Aula 5
Introdução à Filosofia: Ética
FIL028
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J. Rachels, O Desafio do
Relativismo Cultural
“A moralidade se diferencia em cada sociedade
e é um termo conveniente para hábitos
socialmente aprovados.”
(Ruth Benedict, Patterns of Culture, 1934)
J. Rachels, O Desafio do
Relativismo Cultural
(1) Diferentes culturas possuem diferentes códigos
morais
(2) O relativismo cultural
(3) O argumento das diferenças culturais
(4) As consequências do relativismo cultural
(5) Há menos divergências do que parece
(6) Todas as culturas possuem valores em comum
(7) Julgando uma prática cultural como indesejável
(8) Que lições extrair do relativismo cultural
Diferentes culturas possuem
diferentes códigos morais
• A história de Dario, antigo rei da Pérsia
(encontrada em Heródoto, História):
• “Callatians” comiam por costume os corpos de
seus pais mortos.
• Gregos cremavam os mortos.
Diferentes culturas possuem
diferentes códigos morais
• A história dos esquimós:
• O homem geralmente possui mais de uma
esposa e deve dividi-las com seus convidados,
como um sinal de hospitalidade.
• Relatos mostram também que o infanticídio
era prática comum entre esquimós.
O Relativismo Cultural
Tese do relativismo cultural (moral):
“Os costumes das diferentes sociedades são tudo o que
existe. Estes não podem ser chamados de "corretos" ou
"incorretos", pois isso implica que temos um padrão
independente de certo e errado pelo qual eles podem
ser julgados. Mas tal padrão não existe; todo padrão
está atrelado à cultura.” (p.18)
O Relativismo Cultural
1. Diferentes sociedades possuem diferentes códigos morais.
2. O código moral de uma sociedade determina o que está certo dentro
daquela sociedade, ou seja, se o código moral de uma sociedade diz que
determinada ação está certa, então a ação está certa, pelo menos naquela
sociedade.
3. Não existe um padrão objetivo que se possa ser empregado para julgar o
código de uma sociedade como melhor do que outro.
4. O código moral de nossa própria sociedade não possui um status especial:
é apenas um entre muitos.
5. Não existe uma "verdade universal" na ética, ou seja, não há verdades
morais que são tomadas por todas as pessoas (ou sociedades) em todos os
tempos.
6. É mera arrogância nossa tentar julgar a conduta de outras pessoas (ou
sociedades). Deveríamos adotar uma atitude de tolerância em relação às
práticas de outras culturas.
O Relativismo Cultural
• Objetivo de Rachels: mostrar que aquelas
proposições são independentes umas das
outras. As proposições não estão totalmente
concatenadas: algumas podem ser
verdadeiras e outras falsas.
O argumento das diferenças
culturais
1. Os Gregos acreditavam que era errado comer os mortos, enquanto os
Callatians acreditavam que era certo fazê-lo.
2. Assim, comer os mortos nem é objetivamente certo nem é objetivamente
errado. É meramente uma questão de opinião que varia de cultura para
cultura.
Ou, alternativamente:
1. Os esquimós não vêem nada de errado no infanticídio, enquanto os
americanos acreditam que este é imoral.
2. Assim, [o infanticídio] nem é objetivamente certo nem é objetivamente
errado. É meramente uma questão de opinião, que varia de cultura para
cultura.
O argumento das diferenças
culturais
• Estes argumentos são casos especiais de um
argumento mais geral, que afirma:
1. Diferentes culturas possuem diferentes códigos
morais.
2. Assim, não há "verdade" objetiva na moralidade.
Certo e errado são apenas questões de opinião, e as
opiniões variam de cultura para cultura. (pp.19-20)
O argumento das diferenças
culturais
• O argumento é válido?
• O que é um argumento válido?
Um argumento é válido quando é impossível
que a(s) premissa(s) seja(m) verdadeira(s) e a
conclusão falsa. Em outros termos, em um
argumento válido, dada a premissa, a conclusão
necessariamente se segue.
O argumento das diferenças
culturais
1. Diferentes culturas possuem diferentes códigos morais.
2. Assim, não há "verdade" objetiva na moralidade. Certo e errado são apenas
questões de opinião, e as opiniões variam de cultura para cultura. (pp.19-20)
Neste argumento, a conclusão se segue necessariamente da premissa? Não.
