O
AVESSO
DA
METRÓPOLE
–
OUTRA
IDENTIDADE
PAULISTA
NALITERATURA MARGINAL
Márcia Regina Ciscati1
Resumo
O presente artigo é parte dos estudos sobre a história da cidade de São Paulo, neste caso, tendo como
fonte documental precípua a literatura.Trata-se de uma análise sobre um período em que a cidade está
definindo sua feição moderna, industrial, produtiva e mítica. A mítica “terra do trabalho” ou “capital
bandeirante” é aqui abordada por uma análise a contrapelo,numa perspectiva cultural dessa dinâmica
sócio-histórica.
Palavras-chave: História, cidade, literatura, malandragem, urbanização.
Abstract
The present article is part of the studies on the history of the city of São Paulo, in this in case that, having
as main documentary source literature. One is about an analysis on a period in the city is defining its
modern, industrial, productive and mythical aspect, feature. The mythical “land of the work” or
“bandeirante capital” is boarded here for an analysis to the contracoat, in a cultural perspective of this
partner-historical dynamics.
Keywords: History, city, literature, malandragem, urbanization.
Longe está de se constituir em novidade a utilização da literatura como fonte
documental histórica, como nos faz saber tanto uma vasta produção historiográfica, a
qual podemos recorrer com facilidade de acesso, de modo geral, em traduções honestas,
bem como uma, não menos vasta, gama de debates, discussões e ensinamentos sobre o
assunto, produzida por historiadores de diferentes tendências e momentos da
historiografia. 2
Clássicos da literatura, no mundo todo, foram objeto de estudo tanto no que
refere à construção da linguagem em si como na contingência de um artefato
representativo de práticas, costumes, valores e, portanto, um instrumento que pode
ajudar na tarefa de buscarmos empreender uma investigação a determinado passado
histórico, a compor um retrato sobre outras experiências históricas ou, no caso de São
1
Mestre e doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP,
professora da FAM, no curso de Pedagogia.
2
KRAMER, Lloyd S. Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio de Hayden White e Dominick
La Capra. In: HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.131-75.
81
Paulo, sobre outras faces da cidade e suas múltiplas memórias, variados sujeitos e
formas de sociabilidade que, não raro, escapam a uma visão oficial.
A literatura, particularmente para nossos estudos sobre o universo da
malandragem e da boemia na cidade de São Paulo, na primeira parte do século XX,
transformou-se numa privilegiadíssima fonte histórica.
Enquanto construção representativa de uma sociedade ou de uma parcela da
sociedade paulistana, a abordagem hermenêutica empreendida ao referente nos permitiu
um melhor conhecimento de certa experiência social, de uma forma de representação e
de sociabilidade na cidade de São Paulo.
Todavia, autores e obras selecionados para a análise da temática em questão
trazem como personagens vadios, malandros, cafetões e cafetinas, prostitutas,
jogadores, golpistas, trabalhadores braçais. Ou seja, uma variedade de tipos sociais,
todos, não raro, tratados genericamente, tanto pelo discurso da imprensa de época como
pelo discurso de políticos, de “escória social”.
Momentos e experiências, costumes e valores da parcela marginal da sociedade
paulistana compõem as obras discutidas e localizadas entre o ficcional e o
memorialístico. Os aspectos decadentes do processo de crescimento urbano e as zonas
periféricas se desenham em meio à modernização excludente, vincando a primeira parte
do século XX.
Mme. Pommery, de Hilário Tácito , Estórias da boca do lixo, de Ramão Gomes
Portão, e Memórias de Simão, o Caolho, de Galeão Coutinho, são algumas das
produções bastante representativas de uma memória ou uma versão nada edulcorada da
cidade que então se metropolizava.
Prenhes de uma ironia ácida, o deboche presente nessas criações acaba por
fornecer uma crítica à pretensão de modernidade de São Paulo.
Esses escritos, aos quais empreendemos um olhar investigativo, tidos como de
“segunda ordem”, popularescos, folhetinescos, permitem-nos costurar um conhecimento
sobre parcelas e valores sociais não contemplados, ou sem espaço, numa proposta
histórica glorificadora do “espírito bandeirante” e do “triunfo paulista”.
