, da estrutura mínima de um significante face a outro significante, S1 – S2, ou seja, do saber inconsciente que aí se articula, porém, apontando o real que a causa, que está para além do inconsciente ele mesmo. O real lacaniano seria portanto ele mesmo ubíquo, se deixando, enquanto registro, enodar ao simbólico e ao imaginário. Neste ato, estes dois passam a existir num sujeito, conferindo a ele uma posição subjetiva pela via da fantasia. Novamente, avanço com as palavras lacanianas: “ao imaginário e ao simbólico, isto é, a coisas que são muito estranhas uma para a outra, o real traz o elemento que pode mantê-las juntas (Idem)”. Interessa-me assim neste momento interrogar as relações entre os registros na emergência do sujeito face à passagem entre o enodamento estes, de dois em dois, posto que há entre eles uma ressonância lógica e fundante que possibilita a torção e a constituição de uma nova intersecção como efeito da que se estabelece. Pensando com Freud e Lacan, recolhendo do primeiro a incidência do real quanto ao limite da interpretação pela noção de umbigo do sonho – ponto insondável em que o sonho “mergulha no desconhecido” (FREUD, 1900/2005, p. 519) – e de das Ding como o que, em sendo excluído, organiza o sujeito em sua constituição, é possível propor que há uma ubiqüidade79 do real no sujeito e nos registros que o fundam. Heterogêneos e não hierárquicos, como bem mostra o nó borromeano, há contudo uma orientação real que determina a lógica da emergência do falante. O real permanecerá para sempre irrepresentável, causando, contudo, a fala e, mais que isso, o próprio sujeito. Nas 79 Agradeço a Jêrôme Avril por ter carinhosamente me levado a chegar a esta conclusão sobre o real quando, me ouvindo tatear uma via de formular a extimidade do real quanto aos três registros lacanianos, inclusive o do real (paradoxo complexo de ser explicado a um não analista), me fez sorrir ao trazer uma metáfora gastronômica que colocava o camarão quase como das Ding, tendo este surgido, em suas palavras, como “ubíquo”. 103 belas palavras lacanianas: “O real, aquele de que se trata no que é chamado meu pensamento, é sempre um pedaço, um caroço. É com certeza um caroço em torno do qual o pensamento divaga, mas seu estigma, o de real como tal, consiste em não se ligar a nada” (LACAN, 19751976/2007, p. 119). Ou, ainda, o real enquanto impossível posto que impensável, irrepresentável, tal qual a pulsão de morte, da qual só temos notícias por seus efeitos, por sua força enquanto orientando o sujeito para um além. Assim, o registro do real em um sujeito, portanto, já é efeito do real; ele é atravessado por um furo que o funda e que permite que os demais registros não apenas se fundem mas se enlacem, portando, cada um deles, um limite real. Limite o qual define seus contornos, que os tornam litorais. O real é deste modo ubíquo, êxtimo, ao real, ao simbólico e ao imaginário, posto que há em cada registro um furo que os estrutura, que os faz surgir. Em cada registro, retomando Freud, há um ponto que mergulha no desconhecido, no impossível, e que, deste modo, pode lançar o sujeito na criação de um novo que, por não passar pelo que já se conhece, se apresenta com um impacto radical. É no vazio mesmo entre um registro e outro e em cada registro, vazio que se mostra no intervalo entre os significantes e no que resta como enigma a cada fala, que um sujeito emerge e é invocado a sempre re-emergir. Coloca-se aí uma concepção de espacialidade que supõe uma superfície que se estabelece somente como moebiana, ou seja, com uma torção que faz conjugar avesso e direito. Tal concepção faz referência, de uma maneira precisa e não sem conseqüências, ao dizer freudiano sobre o eu enquanto a projeção de uma superfície, implicando lógica e diretamente o corpo. “O eu é, primeiro e acima de tudo, um eu corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície”, ao que Freud (1923/1990, p. 40) acrescenta que: o eu em última análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam na superfície do corpo. Ele pode ser assim encarado como uma projeção psíquica da superfície do corpo, além de (...) representar as superfícies do aparelho psíquico. E é importante ressaltar que na obra freudiana a partir da segunda tópica traz ela mesma uma concepção topológica do aparelho psíquico na qual o eu se funde no isso sem com ele se confundir. Tal topologia freudiana, e arrisco-me a ouvi-la como uma topologia ressonante, tal qual a lacaniana, se torna explicita na concepção do eu como uma “organização” (FREUD, 1926[1925]/2006, p. 94), mais propriamente, uma organização derivada do isso e que, igualmente, se enlaça ao supereu. Destaco uma bela e esclarecedora passagem do artigo freudiano Inibição, sintoma e angústia: 104 Voltando ao problema do eu. A contradição aparente deve-se ao fato de termos considerado as abstrações de maneira por demais rígida e de termos atendido exclusivamente ora a um lado, ora a outro daquilo que é de fato um complicado estado de coisas. Estávamos justificados, penso eu, em separar o eu do isso, pois há certas considerações que necessitam desta medida. Por outro lado, o eu é idêntico ao isso, sendo apenas uma parte especialmente diferenciada do mesmo. Se considerarmos essa parte em si mesma em contraposição ao todo, se houver ocorrido uma verdadeira divisão dos dois, a fragilidade do eu se torna evidente. Mas se o eu permanecer vinculado ao isso e indistinguível dele, então ele exibe sua força. O mesmo se aplica à relação entre o eu e o supereu. Em muitas situações os dois se acham fundidos; e em geral só podemos distinguir um do outro quando há uma pressão ou um conflito entre eles. Na repressão, o fato decisivo é que o eu é uma organização e o isso não. O eu é, na realidade, uma parte organizada do isso (Ibid, p. 93). Do caos do isso, o eu pode diferenciar-se como organização que se ligará ao supereu, este último igualmente atrelado ao isso. Está ainda em jogo nesta topologia freudiana a importância do corpo na estruturação do aparelho psíquico, o que será lido por Lacan como o corpo enquanto estrutura cuja consistência se dá pelo imaginário. Estrutura que se funda pela ressonância entre o verbo e o real do corpo, tendo como efeito, ele mesmo estrutural, a possibilidade da imaginarização do corpo pela perda de uma parte de si. O objeto a, enquanto esta parte do corpo que se entrega ao Outro para o sujeito dele se separar – objeto que se apresenta como furo na intersecção entre os três registros –, tem assim papel decisivo na constituição do sujeito. A hipótese que aqui é sustentada, baseada no próprio pensamento lacaniano e em analistas que a ele se filiam, é de que a voz é a incidência a mais original deste objeto, responsável pela passagem de um contínuo real a um ritmo, a um movimento singular de um sujeito que apenas emerge pela ação das três heterogeneidades que nele se enlaçam. E o que coloca em movimento esse ressoar entre e nos registros? O sopro que se transmite pela linguagem e que, enigmaticamente, é impossível de ser a ela subsumida. Sopro originário que cria um começo para o sujeito. Lacan recorre à proposição da Gênese de uma origem ex nihilo do mundo para, dela se apropriando e a reconstruindo, sustentar como se engendraria a emergência do falante. Inicialmente, Lacan (1954-1955/1985, p. 387) propõe um momento originário do sujeito no qual o encontro do real com uma “ordem simbólica radical” tem como efeito o surgimento de um sujeito. Deste encontro originário, encarna-se não apenas a palavra, mas um imperativo encarnado que é transmitido silenciosamente pela voz do Outro. Um começo, vale dizer, que se apresenta antes de tudo como contraste, como um encontro ressonante de duas heterogeneidades que, nesta diferença, fundam simultaneamente uma ausência sob um fundo de uma presença que já não há mais. O complexo do próximo (de Nebenmensch) conceituado por Freud nos oferece um testemunho acerca deste ponto ao abordar a vivencia de satisfação e o recordar e o juízo no Projeto para uma psicologia, de 1895. Do encontro do bebê humano em sua condição real e 105 desprovida ainda de qualquer sentido e possibilidade de dar conta de si mesmo (de seu desamparo radical) com algo que lhe é heterogêneo, pela transmissão da linguagem, da ordem simbólica, podemos dizer, surge, pela perda de um objeto de satisfação absoluta, a possibilidade de uma satisfação parcial e da constituição de uma imagem de si pelo que tal satisfação propicia passando pelo corpo. Em outros termos, dessa ressonância primeira entre simbólico e real, que os funda, o imaginário surge como efeito o mais imediato. Cito Freud (1950[1895]/1990, p. 448): Deste modo, o complexo do ser humano próximo se divide em dois componentes, dos quais um produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece unido enquanto coisa, enquanto o outro pode ser compreendido por meio da atividade da memória – isto é, pode ser rastreado até as informações sobre o próprio corpo [do sujeito]. Essa dissecação de um complexo perceptivo é descrita como o conhecimento; ele envolve um juízo e chega a seu termino uma vez atingido este último objetivo. Vê-se, portanto, que se trata de um processo que envolve a perda, a expulsão da Coisa – real, contínua e constante –, que, nesse momento mesmo, incitará a organização do psiquismo e a fundação do sujeito, mas não sem que seja exigido igualmente, e em um a posteriori, a possibilidade de um juízo. Este, sendo fundado pelas informações sobre o próprio corpo, evidencia a criação do eu enquanto instância e, mais, da fantasia. A expulsão da Coisa marca, portanto, a instauração do funcionamento do psiquismo enquanto tal, do sujeito do inconsciente, e esta estrutura constante para sempre irrepresentável se colocará como orientação tanto na obtenção de uma vivência de satisfação quanto naquilo que o sujeito poderá ter como sentido de si. A relação deste momento originário do sujeito com o enodamento ressonante entre os registros do real, do simbólico e do imaginário é anunciado, ainda que sob outros termos, no início do ensino lacaniano. Lacan apresenta neste momento uma perspectiva da linguagem enquanto fornecendo a “condição radical” (LACAN, 1954-1955/1985, p. 390) do surgimento da fala em e para um sujeito. A linguagem é assim tomada pelo aspecto da ausência e da presença, que bem pode ser ligada à instauração de uma ritmicidade e de uma heterogeneidade que passa a coexistir e agir no sujeito a partir da perda da Coisa. Para tanto, Lacan recorre ao fiat lux bíblico como uma metáfora para a criação do sujeito sendo atravessado e determinado pelos três registros psíquicos que fundamentam seu pensamento: No que tange a este logos aí, não se deve deixar de lado a inflexão que o verbum latino fornece. Podemos fazer dele algo de totalmente diferente da razão das coisas, isto é, este jogo da ausência e da presença que já fornece seu contexto ao fiat. Pois, afinal, o fiat, se faz num fundo de não feito que lhe é anterior. Em outros termos, creio não ser impensável que até mesmo o fiat, a mais original fala criadora, seja segundo. (...) Dizer, em se tratando da fala, no 106 princípio, in principio, tem um caráter de miragem. (...) Uma vez que as coisas estão estruturadas numa certa intuição imaginária, elas parecem estar aí desde sempre, mas trata-se de uma miragem, bem entendido. (...) Trata-se de uma seqüência de ausências e de presenças, ou melhor, da presença sobre um fundo de ausência, da ausência constituída pelo fato de uma presença poder existir. Não há ausência no real. Só há ausência se o senhor sugerir que pode haver uma presença ali onde não há. Proponho que se situe a palavra no in principio, na medida em que ela cria a oposição, o contraste. Trata-se da contradição original entre o 0 e o 1. A palavra, a linguagem, seria assim, em seu encontro com o real do corpo do infans, fundadora do contraste que se coloca em ato quando do começo mais original do sujeito. Seria apenas deste encontro radical que ausência e presença podem passar a existir na constituição de um sujeito que será marcado fundamentalmente por um furo que o faz existir. Vemos aí claramente a dimensão de uma origem ex nihilo na constituição do sujeito. É aí que a idéia da ressonância entre os registros, que depreendo do próprio ensino lacaniano, me parece mostrar sua importância mais evidente. Desta criação primeira e ex nihilo, as reverberações estruturais entre as heterogeneidades que fundam o sujeito poderão surgir. Lacan propõe, assim, em 15 de março de 1977, a existência de um simbolicamente real e de um realmente simbólico. Trata-se de uma passagem breve da qual me concentrarei na definição do simbolicamente real como o real no interior do simbólico e do realmente simbólico como o simbólico incluído no real: O simbolicamente real não é o realmente simbólico, porque o realmente simbólico é o simbólico incluído no real. O simbólico incluído no real tem certamente um nome, isso se chama a mentira, ao passo que o simbolicamente real – quero dizer isso que do real se conota ao interior do simbólico – é isso que se chama a angústia80. Podemos ler aí que há uma intersecção entre os registros do real e do simbólico e que tais intersecções terão efeitos diferenciados no sujeito quando este já se encontra constituído. Perguntamo-nos, porém, como estas intersecções atuam no começo mesmo do sujeito, em sua constituição a mais originária que se dá, contudo, como uma invocação e possibilidade de recomeçar e ir mais além a cada vez que o sujeito toma e retoma a fala. Simbolicamente real e realmente simbólico seriam assim fundadores do sujeito na medida em que a ressonância entre um e outro registro, ambos marcados por um furo real que os delimita, torna possível a criação do inconsciente e de um mais além do inconsciente que se coloca como orientação para o falar, o fazer e o criar. Estas duas ressonâncias originárias se dariam como a base mesma da estrutura do sujeito. E minha proposta é a de que a estrutura apenas se torna assim 80 “Le symboliquement réel n’est pas le réellement symbolique, car le réellement symbolique, c’est le Symbolique inclus dans le Réel. Le Symbolique inclus dans le Réel a bel et bien un nom, ça s’appelle le mensonge, au lieu que le symboliquement réel — je veux dire ce qui du Réel se connote à l’intérieur du Symbolique — c’est ce qu’on appelle l’angoisse”. 107 estruturada quando o ressoar entre a linguagem e o corpo do infans se desdobra igualmente em uma ressonância entre o real e o imaginário. Esta ressonância se criaria deste encontro primeiro entre real e simbólico, que, de dois, criaria um terceiro que é a eles litoral, demarcando a própria litoralidade que os define enquanto dois heterogêneos. Uma tal vibração ressonante entre real e simbólico, mais propriamente, do simbolicamente real, teria como efeito estruturante o imaginariamente real, ou seja, o que do real faz surgir o imaginário, ou, parafraseando Lacan, o que do real se conota no interior do imaginário. Porém, uma vez que a ressonância entre dois termos é sempre bilateral, tem-se em simultaneidade a criação de um realmente imaginário, que pode ser pensado como o imaginário propriamente dito, ou como o imaginário tal qual configurado a partir do estágio do espelho, em Lacan, ou do narcisismo secundário, em Freud. Há então nesse começo absoluto do sujeito, do falante, a incidência de um ressoar que permanece ressoando e invocando um novo começo – o que se faz certamente pela dimensão silenciosa e insistente da voz enquanto invocação. Esta invocação, que em seu aspecto o mais radical se dá como invocação para se tornar humano, pressupõe assim uma passagem lógica do simbolicamente real até o realmente imaginário, enlaçando assim os três registros que fundam um sujeito a partir de um furo central. Didier-Weil, em seminário de 21 de maio de 2009 (inédito), nos fala de um hiper verbal silencioso, inesquecível e impronunciável, que se encontra no verbo fundador do sujeito, no significante originário que transmite a invocação de se advir como sujeito, na posição daquele que fala (“je” no francês, que não se confunde com o “eu” enquanto instância psíquica), pelo retorno pulsional que faz com que aquele que foi invocado possa responder como invocante, passando de um escutar ao falar. Clinicamente, tal proposição tem um lugar especial no entendimento de que a intervenção do analista, podendo evocar este começo do sujeito que, paradoxal e estruturalmente, se mantém em uma pulsação de abertura e fechamentos parciais. Isso a partir de uma re-invocação, uma invocação a se re-escutar tal ação ressonante do significante em sua radicalidade, que é a da criação de um novo. Recorro a Didier-Weil (Idem) para avançar nisso que seria a invocação radical do significante a partir da diferença por ele proposta acerca do significante articulado ao simbolicamente real e ao realmente simbólico: Em ambos os casos, trata-se de diferenciar dois estados do significante: O significante tal como articulado no inconsciente [realmente simbólico] é este pelo qual o sujeito é levado a falar como parlêtre ao passo que o significante que é articulado ao “simbolicamente real” é 108 um significante que não se presta ainda à fala: ele encarna isso pelo qual a fala advirá em um certo futuro no qual o inconsciente será articulado81. De maneira análoga, se pensarmos na relação entre o realmente imaginário e o imaginariamente real, entendendo portanto o imaginário como efeito da ressonância entre o significante e o real, podemos propor que há por um lado a imagem como já dada, já inscrita, já nomeada – algo que remete à dimensão de partilha dos objetos comuns, tal qual Lacan (1962-63/2005) elabora no seminário A angústia ao localizar a especificidade do objeto a como não tenho imagem especular. Por outro lado, há a dimensão da imagem associada justamente ao objeto a como causa de desejo, ou seja, a imagem a advir, a ser criada e imaginarizada como efeito do real, de um traço, de um pedaço do real. Imagem que é articulada, por um lado, ao realmente imaginário, no caso dos objetos que possuem imagem especular. Por outro lado, quando a imagem se atrela ao desejo, a não especularidade, o que está em jogo é o imaginariamente real. Seria ainda na conjunção entre o efeito do significante ressoando no simbolicamente real e no imaginariamente real que pode surgir a criação de um significante novo na fala e na vida do sujeito. Efeito ainda, como trabalharei mais detalhadamente ao fechar esta tese, da invocação real que a própria linguagem transmite para se musicar a vida. E, se se trata de uma invocação, isso se dá pela via da voz. Antes, porém, de avançar nesta incidência do objeto a, trago mais uma vez algumas palavras precisas de Didier-Weil (2011), apresentadas em duas citações, que simultaneamente sintetizam parte do que aqui foi exposto até agora, principalmente no que tange a ressonância que funda o sujeito e que se deixa mostrar pelo recurso do nó borromeano, e anunciam rotas por onde pretendo seguir quanto aos efeitos que tal ressonância podem ter no sujeito (efeitos de despertar, de invocar). A primeira: (...) Há um furo na linguagem. E há três nomes que furam o real: o real, o simbólico e o imaginário. O enodamento desses três corresponde (...) ao não do nome do nome, que é o nó borromeano, vale dizer, à escrita do significante do Nome-do-Pai. (...) Nós estamos diante deste enigma: na condição de psicanalistas, como devemos representar a significância originária – o logos – que detém, segundo Lacan, o poder de procriar um real de intersecção primordial real-simbólico? Atenção, não se trata aqui de simbólico no real, e sim de real no simbólico. (...) A questão, então, traduz-se assim: como pensar o simbolicamente real? (...) O simbolicamente real não fala, mas produz um efeito de criação por meio de uma ação que não solicita o ouvido humano. Dito de outro modo, isso não parte da voz e, no entanto, é a essa ação que se liga o ato originário da Behajung (Didier-Weil, 2011, p. 14). 81 “Dans tous les cas ce dont il s’agit c’est de différencier deux états du signifiant : le signifiant tel qu’il est articulé dans l’inconscient [réellement symbolique] est ce par quoi le sujet est porté à parler comme parlêtre tandis que le signifiant qui est articulé dans le ‘symboliquement réel’ est un signifiant qui ne se prête pas encore à parole : il incarne ce par quoi la parole deviendra dans un certain futur où l’inconscient sera articulé”. 