A premissa pode ser verdadeira e a conclusão falsa. Poderia ser o caso (é
efetivamente o caso) que diferentes culturas possuíssem diferentes códigos
morais e, ainda assim, haver uma verdade objetiva na moralidade. Uma das
culturas poderia estar errada.
A premissa (1) descreve um estado de coisas no mundo: o fato de que há
diferentes códigos morais. A conclusão (2), por outro lado, afirma algo
totalmente distinto: não exatamente que há diferentes códigos morais, mas
que não pode haver um único código moral que seja universal e objetivo.
O argumento das diferenças
culturais
• Isto não quer dizer que a proposição que figura na conclusão
daquele argumento (“não há ‘verdade’ objetiva na
moralidade. Certo e errado são apenas questões de opinião, e
as opiniões variam de cultura para cultura”) não possa ser
verdadeira.
• O que Rachels pretende mostrar é que aquele argumento não
é válido. Portanto, para justificar a proposição que figura na
conclusão daquele argumento, outras proposições precisam
ser apresentadas.
As consequências do relativismo
cultural
• Não poderíamos mais dizer que os costumes
de outras sociedades são moralmente
inferiores aos nossos próprios. (p.21)
• Como uma consequência disto, poderíamos
ser impedidos (moralmente) de criticar os
outros.
As consequências do relativismo
cultural
“O relativismo cultural sugere um simples teste para
determinar o que é certo e o que é errado: tudo o que
o indivíduo precisa fazer é perguntar se a ação está de
acordo com o código da uma sociedade ou não.
Suponha que em 1975 um residente da África do Sul
estivesse em dúvida se a política do apartheid de seu
país – um sistema rigidamente racista – seria
moralmente correta. Tudo o que ele teria de fazer seria
perguntar se a política estava de acordo com o código
moral de sua sociedade.” (p.22)
As consequências do relativismo
cultural
• Mas, o que parece ser ainda mais problemático: o relativismo
cultural (moral) não se limita a impedir-nos de criticar os
códigos de outras sociedades (de nossa perspectiva
individual). Pela mesma razão, ele não nos permite criticar a
nossa própria sociedade. Se certo e errado são relativos à
cultura, isto vale tanto para a nossa própria cultura quanto
para as outras.
• Tal implicação do relativismo cultural é perturbadora porque
poucos de nós pensam que o código moral de nossa
sociedade é perfeito. Não é difícil pensar em várias maneiras
de o aperfeiçoar.
As consequências do relativismo
cultural
• A ideia do progresso moral é posta em dúvida.
(p.22)
• Mas pensamos que algumas mudanças em nossa
sociedade são para melhor. Ex.: o papel da
mulher na sociedade ocidental, a escravidão, o
preconceito étnico (disseminado em algumas
culturas, em contextos históricos específicos), etc.
As consequências do relativismo
cultural
•
Mas como tais mudanças seriam possíveis, se o relativismo cultural (moral)
estiver correto?
Se os hábitos passados estavam de acordo com os padrões culturais do seu
tempo, então o relativismo cultural diria que é um erro julgá-los pelos padrões de
uma época diferente. A sociedade do século XVIII era diferente da que temos
agora. Afirmar que fizemos progressos implica o juízo de que a sociedade de hoje
é melhor, e isso é justamente o tipo de juízo transcultural que, segundo o
relativismo cultural, é impossível. (p.22)
Até mesmo a nossa concepção de reforma social terá que de ser reconsiderada.
Se o relativismo cultural for verdadeiro, uma reforma nos hábitos de uma
sociedade só poderia ser feita apelando-se para os próprios ideais e tradições da
sociedade em questão. O único argumento disponível seria algo como: vivemos
atualmente de tal forma que nossos ideais e tradições verdadeiros são esquecidos
ou deturpados. Mas ninguém poderia contestar os ideais em si, pois esses ideais
são por definição corretos.
Há menos divergências do que
parece
• Ex.: Os valores dos esquimós talvez não sejam
tão diferentes dos nossos. Acontece apenas
que a vida os obriga a escolhas que nós não
temos de fazer.