Nesse sentido, é interessante notar que Estórias da Boca do Lixo parece, de um
lado, atestar o fracasso daquele projeto modernizador, já iniciado às avessas, desde o
começo do século XX, e lançado adiante com a pujança cafeeira e com a
industrialização, enquanto, de outro, parece desafiar o ambiente de repressão política, já
82
que é publicado na virada da década de sessenta para setenta (portanto, um escrito da
segunda parte do século XX), no clima do Quinto Ato Institucional:
A „boca do lixo‟ é assim como uma instituição nacional, tão séria
como o Sete de Setembro... os apeteós continuam firmes e as madames
3
funcionam como nunca...
Estórias da Boca... pontuam o alegrão teimoso, a viração de
prostitutas, cafetões, a insistência em viver à noite na cidade policiada e
oprimida dos tempos carrancudos.
Já é do nosso tempo a fama das ruas Aurora e Vitória, onde o amor
era fácil e barato. Amor blenorrágico ,... o martelo de borracha, o dedo na
próstata. Depois houve festa para receber a penicilina. Aqui entre nós, não
falta quem se recorde de alegres visitas à “boca do lixo” nas ruas Itaboca,
Aimorés... E nós, crianças de grupo escolar, cantávamos no pátio
quadrinhas obscenas sem saber porque: “Lá na rua da Itaboca/Já puseram
tabuleta...” A evocação é uma contingência da vida.
Houve um período, recente ainda, em que havia mais poesia na
delinqüência, notadamente no lenocínio. Não proliferavam os bandidos em
guerra de “gangs”, chamando arma de “máquina”... Quinzinho, Hiroito,
Xodó, Bandãozinho, Osny, Meireles, Sarkis, Loschiavo, Carlinhos, ainda não
disputavam o posto pouco nobre de “rei da boca”. Aliás, uma vez o
Quinzinho me puxou pelo braço e falou alto na minha orelha:_ Deixa os
meninos pra lá. Na hora do positivo, quem diz a última palavra é o papai
4
aqui...
De outro lado, Estórias da Boca... ao traçar um quadro representativo em tom
testemunhal da boca do lixo na São Paulo dos anos sessenta, remete, por similitude, ao
cenário presente na produção de Hilário Tácito, Mme. Pommery, datada da segunda
década do século XX e, portanto, no período da pujança da política e economia
cafeeiras.
Ramão G. Portão, embora contextualize sua trama na década de 1960, remete à
primeira metade do século XX, ao ambiente oligárquico que matizava o cotidiano nos
rendez-vouz cidadinos, também apontando, cinicamente, quem seriam os “donos da
boca”:
Não, meus senhores. Os donos da “boca” não eram marmanjos que
vendem e usam maconha, “bolinha” e “picadas”, que assustam o incauto em
vez de atraí-lo com palavras de carinho como as cafetinas francesas, feias e
bajuladoras: _ Voilà, mon chéri!
Os homens falavam de política, do Estado Novo, de mulheres nas
confortáveis salas de estar, bebericando champanha, cerveja
“Cascatinha”(casco escuro, por favor...) ou conhaque Napoleão. Num
3
4
Portão, 15.
Idem, 13.
83
ambiente fraterno não se faltava com respeito: _Como vai o ilustre amigo
5
senador Vergueiro?
Em Mme. Pommery, H. Tácito aponta a “prostituição refinada” do início do
século XX como parte das pretensões modernizadoras e europeizadoras ou
desbotocutisadoras, reinantes, na época, entre as classes dominantes preocupadas com a
imagem da urbe:
... na verdade meus senhores, eu também freqüento o bar do Municipal e
bebo a noite entre luzes e sorrisos, aquela champanha fatal de 30 mil réis a
garrafa, instituição imorredoura de Mme. Pommery ... erguendo a Mme.
Pommery um monumento literário a altura de seus talentos e serviços
prestados a nossa incipiente desbotucutisação e da importância primordial
que exercitou em toda a nossa economia política, social e doméstica... eu,
Hilário Tácito, movido de justificável zelo patriótico e atento a propaganda
6
nacionalista, assentei de emprender este trabalho.