109 Deste primeiro trecho, faço apenas uma ressalva, a de que o simbolicamente real, tal como o imaginariamente real, solicitariam sim a voz, não em sua materialidade fonada, mas em sua invocação desejante. A voz enquanto o que de mais enigmático é transmitido pela linguagem, causando a própria possibilidade da fala. A voz no sentido lacaniano, que pode bem ser sintetizado na seguinte proposição: “que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve (LACAN, 1972/2003, p. 449)”. Passo então à segunda citação de DidierWeil (2011, p. 13) quanto à função de dois termos que serão trabalhados mais a diante neste espaço, a saber, a sideração exercida pelo significante e o despertar que chama um novo significante: A função fundamental da sideração (...) é o despertar. Eu diria que o despertar é a experiência de encontro com o que Lacan chama de “simbolicamente real”, em oposição ao “realmente simbólico”, que ele designa simplesmente como o simbólico, quer dizer, o inconsciente. Assim, acabo de evocar a responsabilidade do analista, que é a de saber introduzir a escansão siderante, o equivalente de um chiste, para levar ao despertar. Despertar este que se articula ao começo originário do sujeito em uma lógica de um “a sempre recomeçar”, incluindo a invocação a ir igualmente sempre mais além na direção de um novo a ser criado e ser dado a ouvir. 3.2 – A criação poética e musical como apontamento para a verdade do sujeito A interpretação analítica não é feita para ser compreendida; ela é feita para produzir ondas82. Jacques Lacan Poesia. Melodia. Ressonância. Sopro. Vazio mediano... François Cheng com Lacan – a proposta de um “contraponto tônico, uma modulação que faz com que isso cante, porque da tonalidade à modulação há um deslizamento83”. Melodia, talvez atonal nesse caso. Ou que retire do tom a sua centralidade, fazendo emergir, como contraponto, um mais além do tom, do sentido e mesmo do duplo sentido. Cheng com Lacan e Schönberg: deslizamento atonal, visando uma escuta/escrita singular, orientada pelo real, (re)fazendo surgir no sujeito um vazio ressonante – como o próprio vazio da peça musical criada sob este paradigma, que não 82 “L’interprétation analytique n’est pas faite pour être comprise ; elle est faite pour produire des vagues”. Vale indicar a leitura possível de vagues como ondas e vagas, sinônimo de onda que bem remete à dimensão de vazio que se mostra visivelmente nas ondas maiores, que, ao se dobrar sobre si mesmas criam um vazio. 83 “un contre-point tonique, une modulation qui fait que ça se chante, car de la tonalité à la modulation, il y a un glissement”. 110 se pauta em um sentido, em uma representação. Um vazio poético, de onde poderá surgir uma verdade do sujeito. Verdade real, por mais que se apresente, pela linguagem, com estrutura de ficção, como bem sustenta Lacan em diversos momentos de seu ensino, dos quais destaco uma passagem rica e viva das Conferências e entrevistas nas universidades norte-americanas. Cito Lacan (1975, p. 35): [A verdade] Ela tem uma estrutura de ficção porque ela passa pela linguagem que se semi-diz. Jure dizer a verdade, nada mais que a verdade, toda a verdade: é justamente isso que não será dito. Se o sujeito tem uma pequena idéia, é justamente isso que ele não dirá. Há verdades que são da ordem do real. Se eu distingo real, simbólico e imaginário, é bem por haver verdades real, simbólica e imaginária. Se há verdades sobre o real, é bem por haver verdades que não se confessa84. Verdade real, verdade simbólica, verdade imaginária. No caso das artes, no pólo paradigmático assim tomado por Lacan da poesia, verdade “imaginariamente simbólica”. Verdade que aponta o impossível de ser dito/cantado/representado/imaginado/alcançado/etc. a partir do entrelaçamento ressoante entre simbólico e imaginário, mais propriamente falando, o que do imaginário se apresenta no simbólico, revelando, assim, os limites, o furo, os impossíveis de um e outro registro. A verdade que surge na poesia, no fazer poético da arte, intimamente relacionada a que “isso cante”, é a de um impossível. Diz Lacan: (...) a poesia se funda precisamente sobre esta ambigüidade da qual eu falo e que qualifico de duplo sentido. A poesia me parece, aliás, revelar a relação do significante ao significado. Pode-se dizer, de uma certa forma, que a poesia é imaginariamente simbólica. (...) Isso que chamei há pouco, isso que conotei de imaginariamente simbólico, isso se chama a Verdade. Isso se chama a verdade particularmente no que concerne a relação sexual, a saber que, como eu o digo – talvez o primeiro e não vejo porque me concederia por isso um titulo –, a relação sexual, ela não há, quero dizer, propriamente falando, no sentido em que não haveria alguma coisa que faria com que um homem reconhecesse necessariamente uma mulher85”. E é importante trazer aqui o que Lacan (1972-1973/1985, p. 127) apresenta no seminário Mais, ainda sobre a relação sexual: “O não pára de se escrever (...) é o impossível, tal como o defino pelo que ele não pode, em nenhum caso, escrever-se, e é por aí que designo 84 “[La vérité] Elle a une structure de fiction parce qu’elle passe par le langage et que le langage a une structure de fiction. Elle ne peut que se mi-dire. Jurez de dire la vérité, rien que la vérité, toute la vérité : c’est justement ce qui ne sera pas dit. Si le sujet a une petite idée, c’est justement ce qu’il ne dira pas. Il y a des vérités qui sont de l’ordre du réel. Si je distingue réel, symbolique et imaginaire, c’est bien qu’il y a des vérités réelle, symbolique et imaginaire. S’il y a des vérités sur le réel, c’est bien qu’il y a des vérités qu’on ne s’avoue pas”. 85 “(...) la poésie se fonde précisément sur cette ambiguïté dont je parle et que je qualifie du sens double. La poésie me paraît quand même relever de la relation du signifiant au signifié. On peut dire d’une certaine façon que la poésie est imaginairement symbolique. (…) ce que j’ai appelé à l’instant, ce que j’ai connoté de l’imaginairement symbolique, ça s’appelle la Vérité. Ça s’appelle la vérité notamment concernant le rapport sexuel, c’est à savoir que, comme je le dis, — peut-être le premier, et je ne vois pas pourquoi je m’en ferai un titre —, le rapport sexuel, il n’y en a pas, je veux dire à proprement parler, au sens où il y aurait quelque chose qui ferait qu’un homme reconnaîtrait forcément une femme”. 112 como musicalmente atonal, pós-tonal. O que pode recolocar para o sujeito uma escuta de seu próprio timbre, de sua própria voz e na função de endereçamento e de laço para com o Outro, abrindo-se para um re-começo novo. A verdade revelada pela poesia, enquanto imaginariamente simbólica, traz um clarão acerca do real, uma vez que a arte, enquanto escrita, pode “tocar o real” (LACAN, 197576/2007, p. 78). E tal revelação se dá brevemente, efemeramente, já que “a verdade levanta vôo no momento mesmo em que vocês não queriam mais capturá-la” (LACAN, 19691970/1992, p. 54). Uma verdade, portanto, imaginariamente simbólica que transmite uma verdade real ao tornar possível que o sujeito se depare, surpreendentemente, com pedaços do real. Por outro lado, tocar o real na clínica é poder fazer com que um vazio ressurja, invocando uma criação que se dá pela ressonância, sem se ligar a um ou outro significante, letra, traço, marca, a nada contornando este nada pela linguagem. É o nada que está em jogo nesse movimento ressonante de quebra de sentidos, seja pela irrupção de um pedaço de real transmitido poeticamente no fazer com a voz em sua radicalidade, tal qual a arte dá mostras e vestígios, seja pela função equivocante do ato analítico. Tomar a interpretação pela via do equívoco, da ressonância, da homofonia e da produção de ondas. É também este caminho que Bourlot e Vivès (inédito) propõem com Freud e Lacan, destacando o “efeito da linguagem e de seus jogos significantes” como um “efeito estético”, um “efeito de surpresa” a partir do qual a escuta permitiria aceder ao sonoro, a um além do significado, a uma escuta destacada de uma compreensão na qual um inaudito se mostra. Escuta tal qual a proposta do capítulo inicial desta tese, escuta musical e atonal, ainda que se trate da escuta analítica. Um escuta em que a radicalidade do inaudito pode comparecer, o que permitiria mudança de posição do sujeito face ao seu próprio discurso. Uma escuta de um mais-além do tom, da tonalidade discursiva e dos significantes, de uma pretensa hierarquia de idéias, palavras ou sentidos. Isto para que um movimento, surgido a partir do corte e da queda do sentido, possa fazer da repetição surgir um novo. Segundo os autores: a interpretação – no sentido de uma percepção do “sonoro” – pode trazer à tona uma lógica significante que descentre completamente em relação à significação. Se a significação pode ter uma face unilateral, imóvel, mesmo mortífera, o equívoco é suscetível de re-abrir a relação do sujeito com a fala que ele exprime. Nós a vemos portanto na abertura própria aos jogos significantes90. 90 “l'interprétation - au sens d'une perception du ‘sonore’ – peut mettre au jour une logique signifiante qui décentre complètement par rapport à la signification. Si ‘la’ signification peut avoir un côté unilatérale, figé, voire mortifère, l’équivoque est susceptible de re-ouvrir la relation du sujet à la parole qu’il exprime. Nous en venons donc à l’Ouverture propre aux jeux signifiants”. 113 Avanço na questão da verdade enquanto poética, enquanto imaginariamente simbólica, e em como o encontro com uma tal verdade tem efeitos para o sujeito na medida em que ela implica uma produção, um jogo com a linguagem, como propõem Bourlot e Vivès (Idem): Este campo “poético” da verdade visa ao mesmo tempo um certo uso da língua, uma dimensão de jogo com as palavras, e o que a palavra pode produzir. A “verdade”, na medida em que ela se elabora na fala, na medida em que ela se faz nas palavras que surgem em sessão, é um ato que produz efeitos, e nisso há a “poesia”. Poiêsis designava de fato, na Grécia antiga, a obra do poeta e também a atividade, enquanto uma fabricação, uma produção. Se o efeito da fala “verdadeira” é o desaparecimento de um sintoma, esta palavra não se aproximaria de uma ação em vias de se fazer?91. A dimensão de uma verdade em sua vertente poética teria, no processo de uma análise, o efeito de fazer com que o real que ela veicula seja tocado pelas reverberações mesmas entre simbólico e imaginário, mas igualmente pela produção que aí se apresenta como possível. Produção de ondas – ondas que ressoam entre os registros, de um ao outro, simultaneamente, abrindo vazios de onde uma criação pode surgir. Ato que implica a dimensão de “surpresa” e de um “prazer de fazer: fazer aparecer outra coisa sob a palavra a mais comum92” (Idem). Algo que o analista, com seu desejo, sustenta e que terá efeitos – efeitos de verdade – naquele que, em uma análise, corre o risco de tomar a palavra e se surpreender com o que fala. O que pode causar uma sideração e recolocar um movimento singular do sujeito, mais afinado com seu timbre próprio. Sendo que este se destaca por revelar um ponto de in-sabido, ainda que insistente, ainda que se revelando, em diferentes momentos, entretanto, abrindo a um enigma sobre isso que se escuta. O analista, ao escutar algo que possa indicar essa insistência de um timbre singular do sujeito, tantas vezes abafado e velado naquilo que se diz, tem como função ética e poética buscar destacá-lo para que o próprio sujeito que o porta possa escutá-lo. As considerações clinicas de Bourlot e Vivès baseiam-se na proposição lacaniana de que a interpretação analítica pode ser colocada no mesmo nível do oráculo, de enigma, como o oráculo de Delfos do mito de Édipo. Nas palavras de Lacan (1971/2009, p. 13-14): Se a experiência analítica acha-se implicada, por receber seus títulos de nobreza do mito edipiano, é justamente por preservar a contundência da enunciação do oráculo e, eu diria ainda, porque a interpretação permanece sempre nesse mesmo nível. Ela só é verdadeira por suas conseqüências, tal como o oráculo. A interpretação não é submetida à prova de uma 91 “Ce champ ‘poétique’ de la vérité vise à la fois un certain usage de la langue, une dimension du jeu avec les mots et ce que la parole peut produire. La ‘vérité’, en tant qu’elle s’élabore dans la parole, en tant qu’elle se façonne dans les mots qui surgissent en séance, est un acte qui produit des effets, et en cela il y a ‘poésie’. Poïêsis désignait en effet, dans la Grèce ancienne, l’œuvre du poète, mais aussi l’activité, autant dire une fabrication, une production. Si l’effet de la parole ‘vraie’, c’est la disparition d’un symptôme, cette parole ne s’apparentent-t-elle pas à une action en train de se faire ?”. 92 “plaisir de faire : faire apparaître autre chose sous le mot le plus ordinaire”. 114 verdade que se decida por sim ou não, mas desencadeia a verdade como tal. Só é verdadeira na medida que é verdadeiramente seguida (...) O momento em que a verdade se decide unicamente – de seu desencadeamento para aquele de uma lógica que tentará dar corpo a essa verdade – é, muito precisamente, o momento em que o discurso, como representante da representação, é dispensado, desqualificado. Mas, se pode sê-lo, é porque, em alguma parte, ele o é desde sempre. É a isso que chamamos de recalque. Já não é uma representação que ele representa, é essa série de discurso que se caracteriza como efeito de verdade. O efeito de verdade, ele mesmo, continuaria na clínica a reverberar e a se mostrar no seguimento discursivo daquele que a pôde encontrar, exigindo, com isso, um reposicionamento. Talvez seja aí que possamos identificar uma diferença entre o poético transmitido pela arte e o poético enquanto movimento de criação, e mesmo elaboração, em uma análise. Em ambos os casos, no que há o apontamento da verdade, um abalo pode ocorrer, uma onda pode surgir com o vazio que a caracteriza, invocando criação e movimento. Porém, não há garantias de que o efeito de verdade igualmente surgirá e, caso ele surja, se terá um continuar, se o sujeito a ele dará seguimento. Contudo, na clínica, a função do analista se exercerá na direção de produzir novos cortes a partir dos quais a verdade poderá re-emergir, sendo seguida. E para não se cristalizar, para fazer re-pulsar a dimensão de enigma. Outro enigma associado o ato analítico, partindo do que a arte transmite, desta vez com Marcel Duchamp, é lançado por Lacan em A terceira, datado de 31 de outubro de 1974. Diz ele: “a interpretação, ela deve sempre ser (...) o ready-made”. Algo que não oferece, portanto, um esclarecimento, uma resposta pronta, um sentido fechado em si, ou mesmo uma verdade igualmente assim fechada. Pelo contrário, é mesmo para um não-sentido que ela aponta, que ela visa. O que faz lembrar a aposta/proposta de Clarice Lispector (1999, p. 41) de que “a criação não é uma compreensão, é um novo mistério”. Ou, ainda (LISPECTOR, 1998, p. 10): “Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro”. Resta, ainda, frisar um ponto crucial acerca dessa verdade imaginariamente simbólica: por estrutura, ela comporta uma falha, um vazio – real e pulsante. A poesia fracassa, nos diz Lacan, em 15 de março, de 1977, “justamente por não ter senão uma significação, de não ser puro nó de uma palavra com outra palavra93”. De onde surge uma questão: “Como o poeta pode realizar essa torção de força de fazer com que um sentido esteja ausente? É, evidentemente, ao substituí-lo, esse sentido ausente, por isso que chamei de significação. (...) A significação é uma palavra vazia94”. Ela mesma, a significação, um vazio. O efeito poético, e a verdade que ele pode apontar, tem assim, um “efeito de furo”, para além de um “efeito de 93 “(...) justement de n’avoir qu’une signification, d’être pur noeud d’un mot avec un autre mot”. “Comment le poète peut-il réaliser ce tour de force de faire qu’un sens soit absent ? C’est, bien entendu, en le remplaçant, ce sens absent, par ce que j’ai appelé la signification. (…) La signification, c’est un mot vide”. 94 115 sentido95”. Nisso que a poesia fura o sentido, ou, dito de outro modo, no que ela tem como orientação produzir um efeito de furo, algo pode irromper como radicalmente novo, como mais detalhadamente me deterei no capítulo final desta tese. Um significante novo. É esta a aposta radical de Lacan, igualmente nesta mesma lição: Um significante novo, aquele que não teria nenhuma espécie de sentido, isso seria talvez o que nos abriria à isso que, dos meus passos desajeitados, eu chamo de real. Por que não se tentaria formular um significante que teria, contrariamente ao uso que dele se faz habitualmente, um efeito? Sim. É certo que tudo isso tem um caráter extremo. (...) Como é que ainda não se forçou as coisas o bastante para fazer a experiência do que isso daria, de forjar um significante que seria outro96. Poesia enquanto ato, criação. Novo, enquanto possibilidade de ir além de um dado sentido, e do sentido ele mesmo. Música, enquanto transmitindo vestígios do real e invocando que se crie. Poetizar, musicar. E com efeitos. Para caminharmos, enquanto analistas, no que se tem como efeito em uma análise. Proponho assim tomarmos a música para além da tonalidade como uma radicalização do efeito poético, efeito de verdade, uma vez que esta partiria de pedaços do real “costurados”, “trançados”, dados a ouvir mais por letras do que por significantes. Tal enlaçamento das heterogeneidades que constituem o sujeito sem que haja uma tonalidade, ou um fechamento do enigma transmitido pela voz do qual, como resposta, um sujeito pode advir. Não seria, pois, em torno de um tom, mais de um vazio que um sujeito se funda. Vazio que continua a invocar um ritmo próprio e um novo, com aquilo que insiste bem como que com o que se apresenta como já inscrito para além de um sentido. A música sob o paradigma schönbergeniano pode ser pensada, então, como uma criação a partir da letra e da voz que caminha na direção de, num a posteriori, se dar a ouvir enquanto significante novo. O que nos daria pistas para apreender como, na clínica, a partir das dissonâncias e das ressonâncias, é possível ao sujeito caminhar na construção poético-ética de um significante novo para o sujeito a partir de sua própria verdade – ressonante, reverberante e invocante. A música, assim 95 Em 17 de maio de 1977, Lacan afirma que – e apresento primeiro em francês pelo jogo singular e intraduzível, embora se tente, que ele cria: “(...) la poésie (…) est effet de sens, mais aussi bien effet de trou. Il n’y a que la poésie, vous ai-je dit, qui permette l’interprétation et c’est en cela que je n’arrive plus, dans ma technique, à ce qu’elle tienne ; je ne suis pas assez pouâte, je ne suis pas pouâteassez !”. “(...) a poesia (...) é efeito do sentido, mas igualmente efeito de furo. Na há senão que poesia, eu lhes digo, que permite a interpretação, é nisso que chego mais, em minha técnica, a isso que ela tem; eu não sou bastante poeta, eu não sou poeta bastante!”. 96 “Un signifiant nouveau, celui qui n’aurait aucune espèce de sens, ça serait peut-être ça qui nous ouvrirait à ce que, de mes pas patauds, j’appelle le Réel. Pourquoi est-ce qu’on ne tenterait pas de formuler un signifiant qui aurait, contrairement à l’usage qu’on en fait habituellement, qui aurait un effet ? Oui. Il est certain que tout ceci a un caractère d’extrême. (…) Comment est-ce que on n’a pas encore forcé les choses assez, pour, pour faire l’épreuve de ce que ça donnerait, de forger un signifiant qui serait autre”. 116 musicada, desperta. Ouvir na fala do sujeito a musicalidade em sua função de transmissão e fazer com a voz uma invocação ao despertar. 117 CAPÍTULO IV DA PALAVRA À ESCRITA: ÉTICA E POÉTICA DE UMA ESCRITA POSSÍVEL DA VOZ Eu não tenho nada a dizer. E eu digo. John Cage - - E a música? - desafiou. A música - o velho traçou com o dedo uma pausa no ar - é a expressão mais completa do que estou dizendo. Ou do que não estou dizendo, pois é preciso ouvir apenas o que não se diz. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça. Eu ia chegar nela. A música também é silêncio. Bach sabia disso, Mozart também. Beethoven só soube quando ficou surdo. O ar não é silencioso? O vento não faz barulho? E que é o vento senão ar? A música é o silêncio em movimento. O mesmo com as palavras. Não senhor: as palavras estão em quem fala e em quem escuta. O silêncio fica entre os dois, intocado, um silêncio enorme, intransponível. Ao passo que a música está nela mesma, isto é, no que resta além de nós. E o resto é silêncio. Fernando Sabino Estou em uma sala de péssima acústica – o mundo. Vozes e mais vozes se confundem – o humano. Tentamos costurá-las com as palavras – a literatura. José Castello Talvez a psicanálise, de uma maneira próxima e distante do compositor John Cage, não tenha nada a dizer e ela o diz. Insisto nesse nada do aforismo cagiano. O que é esse nada, esse vazio, esse furo? Esse nada que se transmite mesmo sem que se tenha intenção. O assim chamado silêncio, como Cage bem mostrou, em seus escritos e, em especial, com sua peça 4’33’’97, não pode ser articulado ao nada. Sim, pois não se trata de pensar o silêncio como uma demonstração do vazio da linguagem. Como o sabem músicos e psicanalistas, o silêncio é parte mesmo do sistema lingüístico. “There is no such thing as silence”. Não existe tal coisa como o silêncio, diz Cage. Por outro lado, o silêncio “grávido de sons (CAGE, 1969, p. 98)” 97 Obra composta em 1952 inicialmente para piano solo na qual o intérprete se posiciona em frente ao piano, abre-o para tocar suas teclas e permanece em suspenso, com as mãos no ar, durante o período de tempo indicado no titulo da mesma, isso contando com a divisão em três movimentos. O que surge neste peça, bem como em inúmeras outras de Cage em que, na ausência de sons assim ditos musicais, o que irrompe é a própria sonoridade do ambiente no qual a peça é executada, a sonoridade e mesmo musicalidade da vida, com seus ruídos, dissonâncias, com sons imprevisíveis e aleatórios, com o acaso intervindo diretamente na criação do que é dado a ouvir pelo ato artístico que circunscreve e propõe um corte em uma dada continuidade. 118 faz uma mostração. Ele mostra, como o grito, a força do real. O trabalho do músico é o de contornar com os materiais sonoro-musicais esse vazio, esse nada, esse furo, esse mais além de qualquer significante e de qualquer sentido. Ao fazer isso, ele dá a escutar o real da voz ao ouvinte. O real “puro”, o contínuo sem ação da escansão, é a morte, a voz das sereias, o olhar da Medusa, a imagem sem movimento, a voz em uma única nota... A arte impõe um movimento inédito face ao real contínuo, furando-o. O real, como a pulsão de morte desligada da pulsão de vida, é um grito incessante. Na construção de um objeto de investimento pulsional a partir da criação musical, o simbólico fura o real e, em ressonância, se fura, o que dará um ritmo singular àquilo que pode ser escutado do contínuo. O real está lá. Sempre. Escute! O real grita. Mas, se falamos, não o escutamos o tempo todo. Não há som que tenha medo do silêncio, diz Cage (Idem). O silêncio já é uma invocação à escrita daquilo que escutamos. Escuta – escrita – novo – criação. São os pontos que orientarão isso que aqui me proponho a pensar em voz alta. Real – simbólico – imaginário, mas em seus enodamentos. A música e a pulsação da vida. Este movimento de pulsação do contínuo pode ser escutado, eventualmente, graças ao efeito de um corte no espaço e no tempo através da experiência musical. Ao escutar esse movimento o músico dá/cria a possibilidade para o outro de, novamente, também escutá-lo pela via de uma escrita que o ritma e que o faz pulsar. Escutar. Falar. Escrever. Falar. Com voz. Escrever é, também, tomar a voz enquanto própria, tomando a fala e a palavra como causa para que uma inscrição possível do imaterial da voz ganhe espaço, ganhe temporalidade, ganhe, por que não?, voz. Se a voz veicula uma invocação original à humanização e a um recomeço a cada vez que alguém ouse falar tomando a voz enquanto própria, a escrita relança, ou muitas vezes lança “simplesmente”, esse invocar na direção de um fazer que parte da letra, que visa circundar o vazio sempre pulsante do objeto a, e que pode, em certos casos, promover a criação de um significante novo na medida em que uma diferença radical se dê como inédita face aos significantes que se apresentam já enlaçados em uma cadeia. Escrever invoca a voz e provoca voz. Inversamente, escrever é fruto da invocação da voz que provoca um sujeito a uma marcação que pode ser dada a ser lida. É essa relação nem sempre evidente, porém íntima e viva, entre escrita, voz e invocação que tenho em foco neste momento. Da música, recolho a direção apontada por John Cage quanto a tomar o aleatório, a indeterminação, o acaso e a abertura aos sons ainda não codificados ou trabalhados como musicais para pensar como a escrita – e aqui trata-se fundamentalmente da escrita pulsional para um sujeito, um falante – pode se estabelecer como um efeito da ressonância, da 119 reverberação entre o simbolicamente real e o imaginariamente real, fazendo com que de uma radicalização do efeito do real possa se passar à escrita, ainda que sempre falha e a se refazer, de um encontro com o real. Escrita, assim, sentida como convite à criação, como fazer que mostra que, longe de se escrever o real, o que é da ordem do impossível, o que se apresenta como direção é uma escrita causado pelo real. Neste ato, o sujeito se escreve com sua voz. 4.1 – Cage e o acaso: poetizar o real por uma escrita do radicalmente novo A tempestade original falou longamente98. Francis Ponge A arte obscureceu a diferença entre arte e vida. Agora, deixemos a vida obscurecer a diferença entre vida e arte. John Cage A obra musical suscita um transbordamento da experiência estética sobre a existência cotidiana, traços que subsistem e modificam a sensibilidade do auditor no momento que ele é tomado por seu ambiente sonoro musical transformado por esse momento musical99. Véronique Verdier A arte e a vida. Ambas invocando escrita. Neste capítulo final da tese, minha proposta é delimitar a elaboração lacaniana sobre o conceito de real a partir da construção da temática da criação, tanto pela sublimação como quanto pela idéia do escabelo (fio que, mesmo ausente nos capítulos precedentes, me guiou ao longo de minha pesquisa). Esta surge em Lacan à partir da escrita de James Joyce à qual ele associa a este novo paradigma da criação, o que conduzirá a mudanças significativas no conceito de letra, objeto a, gozo e mesmo de inconsciente. Percorrendo este capítulo, trarei elementos da música de John Cage e do manejo singular que ele faz dos sons musicais mesclados com o limite deles mesmos através do ruído e do silêncio. Por fim, me deterei na proposta de que o trabalho de análise acentua as possibilidades do sujeito estabelecer uma construção singular, causada pelo objeto a, mais especialmente a voz em sua dimensão invocante, que pode levá-lo à direção de musicar sua própria vida. 98 “L’orage original a longuement parlé”. “L’œuvre musicale suscite un débordement de l’expérience esthétique sur l’existence quotidienne, des traces en subsistent qui modifient la sensibilité de l’auditeur lorsqu’il est rendu à son environnement sonore non musical, transformé par ce moment musical”. 99 120 Costurando as duas primeiras reflexões, sobre o real na obra lacaniana e na música de John Cage, recolherei trechos do filme Tônica dominante, de Lina Chamie, para poder caminhar nas considerações sobre aquilo que, tanto a experiência do encontro com uma obra de arte, quanto uma trajetória analítica têm em comum: o fato de que ambas tocam pedaços de real (LACAN, 1975-76/2007, p. 133). Neste sentido, a arte não apenas nos ensina sobre o sujeito, como bem ressaltaram Freud e Lacan, como pode nos orientar em nossa prática clínica. Sem fazer dela um ideal, é possível ouvir na experiência artística um modo de manejar a linguagem que caminha para além dos sentidos, convocando o sujeito a se posicionar diante dela em uma posição inédita. Há, porém, diferenças entre ambas as experiências, tanto espaciais quanto temporais. E minha proposta é a de que a arte poderia promover um giro estrutural, por assim dizer, topológico, no sujeito, colocando-lhe uma temporalidade a ser colhida a posteriori, talvez, no tempo de uma análise ou no próprio encaminhar da vida cotidiana norteada por este despertar, nas quais tal giro poderá, de fato, se efetuar. Ou não. Se a arte propicia isso, é por lembrar ao sujeito que há nele um vazio que o causa. Em outras palavras, lembra-o de sua ética, de sua verdade. Porém, fazê-lo seguir por essa ética, não apenas defrontando com o enigma que o constitui, mas chamando-o a fazer algo com ele, é tarefa que cabe à análise. É nessa experiência que um sujeito poderá se eparar d com seu desejo e não ceder dele, escrevendo -se e tecendo-se a partir das heterogeneidades das quais é constituído, temporal 121 da flauta de Anfião, que fez com que grãos de areia se unissem, formassem pedras e se colocassem de forma tal a erguer a estrutura ali necessária. Tal metáfora explicita o poder harmonizador da música, que, como nos diz o maestro do filme, cria vida onde havia “apenas o vazio”. Nossos ouvidos passam a receber agora o som de uma música, suave, um quarteto de cordas, e voltamos a ver instrumentos, de sopro, no mesmo movimento temporal e espacial de surgir em seus detalhes, superfícies, voltas, contornos e buracos. Um, em especial, ganha destaque: a clarineta. E as imagens tão intimamente próximas desse instrumento passam a se mesclar com os créditos iniciais: nomes e sobrenomes. Um homem surge desmembrando a clarineta, e guardando cada uma das partes que a compõem em uma caixa. Ouvimos sua voz em off: “A beleza é um conceito. E a beleza é triste. Não é triste em si, mas pelo que há nela de fragilidade e incerteza. Passo horas e horas praticando, procurando me aprimorar, buscando a perfeição. Escalas, notas, arpejos, são meu dia-a-dia100”. O instrumento é guardado. O homem, também em close, nos olha e diz: “Eu sou músico, eu acredito nas notas, eu acredito na música”. Somente aí surge na tela, em fundo preto e letras brancas, o nome do filme: “tônica dominante”. Paro por aqui. Há muito o que se colher e apreender dessas passagens. O primeiro aspecto que delas destaco é a fala do músico sobre a beleza, em sua fragilidade e incerteza. Imediatamente, somos levados a pensar nas considerações lacanianas sobre o Belo no seminário A ética da psicanálise. O Belo, assim como o Bem, se colocaria como uma “muralha poderosa na via de nosso desejo” (LACAN, 1959-60/1997, p. 280). Porém, diferentemente do segundo, o Belo “em sua função singular em relação ao desejo não nos engoda” (Ibid., p. 291). Esta função, continua Lacan, “nos abre os olhos” (Idem), e, eu acrescentaria, os ouvidos. Ela nos abre para a dimensão do enigma que portamos frente ao desejo e ao vazio que nos é constitutivo, vazio de das Ding, que convoca, ao mesmo tempo, para uma dimensão ética e estética, na medida em que, ao tocar o real, coloca em cena a dimensão de um posicionamento singular frente a ele, assim como uma criação nova em torno dele. O Belo simultaneamente revela e vela o “segredo” de das Ding (Ibid., p. 61), que se encontra no âmago das coisas. Em seu aspecto de desvelamento, o belo nos aponta para nosso desejo, mantendo-nos a uma distância deste vazio fundamental de que somos feitos, o vazio da Coisa que faz com que o campo do linguagem seja organizado. Ele nos faz, assim, uma convocação ética frente ao desejo. 100 E tal passagem me faz agora lembrar de uma frase do escritor Franz Kafka, que conheci através do livro de Edson de Sousa, Uma invenção da utopia: “Só há um ponto fixo. É a nossa própria insuficiência. É daí que preciso partir” (KAFKA apud SOUSA, 2007, p. 12). 122 Com isso, quando pensamos na constituição do sujeito na divisão no campo do Outro, é possível pensar em como a queda do objeto a, que causa o desejo, nos possibilitará uma nova posição frente a este enigma do desejo do Outro. Trata-se, aqui, de poder ver como este objeto caído de nosso corpo poderá comparecer, recuperado por um saber-fazer, na obra de arte, como Lacan (1965/2003, p. 203) indica ao falar sobre a função da sublimação nestes termos na Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. Os objetos que dizem de nossa posição frente ao desejo do Outro, o olhar e a voz, poderão ser, pelo ato estético, recuperados, eticamente. Porém, por outro lado, esses pontos trazidos aqui acerca do belo e da sublimação já marcam uma simultânea aproximação e divergência com campo da psicanálise. Por mais que nesta esteja em jogo tanto a dimensão de das Ding como a função do objeto a, no ato analítico o que se visa é a posição ética do sujeito que traz, a partir de uma extração deste objeto, a possibilidade de uma mudança de posição subjetiva e da efetuação de um giro estrutural do sujeito. O analista opera por intervenções que fazem um corte na fala do analisante, efetuando um giro discursivo. Como enfatiza Marie-Hélène Brousse (2008, p. 53), “enquanto no discurso analítico há o objeto a na posição de agente, que comanda o sujeito dividido, o artista não procura, em caso algum, o efeito-sujeito”. Penso que, com isso, podemos pensar que por mais que a experiência artística transmita efeitos do real, com conseqüências no espectador, não se trata de efeitos analíticos. São efeitos de uma abertura para isso que ambas as experiências têm em comum: o real. Se a arte pode transmitir o real, que pode uma análise a partir dele? Em uma análise, não se trata de uma transmissão dos efeitos do real, mas sim de possibilitar a construção da verdade do sujeito a partir dos encontros com pedaços de real e a partir do trabalho analítico propriamente dito. E isso para que possa haver uma invenção ou uma criação com tal verdade. Um novo com o mesmo. Um novo com o que resta e com o que volta para o mesmo lugar. Retomando o filme, de uma maneira muito precisa, e sem saber, a diretora parece ter propiciado uma experiência singular e sintética daquilo que Lacan (1964/1998, p. 102) localiza com a idéia de uma pulsão invocante, “a mais próxima da experiência do inconsciente”, e sobre o movimento constituinte do sujeito em relação ao Outro, passando de um ouvir a um ser ouvido e a um se fazer ouvir (Ibid., p. 184). Em outras palavras, associando isso à temática do filme, como Didier-Weill (1999, p. 135) coloca, “fazer ouvir sua própria voz no concerto do mundo”. A pulsão invocante em ação na fundação da estrutura psíquica do sujeito na alienação e separação frente ao Outro, na construção em torno de um vazio com o muro da linguagem, e também, simultaneamente, esta pulsão em ação posteriormente no fazer com esta linguagem, ato que o tocar da flauta de Anfião ilustra. Não apenas isso, esta 123 passagem do filme tem ainda o mérito de, ao mostrar a superfície dos instrumentos com proximidade e delicadeza, colocar em cena a “solidariedade íntima” (LACAN, 1962-63/2005, p. 266) da pulsão invocante com a pulsão escópica, a torção de uma sobre a outra, convocando-nos a olhar temporalmente essas superfícies, e a escutar visualmente os efeitos disso sobre nós. O olhar tem uma temporalidade, que se presta a um ato do sujeito, de se constituir e, por voltas, se inventar — inventar artifícios para si. Esta dimensão do temporal se desdobrando sobre o espacial, e seu inverso, já pode ser lida em Lacan no escrito sobre o tempo lógico. O escópico e o invocante caminham lado a lado nesse escrito. Temos, por um lado, a dimensão do tempo e das escansões temporais e daquilo que se é dado a ver, que precipita uma conclusão. O instantâneo do que é captado no olhar no primeiro tempo traz, também, implicitamente, uma invocação para que um sujeito não apenas compreenda esse instante logicamente anterior, mas para que uma tensão temporal possa se modular em uma “tendência ao ato”, como nos diz Lacan (1945/1998, p. 206). Nesse sentido, o que Lacan (Ibid., p. 211-212) apresenta ao término desse texto sobre o fato dessa verdade que se atinge, pela pressa, no momento lógico da conclusão, tem ligação direta com a proposta inicial do sofisma. Este é dado a ser resolvido não a um prisioneiro apenas, mas a três, nos afirmando a fundamental importância dos outros e do Outro nessa tomada de uma posição que um sujeito precisa fazer, por mais que seja um caminho solitário. Diz ele: “é apenas sozinho (...) que se atinge o verdadeiro, ninguém o atinge, no entanto, a não ser através dos outros”. Dessa breve colocação sobre o temporal, por aquilo que pude recolher do referido filme, e com Lacan, penso que podemos dizer que a experiência com uma obra de arte nos lançaria, num espaço curto e preciso, no momento inicial dos três tempos lógicos. A obra de arte, que, de saída, pressupõe sempre o outro, o fruidor, e se endereça ao Outro, nos lança uma pergunta sobre nosso desejo e nossa verdade, podendo fazer com que uma mudança subjetiva ganhe movimento. Por tocar o real, e transmiti-lo, a arte lançaria o sujeito na simultaneidade lógica do instante de ver, que já põe a possibilidade de se concluir. Porém, para que isso ocorra será preciso um passo que a arte não pressupõe. É preciso aí incidir o trabalho do dispositivo clínico da escuta analítica para que as questões evocadas na experiência com uma obra de arte possam levar ao tempo de compreender e ao de concluir propiciado pela análise. Ouvir como uma experiência, seja ela de qual especificidade for, convoca um sujeito a eventuais rearranjos e dá lugar, pela fala, para que este fazer subjetivo possa acontecer é mais um dos pontos que uma reflexão sobre o artístico pode nos ajudar no 124 trabalho de uma análise, uma vez que é também de um posicionamento ético do sujeito do inconsciente que o fazer artístico nos ensina. Ainda através deste mesmo filme, parto em busca de escutar como o conceito de real lacaniano pode se aproximar daquilo que o som ruidosilencioso e estranhamente musical de John Cage pode nos ensinar acerca do sopro humanizante que funda a estrutura do sujeito. Novamente recorro à fábula de Anfião, construtor dos muros de Tebas através da música que tocava em sua flauta. Um gesto, um sopro, uma música, elementos mínimos, e uma construção, de um muro. A linguagem aí, da música, se faz carne. Metáfora bela e delicada para nos dizer dos efeitos dessa musicalidade pungente de lalangue, ouvida através da voz da mãe, evocando a palavra do Pai, que faz do infans um falasser. Linguagem e voz nele incorporados. Sopro que atravessa e faz ressoar, em cada um de nós, por vias singulares, novos encantos e construções, entrelaçando as cordas do real, do simbólico e do imaginário. Esta fábula, descrita por João Cabral de Melo Neto em sua Psicologia da composição, livro que o próprio autor criou e imprimiu manual e artesanalmente em 1947, propõe um dialogo não apenas com o Amphion de Paul Valéry (Histoire d’Amphion, 1931), mas com o próprio ato de criação da linguagem e criação das palavras. Uma criação que, repito, parte do mais elementar, de um “quase nada”, em torno de um nada. Uma criação que faz, através do muro da linguagem, com que o real só possa nos chegar nesse entrelaçamento que Lacan propõe quanto ao nó borromeano. Cada um desses registros, enlaçados, fundando a estrutura do falasser. E John Cage, como ele soou nesse meu espanto experimentado diante dessa obra cinematográfica tão fundamentalmente musicada, fazendo-me encontrar em ambos algo de fundamental para as reflexões desta tese? Tônica, dominante, termos tão preciosos para uma tradição musical da qual John Cage vividamente não compartilhava. Em Cage, o que se apresenta como “tônica”, que domina a obra, poderíamos dizer, é o acaso, a indeterminação e o real que orientam a criação e a escuta, chamando as notas e os sons a aparecerem pontualmente fazendo função de letra. “Eu não tenho ouvido para a música”, chegou a dizer, “Eu não ouço música em minha cabeça antes de escrevê-la. Eu nunca ouvi. Eu não consigo me lembrar de uma melodia” (CAGE apud DUCKWORTH, 1999, p. 7). Essa falta de uma imaginação musical, admitida por ele, e tão predominante em certas correntes do sistema tonal, o fez ouvir como música não somente os sons ditos musicais, os que se prestavam tradicionalmente para a criação da música, sons já “domados”, já colocados em relação e tensão/distensão entre si. Sons como significantes, poderíamos dizer. Sons apaixonados por outros sons, como Cage dirá em uma entrevista um ano antes de morrer (“[sounds] in love 125 with another sound”)101. Sua “abertura” (CAGE, 1973, p. 8) se deu para os sons como elementos mínimos, surgindo ao acaso, passíveis, mesmo assim, de uma organização (idem, p. 3). E foi aí que, em mim, o referido filme e a música de Cage se entrecruzaram. “O acaso ataca”. Ouvimos tal frase sendo dita por uma importante personagem nesta obra de arte audiovisual, o maestro da orquestra na qual o músico protagonista do filme toca. Na fábula de Anfião, quando este se encontra no deserto, imenso, com suas rasuras feitas pelo vento, vazio e árido – cena que em muito faz lembrar o vôo de Lacan sobre a Sibéria que o causou a propor a letra como litoral em Lituraterra –, o acaso se fez presente, e o resultado foi essa música criacionista. “O acaso ataca e faz soar a flauta”, conclui o maestro102. Nas criações de Cage, que dizia que aquilo que tinha para oferecer ao mundo musical se nomeava “invenção” (CAGE apud DUCKWORTH, 1999, p. 8), podemos “pescar” os ataques do acaso. Diz Cage (2002, p. 19): “Eu adoraria dispor da simplicidade e do caos103”. As obras cagianas, em especial as compostas a partir das décadas de 1940 e 1950, tomadas por ele como processos particulares a cada músico que as interpretará e a cada vez que serão tocadas, têm como princípio tomar o acaso e a indeterminação como elemento constitutivo do fato musical, sem impor a ele uma ordenação intencional. Tem-se aí uma referência direta ao work in progress de Joyce em Finnegans Wake, que Cage chegou a trabalhar musicalmente em 1942 e duas vezes em 1979, e, acrescento, uma referência indireta à topologia lacaniana do nó borromeano. A partir destes pontos, surge como questão: seria o encontro com o real propiciado por esse modo de fazer música mais radical, convocando o sujeito do inconsciente mais nitidamente a se posicionar enquanto tal? A indeterminação e o acaso nessa música ofereceriam ao sujeito material no qual ele poderia enganchar seus significantes? É 101 John Cage em entrevista apresentada no documentário “Écoute”, dirigido por Miroslav Sebestik em 1992 e produzido por JBA Production, La Sept e Centre Georges Pompidou. 