Há menos divergências do que
parece
• Exemplo, p.23: Imaginemos uma cultura na qual as pessoas acreditam
ser errado comer vacas. Mesmo que não haja comida suficiente, as
vacas são intocáveis. Tal sociedade pareceria ter valores muito
diferentes dos nossos. Mas será que tem? Sem perguntarmos pela
razão por que tais pessoas se recusam a comer vacas, não poderemos
saber. Suponhamos que é por acreditarem que depois da morte as
almas dos seres humanos habitam os corpos dos animais,
especialmente os corpos das vacas, podendo uma vaca ser a alma da
avó de alguém.
• Vamos continuar a dizer que os valores deles são diferentes dos
nossos? Não. A diferença está em outro lugar. A diferença reside nos
nossos sistemas de crenças, e não nos nossos valores. Concordamos
que não devemos comer a nossa avó; limitamo-nos a discordar sobre
se a vaca é (ou poderia incorporar) a nossa avó.
Todas as culturas possuem valores
em comum
“Existe um ponto teórico geral para ser observado aqui, a saber,
que existem algumas regras morais que todas as sociedades
devem ter em comum, porque são necessárias para a existência
da sociedade. As regras contra a mentira e o assassinato são dois
exemplos. Na verdade, realmente encontramos essas regras em
vigência em todas as sociedades viáveis. As culturas podem se
diferenciar no que elas consideram como exceções legítimas às
regras, mas esta divergência ocorre sob um pano de fundo de
convenções em questões mais amplas. Portanto, é um erro
superestimar o número de diferenças entre as culturas. Nem
toda regra moral pode variar de uma sociedade para outra.”
(p.26)
Julgando uma prática cultural
como indesejável
• Ex. Excisão ou mutilação genital feminina:
Vamos supor que estamos inclinados a afirmar que a
excisão é má. Estaríamos nós apenas a impor os
padrões da nossa própria cultura? Se o relativismo
cultural estiver correto, isso é tudo quanto podemos
fazer, pois não há um padrão culturalmente neutro a
que possamos apelar. Mas, será isto verdade?
Julgando uma prática cultural
como indesejável
Razões contra tal prática:
É dolorosa e tem como resultado a perda
permanente do prazer sexual. Os seus efeitos, a
curto prazo, incluem hemorragias, tétano e
septicemia. Por vezes, a mulher morre. Os
efeitos de longo prazo incluem infecção crônica,
cicatrizes e dores contínuas.
Julgando uma prática cultural
como indesejável
• Qual é, pois, o motivo pelo qual se tornou uma
prática social comum?
Não é fácil responder. A excisão não tem benefícios
sociais aparentes. Ao contrário do infanticídio entre os
esquimós, não é necessária à sobrevivência do grupo.
Nem é apenas uma questão religiosa. A excisão é
praticada por grupos de várias religiões.
Julgando uma prática cultural
como indesejável
Razões normalmente apresentadas a favor de tal prática:
(i) As mulheres incapazes de prazer sexual são supostamente menos
propensas à promiscuidade; assim, haverá uma ocorrência menor de
gravidez indesejada em mulheres solteiras.
(ii) As esposas, para quem o sexo se torna apenas um dever, têm
menor probabilidade de ser infiéis aos maridos; e uma vez que não
irão pensar em sexo, estarão mais atentas às necessidades dos
maridos e filhos.
(iii) Pensa-se, por outro lado, que os maridos apreciam mais o sexo
com mulheres que foram objeto de excisão.
(iv) Os homens não querem mulheres que não foram objeto de
excisão.
(v) É uma prática realizada desde tempos imemoriais.
Julgando uma prática cultural
como indesejável
• O que podemos extrair deste tipo de raciocínio e
investigação?
Seria fácil, e talvez um pouco arrogante, ridicularizar tais
argumentos. Por outro lado, podemos notar uma
característica importante na linha de raciocínio por trás
deles: os argumentos tentam justificar a excisão mostrando
que a prática é benéfica: homens, mulheres e respectivas
famílias são alegadamente beneficiados quando as
mulheres são objeto de excisão.