Apontando para a formação de uma sociedade de privilégios, com vícios
bolorentos, como o coronelismo, e com pretensões de modernidade, incluindo o
mimetismo europeu revelado no afrancesamento dos modos, dos gostos e das falas
daquele ambiente oligárquico, H. Tácito destila sua ironia viperina e sua crítica quanto à
preocupação nacionalista e à prostituição de luxo, esta vista como um fator de libertação
dos hábitos primitivos ou desbotucutisação.
As lembranças de uma “boca” com cabarés supostamente refinados, ao menos
afrancesados, cujos frequentadores eram mandantes, donos, chefes políticos, coronéis,
são evocadas por R. G. Portão em Estórias da Boca. No entanto, já haviam sido
reveladas no cenário criado por Hilário Tácito, em Paradis Rerouvè, repleto de
coronéis, prostitutas, cafetinas, políticos e golpistas partilhando dessa ambiência:
...o coronel Pacheco Izidro paga tudo. Tem cinco fazendas! Deputado. Chefe
político... Mme. Pommery deu novos fundamentos a vida procurava um sócio
capitalista. Pinto Gouveia era uma das suas grandes esperanças. Não a
única.Lamentara-se primeiramente o coronel da insipidez dos nossos hábitos
nocturnos, da facilidade com que nos abandonavam as artistas mais
cortejadas e mais bellas. De modo que só se mantinha aqui um meretrício
indigente e réles. Proclamaram os nossos estadistas que não bastava attrair
para aqui os braços extrangeiros. Que é preciso fixá-los, prever tudo... para
os ter em nossa terra, fixos e permanentes... A cidade esta a se transformar a
vista de todo mundo... o Theatro Municipal em breve se inaugurava. O café,
tanto tempo sucumbido, sentia os primeiros estímulos da valorização. De
todos os pontos acorriam à capital fazendeiros... todos endinheirados e
ávidos... de prazer e de fartura. ... hábitos novos e novas instituições tinham,
5
6
Ibid.
Tácito: 1919, 8-9.
84
pois, que surgir forçosamente em todos os órgão da sociedade. ...Nas
cidades pobres e incultas, a vida da mais pintada marafona é uma clausura
verdadeira nalgum triste esconderijo ignorado. Nas metrópoles e nas
capitaes do mundo, as cortezãs de grande estado elegem as assembleas da
mais fina aristocracia para arrastar o esplendor do seu luxo a própria face
das famílias. ... Na história do progresso de São Paulo distingo três fhases, a
partir da chegada de Mme. Pommery, assinalada por tres passos do
mundanismo na sua tendência civilizadora de estreitar quanto possível, a
zona neutra que o extrema de todo comercio ilícito com o santuário familiar:
primeira fhase, primitiva ou dos cafés concertos; segunda fhase,
intermediaria ou do Bar do Municipal; terceira fhase ou contemporânea,
7
atual ou do cinematografho...
Atentemos para o fato de que a literatura ou a produção literária da qual fazemos
uso documental, tida como “marginal”, por não se enquadrar nos cânones literários
vigentes, por ser produzida por autores cuja ocupação principal era, não raras vezes, o
jornalismo, é um escrito vincado com as marcas da escrita corrida, do linguajar direto e
apressado, próprias de uma produção de redação diária.
Em finais da década de 1960, E. Hobsbawn classificava a fonte utilizada para o
estudo do banditismo social como “caprichosa”: tratava-se de poemas e baladas
produzidos no interior de uma ambiência ou vivência dos bandidos ou anedóticos,
representativos de memória pública, pertencentes a uma história recordada, em
contraposição à história oficial dos livros.8
As vantagens quanto ao uso de uma produção literária marginal como fonte
histórica, entretanto, tem sido crescentemente experimentada pelos pesquisadores,
sobretudo àqueles ligados aos estudos culturais e que pretendem maior compreensão
sobre práticas, representações simbólicas, formas de pensamento e vivências cotidianas
que desafiam versões laudatórias ou presas a fórmulas muito tradicionais.9
Entre o romance de costumes, se é que podemos defini-lo assim, de Hilário
Tácito, Mme. Pommery (1919), e as crônicas do repórter da Boca do Lixo, R.G.Portão
(1969), numa distância de cinquenta anos, em meio ao turbilhão veloz que marca as
transformações tanto materiais como sociais o “velho centro”, como “boca do luxo”,
“quadrilátero do pecado”, “boca do lixo”, ou, mais recentemente, “cracolândia”, com
7
Idem, 52-136.