102 Vale aqui fazer um parênteses para indicar a dimensão de endereçamento que o acaso pode solicitar por apresentar um enigma ao sujeito. É Milan Kundera, em seu romance A insustentável leveza do ser, já aqui citado nesta tese, que me permite sustentar tal articulação. Cito integralmente, então, a longa passagem deste romance em que há a descrição do encontro dos protagonistas da história, Tereza e Tomas: “Só o acaso pode ser interpretado como uma mensagem. Aquilo que acontece por necessidade, aquilo que é esperado e que se repete todos os dias, não é senão uma coisa muda. Somente o acaso tem voz. Tentamos interpretar o acaso como as ciganas lêem no fundo de uma xícara i desenho deixado na borra do café. A presença de Tomas no restaurante foi para Tereza a manifestação de um acaso total. Estava sozinho numa mesa diante de um livro aberto. Levantou os olhos e sorriu: – Um conhaque, por favor. Nesse mesmo momento, tocava uma música. Tereza foi buscar o conhaque e girou o botão do aparelho para aumentar o volume. Havia reconhecido Beethoven. Ela o conhecera desde que um quarteto de Praga tinha vindo à pequena cidade fazer uma temporada. (...) Desse dia em diante Beethoven tornou-se para ela a imagem do mundo “do outro lado”, a imagem do mundo ao qual aspirava pertencer. No momento, enquanto voltava do balcão com um conhaque para Tomas, esforçava-se para decifrar esse acaso: como seria possível que, no exato instante em que se preparava para servir um conhaque a esse desconhecido que lhe agrada, estivesse ouvindo música de Beethoven? O acaso tem suas mágicas, a necessidade não. Para que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se juntem desde o primeiro instante, como os passarinhos sobre os ombros de São Francisco de Assis” (KUNDERA, 1986, p. 54-55). O acaso tem voz por permitir que o sujeito possa responder a ele com sua própria voz, endereçando algo de si ao Outro. 103 Na edição consultada, francesa: “J’aimerais disposer de la simplicité, et du chaos”. 126 interessante acrescentar que se havia uma “intenção”, por assim dizer, na proposta cagiana era a de ter como método um ato no qual o próprio compositor, com seus gostos pessoais e mesmo experiências, é deixado “de lado” (CAGE apud KOSTELANETZ, 1970, p. 25). O ato de compor permitiria a Cage, em vez de se identificar com sua própria experiência, poder se desconectar dela (idem, p. 24), deixando, deste modo, a porta aberta para as circunstâncias sonoras incessantes, para, enfim, o acaso. Acaso que se dá primeiramente pelo sonoro, mas que diz de uma posição ética de re-escutar a vida em sua pulsação e, com isso, inscrever a marca de um ritmo singular. Arte e vida mostram-se como respostas ao real incessante que as causa, as organiza e as faz surgir. Arte e vida, assim, se mostram mais intimamente entrelaçadas em Cage. Nas palavras deste inventor: “Minha música: os sons incidentais do ambiente. Eu moro na Sexta Avenida, a circulação ali encontra-se plena. Resultado: uma profusão sonora104” (CAGE, 2002, p. 21). Da qual o compositor se serve para, em a transformando, criar música. A marca fundamental de Cage é a experimentação radical com os sons — não apenas os convencionalmente ditos musicais —, os ruídos, o silêncio e os instrumentos tradicionais de forma não-tradicionais. Cage defendia que os sons pudessem ser eles mesmos, sem significar nada; sua música sendo criada, portanto, para dizer o nada (COPE 2001, p. 94) e abarcar aquilo que não cessa de nos rodear, ou, se preferirmos, o real. Cabe aqui trazer mais um breve trecho da fala deste compositor: “Eu escolho os sons com a ajuda de operações de acaso. Nunca escutei nenhum som sem o amá-lo. O único problema com os sons é a música105”. Cage dizia perceber em si não uma facilidade para os treinamentos tradicionais em música, mas sim um “senso de continuidade” (apud DUCKWORTH, 1999, p. 6). Este pode ser mais bem compreendido se pensarmos na idéia que esse compositor abraça de uma espécie de música que é constantemente criada pelos sons que nos cercam, por aquilo que é pulsantemente sonoro da vida, e que se torna mais evidente quando se busca permanecer em silêncio, encontrando-se uma insistência surpreendente de algo que é sempre novo, nunca ouvido. Senso de continuidade que bem pode ser ouvido/lido como uma abertura para reescutar o contínuo do real, propondo, porém, um corte face a ele que permite assim a escrita, tanto a pulsional quanto, neste caso, a musical. Este ato tem efeitos diretos no modo de compor que surge não como uma abstração ou uma imaginação e construção formal com 104 “Ma musique : les sons d’ambiance de l’environnement. J’habite à la Sixième Avenue, la circulation y bat son plein. Résultat : à tout instant, une profusion sonore”. 105 “Je choisis les sons à l’aide d’opérations de hasard. Je n’ai jamais écouté aucun son sans l’aimer. Le seul problème avec les sons, c’est la musique”. 127 notas cujos valores se tornam significantes. Nas palavras do próprio compositor: “em vez de ouvir música na minha cabeça antes de escrevê-la, eu escrevo de forma a ouvir algo que eu nunca ouvi antes. Deste modo, estou na posição em que o ouvinte está” (idem, p. 27). Escrever música é, para ele, forjar um modo de ouvir. E mais, um ouvir que possa deixar o incessante ruidoso (e silencioso) do mundo ser também ouvido. Neste sentido, podemos dizer que há uma estética da escuta em Cage. Mais que isso, uma poiética do escutar, como propõe Shono (1987, p. 454): Assim, uma poiética da escuta não consiste no conhecimento da significação musical da obraobjeto nem simplesmente na percepção do objeto sonoro. Sua tarefa é de estabelecer uma relação nova entre nós e o mundo na experiência musical do objeto sonoro em si mesmo106. Tratar-se-ia em Cage da escuta e do que é dado a ouvir não por uma obra em que as relações entre os sons são dados de antemão, mas sim de escutar recusando ter em conta a correspondência entre o que é composto e o que é escutado: “escutar os jogos de diversos sons sem saber o que eles significam107” (Ibid, p. 450). Não haveria assim um enunciado musical e a escuta se daria como o encadeamento temporal de sonoridades, o que permitiria estabelecer uma relação nova entre o som, o tempo e o espaço capaz de despertar o ouvinte, de retirá-lo de um estado de uma certa inércia a partir de uma situação estética que o faça reescutar a vida. Destaco, sobre isso, duas falas de Cage. A primeira diz que “é preciso parar todo o pensamento que separa música e viver” (CAGE, 1969, p. 97); a segunda, sobre o ato de composição, acrescenta que: “Quando eu escrevo uma peça, eu tento escrever de um tal modo que não interromperei essa outra peça que já está acontecendo” (CAGE apud DUCKWORTH, 1999, p. 15). Entendo esta posição cagiana como um ato — ético, é preciso ressaltar — que desloca o eu de forma deveras acentuada, no limite de “apagá-lo”, para fazer irromper o sujeito do inconsciente em sua face real. A experiência de se ouvir uma música de Cage coloca em xeque a pretensa solidez do eu. Ele não encontra nessas peças um lugar firme para se agarrar. O vazio que esta música traz não é contornado com elementos já tomados pela linguagem musical, sons enquanto significantes, mas sim com sons enquanto tais. Sem propósitos (CAGE, 1973, p. 17), ou utilidade. Sons apenas. Algo que, com Lacan, pode ser 106 No original: “Ainsi, une poïétique d’écoute ne consiste pas dans la connaissance de la signification musicale de l’œuvreobjet ni dans la seule perception de l’objet sonore. Sa Tâche est d’établir un rapport nouveau entre nous et le monde dans l’expérience musicale de l’objet sonore en elle-même”. 107 “Écouter les jeux des divers sons sans savoir a qu’ils signifient”. 128 aproximado à letra. Sons presentes, ainda que aleatoriamente, ou ausentes. Melhor, sons não notados (idem, p. 7-8), que surgem na música através do silêncio. Uma pergunta pode muito bem surgir daí: se não há um propósito, uma intenção na composição, se o que a baseia é o nada (CAGE apud DUCKWORTH, p. 14), como, então, falar de sujeito neste modo de criação musical? E outro questionamento também pode chegar: se o acaso é predominante, teria uma estrutura a peça criada? Penso que o sujeito surge justamente nessa abertura ao acaso e também na escolha de pontos mínimos, “pedaços de real” que orientam a estrutura da peça. Cage (1973, p. 18) nos informa que suas invenções musicais partem de uma “estrutura”, que dividirá um todo em partes, e de um “método” de procedimento nota-a-nota. É importante destacar que ao falar aqui em sujeito não estou abordando o sujeito singular que é John Cage ou mesmo qualquer outro compositor. O que a obra musical nos ensina é sobre a lógica do sujeito do inconsciente, sobre sua estrutura e sobre como ela pode transmitir aos sujeitos um modo de lidar com o real. O que, entretanto, é peculiar à obra de Cage é o modo como este se utiliza dos sons musicais de um modo a fazer uma “destruição da gramática musical”, conforme afirma Safatle (2006, p. 181), indicando, ainda, que, em Cage, “a peça é composta com restos, com dejetos da gramática musical” (ibid, p. 180). E a apresentação dos sons musicais por essa via terão efeitos diferenciados no sujeito. A conclusão que Safatle chega sobre este ponto é a de que, por não se valer mais da idéia de resolução formal nas obras nem das características de síntese e de representação linear, a música cagiana é “uma música da dissolução do Eu”. Podemos dar um passo além e pensar que a música pós-tonal, assim como toda arte, deixa transparecer algo que é da ordem do sujeito, mas ultrapassa o sujeito singular que a criou. O ato de criação traria, portanto, uma destituição subjetiva. A obra criada ultrapassa seu criador, dizendo não simplesmente de um sujeito particular em relação ao objeto causa de desejo, mas sim da possibilidade de um saber-fazer com o objeto. Em relação à Cage, ele não se fixará em um único modo de composição, a mudança é uma outra característica preeminente em sua obra. Nessas mudanças, o que pode ser notado é que a estrutura com a qual ele trabalha determina, minimamente, o início e o fim de um processo de composição (idem, p. 21-22), ressaltando, assim, o caráter rítmico/temporal da estrutura. Um caráter de temporalidade que é também predominante no sujeito, já dizia Lacan (1964/1998, p. 30), e que comporta igualmente um arbitrário, um acaso (idem, p. 42). A estrutura das peças cagianas partem, então, de um lidar com o tempo e o som de uma maneira fortemente nova, que não busca soluções e escolhas racionais, conscientes, mas substitui este método, caro a praticamente toda a história da música tonal, por uma composição que parte de 129 fazer perguntas (CAGE apud COPE, 2001, p. 96). Deste processo, que começa com um zero, é possível se fazer descobertas (idem). Cabe ainda abordar aqui como Cage se utiliza do silêncio para possibilitar que o acaso possa atacar, e como isso possibilita uma escuta do mundo diferenciada. É ele quem diz: “(...) a música me serviu para me introduzir no verdadeiro mundo em que vivemos”, concluindo que “(...) a música que prefiro, incluindo para mim mesmo ou para qualquer outro, é a que ouvimos se, simplesmente, ficamos quietos”. O silêncio surge, assim, abarcando o acaso, acolhendo-o, fazendo com que o real se entrelace com o simbólico e o imaginário, com efeitos diretos, suponho, no próprio enlaçamento estrutural daquele que, músico ou ouvinte, se põe a escutar esses acasos sonoros de que são feitas as peças de Cage. Essa abertura e giro estrutural que Cage propõe aos sujeitos com sua música, convoca-nos desta posição, não sem passar por um estranhamento grande, para muitos até insuportável. Isso porque ele sustenta com a interpolação entre sons e silêncios, por uma duração temporal mais acentuadamente presente, a dimensão de proximidade com o real que a arte, por fundamento, apresenta. Citando Blythe, Cage (1969, p. 98) nos diz que: “A maior responsabilidade do artista é esconder a beleza”. Expondo a fragilidade do Belo, Cage sustenta o convite para que o ouvinte possa se colocar ali na escuta fazendo também um manejo com a estrutura de que é feito. Isso pelo encontro com o real que ele nos oferece, advertido de que isso é efêmero: “A coisa mais sábia a se fazer é abrir os ouvidos imediatamente e ouvir um som subitamente antes que o pensamento tenha a chance de se tornar algo lógico, abstrato ou simbólico” (idem). A palavra que Cage usa no original em inglês para este “se tornar”, “turn”, novamente me faz lembrar o nó borromeano. É de voltas na estrutura do sujeito que se trata neste modo de criação musical, nos colocando em ato na escuta, como sujeitos que somos. Voltas orientadas pelo real, que evocam aquelas que Lacan nos esclarece ser necessárias para a própria fundação da estrutura psíquica, dizendo respeito à “uma lógica de sacos e de cordas”, por ele trazido no seminário O sinthoma. Nas palavras lacanianas: “O que a corda prova é que um saco só é fechado quando é amarrado. Em toda esfera, é preciso que imaginemos alguma coisa (...) que enode com uma corda essa coisa na qual sopramos”. Volto, portanto, ao meu ponto de partida: o acaso e o sopro da flauta de Anfião. Se há o sopro, tanto na lalíngua materna quanto nas músicas que tão proximamente lidam com esse material, há também algo que escapa desse sopro e que insiste. Novas voltas são, assim, possíveis. Tais voltas recolocam o movimento de corte no contínuo do qual faz surgir e ressurgir um recomeço, um retorno à invocação originária. A voz aí comparece com maior ênfase por ser tal começo um ponto no qual há uma anterioridade dela ao olhar, à predominância do 130 olhar, da representação e da imagem enquanto imagem sintética e totalizada de si; um momento anterior, portanto, ao estágio do espelho e ao narcisismo secundário. Momento de um pré, ou, como conceitua Jean Oury (1989, p. ) em sua obra Création et schizophrénie, uma “zona dos prés”, ao que ele acrescenta: “para todos os ‘pré’, desde o ‘pré’ de Francis Ponge até o pré-intencional, pré-predicativo, pré-representativo, pré-perceptivo108”. Este pré de Francis Ponge (1990, p. 210) pode bem ser condensado em uma frase deste escritor: “O pré é o lugar da decisão109”. Ou, ainda: “Preparado, pré, próximo, pronto,/ pronto para ceifar ou para pastar,/ raspado de perto: pronto, próximo, pré110 (Ibid., p. 260)”. Um lugar, assim, de uma escolha, de uma decisão que pode ser lida como a escolha do sujeito em dizer sim à invocação linguageira para deste modo se criar, dizer sim ao contínuo para dele se separar. Continuo com Ponge (Ibid., p. 216-217): O pré não saberia ser dito de uma só nota, um pouco prolongada, mas sem demasia, senão de flauta ou de flautim (já que um pouco de ar remexido o convém bem como a idéia de um tubo), mais sobretudo (mais exatamente ou mais finamente) de vários, mas bem próximos como nisso que nomeamos acorde ou vocalise e isso em um tom sempre bem definido, praticamente entre as vedes apogiaturas (pequena nota sobre a qual nos apoioamos antes de atacar a nota principal). (...) O pré é comovente ao coração, interessante para o intelecto, porque ele é o lugar do mundo em que o tecido vegetal é o mais uni (embora o mais dividido), o mais encobridor (embora o mais fino), o mais simples (embora o mais variado), o mais modesto, o mais fino111. Sopro inicial, originário, de onde outras notas poderão ressoar e com um certo “lirismo”, como no pensamento de Ponge (Ibid., p. 231). Além disso, o pré como “préespecular, no sentido em que emprega Lacan ao falar do ‘estádio do espelho’. É antes da cristalização de um sistema representativo112”. Mais especificamente, um “pré-eu” (pré-moi, pré-moïque) (OURY, 1989, p. 66). É nesta zona que o autor localiza o “informe” (enforme, no francês), ao qual ele associa ao ritmo e a algo “transpassável” (transpassible), de onde se abriria a possibilidade de criação, de fabricação, de uma reconstrução permanente. Zona que 108 No original: “pour tous les ‘pré’, depuis le ‘pré’ de Francis Ponge jusqu’au pré-intencionnel, pré-prédicatif, préreprésentatif, pré-perceptif”... 109 “Le pré est le lieu de la décision”. 110 “Préparé, pré, près, prêt,/ Prêt à faucher ou à paître,/Rasé de près : prêt, près, pré”. 111 “Le pré ne saurait être dit d’une seule note, un peu prolongée, mais sans trop, sinon de flûte ou de fifre (car un peu d’air remué lui convient et l’idée du tuyau ou du tube), mais plutôt (plus exactement ou plus finement) de plusieurs mais très proches comme dans ce qu’on nomme agréments ou trilles et cela dans un ton toujours bien défini, pratiquement parmi les verts appoggiatures (petite note sur laquelle on s’appuie avant d’attaquer la note principale. (…) Le pré est touchant pour le cœur, intéressant pour l ‘intellect, parce que c’est le lieu du monde où le tissu végétal est le plus uni (quoique le plus divisé), le plus couvrant (quoique le plus mince), le plus simple (quoique le plus varié), le plus modeste, le plus fin”. 112 “’pré-spéculaire’ au sens où l’emploie Lacan quand il parle du ‘stage du mirroir’. C’est avnt la cristallisation en système représentatif”. 131 se presta, desse modo, à criação de arte e que, porém, é defendida por Oury como ligada às distorções da esquizofrenia, por exemplo, aos problemas de ritmo, mas caminhando na direção de uma tentativa de cura e de reconstrução, após uma catástrofe, tal como Freud já afirmava nas Cinco lições de psicanálise acerca dos fenômenos psicóticos. Oury acrescenta, baseando-se em filósofos como Henry Maldiney e Erwin Strauss, que uma tal zona deve ser associada à noção do “phático” (“pathique”) na medida em que o phático se oporia ao gnóstico: “os sentimentos, as sensações as mais primordiais; lá ou não há denominação. O phático é da ordem do verbo113” (Ibid, p. 19-20). Seria recorrendo ao phático que uma recolocação rítmica do sujeito poderia ser colocada em movimento, visando uma recriação, um recomeço. Trago uma contribuição breve e poética de Pascal Quignard (2002, p. 14-15) sobre esta questão de um momento anterior à instauração mesma da linguagem no falante, que se coloca como um recomeço, um ponto que incita à criação e à recriação: Há uma vida antes do nascimento que a data. Há um mundo antes do mundo onde ele surge. Há um fœtus antes do infans. Há um infans antes do puer. Há sem cessar um antes sem linguagem ao tempo: é o tempo. Fœtus, infans, antes da identidade, são um e outro sem linguagem. A cena na qual toda cena tem origem no invisível sem linguagem é uma atualidade ativa sem cessar114. Movimento e recomeço que se engendram a partir de um vazio e de uma abertura que a ele se apresenta. Estar aberto ao movimento e ao ritmo de modo análogo ao que foi proposto no início desta tese com a idéia de estar à escuta sustentada por Jean-Luc Nancy. E Oury entrelaça a noção de aberto à metáfora da folha em branco e do ato de rascunhar, de escrever rapidamente e ao acaso, abrindo-se assim ao inesperado e ao inaudito, podemos dizer – imagem bastante próxima às proposições de John Cage. Cito Oury (Ibid, p. 33): A folha de papel branco é o vazio. O rascunhar nos preserva contra esse vazio e, ao mesmo tempo, permanece bastante pessoal. Esse rascunhar, Maldiney o define como sendo da ordem do “randômico”. É um termo antigo: aleatório, rapidez, impetuosidade (...); o “passear”, um caminho que não existe mas que se traça, está em relação com algo de aleatório115. 