Julgando uma prática cultural
como indesejável
• Podemos agora identificar um padrão comum
(independente) de raciocínio e perguntar se a prática
promove ou é um obstáculo ao bem-estar das
pessoas cujas vidas são por ela afetadas. E, como
corolário, podemos perguntar se há um conjunto
alternativo de práticas sociais com melhores
resultados na promoção do seu bem-estar. Se assim
for, podemos concluir que a prática em vigor é
deficiente. (p.29)
Julgando uma prática cultural
como indesejável
• Por que razão, então, pessoas prudentes
podem ter relutância em criticar outras
culturas?
Julgando uma prática cultural
como indesejável
• Primeiro, há uma apreensão compreensível quanto a interferir nos
hábitos das pessoas de outras culturas. Os europeus e os seus
descendentes culturais da América têm uma história pouco honrosa de
destruição de culturas nativas em nome do cristianismo e do
iluminismo. Assim, alguns se recusam a fazer juízos negativos sobre
outras culturas, especialmente aquelas que se assemelham às
prejudicadas no passado.
• Mas há uma diferença entre (a) considerar uma prática cultural
deficiente, e (b) pensar que deveríamos anunciar o fato, conduzir uma
campanha, utilizar de pressão diplomática ou enviar as forças armadas.
No primeiro caso, tentamos apenas ver o mundo com clareza, do
ponto de vista moral. O segundo caso é completamente diferente. Por
vezes poderá ser correto "fazer alguma coisa", mas outras não.
Julgando uma prática cultural
como indesejável
• Em segundo lugar, as pessoas sentem também que
devem ser tolerantes face a outras culturas. A tolerância
é uma virtude: uma pessoa tolerante está disposta a
viver em cooperação pacífica com quem encara as coisas
de forma diferente.
• Mas nada na natureza da tolerância exige que
consideremos todas as crenças, todas as religiões e todas
as práticas sociais igualmente admiráveis.
Julgando uma prática cultural
como indesejável
• Terceiro, as pessoas podem sentir-se relutantes em
julgar por que não querem mostrar desprezo pela
sociedade criticada.
• Mas, condenar uma prática em particular não é dizer
que uma cultura é no seu todo desprezível ou
inferior a qualquer outra cultura.
Que lições extrair do relativismo
cultural
(1) p.30: o relativismo cultural alerta-nos,
oportunamente, para os perigos de pressupor que
todas as nossas preferências estão fundadas numa
espécie de padrão racional absoluto. Na verdade,
muitas das nossas práticas são particularidades
exclusivas da nossa sociedade, e é fácil perder de vista
esse fato. Ao recordar-nos isso, a teoria presta um bom
serviço.
Que lições extrair do relativismo
cultural
• O relativismo cultural começa com a preciosa
observação de que muitas das nossas práticas
são apenas isto: produtos culturais. Mas
depois engana-se, ao inferir do facto de
algumas práticas serem assim que todas têm
de ser assim. (p.31)
Que lições extrair do relativismo
cultural
(2) p.31: A segunda lição relaciona-se com a
necessidade de “manter a mente aberta”. No processo
de crescimento, cada um de nós adquiriu algumas
convicções fortes: aprendemos a aceitar alguns tipos de
conduta e a rejeitar outros. Podemos, ocasionalmente,
ver essas convicções postas à prova. Por exemplo,
podem ter-nos ensinado que a homossexualidade é
imoral, e podemos sentir-nos muito desconfortáveis
junto de homossexuais. Então alguém sugere que isto
pode ser um mero preconceito.
J. Rachels, O Desafio do
Relativismo Cultural
Conclusão:
• Podemos compreender a atração do relativismo cultural,
apesar de a teoria ter sérias insuficiências. É uma teoria
atraente porque se baseia na observação pertinente de que
muitas das práticas e atitudes por nós consideradas naturais
são na verdade apenas produtos culturais.
• A despeito disso, vimos que a teoria (geralmente) repousa
sobre um argumento inválido, que as suas consequências a
tornam implausível, e ainda que a dimensão do desacordo
moral talvez seja bem menor do que o relativismo cultural
pressupõe.
Leitura para a próxima aula:
• Platão, A República, livro II.
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