“Pois os bandidos pertencem à história recordada, em contraposição à história oficial dos livros.
Fazem parte da história que é menos um registro de fatos daqueles que os realizaram, quando dos
símbolos dos fatores teoricamente controláveis, mas na prática descontrolados, que moldam o mundo
dos pobres: de reis justos e de homens que levam justiça ao povo.” (Hobsbawn, E.J. Bandidos. Rio de
Janeiro: Forense, 1969, p.135)
9
Chartier, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. M. M. Galhardo. Lisboa:
Difel, 1988.
8
85
seus tipos variados, entre escriturários, cafetões, prostitutas, jogadores, malandros,
moleques de rua e toda a fauna que marca presença nas “letras marginais” da cidade.
Bem verdade, como já aludimos, “letras” não muito caras entre aqueles que se
lançaram à produção de uma literatura intelectualizada, canônica ou reconhecida pela
academia.
Destarte, esses escritos nos são convenientes e, por isso, os escolhemos.
Carregam a marca dos substratos persistentes e desafiadores, dos também duradouros e
constantes anúncios de renovação, transformação, modernidade, prosperidade
econômica, arrojo, trabalho, que vincaram a imagem da “Capital bandeirante”.
A senda percorrida na apreciação crítica desses escritos nos permite chegar a
uma sobreposição de temporalidades sociais, para além, portanto, das contundentes e
velozes transformações. Traços de permanência que marcam a sobrevivência de grupos
sociais marginais, anônimos e comuns, cujas práticas e representações persistem, tais
como os bueiros da cidade que mudam de forma e material, mas sempre serão bueiros e
sempre existirão na cidade, exalando seu cheiro peculiar.
Não se trata, todavia, de procurar o retrato do vivido. Essas criações são, antes
de tudo, emblemáticas, metafóricas, representativas dos contrastes sociais e históricos,
pois remetem ao revés do processo de urbanização, de um lado, e, de outro, ao avesso
da identidade, forjada a partir de esforços de políticos, intelectuais, gestores públicos,
historiadores que atuaram no sentido da criação ou da sustentação das tradições
grandiosas da “locomotiva” do país.10
Nesse sentido, outro autor que gostaríamos de mencionar é Galeão Coutinho,
apontado por Tristão de Athayde e, depois, por J. Ramos Tinhorão como um dos
primeiros escritores de uma linha de ficção folhetinesca, anedótica e popularesca, e que,
ainda segundo Tinhorão, não merecera a devida atenção de historiadores ou críticos.11
Entre o conto e a poesia, desde a década de 1920, é em 1937 que G. Coutinho estreia
10
É vasta a produção historiográfica que discute o forjamento da identidade paulista ou o papel de S.
Paulo na construção da nação. Apontamos, entre outros, Leite, Dante M. O caráter nacional brasileiro –
história de uma ideologia. São Paulo: Ática, 1992; Love, Joseph. A locomotiva. S.Paulo na federação
brasileira. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1982; Morse, Richard. Formação histórica de São Paulo: de
comunidade a metrópole. São Paulo:Difel, 1970; Schwarcz, Lilia. Os guardiões da nossa história oficial.
São Paulo: Idesp, 1989.
11
Tinhorão, José Ramos. O romance popular de ambientes paulista e carioca: Afonso Schmidt e Galeão
Coutinho. In: A música popular no romance brasileiro. São Paulo: 34, 2000, v. II.
86
como romancista, com Memórias de Simão, o Caolho, retomando o estilo picaresco
iniciado por Manoel A. de Almeida.12
As personagens urbanas focalizadas por G. Coutinho compõem o cenário da
outra São Paulo, essa que procuramos mapear. Não a dos grupos organizados de
operários ou movimentos sociais, ou quaisquer outros afirmados em setores bem
delineados e definidos, engajados ou politizados.
Suas personagens compõem o espaço da negação e da negatividade: são
facadistas, pequenos e grandes golpistas, malandros, vadios, desempregados,
subempregados e boêmios. O cotidiano é o de gente pobre ou, como o próprio
personagem narrador Simão diz, Gente da vila, forma nominativa que o desnorteia, por
não poder classificá-la, por representar um outro segmento surgido no espaço urbano,
algo como que a rebarba da sociedade capitalista.