113 “Les sentiments, les sensations les plus primordiaux ; là où il n’y pas de nomination Le pathique est de l’ordre du verbe”. “Il y une vie avant la naissance qui la date./Il y a un monde avant le monde où il surgit./Il y a un fœtus avant l’infans./Il y a un infans avant le puer./Il y a sans cesse un avant sans langage au temps : c’est le temps./Fœtus, infans, avant l’identité, sont l’un et l’autre sans langage./La scène où toute scène prend origine dans l’invisible sans langage est une actualité sans cesse active”. 115 “La feuille de papier blanche, c’est le vide. Le ‘griffonnage’ nous préserve contre ce vide, et en même temps reste très personnel. Ce griffonnage, Maldiney le définit conme étant de l’ordre du ‘randon’. C’est un terme ancien : aléatoire, rapidité, impétuosité (…) ; la ‘randonnée’, un chemin qui n’existe pas mais qu’on trace, est en rapport avec quelque chose d’aléatoire”. 114 132 Oury enfatiza que há um ponto de vertigem frente ao aberto, frente à folha em branco, uma vez que ela se abre para um outro mundo, para um “lá”, para um mais além116. Para a invocação, acrescento. Para a possibilidade de “integrar” o vazio circundando-o, de tratá-lo com a própria linguagem, ainda que efemeramente, respondendo à invocação que nele ressoa com alguma criação singularizadora do sujeito, com um movimento que recoloca o ritmo próprio do falante em seus atos. Trata-se, então, de aproximar-se da coisidade das palavras, da linguagem, das coisas, das imagens, do vazio que há e que pulsa em cada coisa e em cada sujeito, que pulsa mesmo – e acentuadamente – nos três registros que compõem o sujeito e que se entrelaçam em ressonância. Aproximar-se do irrepresentável da Coisa, de das Ding, cunhando algo que, ao menos para o sujeito que o faz, poderá se dar como novo, como uma integração/desintegração, como coloca Oury (Ibid., p. 53), como uma volta a mais no nó borromeano que invoca um recomeço e uma nova posição ressoando face ao Outro. Mais que isso, Oury localiza nesta metáfora para o espaço de expressão do pré, e que aqui estou associando à voz e à invocação, uma posição ética, que invocaria e convocaria mais fortemente a dimensão do corpo, do gozo e da pulsão, o que o faz definir o pré como uma “zona de emergência” (Ibid. P. 68-69), relacionada à Spaltung freudiana, à divisão primordial do sujeito, que o faz se constituir – dividido e desejante. Nesta perspectiva, o pré seria explicitamente da ordem de lalangue, da voz para além da fonetização, das homofonias e de uma estrutura que não se presta à comunicação, mas a uma via de incorporação da voz enquanto singular, abrindo assim a incorporação da própria linguagem e à ascensão ao sentido e à multiplicidade dos sentidos. Dito em outras palavras, este pré se localizaria nas ressonâncias do simbolicamente real e do imaginariamente real, nesta radicalização do real que chama à criação de um significante novo, ainda que possa ser igualmente, mas não necessariamente, permeada de angústia, por confrontar o sujeito com o vazio, com o nada, com o aberto. Angustia que, contudo, é ultrapassada na presentificação do vazio pela criação. Nas palavras de Henri Maldiney (apud OURY, 1989, p. 208) : “Tornar 116 E me vem aqui uma frase emblemática de Maurice Blanchot (1955, p. 25), recolhida de sua obra L’espace littéraire: 133 visível o invisível, é o próprio da existência e da obra, sua dimensão de mundo-anterior117”. É a própria criação que faz revelar o vazio, que assim é contornado. Retomo a escrita poética de Francis Ponge (1990, p. 257) para propor uma relação entre o vazio que invoca a criação, que se apresenta como recomeço, como uma re-escuta do que se coloca como pulsante de um pré, e o entusiasmo que pode dela surgir: “Mas o pré é a esperança. Mil agulhas de fios verdes se pousam a partir do solo, subordinadas pela invocação potente do sol. Ao apelo de seu nome, o pré, presente, diz seu nome: o pré118”. Pré que invoca a fala, a palavra, e fecho tais considerações com mais uma referência a Ponge (Ibid., p. 250): Tendo uma predisposição a um pré, nós o procuramos; tendo preparado um pré, nos o predispusemos. Sendo convidados a um pré, nós o propomos. (...) Nós o queremos de coração e ele nos salta aos olhos. Nós o desejamos e salta ao pescoço. E no entanto ele permanece à distância. O mais simples reconhecimento portanto nos obriga a inventar aí a palavra, a dizêla119. Tornar presente o que, em ausência, impulsiona a criação e a fala sem se dizer, permanecendo como enigma, incógnita, mistério insolúvel. O que Henri Maldiney (2003, p. 7) localiza na concepção de um pré-texto (pretexte) associado à presença: Pré-texto é isso que está antes do texto e em torno do qual – que lhe é contíguo – se atravessa a si mesmo, como faria um navio navegando ao impossível para juntar-se à sua proa. É isso mesmo que exprime a palavra ‘presença’: estar presente (...) é estar antes de si. (...) Existir, no sentido não trivial é ter sua roupa fora de si, extaticamente, sem ter tido de sair de uma situação preliminar de pura imanência. Esta presença se relacionaria, ainda, com o indeterminado, o incessante, o real. Por outro lado, o existir, de acordo com Maldiney (1967/inédito), estaria associado ao ritmo, ao contínuo, ao abismo, aos caos, à vertigem, ao aberto, ao impossível, ainda que em ruptura a isso, acrescento, o que ficaria ainda mais nítido na obra de arte: “a arte nasce deste constrangimento ao impossível. E o ritmo é a verdade desta comunicação primeira para com o mundo120”. O ritmo teria uma função por assim dizer estética, passando pela busca da criação de um movimento a partir do vazio: “no Ritmo, o Aberto não é hiância, mas patance121. O 117 “Rendre visible l’invisible là, c’est Le propre de l’existence et de l’œuvre, leur dimension d’avant-monde”. “Mais Le pré, c’est l’espoir. Mille aiguillées de fil vert s’y poussent à partir du sol, soudoyées par la puissante invocation du soleil. A l’appel du son nom, le pré, présent, dit son nom : le pré”. 119 “Nous ayant prédisposé à un pré, nous le procure ; nous ayant préparé un pré, nous y prédispose. Nous ayant invité à un pré, nous le propose. (…) Nous le voulions de cœur et il nous saute aux yeux. Nous le désirions et il nous saute au cou. Et pourtant il reste à distance. Le plus simple reconnaissance dès lors nous oblige à y inviter la parole, à le dire”. 120 “L’art naît de cette contrainte à l’impossible. Et le rythme est la vérité de cette communication première avec le monde”. 121 Por não ter encontrado uma boa tradução para esta palavra, mantive-a no original em francês e trago aqui uma breve explicação sobre ela. No contexto médico, esta palavra é utilizada para indicar o momento de uma infecção no qual os agentes infecciosos se encontram ainda no organismo. O que me faz pensar no momento de latência, que levaria à criação, como podemos seguir o pensamento de Maldiney ao final do trecho. 118 134 movimento não é mais aí de absorção mas de emergência”. Tal emergência, concluo com o autor, estaria assim ligada ao ritmo e à uma presença que surpreenda. Pela surpresa, o ritmo se faz enquanto real. A surpresa, desta forma, faria uma presentificação possível do real enquanto um encontro com pedaços do real, com o inesperado, com o estranho familiar que põe uma vez mais a chance de se escrever e criar algo novo. 4.2 – Da criação artística como escrita ética possível de restos A relação do artista com o tempo no qual ele se manifesta é sempre contraditória. É sempre contra as normas reinantes, normas políticas por exemplo, ou até mesmo esquemas de pensamento, é sempre contra a corrente que a arte tenta operar novamente seu milagre. Jacques Lacan Neste momento final da tese, a partir dos elementos que a criação musical pós-tonal apresenta e da dimensão de escrita pulsional que a voz coloca em cena, pretendo refletir sobre a aproximação entre a psicanálise e a arte musical pelo viés da ética. Tomarei, para isso, principalmente em três pontos fundamentais: a sublimação tal qual delimitada por Freud como um destino pulsional apartado do sintoma, e retomado por Lacan como elevação do objeto à dignidade de Coisa; a proposta lacaniana de pensar a criação artística a partir da invenção pelo manejo joyceano com a linguagem e a voz— ou seja, sob a luz do nó borromeano e a partir da imagem do escabelo, metáfora da criação não mais feita a partir do nada, mas sim tendo como base o irredutível do real daquele que dele se serve; e a célebre frase de Freud (1933[1932]/2006, p. 74) “Onde Isso era, o Eu deve advir” (Wo Es war, soll Ich werden). Minha aposta é que essa frase pode ganhar uma nova leitura a partir das construções lacanianas acerca do nó borromeano e de James Joyce, uma leitura outra que não prescinde da primeira nem tampouco pretende se estender a todos os falantes. Com a idéia de uma escrita do ego, que corrige através de sua escrita literária o nó de Joyce ali onde o erro de estruturação se produziu, há algo da ordem de uma escritura através de um traço que me leva a pensar em uma primeira transmutação da fórmula freudiana: “onde o Isso era, o Eu deve advir pela escrita”. Isso na medida em que a escrita está sendo tomada aqui fundamentalmente como escrita pulsional, que poderá, a posteriori, articular materiais de um determinado campo artístico para criar, por exemplo, a escrita literária, pictográfica ou musical. 135 O ato da escrita em Joyce força um enlaçamento dos três registros lacanianos fazendo surgir um quarto elo, o do sinthoma, feito com traços que já estavam ali e que não se prestam à decifração. Uma escrita qualificada por Lacan (1975-1976/2007, p, 147) como “ilegível”, porém, que vem modificando radicalmente campos de saber, tais como a literatura e psicanálise, assim como sujeitos singulares que se detêm sobre ela. Se ela é ilegível, é por ser feita de um sintoma, o da carência do pai, com os “efeitos de voz do significante”, como diz certeiramente Jacques Aubert (2007, p. 183), elevado à dimensão de sinthoma. Nessa medida, a escrita de Joyce é para ser ouvida, é para fazer ressoar no corpo o além do sentido que ela põe em jogo. Um ato que difere da elevação do objeto “à dignidade de Coisa” (Lacan, 19591960/1997, p. 141), porém, que o evoca uma vez que, ao ser feito pela escrita literária, artística, traz ali o belo. Não à toa, Lacan (2003, p. 560) em seu escrito Joyce, o Sintoma dá tamanha importância ao belo pela via do hescabelo/escabelo/S.K. belo e de suas homofonias. “Helessecrêbelo, a ser escrito como o hescabelo, sem o qual nãohaum que seja doidigno dunome diomen”122. E, lendo em francês, vemos um belo ding no meio da escrita, uma Coisa que dá a dignidade do nome do homem. Cabe ressaltar, como nos é indicado em nota do editor (idem, p. 560-561), que escabelo pode deslizar de “banquinho, banquete ou tamborete”, para “escadinha”, para o “genunflexório” e, finalmente, para o que mais queremos chamar atenção, a “S qu’a beau” (S que tem beleza) ou “Es qu’a beau” (o isso [Es] que tem beleza). O banquinho, ou escadinha, que eleva. O esse que tem beleza, ou o isso que tem beleza. Esse (S) que faz ressoar a linha da beleza de Hogarth, que, segundo Miller (2007, 243), na Nota passo a passo do Seminário O Sinthoma, trata-se de “uma simples linha aérea ondulante” fechada “em uma pirâmide translúcida”. Um S que nos faz lembrar do sujeito não barrado, antes de sua divisão no campo do Outro. E, aqui, recorremos a outra inovação de Lacan (1975/2003, p. 563) ao falar de uma “escabelastração [scabeautration]”. Ao que lemos que a castração faz com que o S se torne dividido, divisão que se paga com o corpo, o que implica em dizer que é por essa via que a obra de arte passa a ser vista pela psicanálise lacaniana a partir de então. O S, a partir daí, levará consigo um traço que o corta, tal qual Lacan (1975-1976/2007, p. 66) nos mostra em O Sinthoma. Ou, ainda, podemos ler com este S da linha de beleza de Hogarth, emoldurado pelas três faces de um triangulo, juntamente com a idéia que acabamos de apresentar que o associa ao sujeito barrado, que é por intervenção de um quarto eixo que três registros podem 122 Ou, no original: “Hissecroibeau à écrire comme l’hessecabeau sans lequel hihanappat qui soit ding! d'nom dhom”. 136 ser ligados. Aproximamo-nos, assim, do nó borromeano tal qual proposto por Lacan, tendo em mente a reta infinita que corta o falso furo tendo como efeito um nó de quatro. Lembro que o nó de três, ainda que seja suporte do sujeito, é sempre falho; por isso, se impõe o quarto elo. Tendo feito essas colocações, retomo as leituras que estou propondo do Wo Es war, soll Ich werden freudiano a partir do escabelo lacaniano. Com Joyce e Lacan podemos ousar dizer que “lá onde o isso estava, o eu deve advir pela bela escrita”, ou, ainda, “lá onde o isso estava, o eu deve advir elevado pela bela escrita”; e este advento se dá pelos próprios traços de beleza que o isso tem. Não se trata, portanto, com o sinthoma, de uma sublimação, mas de algo da ordem do escabelo, de uma escabelotação. A esse respeito, escreve Lacan (1975/2003, p. 565): “Joyce é o primeiro a saber escabelotar [escaboter] bem, por ter levado o escabelo ao grau de consistência lógica em que o mantém, orgulhartosamente [artgueilleusemnt] (...)”. Não recuo, por fim, de destacar as conseqüências éticas dessa leitura. Miller (2007, p. 243), ao escrever sobre a influência de Hogarth nesse momento do ensino lacaniano, afirma: “A ética esboçada em O sinthoma é complementada por uma estética”, abrindo o caminho para nos questionarmos sobre esta estética e, mais especialmente, sobre a ética que aí vigora. Se, por um lado, Lacan localiza em 1959-1960 a ética da psicanálise tendo como questão central a Coisa e a sublimação, em 1975-1976, a ética pode ser vista recolocando-se através do real e do sinthoma, do real do sinthoma e do escabelo. Miller (2007, p. 208) aponta que “o escabelo enfatiza o corpo. Do mesmo modo, Lacan designa o sinthoma como ‘acontecimento de corpo’”. E é interessante ir diretamente no texto lacaniano para contextualizar esta colocação. Nas palavras de Lacan (1975/2003, p. 565): “Deixemos o sintoma no que ele é: um evento corporal, ligado a que: a gente o tem, a gente tem ares de, a gente areja a partir do a gente o tem [l’on l’a, l’on l’a de l’air, l’on l’aire, de l’on l’a] . Isso pode até ser cantado, e Joyce não se priva de fazê-lo”. De lalíngua à linguagem, de traço à escrita. Seria este um outro paradigma ético para a psicanálise, perpassado pelo gozo, cuja dimensão já se encontra presente, em gestação, nas considerações lacanianas sobre a Ética da psicanálise em seu seminário de 1959-1960. Com Joyce, Lacan evidencia uma via de um saber-fazer-aí (savoir-y-faire) com o real. E este saber-fazer não é feito com restos, com “pedaços de real” (Lacan, 1975-1976, p. 133), é feito sem prescindir do sintoma. Neste sentido, no caso paradigmático de Joyce, esta confecção se dá tramando com os restos das marcas e dos traços do Pai, com aquilo que da voz do Pai marcou e fez advir um falante. Cabe lembrar que em Lituraterra, Lacan (1971/2003, p. 16; grifos meus) nos oferece a bela definição de que “a literatura é uma 137 acomodação de restos — é um caso de colocar no escrito o que primeiro seria canto, mito falado ou procissão dramática”. Tal afirmativa em muito interessa aqui na medida em que encontra-se aí ressaltada a dimensão de restos da voz, da musicalidade da voz, que se tramam pelo ato de escrita do artista na criação, proporcionando uma transmissão do real pelo saberfazer com este objeto a. É mesmo de uma escrita a partir dos restos da musicalidade da voz materna que marcaram o sujeito e que fez soar a voz e a lei do Pai, que se trata na criação artística que promove um contorno do vazio do objeto voz. Uma outra variação do Wo Es war freudiano pode, portanto, ser feita: ““lá onde o isso estava, o eu deve advir elevado pela bela escrita do que antes foi canto” No caso da música, não somente o compositor poderá promover uma escrita a partir da letra e orientado pelo real, trazendo à tona um saber-fazer com a voz. Também o intérprete se deparará com uma escrita a partir dos materiais musicais. O trabalho do intérprete não é o de um leitor que se debruça sobre o texto apresentado nas notações gráficas de uma partitura. Se podemos comparar a música a uma escrita, é por ela propiciar uma escrita pulsional. Mais que isso, a escrita que se faz como escrita possível do objeto voz faz com que uma escrita igualmente pulsional seja criada. E este ponto, da escrita possível da letra pela via pulsional realizada tanto pelo compositor quanto pelo intérprete, em sua precariedade estrutural que evidencia em si mesma a impossibilidade da escrita em escrever o real, serve ao analista como uma estética que mostra a ética do sujeito, do falante. Nesta perspectiva, as considerações de Lacan sobre a sublimação e o escabelo se mostram como uma escuta precisa sobre o encaminhamento do sujeito em relação ao seu desejo, na medida em que é possível a construção de um posicionamento novo do sujeito face ao Outro por uma criação singular. Mais do que uma ruptura, tanto as proposições datadas da década de 1960 quanto as de 1970 evidenciam a construção de uma lógica lacaniana quanto à busca do sujeito de um ponto novo em si que o recoloque enquanto desejante, face ao radical da pulsão e do real que a ele se impõe. Assim, o que a escrita joyciana ensina é um fazer com a linguagem que para além de criar algo novo em torno do vazio, ex nihilo, pode fazê-lo com traços do próprio sujeito, com letra, a partir de lalíngua. O vazio como causa impulsionando a escrita pulsional do objeto que a causa cunhando assim um novo. Com voz. Re-escrevendo o impossível. Para mais claramente dizer desta construção na obra lacaniana de uma ética estética da criação com significantes e letras para um sujeito, trago algumas considerações consoantes às minhas redigidas pelo filósofo Gilson Ianini (2004, p. 84), em especial sobre a arte contemporânea enfatizando a função do objeto de arte em mostrar a dinâmica da criação a 138 partir de um objeto radicalmente inexistente que a causa e que ali comparece enquanto negatividade positivada: Uma estética à lacaniana seria uma estética que se pergunta por que certos objetos se prestam melhor a essa inadequação, a essa resistência não apenas à ordem simbólica, mas até mesmo à circulação da pulsão. A arte, principalmente certa vertente da arte contemporânea, seria, então, figura de um certo excesso de real – que desnuda a precariedade do simbólico – espécie de ruína, espécie de catástrofe das imagens da reconciliação. Com efeito, afirmar o excesso pulsional que desnuda uma certa precariedade do simbólico é ultrapassar a temática do vazio e da cadeia significante em direção ao paradigma da pulsão e de lalangue. Em termos lingüísticos, é passar do significante serial ao significante disjunto; em termos lógicos, tratase de passar da modalidade da contingência (como tique) à do impossível. É pela via então da inscrição de um traço que reenvia o sujeito à dimensão do impossível, e da criação possível que ele engendra, que a arte se mostra como um paradigma do fazer em potência de cada sujeito face ao objeto e à falta, mesmo a mais radical e real. Continuando com Ianini (Ibid., p. 90): Parece, pois, que o ex nihilo não é senão uma cisão operada no cerne do objeto, cujo resultado é a positivação, après-coup, do instante fugaz de eternidade daquilo que resiste. Positivação que torna possível à obra de arte engendrar seu próprio Tempo, instalando, de um só golpe, um passado e um futuro. Uma positivação do impossível. Donde a afirmação do traço enquanto traço ou, mais que isso, uma estética do impossível como impossível. A idéia de uma criação que se dá por um significante novo para o sujeito faz com que o impossível, mesmo cunhando um possível, permaneça em sua dimensão pulsante de um além que impulsiona e força escrita e criação. É também o que Vladimir Safatle (2004, p. 122) destaca ao propor uma análise da temática da sublimação em Lacan: A sublimação nos permite desdobrar um protocolo comum de resolução de tais impossibilidades. Lembremos primeiramente que a sublimação articula os temas do gozo (a sublimação é satisfação da pulsão), da posição feminina (“é sempre por identificação à mulher que a sublimação produz a aparência de uma criação” [LACAN, 1966-1967, sessão de 01/07/67]), do corpo (pois, se a sublimação é um gozo, não podemos esquecer que “só há gozo do corpo” [LACAN, 1966-1967, sessão de 30/05/67]), e do Real (a sublimação permite a apresentação do que há de Real no objeto). Nesse sentido, se o impossível é definido exatamente como “o que não cessa de não se escrever”, podemos dizer que a sublimação é um movimento que transforma o impossível a escrever em uma espécie de escritura do impossível. Não apenas isso, Safatle (Ibid.) propõe “três protocolos de sublimação” que passam pelos momentos distintos, porém não excludentes, da construção de Lacan quanto à lógica da criação. Não apenas a artística mas toda aquela que diz do movimento do sujeito frente ao impossível e em direção a uma construção singular e ressonante a partir do entrelaçamento de real, simbólico e imaginário que o constituiu enquanto falante. Safatle, e é assim como o leio, destaca o paradigma da sublimação enquanto elevação do objeto ao estatuto da Coisa, da 139 criação com o significante pelo recurso do semblant e o fazer com a letra como literalização pela arte que se serve do material do qual o artista parte como subversão do simbólico e do imaginário como efeito novo das ressonâncias uns para com os outros e igualmente para com o real. Tratar-se-ia de três “operadores lacanianos” (Ibid, p. 127) que servem para o autor como protocolos da sublimação nos seguintes termos: “através da subtração das qualidades do objeto imaginário (...), através da posição da aparência como pura aparência (...) e através da literalização da resistência do material (...)”. Podemos pensar com Safatle em uma certa historicidade da construção lacaniana da criação artística entrelaçada à questão do objeto bem como da proposição de uma escrita que se faz com o vetor pulsional se valendo ora do significante ora da letra, borromeanamente ao fim de seu ensino. Num primeiro momento, a sublimação se daria como ato de criação que, ao romper com as qualidades já dadas de um determinado objeto ou significante, faz surgir o vazio da Coisa enquanto marca radical de alteridade e do impossível de representar. O que pode ser lido através do exemplo utilizado por Lacan (1959-1960/1997) do amor cortês bem como o da coleção de caixas de fósforos vazias e encaixadas umas sobre as outras de Jacques Prévert, ambos mencionados no seminário A ética da psicanálise. Se o objeto de arte se pode portar e mesmo se elevar à dignidade da Coisa é na medida em que todo objeto, mesmo o que possuem imagem especular e podem, assim, ser compartilhados, carregam em si a radicalidade da inexistência do objeto de satisfação plena da pulsão. Dito em outras palavras, o furo da linguagem e da queda do objeto a permanecem pulsantes em cada objeto. E, indo além, o que esse primeiro momento mais explícito da construção lacaniana sobre a arte pode nos revelar sobre o falante é que a ele também é colocada a saída de criar uma posição para si que não escamoteie o ponto nodal e vazio de sua própria estruturação. Sujeito, linguagem, objeto, arte... real, simbólico, imaginário... Quaisquer coordenadas que pensarmos em colocar aqui, quaisquer palavras que possamos alinhavar para dizer do sujeito e do que o causa, todas elas serão marcadas por um mesmo fato: há um furo, um vazio, que as atravessa e que é ela mesma a condição de sua existência e possibilidade de criação, de escrita e de laço. O segundo operador utilizado por Safatle diz respeito à proposição de Lacan do objeto a enquanto semblante, que teria como função apontar o furo do significante enquanto tal, evidenciando que a linguagem somente pode se organizar e recriar em um movimento de revelar e encobrir esta fratura da qual se torna viva. O objeto a enquanto semblante, e mais especificamente na criação artística ou no ato analítico, dariam notícias da precariedade tanto da linguagem quanto da imagem e da representação para fazer “barreira” ao real. Ao contrário, ambas se colocam ressonantes a ele, estabelecendo-se como resposta e também 140 como ponto de vivificação do efeito do real em um sujeito que toma para si o desafio sempre recolocado de falar e se escrever. Para além da aparência, pela criação, o objeto a se mostra apontando o real que ele assim faz reverberar e re-escutar. Num encontro com um pedaço de real, a representação e a imagem se mostram falhas e revelam o real que permanece em causa ainda que se busque recobri-lo, o que pode invocar um despertar. Tal mostração se torna ainda mais radical, tanto na arte quanto na teoria lacaniana, quando os limites do fazer com o simbólico e o imaginário são colocados em xeque. É o que o pensamento lacaniano sobre a letra enquanto litoral, forçando escrita, vão enfatizar. Tanto o ato criativo quanto o ato analítico, e conseqüentemente o ato do sujeito, passam a ser vistos/ouvidos/lidos não apenas pela vertente do significante, que não deixará de ser considerada, mas pela radicalização de uma forçagem do trabalho com e pela linguagem que parte de um elemento ainda mais granular que o significante, que não se apresente encadeado a outros significantes. O que chama e convoca a escrita, o manuseio destes elementos, destes materiais, cunhando significantes, mesmo novos significantes, não apenas de uma maneira em série, mas igualmente pontual e disruptiva. O trabalho da literalização, tal qual sustentado por Lacan em seu escrito Lituraterra, ou ainda, como pode ser apreendido nas considerações sobre a escrita de Joyce e sobre o escabelo enquanto criação para além de um ex nihilo, caminha na construção de algo que se dá com os restos, com os traços do falante e que não se prestam necessariamente a uma pretensa comunicação. Restos de lalíngua, cabe dizer. Restos que desarticulam e re-articulam. Restos que reverberam. A criação, nesse último momento do ensino lacaniano, pensada como “acomodação de restos”, como escrita do que se ouviu de lalíngua, o que faz, portanto, que uma nova resposta, radicalmente nova às vezes, possa ser oferecida ao Outro. Opondo à dimensão do significante, Safalte (2004, p. 133) localiza a criação a partir da letra nestes termos: “Se o sistema significante é o espaço do Um e do pensamento como identificação, só há formalização do singular como distorção e forçagem da superfície da língua”. O que me leva a acrescentar que é na medida em que há uma apropriação singular da linguagem pelo sujeito, podendo este dela se servir, que a criação se colocará a ele como escrita nova de si, recolocando-se assim para com aquilo que o constitui. Criação como algo que ressoa no furo do simbólico, do imaginário e do próprio real enquanto enodados no sujeito, tal qual proposto e sustentado com o nó borromeano. É o que depreende-se da leitura de Safatle quanto à construção lacaniana face às artes. E podemos mesmo sustentar a partir destas colocações que seria uma construção que se coloca cada vez mais como uma direção para a clínica na medida em que indica um modo de lidar com a 141 castração e com o significante do Nome do pai. Isto de tal forma que o sujeito pode passar a se recriar por uma subversão deste significante, mas ainda valendo-se dele e o conferindo um lugar novo em seus atos de sujeito. De modo análogo à criação artística, na qual o ato artístico autoriza uma nova forma de expressão e de utilização da linguagem, ultrapassando-a e assim a recriando, esta via é dada a cada sujeito que se lance a não deixar de responder a questão a mais originária que o faz surgir. O inesquecível, mas silenciado, “o que queres?” convoca as respostas as mais variadas possíveis, e pode o sujeito ousar utilizar o que nele fora inscrito para escrever e dar outras letras a este ponto em si que, êxtimo, persistirá causando movimento. Recorro neste momento a um breve mas rico comentário de Didier-Weill (2010, p. 211) sobre Schönberg em sua recriação da linguagem a partir dos sons musicais: (...) um sujeito pode se autorizar tragicamente de si mesmo se ele não conhece, para transgredi-la, a autoridade da lei? Reposta de Lacan: sim, é possível passar da autoridade do pai, mas sob a condição expressa de se servir dela; por exemplo, se Schönberg não tivesse conhecido a tonalidade (quer dizer, o significante do Nome do pai que estrutura de forma hierárquica os doze sons), teria ele conseguido transgredi-la ao inventar a atonalidade, a igualdade absoluta entre os sons?123 Esta pergunta, que poderia ter sido feita, com as devidas alterações, em relação a Cage face a Schönberg, e mesmo a Lacan em sua leitura de Freud, evidencia o movimento estrutural do sujeito em sua ligação para com o Outro e a linguagem. É isso que o destino pulsional da sublimação coloca em cena: o movimento de se servir do Nome do pai e dos recursos da própria linguagem em seus limites e bordas com o real que pulsa e o imaginário que responde e se desdobra a partir dessa pulsação para que, para além de um mesmo, algo possa surgir e fazer soar a ressonância singular que é o sujeito. Movimento este que está em causa para o sujeito a cada instante, que se coloca como possibilidade a cada vez, ainda que nem sempre ocorra. E quando repetitivamente isso não ocorre, quando ele parece se esgotar, se esvaecer, ou quando a criação de um sintoma, por exemplo, retira dele a sua força, o trabalho e o ato analítico podem aí se colocar para o falante como uma via privilegiada de reescutar a invocação real da voz, e mesmo da vida, para que ir mais além seja possível, e criando a partir deste movimento. Para pensar estes novos parâmetros na música, encaminho minha escrita aparentemente me afastando do que quero atingir: a voz e a música. Recorro às palavras do 123 No original: “(...) un sujet peut-il s’autoriser tragiquement de lui-même, s’il n connaît pas, pour la transgresser, l’autorité de la loi ? Réponse de Lacan : oui, il est possible de passer de l’autorité du père, mais à la condition expresse de savoir s’en servir ; par exemple, si Schoenberg n avait pas connu la tonalité (c’est-à-dire le signifiant du Nom du père qui structure de façon hiérarchique les douze sons), aurait-il pu la transgresser en inventant l’atonalité, l’égalité absolue entre les sons ? (DIDIER-WEILL, 2010, p. 211)”. 142 poeta alemão Rainer Maria Rilke (2001, p. 23) para buscar o que seria de mais primordial nas artes, em especial a música: De algum modo, também eu tenho de chegar a fazer coisas, não coisas plásticas, escritas, – realidades, que surjam do ofício. De algum modo, também eu tenho de descobrir o menor elemento básico, a célula de minha arte, o meio tangível e imaterial para a exposição de tudo... Inspirada no trecho acima citado, retirado de uma carta a Lou Andréas-Salomé, me coloco algumas perguntas: O “menor elemento” de uma arte. Será daí que o artista extrai aquilo que, ao trabalhar, se tornará a obra? O que seria esse elemento? Um objeto? Um traço? Uma letra? Seria da própria arte, do campo discursivo de uma arte? Seria do sujeito que a cria? Seria do que estrutura o sujeito? Seria no litoral entre sujeito e arte? Entre sujeito e Outro? Sujeito e linguagem? Esse elemento seria diferente em cada arte? Ou o fazer com ele é que seria particular? Ou, ainda, um e outro seriam o mesmo, e os demais elementos que cada arte oferece é que seriam distintos? E o que singularizaria um artista seria o modo como ele maneja esse “fazer coisas”, como coloca Rilke e que podemos ler com Lacan como o savoirfaire com o objeto a? Vale destacar igualmente desta passagem de Rilke a dimensão de imaterialidade do meio a partir do qual o artista pode expressar o que é da ordem do inconsciente. Na música, a imaterialidade do som musical remete à também imaterialidade da voz, que faz com que um endereçamento ao Outro seja possível a partir de uma resposta que um sujeito dá de sua posição. Ao fazer isso, porém, ele próprio é ultrapassado, deixando revelar a própria lógica da estrutura do sujeito, ainda que esta seja sempre singular. Para começar a esboçar um caminho que vise responder essas questões acima levantadas, busco em Lacan uma primeira pista naquilo que ele traz acerca da arte de Leonardo da Vinci, e da arte de um modo mais amplo, no seminário O saber do psicanalista. Na aula de 03 de fevereiro de 1972, diz Lacan (1971-72/Inédito): (...) é muito importante perceber que há uma porção de coisas nos muros que se prestam à figuração, à criação da arte, como se diz. A mancha aqui em questão é o próprio figurativo. Entretanto, é preciso saber a relação que há entre isso e outra coisa que pode estar no muro, isto é, as fissuras, não apenas da fala – ainda que aconteçam, é assim mesmo que sempre começa – mas no discurso. Dito de outro modo, se é da mesma ordem, o mofo no muro ou na escrita, isso deveria interessar um certo numero de pessoas aqui que, penso, não faz muito tempo – a velhice está chegando – se ocuparam em escrever coisas, cartas de amor nos muros. (...) Eu já disse há pouco sobre a carta de (a)muro, tudo o que se escreve reforça o muro. Não é forçosamente uma objeção. Mas o que há de certo é que não se deve acreditar que seja absolutamente necessário, mas mesmo assim serve porque se nunca tivessem escrito nada 143 sobre um muro, qualquer que seja, aquele ali ou os outros, bom, é um fato, não se teria dado um passo no sentido que talvez deva ser olhado além do muro124. Esse muro de que fala Lacan diz respeito à linguagem naquilo que ela determina e estrutura o sujeito, marcando-o pela impossibilidade da relação sexual e, conseqüentemente, da escrita desta relação. Evocando Antoine Tudal, em diversos momentos citado por Lacan, “entre o homem e o mundo, há um muro125”. O muro da linguagem coloca, simultaneamente, uma impossibilidade de se conhecer “o mundo”, uma possibilidade de um fazer diante desta impossibilidade, e mesmo de dar a ela um sentido. A idéia do muro traz alude ao enodamento topológico dos registros do real, do simbólico e do imaginário. Deste modo, este muro, “que não é absolutamente uma metáfora” (Ibid, p. 57), diz da castração e de seus efeitos para os sujeitos. O que está em jogo entre o homem e a mulher e entre o homem e o mundo é a castração. É isso que tanto o amor quanto as cartas126 de amor evidenciam: que não há relação sexual. Mesmo o amor de uma mãe por seu filho – ou sobretudo este, na medida em que tem papel fundamental na constituição e estruturação do sujeito – será marcado pela castração. Amor e (a)muro. O amor da mãe, naquilo que ele porta o desejo do Outro endereçado ao infans e também seu gozo, ressoando no corpo do bebê, invoca-o a passar de um ser falado, e em conseqüência disto um ouvinte, a um falante. Este ato de emergência de um sujeito comporta um corte em relação ao Outro, opera um furo que exige que se faça borda em torno dele. Há a inscrição de marcas e a queda de um objeto, seio/fezes/olhar/voz, objeto a, “isso pelo qual o ser falante (...) se determina” (Ibid, p. 66). Como vimos na fala de Lacan, o muro convida à escrita (de cartas de amor, que buscam nomear o amor – ou, podemos avançar, de letras que visam uma nomeação possível da Coisa perdida que faz advir um sujeito), e à “figuração”, ou melhor, à simbolização e à criação da arte com as fissuras e mofos do próprio muro. O primeiro ponto, da escrita, remete, de um lado, ao aspecto pulsional, de escrita do sujeito a partir da exigência incessante 124 “(…) c’est très important ça, s’apercevoir qu’il y a une classe des choses sur les murs, qui prête à la figure, à la création d’art, comme on dit. C’est le figuratif même, ici, la tache question. Il faut tout de même savoir le rapport qu’il y a entre ça et quelque chose d’autre qui peut venir sur le mur, c’est à savoir les ravinements, non pas seulement de la parole – encore que ça arrive, c’est bien comme ça que ça commence toujours – mais du discours. Autrement dit, si c’est du même ordre, la moisissure sur le mur ou l’écriture, ça devrait intéresser ici un certain nombre de personnes qui, je pense, il n’y a pas très longtemps – ça commence à vieillir – se sont beaucoup occupés d’écrire des choses, des lettres d’amour sur les murs. (…)Je l’ai déjà dit tout à l’heure pour la lettre d’(a)mur, tout ce qui s’écrit renforce le mur. C’est pas forcément une objection. Mais ce qu’il y a de certain, c’est qu’il ne faut pas croire que ça soit absolument nécessaire, mais ça sert quand même parce que si on n’avait jamais rien écrit sur un mur, quel qu’il soit, celui-là ou les autres, eh bien ! C’est un fait, on n’aurait pas fait un pas dans le sens de ce qui peut-être est à regarder au-delà du mur”. 125 Em O saber do psicanalista, Lacan (1971-72/2000-01: 50) apresenta o poema de Tudal da seguinte maneira: “Entre o homem e a mulher, / Há o amor, / Entre o homem e o amor, / Há um mundo, / Entre o homem e o mundo, / Há um muro”. 126 Lembrando que em francês a palavra carta, lettre, define tanto carta quanto letra, ou seja, quando Lacan fala sobre as cartas de amor, ele está apontando igualmente para o endereçamento, uma vez que uma carta sempre encontra seu destinatário, quanto para a letra que ela carrega, primária no sujeito, insistente, que faz corpo, falasser (parlêtre), e constitui um leitor. 144 colocada pela pulsão, que traz aí a dimensão do gozo e de um ravinamento (Lacan, 1971/2003, p. 22) possível a ele. Por outro lado, hà a criação, com a própria linguagem, de algo que possa se colocar imaginariamente no lugar da falta da relação sexual, sem contudo eliminá-la. O amor e a carta de amor podem proporcionar uma ponte, nunca totalmente acabada, entre o homem e a mulher. A letra, puxando o significante sem a ele se subsumir ou se atrelar, pode estabelecer uma ponte, igualmente nunca de todo acabada, entre o impossível de se simbolizar e imaginar, mas que insiste e exige escrita. Sobre a criação artística, também ela pode ser cunhada a partir da linguagem e colocada no lugar da falta estrutural tanto desta quanto do sujeito, porém, a função que a obra de arte aí terá será outra. Ele poderá fazer com as fissuras da linguagem algo que dê a ver, ou ouvir, o que está além do muro, o real. Assim, desde as pinturas rupestres, até a arte contemporânea, é com aquilo que cai como resto, como lixo, como letra, que se faz arte, não somente como semblante mas também como litoral entre sujeito e Outro. Diante do muro da linguagem e do encontro com o furo real, o artista127 faz no muro, em seu limiar, com o que cai dele mesmo, um novo objeto que em um só tempo poderá causar outros sujeitos, velar e desvelar o vazio que ele contornou e dar notícias sobre um gozo que pôde, com esse ato, ser escoado. Com letras se faz escrita, poderia sintetizar. Ou, como coloca didaticamente Alencar (2004, p. 7-8): Diríamos que o processo de criação pode ser situado, resumidamente, como incluindo: 1- uma determinada experiência com o vazio significante, que, por reportar à impossibilidade do gozo, implica na invenção, por parte do sujeito, de um objeto, criado para supri-lo; 2- a escolha de um suporte material para margear esse vazio, funcionando ao nível da letra, ou seja, distinto do próprio significante; 3- a assunção pelo sujeito de um produto deste ato, que, investido de função significante, esteja em posição de causar efeitos de significação. Destaco da citação acima que a obra de arte não dá conta de suprir o vazio da linguagem, de cobrir as fissuras do muro, tal qual faria um pedreiro com cimento e argamassa. Pela arte é possível, talvez ainda mais fortemente, vislumbrar o real que moveu o artista em seu ato de criação. Poderíamos supor, então, que a arte faz semblante e, ao fazer isso por uma via específica de lidar com uma incidência do objeto a, ela faria também semblante deste objeto? A música, assim, faria semblante de voz, sendo que a música pós-tonal apontaria para a ruptura de tal semblante? 127 Considerei válido anotar aqui que, por duas vezes, ao digitar a palavra “artista”, escrevi “atista”, o que me fez pensar no artista como aquele que faz o ato de criar com a linguagem a partir do real dando uma Outra dimensão ao ato, elevando-o, para fazer referência aqui à posição de Lacan (1959-1960/1997: 140-141) proposta no seminário A ética da psicanálise da criação artística (e eu diria, nesse instante, “atística” seguindo meu ato falho inicial) pela sublimação como elevação do objeto à dignidade da Coisa. 