Seus personagens são exemplares paradigmáticos, simbólicos de um cotidiano
incerto, improvisado, cujo jogo de sobrevivência inclui, literalmente, jogar no bicho, na
sorte, no conto do vigário, apostar numa estratégia esperta visando explorar o otário,
como é o caso do vigarista “Jajá”, o Eurípedes Pantoja, de Memórias de Simão, o
caolho, assim apresentado pelo narrador:
o mais curioso tipo de facadista que houve em São Paulo... Nunca teve
ocupação certa. Viveu ao acaso dos expedientes ingratos. Ora incumbido de
descobrir, mediante gratificação, um cachorro de raça de não sei que inglês
rico de Higienópolis; ora passando bilhete de rifa, um revólver, um
gramofone, um relógio, um quadro. Lá uma vez por outra, queria impingir
um capote, último modelo, por uma ninharia. ...Jajá não era vulgar. ...
Pertencia à estirpe peregrina dos engenhosos. ...Dispunha de inteligência e
imaginação. ... Antes da abordagem estudava os hábitos e costumes da
vítima. Nunca improvisou um ataque. Um general em plena campanha, cheio
de malícia... antes de atacar certo capitalista tido e havido por inacessível ao
choro e às lamúrias de quem quer que seja o Pantoja faz uma aposta no Café
Brandão ... Cada um de nós jogou dez mil réis contra um como o “Jajá” não
arrancaria um níquel do ricaço. “Jajá” não só arrancou um níquel,
arrancou um conto de réis. O maior triunfo de sua carreira.... Eurípedes era
um dos nossos e a sua performance, no escritório do milionário, refletia-se
13
na vaidade de todos nós...
Estudando a Belle Époque paulista, Elias T. Saliba inclui tanto Galeão Coutinho
como Hilário Tacito no rol dos autores que produziram uma representação cômica sobre
São Paulo, marcada pela persistência de simbolismos e expressões com forte lastro na
12
13
Idem, p. 405.
Coutinho, 1937: 60.
87
memória coletiva.14 Um grupo que poderíamos considerar, paradoxalmente, os mais
lembrados autores esquecidos. De acordo com T. Saliba, esquecidos não só pela
ausência de enquadramento nos cânones literários, pelo caráter anedótico de seus
escritos e pela formação periodista dos escritores, mas por essa obscura produção
humorística ser marcadamente anárquica, antiprogramática e indisposta a sustentar
quaisquer mensagens políticas, ideológicas, estéticas. 15
Partilhamos com tal leitura, e pensamos que não só se confirma o humor
viperino e anárquico como também um deboche, tanto em relação à questão nacional
quanto ao regionalismo fortemente presente no pensamento político e intelectual
brasileiro, assim como, particularmente paulista: uma forma de afirmação da
grandiosidade e do triunfalismo paulistas, da raça bandeirante responsável pela
expansão das fronteiras e pela verve do trabalhador incansável, do destemor, da altivez
e da raça diferenciada e superior que eram os paulistas. 16
Galeão Coutinho, tanto em Memórias de Simão, o caolho, como em O último
dos morungabas, carrega as tintas quanto ao modo de vida incerto, provisório, dos
personagens que vivem na corda-bamba. Assalariados, desocupados, donas de casa,
golpistas, todos garantem a essência da nacionalidade justamente por esses atributos
“pouco nobres” de “brasilidade”. “Dona Marcolina” é um exemplo paradigmático:
D.Marcolina é brasileira de Quatro Costados. Pais brasileiros,
tataravôs misturados. O tataravô era português; a tataravó, índia pegada a
laço. Esta expressão “pegada a laço” não é regional. Encontro-a em Minas,
na minha terra; encontro-a em Goiás, ouço-a dos velhos parentes de d.
Marcolina. ... Os padres missionários, perdidos por esses sertões sem
princípio, nem fim, conseguem amansar uma horda de tapuios: educam-nos
como podem, afeiçoando-os à vida dos brancos. Vem um português faminto
de mulher ... e casa-se com a botocuda que deixou de ser botocuda porque
sabe ler e escrever, veste-se como gente civilizada. Não importa. Para todo o
sempre, em tom depreciativo, haverá quem diga: “D. Marcolina, com toda
aquela prosa, e no entanto a avó era uma bugra pegada a laço”... O que
importa é que ela traz no sangue rebelde um tal conteúdo de brasilidade, que
a estrangeirada de São Paulo não conseguiu desbrasileirá-la. ... O
nacionalismo de D.Marcolina está na inclinação para o espiritismo, jogo-do17
bicho e cura pelas erva...
14
Saliba. Elias Thomé. A macarrônea dos desenraizados: humoristas em São Paulo. In: Raízes do riso – a
representação humorística na história brasileira: da Belle époque aos primeiros tempos do rádio. São
Paulo: Cia. Das Letras, 2002.
15
Idem, 156.
16
Cf. em Leite, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro... , Schwarcz, Lilia M. O espetáculo das
raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
17
Coutinho, 1937: 160-5.
88
Demonstra-se, veementemente, que a abrangência metafórica assinalada pelas
características das personagens extrapola o regional, o paulista, e remete ao nacional, ao
brasileiro e ao seu caráter. Como parte “desse caráter”, a inclinação natural para o
jogo, para a provisoriedade, para a picardia, todos atributos de uma vida malandra:
... falemos do jogo do bicho. D.Marcolina faz a sua “fezinha” todos os dias.
Manda a empregada jogar. No bairro há um “chalé”. A empregada arrisca
também o seu palpitezinho. ...O jogo do bicho... não existe por acaso.
Corresponde a uma necessidade da alma brasileira, que vive de sonhos e
esperanças ... O jogo do bicho e o espiritismo se parecem... Tanto no
espiritismo como no jogo do bicho, o brasileiro dá expansão à sua índole
sonhadora, sempre a fugir da realidade. ... Por isso, quando a polícia tenta
acabar com esse jogo eu tenho vontade de protestar. ... O brasileiro nasce
18
com vocação para rábula ou para curandeiro...
As duas inclinações do brasileiro, apontadas pelo narrador, resultam, segundo
ele próprio, de uma necessidade de defesa, como um recurso de sobrevivência,
remetendo, novamente, a uma situação de improvisação em que vale tudo, até fingir-se
bacharel, médico, advogado. O importante é a capacidade de picaretear, embrulhar o
outro, ser mais esperto do que o outro: “Num país que é um “vasto hospital” a gente
tem que nascer médico; numa terra onde cada qual procurar embrulhar o outro, a
gente tem que se improvisar bacharel .”19
Em O ultimo dos morungabas, Terêncio e Galdino, personagens principais, são
dois gatunos, mariscadores, malandros, que vivem de expedientes, rolos, pequenos
golpes entre o Rio de Janeiro e São Paulo. O desafio e a marca de suas vidas é resistir
ao trabalho, não ter patrão, nem salário fixo, mas ter dinheiro. Para isso, valem-se do
conto do vigário, das jogatinas e de toda sorte de picardia propícia para a ocasião.
De qualquer forma, interessa-nos que esses autores, considerados de importância
literária menor, bissextos, desenquadrados de escolas literárias, produziram elementos
para que possamos perceber variados modos de interpretação social e histórica sobre a
cidade ou sobre o país, sobre as incongruências ou reveses do sistema capitalista, dos
valores burgueses pretensamente modernos e das aspirações da pequena burguesia
urbana, elementos esses desvinculados, entretanto, de modelos interpretativos criados
no interior de escolas ou tendências literárias, como as correntes do modernismo, por
exemplo.
18
19
Ibidem.
Ibidem.
89
Hilário Tácito, pseudônimo de José Maria de Toledo Malta, em Mme. Pommery,
concentra seu foco na cidade de São Paulo e faz paródia de sua vocação para o
progresso e para a urbanização modernizadora, nesta incluindo a prostituição como
ícone de civilização e da frivolidade dos primeiros tempos do novo regime. O capítulo
quinto do único romance escrito pelo cronista é assim intitulado e iniciado:
De como Mme. Pommery deu novos fundamentos à vida airada
paulistana, revelando engenho arguto e vastíssima sabedoria.