145 Retornando ao ato de criação artística, faz-se importante ressaltar que tal ato passa fundamentalmente pelo corpo do sujeito, um corpo que goza nessa criação128, ainda que o próprio artista não saiba disso. Trago aqui as palavras de Costa (2003, p. 13; grifos da autora): A dimensão do inconsciente está colocada na medida em que um ato precisa passar pelo corpo (seja pela voz, num ato de palavra; seja pelo olhar, nas artes, ou mesmo na escrita; etc.). É assim que esse ato sabe para além do indivíduo que é interpelado a realizá-lo, na medida em que transpõe ao social a condição de alienação mais radical ao Outro. Isso diz respeito à inscrição primária que todos compartilhamos (o denominado recalcamento originário), que insiste como um enigma motor da cultura. Ligando as duas últimas citações, penso que é possível avançar nas questões que inicialmente propus, já que o ato de criação passará pelo corpo do artista, por uma de suas bordas corporais, e exigirá dele a escolha por materiais de um campo discursivo específico. Fará diferença, portanto, se ele utilizará os mofos do muro ou o que dele repercute (Lacan, 1971-72/2000-01, p. 57) e ecoa/ressoa, se ele contornará o vazio do objeto olhar, fazendo borda, com tintas, mármore ou telas, ou o vazio do objeto voz com palavras ou notas musicais. 4.3 – Musicar a vida como proposição de uma construção clínica Criar é abrir descontinuidades, interrupções no fluxo do mesmo. Edson de Sousa c’est la lumière vivant que chacun porte en soi et que toute le monde étouffe pour faire comme toute le monde lumière défendue tu grilles ceux qui t’approchent ceux qui veulent te prendre mais tu les aimes lumière vivante la vie c’est toi la vie vivante qui marche en avant en revenant sur ses pas qui marche toute droit qui fait des détours et qui n’en fait pas soleil de nuit lune de jour étoiles de l’après-midi 128 Com a concepção lacaniana de falasser (parlêtre), corpo e sujeito passam a ser pensados em um mesmo tempo, a partir da marca do significante através da linguagem que constituiu um corpo/sujeito falante. Ainda, corpo e gozo estarão intimamente ligados, já que “para gozar, é preciso um corpo” (Lacan, 1971-72/2000-01, p. 19). 146 battements de cœur avant l’amour pendant l’amour après l’amour129 Jacques Prévert A “vida viva” pulsa. E ela não pode ser ritmada. Continuamente, ela pulsa, ela nos ultrapassa, sem cessar. Como ela nos ultrapassa, não escutamos sua pulsação a todo o tempo. É mesmo impossível escutar, e de escutá-la, em continuidade. A vida pulsante, para ser vivida, exige uma dimensão de um movimento possível a cada sujeito a partir de uma escuta que o interroga, que invoca uma resposta singular ao enigma que é dado a todos. E que apenas pode se colocar em jogo, fazendo com que não a vida, mas a vivência única de cada um de nós seja ritmada e construída, pelo estabelecimento de um pondo de silêncio face ao real mais radical e contínuo no qual estamos mergulhados, mas não mais de todo, mesmo antes de nossa emergência. A vida pulsa e ela é cortada pela equivocidade igualmente viva da linguagem. A fala inscreve no infans a própria invocação e vocação para falar. Ela torna possível compartilhar com o outro um ponto que não é garantia alguma comunicação ou de conhecimento sobre o mundo, mas que nos lança a nos expressar e a conhecer. É esta marca original, esta inscrição, fundada pela linguagem em seu encontro com o bebê humano em seu desamparo constitutivo e mesmo com cada falante posteriormente em suas vidas que cria e recria, a cada vez, a linguagem, o sujeito e os limites entre os dois. E é a partir dessa marca, feita pela ressonância entre estes dois campos simultaneamente compostos neste ato, que o sujeito pode dar eticamente um ritmo a sua vida. A vida viva e a linguagem pulsam. Uma criando um furo na outra. Diante dessa heterogeneidade intransponível, o corpo, a imagem particular do corpo, constitui um elemento de costura e amarração para ultrapassar isso que poderia ser entendido com um dualismo cuja dinâmica entre seus pólos se apresenta por uma relação unívoca de causa e efeito. O sentido, o sem sentido e a multiplicidade de sentidos se enodam e modulam estruturalmente sem complementaridade, portando um vazio neste nó que institui a possibilidade não apenas de falar, o que já é surpreendente e, portanto, nada evidente, mas igualmente de um laço social para com o outro. 129 “É a luz viva que cada um carrega em si/e que todo mundo sufoca para fazer como todo mundo/luz defendida/tu queimas os que se aproximam de ti/os que querem te prender/mais tu os amas/luz viva/a vida é tu/a vida viva que marcha à frente/regressando sobre seus passos/que marcha sempre à diante que faz desvios e que não os faz/sol da noite/lua do dia/estrelas da tarde/batimentos de coração antes do amor/durante o amor/depois do amor”. 147 Escutar, então, a pulsação da vida e como cada sujeito pode ritmar sua própria pulsação face a esse impossível real que não cessa de se movimentar e de não de deixar inscrever é o que move a psicanálise e o trabalho de cada analista. Perguntas que, explicitamente ou não, se apresentaram ao longo desta tese, tais como “o que é falar para a psicanálise?”, “o que o falar coloca em cena?”, “como o infans pode advir a esta condição de falante?”, são recolocadas a cada análise, a cada caso clínico, ganhando colorações e considerações que são específicas ao encontro entre um analista e um analisante. E quando um analista se deixa atravessar pelas produções dos sujeitos não apenas no âmbito clínico, outras questões podem ser acrescentadas ao enigma clínico que o causa. O “além da clínica” coloca em cena o que a clínica em si mesma traz em seu cerne: um além do próprio inconsciente que faz com que falar seja possível, mesmo que não dê conta do que se passa no sujeito. E por que falar não é suficiente130? Por que, escutando algumas ondas da pulsação não equívoca e constante da vida, fazemos o movimento de falar e, mais, de jogar com os limites da fala, criando, por exemplo, a música? A música parece dar pistas as mais preciosas, e nem por isso menos difíceis de seguir, sobre isso que, por fim, se apresenta como o trabalho de uma análise: tornar possível a um sujeito a recriação de sua posição diante do mundo, ou melhor, a invenção de uma posição subjetiva na qual seja possível sair de uma repetição do mesmo, de um “renovado”, para a criação de um novo131. Fazer música incluindo a pulsação do mundo e a transformando para ultrapassar um pensamento dualista acerca da relação entre o sujeito e o mundo. É o movimento mesmo do sujeito de recriar sua ligação para com o Outro pela via da voz e da invocação desejante, abrindo-se às outras vias possíveis. Fazer música, ou melhor, musicar a vida a cada ato, utilizando-se da dimensão de poiesis, de criação. O que torna possível uma aliança nova com o Outro, os outros e consigo mesmo ao se deixar ser causado pelo que do real pode convidar não somente a falar, mas a cantar e a dar à vida um movimento particular de maior abertura ao acaso e às diferenças... É este um dos principais convites propostos pela música de John Cage, que nos faz re-escutar alguns pedaços vivos do real. A “vida viva” pulsa. E ela não pode ser ritmada. Entretanto, ela nos invoca a estetizar, a musicar a vida com nosso próprio ritmo. 130 E aqui evoco a complexa questão proposta por Alain Didier-Weill (1999, p.9) sobre a música ao longo de sua obra, especialmente em seu livro Invocações: Dionísio, Moisés, São Paulo e Freud: “Por que o homem não se contenta em falar, por que é preciso também que ele cante? Se há um parentesco entre a fala e o canto, qual será ele?”. 131 Mais uma vez, faço referência à Didier-Weill em seu livro mais recente, de 2011, Un mystère plus loin que l’inconscient. 148 * O grito que funda. A fala que fura. Movimento. Refazendo manhãs. O que invoca, o que é da ordem da voz, permanece sempre como grito silencioso, nem sempre ouvido, porém dado constantemente à escuta. Fazer re-escutar tal invocação: proposta ética da psicanálise. E que pode ser levada a conseqüências poéticas na medida em que se apresenta como uma proposição clínica que toma o invocar que a voz coloca em cena como uma construção singular de cada sujeito a partir de suas vivências e de seus limites. Tomo-os aqui como modos de lidar com a castração que, em vez de limitadores, se mostram pelo convite à criar com aquilo que circunscreve o sujeito enquanto singular e separado do campo do Outro, escrevendo assim seus próprios contornos. Convite à criar a partir daquilo que o causa, por lhe estar êxtimo. Invocação a se construir uma direção radicalmente singular que o levará a um mais além. * I want something that I don’t know yet132. John Cage Somente o acaso tem voz. Milan Kudera Nós nos construímos no desconhecido e procuramos o verdadeiro, o real lá onde a simples realidade fatual desaparece – incipit vita nova!133 Ernest Bloch A música pós-tonal/contemporânea pode nos mostrar um movimento de ir mais além da linguagem, em direção ao real, que seria uma resposta a ele em ressonância, não 132 “Eu quero algo que ainda não conheço”. “Nous nous bâtissons dans l’inconnu et cherchons le vrai, le réel là où la simple réalité factuelle disparaît – incipit vita nova !”. 133 149 necessariamente em consonância, e tendo uma posição singular que, tocando os limites do sujeito, o abre a um laço para com o outro, que passa impreterivelmente pelo Outro. Esta resposta se daria por efeito de invocação da voz (radicalizada na música pós-tonal, especialmente em Cage) nos encontros entre o sujeito e isso que do real insiste. Podemos pensar essa ética/estética/poética posta em cena por essa música como a abertura para uma possibilidade de musicar a vida. A música poderia, assim, nos ajudar a refletir sobre uma escrita pulsional a partir dos encontros com pedaços do real que podem criar um movimento de não se deixar silenciar nem se ensurdecer face ao desejo do Outro. Ou, dito de outra forma, um movimento de se fazer ouvir e, igualmente, de escutar isso que do contínuo convoca à, mais uma vez, uma inscrição possível frente ao impossível. A música de Cage, incluindo o acaso, o aleatório, o ruído e sons não incorporados pela linguagem musical “tradicional”, lembra ao sujeito que o acaso é encontrar não o real “em si”, mais o que do real se deixa ritmar, já que o real não se escreve; ele causa escrita/escritura. Os passos da pulsão invocante dão uma escritura possível dos “não” do real (o que não cessa de não ser escrito). Há em Cage uma dimensão de encantamento/maravilhamento e de entusiasmo pelos sons da vida cotidiana. Se Schönberg mudou radicalmente a estrutura e a escrita composicional da música no ato de dar a cada nota um mesmo valor, abolindo hierarquias entre elas e fazendo da obra um significante novo a ser assim escutado somente a posteriori, Cage, vai ainda mais longe. Sua escrita é causada pela força musical dos sons comuns, dos sons mais banais, e pela pulsação constante e quase caótica da vida. Ao propor a criação a partir desses pontos, a aparente distância entre arte e vida é ultrapassada; a arte é sentida novamente como um processo que inclui a parte pulsante e real da vida, invocando o desejo pela via estética e também política. Uma escrita causada pelo mais alem do sistema lingüístico convencional cria novos parâmetros, como os propostos por Schönberg com seu atonalismo, seu serialismo e seu dodecafonismo, evidenciando que cada peça é um processo único e com uma estrutura interna própria. Uma escritura causada pelas possibilidades de despertar o real, que recria a escuta de sons mais além da representação imagética, da memória e das imagens de si mesmo, de um já escutado: esta é a proposição cagiana. “Eu quero algo que ainda não conheço134” , diz Cage. A questão de uma escrita nova da música nestes dois compositores, a partir de abordagens diferentes, toca um ponto em comum: a ruptura com sistemas composicionais de uma tradição específica, a música tonal, 134 John Cage em entrevista apresentada no documentário “Écoute”, dirigido por Miroslav Sebestik em 1992 e produzido por JBA Production, La Sept e Centre Georges Pompidou. 150 assim como a desconstrução da linguagem musical a cada processo de escritura e de escuta. Porém, não se trata de uma negação da linguagem musical ou da linguagem propriamente dita. Como nos compositores do tonalismo e mesmo antes, no modalismo, a busca é a mesma: criar pela linguagem peças musicais que visam se aproximar e mostrar o mais além da linguagem. É sempre, e ainda, pela linguagem que os músicos pós-tonais criam com o musical, e não apenas com uma sistematização lingüística musical de um regime guiado pela idéia do tom e a um retorno à essa nota. Os processos musicais a partir de Schönberg constituem, a cada vez, outras sistematizações, sem um fechamento da idéia e da representação que orientaria a peça, deixando, assim, mais aberto o enigma de onde a música pôde surgir. Talvez, nesse caso, de uma forma mais radical, há um “momento de concluir” não sintético que seria vivido pelo ouvinte a partir da ressonância causada por esse encontro com o real que a música transmite. Talvez isso se dê mais além da nota azul, mas não sem ela: uma nota azul que não está lá desde o início e que se revela para explodir no fim, silenciosamente. Uma nota azul que, negativamente, se anuncia ao fim, invocando uma escuta outra e, de tempos em tempos, também uma escritura de um novo para o sujeito. Um novo que não seria um já escutado, mais um nunca ouvido, que se produziria nesse encontro singular entre as articulações do real, do simbólico e do imaginário em ação na música e estruturante no sujeito. Podemos, ainda, pensar que os efeitos do pós-tonalismo nos toca, a posteriori, também na escuta da música tonal, uma vez que a primeira nos demanda uma reconstrução de nossa posição em relação ao material musical. O pós-tonalismo nos lembra, nos convoca a não mais esquecer isso que está presente em toda música e em toda arte: a abertura aos efeitos do real. Uma abertura, portanto, por se deixar ser tocado pelos pedaços de real que podem ressoar, no caso da música, no vazio do objeto voz, chamando uma re-escritura, com o que resta em nós. Uma escritura que se faz de restos, do litter, da litura, que é causada por um inaudito que pode surgir desse encontro transmitido pelos processos musicais. Uma escrita pelo litoral que se faz à partir de uma escuta. Na música pós-tonal, a escuta de uma poética e de uma estética particulares exige do ouvinte, mais intensamente, um desprendimento de si, um esvaziamento das identificações imaginárias. A interrogação que surge é sobre a dimensão do corpo e do gozo a partir desse processo e da possibilidade de escritura pulsional nova que buscará tentar escrever o irrepresentável. O imaginário pode ter uma função que dá consistência necessária ao sujeito a partir da possibilidade que a voz lhe oferece de fazer “transitar a homofonia inerente aos discurso (LEW, 1989, p. 160)”. Tal homofonia não é apenas ligada à equivocidade do 151 simbólico, mais também ao enigma real de lalangue, invocando o escrito, sendo que a própria linguagem “é o que se tenta saber concernente à função de lalangue (1972-1973/1985)”. É preciso, então, refletir sobre uma escrita a partir dos efeitos de lalangue, dos efeitos da letra. Um escrita a posteriori que pode ser despertada pelas ressonâncias no vazio da voz em um sujeito e em uma música mais próxima do real, que nos daria mais a escutar, talvez, a dimensão de letra do que a de significante. As questões sobre a música pós-tonal me fazem pensar nos limites da linguagem e ao abismo em que o sujeito pode ser lançado ao escutar este tipo de música (e que se mostra como risco em toda música). Dito de outra forma, o que me faz aqui trabalhar é sobre o que “daquilo que, pela linguagem, convoca o litoral para o literal (LACAN, 1971/2009, p. 110)”. Trata-se de um apelo ético, poético, estético... de criação... que pode ser escutado à partir da música... e nos atos dos sujeitos em uma tentativa de responder ao real. O aspecto de musicalidade da linguagem se faz presente explicitamente na criação e na escuta musical, tendo importância não menos explícita na emergência do sujeito, como já dissemos neste tese. O sujeito nasce em um ponto em que o significante (simbólico) escreve no real do corpo um possível, um começo, uma marca que invoca uma nota e uma letra: os dois aspectos da linguagem – a musicalidade (continuidade) e a palavra (descontinuidade em movimento). Este ponto, que inscreve e cria um vazio no sujeito, no parlêtre, está (e estará) sempre em pulsação. Se o real grita caoticamente, é possível cantar e musicar a vida com a criação de notas singulares na partitura dada pelo campo do Outro, e estes seriam efeitos do movimento desejante e de uma escrita pela pulsão invocante face aos encontros com pedaços do real. É preciso cantar e musicar o grito e a queda da voz. Os pedaços de real que o sujeito encontra (e que se explodem) no pós-tonalismo, lhes dizem que, ainda que estejamos novamente face à face à uma musicalidade caótica, que parece, em um primeiro momento, “sem lei”, o recurso da linguagem está lá. A “obra” musical pós-tonal pode parecer mais real, mais imprevisível, mais caótica, sem os contrastes que oferecem uma segurança, um campo de reconhecimento mais imediato ao sujeito, e, portanto, mais contínua e sincrônica. Entretanto, como todas as obras artísticas, ela é real, simbólica e imaginária; ela é uma escrita feita à partir de um gesto do sujeito (que se apaga quanto à dimensão de autor e de sujeito singular) sobre o muro da linguagem, com seus mofos, fissuras e ravinamentos – efeitos do encontro entre o muro, o sujeito e o mais além do muro. Pensar esse mais além do muro da linguagem é incluir os aspectos que, estando em torno no sistema das línguas, se excluem da linguagem, a tornando assim possível: o grito, o 152 silêncio, o ruído... O além do muro grita. É o muro que impõe o silêncio. Se o sujeito fala, é devido à uma surdez constitutiva e estrutural que lhe permite não escutar o tempo todo a voz gritante do Outro135 – o ponto surdo. Podemos supor que é mesmo em razão das ressonâncias da “falação” e dos gritos do real sobre o muro que as fissuras são feitas. Deste modo, as obras musicais poderiam dar novamente uma voz ao real, fazendo com que um nunca ouvido possa ser contornado e, assim, escutado e evidenciado pela música. De uma maneira mais radical e numa medida mais acentuada, a música pós-tonal nos faz re-escutar o grito do real, imposto silencioso para que o sujeito pudesse surgir como falante. A música dá uma voz nova ao grito do real, impondo cortes e descontinuidades ritmadas, sustentadas pelo savoir-faire do músico com o objeto a assim como que com a linguagem, mesmo se esta aparece imprevisível e aberta ao acaso como no pós-tonalismo. Para escrever a pulsação temporal, é preciso escutar a duração pulsional, a invocação da voz e a continuidade do grito feito silencioso do real contínuo. É a pulsação da escrita do sujeito que corta essa continuidade perpétua, que talha a atemporalidade do real e que, neste encontro, cria o furo ressonante entre o real, o sujeito, a palavra, o simbólico e o imaginário. É o furo da queda da Coisa desde sempre perdida que faz com que cada objeto porte em si uma “coisidade136”, um vazio. O furo da queda do objeto a marca um início, um começo do sujeito, do desejo e do movimento pulsional. Este furo instaura uma perda de gozo, que não poderá jamais ser recuperado. É o furo em torno do qual um traço, o traço unário, pode ser criado, estabelecendo a possibilidade de articular a letra e os significantes da cadeia significante. É o furo a partir do qual o sujeito pode musicar sua vida, respondendo com os vestígios de lalangue nele depositados bem como com os significantes que o determinam face ao Outro de uma maneira singular e desejante. Tal resposta torna possível que o sujeito não se esqueça de sua ligação para com o Outro e também da coisidade que há nos objetos, nos sujeitos e nas coisas do mundo. O vazio que liga os sujeitos é constitutivo ao parlêtre. São os encontros com pedaços do real que dão, uma vez mais, voz a esse grito real, chamando o sujeito à se reposicionar frente ao Outro pela escrita pulsional (da pulsão invocante: ouvir, ser ouvido, se fazer ouvir). A escuta pode ser pensada com um modo de relação para com o mundo. No momento da escuta musical, o sujeito pode se aproximar de um ritmo que não é o seu próprio, mas que 135 Büchner (apud ASSOUN, Paul-Laurent. Leçons psychanalytiques sur le regard et la voix. Tome 2 – Figures : Du symptôme à l’amour. Paris : Anthropos, 1995. p. 5) pode nos ajudar a refetir sobre a idéia do silêncio real que grita constantemente e em continuidade quando ele fala de uma “voz que grita” e de um “silêncio (...) que se confunde com os rumores do mundo”. 136 Como bem o mostra Proença a propósito da criação artística e dos escritos de Giacommetti. PROENÇA, Paulo. Em torno de Alberto Giacometti: arte, ética e psicanálise. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2010. 153 o permite escutar, em um espaço vivo, alguns traços de seu movimento de abertura e de fechamento do inconsciente. A música tem o poder de retirar o sujeito de uma surdez quanto ao seu próprio desejo, o apelando a recriar a língua e a linguagem pelos seus atos (atos de fala, podemos dizer, mesmo se é uma palavra cantada) com seu corpo. É preciso lembrar que é a partir do encontro entre a linguagem e o infans, sustentados pela voz materna, que o significante irá inscrever uma marca original que cria o sujeito. É apenas pela chuva de significantes que o sujeito, em ressonância, pode surgir ao fazer uma escolha forçada de sua estrutura como resposta ao desejo do Outro (e ao real que ele porta). A concepção de ressonância entre o significante e o real como proposta por DidierWeill (2010), enquanto pulsação anterior ao significante inaugura a atemporalidade do inconsciente e seus ritmos de abertura e de fechamento, se mostra bem produtiva para pensar tiquê e automaton na artticulação entre o inaudito que pode ser posto em cena pela obra musical. Didier-Weill revaloriza o fiat trou de Lacan, que remonta a Freud e aos atos de Bejahung e de Ausstossung, que criam em simultaneidade o real, o simbólico e o sujeito. Fiat trOUI137, que se faz a partir do não e que institui o muro da linguagem e o mais além do muro. Se há uma chuva de significantes, podemos admitir que o corpo é um guarda-chuva, algo que, simultaneamente, protege e que guarda, retém. O corpo (e talvez mesmo a dimensão real do imaginário) testemunha os efeitos do real no sujeito quando do encontro com o simbólico e com o imaginário feito de um modo borromeano. O corpo é ressonância/efeito da lalação que demanda ao sujeito à falar e igualmente a cantar. Face ao real, falar não é suficiente: é preciso cantar, dançar, musicar, poetizar, ir além do dito, contornar o inaudito, o jamais dito. É preciso fazer a música em ato, na vida, no cotidiano, escrevendo com os ecos do real e de lalangue no corpo aquilo que é possível de escrever da pulsação invocante da vida. Um testemunho e uma transmissão do impossível de dizer, mas que insiste e que se faz vivo nos limites da linguagem. A música e a possibilidade de musicar a vida são, então, duas maneiras de fazer uma criação e uma escrita com os traços e os restos de lalangue no corpo (maneiras que dão um ritmo – um tempo – singular ao sujeito, ritmo de seu próprio desejo, em relação a um gozo possível). O corpo como sujeito que fala – parlêtre – é uma escrita, poiesis ; ele é ético e estético. Há igualmente uma dimensão ética (esthéthique) do dispositivo musical: despertar o sujeito pelo inédito que transborda do furo que se encontra subjacente em cada objeto e, a 137 Aqui, explicitamente, faço um agradecimento a Paulo Proença que, tantas vezes no processo de gestação e escrita desta tese me fez voar e brincar com minhas questões e com a psicanálise, fazendo surgir direções e conclusões sempre abertas. 154 partir disso (e com isso), abrir a possibilidade real de musicar a vida – a escrita que se faz com os atos. Além disso, existe a possibilidade de, com a música, passar de uma pulsação contínua e impossível de simbolizar, que invoca o sujeito, a um ritmo sustentado pela linguagem (como uma “paráfrase” disso que se escuta do encontro com o real – uma transcrição possível do que é impossível de dizer). É interessante evocar o que apresenta Assoun (1995, p. 31-32) sobre o “momento do Belo”, ao qual podemos recorrer para pensar os efeitos desses encontros com o que real, que poderiam dar um entusiasmo, tal como proposto por Didier-Weill (2010), graças à via estética – ou mesmo graças ao efeito estético do gozo. Este momento seria um “momento de ‘dessimbolização’ pontual que coloca o sujeito (...) ao pé do muro do real”. Podemos, assim, pensar que há um processo de destituição subjetiva posto em cena, ou melhor, em música, por esse encontro, este momento real, que a música pode criar em diferentes gradações (e minha hipótese é a de que na música pós-tonal esse grau é maior). A música pode dar o entusiasmo, que faz com que o sujeito possa ir mais além de um “renouveau”, um reconhecido, do seu sintoma. A possibilidade de musicar a vida passa pelo entusiasmo bem como pela estetização dos atos do sujeito. Este entusiasmo pode ser pensado como um caminho para o trabalho analítico, como indicado por Didier-Weill (Ibid., p. 49) a partir do mito de Dionísio: “Trata-se, para nós psicanalistas, de dizer em que o movimento suscitado no homem por Dionísio, o entusiasmo (o endeusamento), é o tipo mesmo de movimento que faz o processo analítico”. Entusiasmo este que está intimamente atrelado a uma re-escuta do real, da pulsação do real, que invoca o movimento, não sem um corte que se dado como ato do sujeito ao se recolocar e relançar numa posição singular diante do campo de alteridade que é o Outro. Entusiasmo e real. Entusiasmo do real. Algo que pode ser potencializado com o trabalho analítico. E que se coloca ao analista ao final de sua análise pessoal sustentando a própria função que ele exerce. Entusiasmo e desejo do analista. Nas palavras do próprio Lacan, em 1973 na Nota italiana: Se o analista se criva do rebotalho de que falei, é por ter um vislumbre de que a humanidade se situa pelo feliz-acaso [bon-heur] (é onde ela está banhada: para ela só existe o feliz-acaso), e é nisso que ele deve ter circunscrito a causa de seu horror, o dele próprio, destacado di de todos – horror de saber. A partir daí, ele sabe ser um rebotalho. Isso é o que o analista deve ao menos tê-lo feito sentir. Se ele não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance (LACAN, 1973/2003, p. 313). Ao que acrescento mais um trecho lacaniano que bem esclarece o que está em jogo na relação do entusiasmo com a análise e a escrita que é exigida pela pulsão: 155 Existe saber no real. Ainda que, este, não seja o analista que tem de alojá-lo, mas sim o cientista. O analista aloja um outro saber, num outro lugar, mas que deve levar em conta o saber no real. O cientista produz o saber a partir do semblante de se fazer sujeito dele. Condição necessária, mas não suficiente. (...) Volto a esse ponto sumamente conhecido apenas para lembrar que a análise depende disso, mas que, assim mesmo, para ele isso não basta. Seria preciso que a isso se juntasse o clamor de uma pretensa humanidade, para quem o saber não é feito, já que ela não o deseja. Só existe analista se esse desejo lhe advier, que já por isso ele seja rebotalho [rebut] da dita (humanidade) (Ibid., p. 312-313). O analista enquanto resto e sustentando, com seu desejo e com entusiasmo – entusiasmo este que se mostra como pulsante ao fim de sua análise pessoal, que o permite sustentar para o sujeito em análise que o resto tenha função de causa. Algo que uma análise acentua por seu dispositivo de equivocidade e invocação, mas que não está de todo ausente e à espreita na vida cotidiana. Quando o sujeito é confrontado ao real, por acaso, de surpresa, a dimensão disruptiva desse momento efêmero, pontual, mas intenso, por vezes excessivo, pode ganhar uma via distinta da angústia. Por exemplo, fenômenos de vertigem face ao real que convocam (ou são convocados) uma experiência estética de gozo a partir da arte (e do savoiry-faire com o objeto). A angústia que poderia surgir no sujeito pode ser transformada em entusiasmo. A destituição subjetiva que se opera lá138 é simultaneamente contornada e pode permitir a inauguração de uma nova posição do sujeito, ou, dito de outra forma, de uma abertura e de uma escuta do que não cessa de não ser escrito (e também de gritar), respondendo a isso através de uma escrita possível e singular. Desse modo, os encontros com pedaços de real criam uma possibilidade do sujeito sair da repetição do mesmo para se dirigir a um radicalmente novo. Trata-se de, novamente, se fazer uma origem, um recomeço, assim como de uma escuta de um inaudito que permite, a partir do real, uma escritura pulsional de algo novo para o sujeito. Podemos dizer que há um paradoxo do real: o que não cessa de não ser escrito (continuidade da voz que grita e que é puro caos) exige uma escrita, não sem entusiasmo, que retira o sujeito da estabilidade e da unidade imaginária, reescrevendo o simbólico. Reescrever – ler/reler/escrever/reescrever: novo e “renouveau” (novamente/renovado). Da repetição (“renoveau” – novamente) à criação (novo). Com a linguagem Para ir mais além dela mesma. Ou, como diz Beethoven (apud MASSIN, 1997, p.64): “No mundo da arte, como em tudo que diz respeito à criação, o objetivo é a liberdade e a força de ir sempre mais além”. 138 Que remonta ao momento de origem do sujeito e que é já um segundo tempo em relação à arte, um tempo de resposta que vem após um primeiro tempo do encontro que invoca o sujeito, o despertando. 156 CODA POR UMA CLÍNICA COM VOZ Só existe despertar particular. Jacques Lacan Uma frase que me veio em um sonho: “eu vejo com o ouvido”. Frase que me pareceu sintetizar uma das grandes proposições freudianas, enunciada sem maiores alardes, sem ser escrita ou dita em voz alta, mas presente em toda sua construção clínica-teórica, quanto ao trabalho de um analista: colocar seus ouvidos e seu corpo em causa para que aquele que fala e lhe concede um lugar de analista possa vislumbrar e trabalhar aquilo que o põe em movimento. O modo pelo qual tal frase foi em mim construída, me chamando imediatamente à escrita, também me parece dizer da transmissão da psicanálise freudiana e lacaniana sobre o que é de mais fundamental na função do sonho: o despertar. Não o despertar do sono propriamente dito, mas o despertar enquanto abertura aquilo que é apontado pelo inconsciente e que não se esgota nele; o despertar que pode se irromper enquanto efeito mesmo do significante em suas articulações com o que o ultrapassa e que o faz, assim, porta-voz de um enigma a sempre ser respondido. O despertar enquanto encontro com o real, que re-invoca a voz em sua dimensão de corte e de origem de um sujeito que fala a partir de uma voz própria que, mesmo tendo determinações Outras, é uma voz que se coloca em movimento de se fazer ouvir. Despertar enquanto novo encontro com o realmente simbólico e o realmente imaginário, recolocando em cena as possibilidades criadoras das ressonâncias entre os três registros heterogêneos que fazem com que um sujeito fale e vá além do próprio ato de falar. Nesta frase que me disse em sonho, talvez tenha me “resumido” o que me permanece em causa neste trabalho, não apenas de pesquisa mas de elaboração do mistério que encontro na clínica. Ver com o ouvido, com a escuta, a partir do que, daquilo que foi ouvido pelo analisante, o funda em uma perspectiva singular e com voz. Trabalho ético do analista: ver com o ouvido para invocar o ouvido que faz falar com voz. Equivocando o que fora ouvido para que um novo, a partir de uma subversão que resgata o movimento de origem e de começo pelo encontro entre real e linguagem, possa ser ousado. Invocando a voz em sua característica a mais fundadora e vital: a do corte que faz criação. * 157 Não concluo. Faço uma pausa e fecho um ciclo. Alinhavo caminhos e redescubro trilhas. Escrevo. Respiro. Recomeço. * Neste apanhado final da tese, que se quer uma coda que deixa em aberto o fim, proponho retomar duas idéias que alinhavaram toda a construção do que foi aqui anteriormente apresentado: a clínica analítica se dá como uma clínica com voz, que parte da voz para fazer ressoar os enodamentos estruturais do falante e operando a partir de sua dimensão equivocante; se a clínica analítica é assim uma clínica com voz, é também por esta que se dá a transmissão da psicanálise, silenciosamente recolocando o analista diante de seu próprio desejo de analista, fazendo com que seu ato se dê pela via poética da homofonia, e o levando a um encontro com o entusiasmo, igualmente passível de ser transmitido pela análise e pela escrita. O trabalho de uma análise, como proposto por Lacan no final de seu ensino, passa por se deixar entusiasmar pelo que de real se apresenta como causa, como escrita poética possível, e como um tal confrontamento com o desejo que este possa ser colocado como advertido, como passível de balizar os encaminhamentos do sujeito em seus laços. Assim, o que esta tese me leva à concluir é que a psicanálise é fundamentalmente uma prática invocante, que promove efeitos no sujeito uma vez que a voz comparece ali como operador clínico fundamental, recolocando em cena a possibilidade de um recomeço e da criação de algo radicalmente novo. Novo para aquele que o cunha. Sem necessariamente portar uma tonalidade, por deixar a equivocidade invocante da linguagem ressoar nas heterogeneidades atuantes no falante, em seus atos. Mas a partir de seu próprio ritmo e timbre, de sua própria voz. E com ela, a tese, surgiram algumas questões que se mostram como diretrizes futuras, que já agora me põem em trabalho. Por um lado, a partir da proposta de musicar a vida, se colocou uma outra, a de que a clínica analítica se encaminharia na construção de uma direção utópica e singular do sujeito. Isso tomando a utopia como colocação em ato do movimento desejante do objeto a, na medida em que ela se propõe como furando cristalizações e posições congeladas, impondo assim um futuro que se presentifica. Utopia como criação desejante que rompe com uma imagem congelada do passado e fura tanto o momento presente quanto o futuro, fazendo com que o que se presentifique seja a causa de desejo como direção. 158 Um segundo ponto que se apresenta como resto pulsante é de tomar os eixos da obra lacaniana que aqui me nortearam como recomendações clínicas para os que exercem a psicanálise. Diferentemente de Freud, que dedicou em sua transmissão artigos precisos quanto ao rigor da prática clínica por ele fundada, sobretudo o de 1912, Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, no ensino lacaniano tais eixos norteadores, orientados pelo real, encontram-se presentes a cada vez que ele toma a palavra. A própria retomada lacaniana da obra de Freud, ressaltando, dentre outros pontos, a dimensão linguageira do inconsciente e a radicalidade da pulsão de morte, já se apresenta como uma primeira e primordial recomendação. Tomar o texto freudiano como sustentação da psicanálise, ouvindo sempre o “mais além” que nele vigora como direção da própria clínica, que insiste em cada encontro entre um analista e um analisante. Contudo, é possível ler, escutar e trabalhar os apontamentos e construções, mesmo invenções, clínico-teóricos de Lacan como recomendações preciosas aos analistas que, freudianos como ele próprio, escolhem e aceitam o desafio de exercer e refazer a psicanálise a cada vez, a cada caso. Destaco, enfim, desta tese três pontos que considero fundamentais e cruciais no ensino lacaniano enquanto recomendações clínicas: o desejo (do analista), a poesia (como paradigma da interpretação analítica) e o entusiasmo (como via e efeito real da trajetória/percurso de uma análise). Nesse sentido, minha proposta/aposta é a de que as recomendações lacanianas aos analistas, implicitamente presentes em todo seu ensino, podem nos levar a sustentar a psicanálise como uma prática invocante, uma prática clínica, ética, poética e política, que invoca o sujeito a relançar sua voz singular face ao Outro e no laço social com os outros. Dito de outro modo, com Lacan, mais explicitamente a partir do conceito de objeto a e da inclusão das incidências deste como voz e olhar, para além dos objetos oral, anal e fálico conceituados por Freud, o desejo do sujeito surge ainda mais fortemente atrelado ao ponto de constituição deste, que precisa necessariamente se separar do campo de alteridade radical portando um perda irreparável – a perda de das Ding, a partir da qual todo encaminhamento do desejo do sujeito se estabelece. É buscando escutar este encaminhamento, podendo a partir daí operar, que o lugar de analista pode se configurar. De um lado, a transferência sustentando a fala e o trabalho do analisante. De outro, o desejo do analista que igualmente sustenta a possibilidade do trabalho de análise, porém, por um aspecto particular. Transferencialmente colocado no lugar de resto, de causa de desejo, o analista, com seu desejo advertido, pontua ao sujeito que o percurso de uma análise permite com que seja possível “não ceder do seu desejo” (LACAN, 195960/1988, p. 383) e assim responsabilizar-se por ele, podendo agir em conformidade a ele. A 159 pergunta que Lacan destaca no seminário A ética da psicanálise, “Agiste conforme o desejo que te habita?” (Ibid., p. 376), se mostra como fundamental para a condução de uma análise, bem como para a formação de um analista. E podemos mesmo afirmar que um analista pôde agir conforme o desejo que o habita e que, enquanto função numa análise, não cede do desejo de analisar. Recomendação fundamental para que uma trabalho analítico se desenrole e com efeitos. Uma segunda recomendação se daria quanto à relação entre o desejo do analista e o ato analítico, que parte tanto do ato de escuta quanto do fazer com a palavra que se explicita na interpretação, fazendo com que o analisando possa ele mesmo ouvir sua verdade de forma invertida. E uma tal escuta, construída ao longo de uma análise a partir dos efeitos de uma série de encontros com o que real, podem levar a um movimento do sujeito em relação à sua própria vida e à sua própria fala que passam por um entusiasmo, tal como proposto por Didier-Weill (2010). De um lado, o analista com seu desejo e manejando o que lhe chega pela fala a partir de uma dimensão poética da interpretação. De outro, os efeitos de assim se tomar a fala por aquele que a profere, passando pela surpresa, pela criação e pelo entusiasmo. Desse modo, os encontros com pedaços de real que a clínica acolhe ou possibilita produzem uma via do sujeito sair da repetição do mesmo para se dirigir a um significante novo que faça uma diferença ética e real na vida daquele que o cunha desejantemente. O fazer clínico partiria de uma escuta das homofonias, e mesmo da leitura de uma escrita com letras e traços (escrita por assim dizer ortográfica e pulsional, que o analisante cria, continuamente ao longo de sua vida, a partir daquilo que nele continua ressoando do que foi possível ouvir da musicalidade de lalangue. Ou seja, restos que se inscrevem e que invocam a escrever algo do excesso do real e do sexual pela elaboração poiética na clínica. Em poucas palavras, poderia condensar a tese central desta tese da seguinte forma: a música criada a partir e além do paradigma inaugurado por Schönberg nos dá a ouvir um fazer com a voz no qual a dimensão equivocante (de equívoco e de invocação) da linguagem ressurge por uma via nova. Via esta que aponta para um momento originário do sujeito, de um começo a sempre recomeçar, que se recoloca em cena na escuta do que a música transmite: a invocação para se musicar a própria vida (musiquer la vie), num movimento ético, estético e poético. Nesta perspectiva, a arte a música de Schönberg e de Cage fizeram com que me fosse mais nítido escutar o que está em jogo tanto na estruturação do sujeito, a partir do enodamento não hierárquico e ressoante dos registros psíquicos, bem como aquilo que, a todo instante, se apresenta no trabalho de análise. Nele, o estranho, o excessivo, o insuportável, o 160 acaso, o impossível de dizer, e tantas variações do que o encontro com o real põe em causa, se apresentam latejantes. O real pulsa e faz pulsar. Re-escutá-lo, ainda que a princípio por uma via de estranhamento – como se apresenta tantas vezes igualmente a musical pós-tonal –, recoloca a possibilidade de se re-estabelecer um ritmo próprio do sujeito, fazendo, com isso, um giro estrutural no enlaçamento de real, simbólico e imaginário. Clinicamente, trata-se de uma direção, ou mesmo de uma construção utópica: dos encontros com o real que o sujeito, ao acaso, pode fazer, a um novo movimento de re-escutar o inaudito real contínuo perdido para que seu ritmo singular enquanto falante possa ser, uma vez mais e de maneira nova, reinventado. Em uma frase: a psicanálise como prática invocante, como abertura para, com entusiasmo, se musicar a vida. Toda esta tese, então, mostrou-se como uma construção e de uma tentativa feita ao longo de quatro anos, sem que nem eu mesma soubesse, de dar algum suporte a esta frase. 161 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBÈRA, Philippe. Introduction. In: SCHÖNBERG, Arnold. 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