Para que hei de repetir o que está dito? Supponho que já dei
sufficiente idéia do que era naquelle tempo a vida airada de S.Paulo, com
todos os seus desmanchos e absurdos financeiros. Cousas naturaes num paiz
novo e em novas instituições.Não digo que o commercio libertino seja
novidade nestas terras. Não. Cincoenta annos apenas depois do
descobrimento, já o padre Manoel da Nóbrega escrevia a D.João III que
mandasse para cá mulheres, ainda que fossem erradas. Vieram muitas, e
erradissimas. ... o que succede num paiz novo onde tudo cresce e se
transforma á vista d‟olhos, é que nem todas as instituições se podem
transformar e crescer a um tempo e harmonicamnte. Umas vão a vapor;
outras a juntas de bois. D”ahi os disparates: suffragio universal e população
20
de analphabetos; cafés valorisados... e cervejada no alto bordo...
Em Mme. Pommery, em meio à paródia viperina do autor, encontramos o clima
da ambiência da malandragem e da boemia que brota das crônicas do repórter policial
R. G. Portão e das Estórias da Boca do Lixo, publicado cinquenta anos depois. Cenário
inspirador de sambas, romances, crônicas, biografias e memórias dispersas em suportes
variados, cabe aos historiadores buscarem e analisarem esse material, por vezes
desafiador e iconoclasta, permitindo-nos outras construções historiográficas e o
desvelamento de outras feições da cidade:
O glorioso Polytheama era então, e foi por muito tempo, o melhor
theatro de variedades de São Paulo, no gênero Folies-Bergère. Outros lhe
disputaram a primazia: o Moulin Rouge, o El-dorado e, mais tarde, o
Casino. Mas a todos resistia o vetusto barracão, menos ao incêndio
providencial que o devorou. Toda a mocidade hohemia, libertina, elegante
ou perdulária, lá se reunia todas as noites. Começava-se pelo encontro no
Largo do Rosário. Hoje chama-se Praça Antonio Prado. ...O resto, lá se foi,
levado pelo progresso e primazia dos costumes novos. ... Pois era alli, no
Largo do Rosario, ao canto da Casa Selecta, o centro de gravitação de toda
a vida paulistana; vida fácil, vida airada. Lá se ajuntavam a s diversas
21
rodas, de estudantes, de estróinas e de bohemios.
20
21
Tácito, Hilário. Mme. Pommery. São Paulo: Revista do Brasil, 1919.
Ibidem, 17.
90
Parece-nos pertinente defender que, quanto mais nos importarmos e deitarmos
nossa atenção não só às consagradas produções literárias, mas também àquelas
consideradas de pequena importância, no ambiente reconhecidamente literário, bem
como quanto mais investigarmos as construções literárias tidas como marginais, serão
ampliadas as oportunidades de chegarmos mais próximos às sensibilidades, às
sociabilidades e aos valores de uma época, ou seja, à investigação histórica, levando em
consideração a imaginação histórica.22
Os autores aqui analisados fazem parte de uma pesquisa de maior fôlego, que
resultou no livro Malandros da terra do trabalho23, inserida num rol crescente de
estudos que permitem a visibilidade de uma documentação bem variada e, muitas vezes,
dispersa, que inclui contos, crônicas, biografias, romances, imagens, músicas, um
repertório sempre eivado de recursos que nos ajudam a recompor o complexo e o
múltiplo percurso das várias histórias de São Paulo e da vivência cotidiana dos seus
variados setores sociais e, particularmente, ajudam-nos a recompor a formação histórica
da ambiência dos marginalizados, dos malandros, das prostitutas, dos desocupados, dos
jogadores, dos golpistas e de outros mais.
Referências bibliográficas
Chartier, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. M.M.
Galhardo. Lisboa: Difel, 1988.
_____. Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. In: Estudos Históricos.
Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, 1995.
Ciscati, Márcia R. Malandros da terra do trabalho – malandragem e boêmia na cidade
de São Paulo (1930-1950). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001.
Coutinho, Galeão. Memórias de Simão, o caolho. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
_____. O último dos morungabas. São Paulo: Assunção, 1944.
22
23
Kramer, Lloyd, op.cit., 136.
Op. Cit.
91
Foucault, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8.
ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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outra identidade paulista na literatura marginal