A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Escola Superior de Educação de PaulaFrassinetti
Pós-Graduação em Educação Especial
A Arte na Sobredotação e
a Sobredotação na Arte
uma estratégia plástica de intervenção
Marcela Sá Rios Pinho
Porto, Julho de 2006
1
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
A todas as crianças para quem a arte é
lugar privilegiado de talentos, emoções e afectos.
À Professora Doutora Helena Serra,
pela sabedoria e rigor,
pela imensa disponibilidade e
pelo permanente incentivo.
Aos docentes e colegas deste curso,
pela partilha de vivências e saberes.
Aos meus amigos, aos meus pais e aos meus avós,
à minha irmã e ao Miguel,
pela compreensão, pelo apoio e pelo carinho.
2
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
“ Os sistemas educativos formais são muitas vezes,
acusados e com razão, de limitar o desenvolvimento pessoal,
impondo a todas as crianças o mesmo modelo cultural e
intelectual sem ter em conta a diversidade dos talentos
individuais. Tendem, cada vez mais, por exemplo, a privilegiar
o desenvolvimento do conhecimento abstracto, em detrimento
doutras qualidades humanas como a imaginação, a aptidão
para comunicar, o gosto pela animação do trabalho em
equipa, o sentido do belo, a dimensão espiritual e a destreza
manual.”
(Jacques Delors, Relatório da UNESCO “Educação para
o Século XXI”, cit. in Ministério da Educação, 1998:4)
3
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
ÍNDICE
Introdução
06
I PARTE
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
CAP. 1 - Conceito de Sobredotação
09
1.
Aproximação conceptual
09
2.
Sobredotação e Inteligência
12
2.1. Conceito de Inteligência
12
2.2. Modelos de Inteligência
15
2.2.1. Abordagem Clássica
16
2.2.2. Teoria das Inteligências Múltiplas
17
CAP. 2 - Características do Sobredotado
22
1. Aproximação às idiossincrasias
22
2. Aproximação às dissincronias
27
3. Desenvolvimento sócio-emocional
30
CAP. 3 - Arte e Sobredotação
35
1. O lugar da arte no desenvolvimento infantil
35
2. O papel da expressão plástica no desenvolvimento infantil
39
3. A criança sobredotada no domínio das artes plásticas
42
4. Estratégias de intervenção
46
4
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
II PARTE
INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA
CAP. 1 - Aspectos Metodológicos
51
1.
Problemática e questões de investigação
51
2.
Objecto de estudo e objectivos do estudo
52
3.
Formulação de hipóteses
53
4.
Delimitação de conceitos
53
5.
Metodologia adoptada
55
6.
Definição da amostra e população alvo
55
CAP. 2 - Condições de Realização
1.
Estratégias a implementar
57
2.
Procedimentos, instrumentos de pesquisa e recolha de dados
61
3.
Previsão dos resultados
62
Considerações Finais
63
Bibliografia
Anexos
5
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
INTRODUÇÃO
O nosso projecto final da Pós-Graduação em Educação Especial incide sobre a
sobredotação como temática-alvo em análise, cujos contornos mais específicos
remetem para o contributo da expressão plástica, nomeadamente, do desenho e da
pintura , no mundo afectivo-relacional da criança sobredotada.
A orientação temática do projecto a realizar foi sensível ao interesse pessoal
depositado em várias áreas aparentemente díspares, mas que se conjugam numa
finalidade única. Assim, o interesse da educação especial, no que concerne à área
cognitiva, mais especificamente à problemática da sobredotação, constitui a
oportunidade de conciliarmos domínios de interesse, investigação, formação e prática:
a filosofia, a psicologia e a pintura.
Por outro lado, para esta escolha terá contribuído a constatação de que a
sobredotação é, talvez, uma das problemáticas mais esquecidas no cômputo geral das
Necessidades Educativas Especiais. Como nos diz Falcão (1992:15), as crianças
sobredotadas,
Apesar de constituírem ou poderem vir a constituir um dos nossos maiores
recursos naturais, ‘andam por aí…’, mais prejudicadas do que beneficiadas pelos
dotes que têm. Muitas vezes acabam mesmo por ser vítimas do seu real potencial
criativo, do seu imenso poder crítico, da sua expressiva capacidade de liderança,
da sua delicada sensibilidade às injustiças, da sua coragem, mesmo, para remar
contra a maré!
Na verdade, com demasiada frequência, assistimos, na realidade escolar e,
mesmo na sociedade em geral, a um esquecimento daqueles que se destacam sob o
ponto de vista de qualquer talento específico. Parece tratar-se, pois, de uma estratégia
incontornável, diante de um sentimento de impotência de pais e educadores que, não
obstante a ânsia de ajudar, não sabem como o fazer ou a quem solicitar ajuda.
Todavia, tal como defende Winner (1996:11),
Nenhuma sociedade se pode dar ao luxo de ignorar os seus membros mais
dotados, e todos devem pensar seriamente em como encorajar e educar esse
talento.
6
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
É neste sentido que as investigações propostas tentarão clarificar as
idiossincrasias dos mais dotados, devolvendo-lhes o lugar de atenção devida no
âmago das várias Necessidades Educativas Especiais. Assim, por constituir um tema
tão polémico quanto fascinante, a sobredotação será alvo deste estudo, tendo em
vista melhorar o nosso nível de intervenção junto de um grupo de crianças que
percebemos existir, esporadicamente, nas nossas salas de aula e às quais não é dada
uma resposta educativa satisfatória, como seria desejável (Vilas Boas e Peixoto,
2003:15).
No que concerne aos aspectos legais, o Despacho Normativo nº 50/20051 de 9
de Novembro, emanado recentemente do Ministério da Educação, vem dar sentido à
criação de estratégias de enriquecimento no Ensino Básico, para posteriores
conclusões e incentivos a projectos a realizar na escola. O ponto um do artº 5 vem,
finalmente, consignar a necessidade de implementação de planos de desenvolvimento
aplicáveis a alunos com capacidades excepcionais de aprendizagem, entendendo por
plano de desenvolvimento o conjunto das actividades concebidas no âmbito
curricular e de enriquecimento curricular, desenvolvidas na escola ou sob sua
orientação, que possibilitem aos alunos uma intervenção educativa bem sucedida,
quer na criação de condições para a expressão e desenvolvimento de capacidades
excepcionais quer na resolução de eventuais situações problema.
A nossa pesquisa pretende ainda desviar o foco da problemática cognitiva da
sobredotação para o domínio emocional, afectivo e relacional, tendencialmente
camuflado, que parece indiciar alguns problemas e, consequentemente, exigir uma
determinada postura por parte dos agentes educacionais destas crianças. Com este
propósito, enfatizamos um dos vários mitos que Winner (1996:22) considera patentes
na sociedade acerca da temática da sobredotação, designadamente a ideia errónea
de que a criança sobredotada constitui um modelo de boa adaptação social e de
saúde psicológica, contrariando, assim, as conclusões de Terman2.
Ora, dado que vários estudos recentes chamam a atenção para os problemas
emocionais experienciados pelos alunos sobredotados e talentosos, tais como sub-
1
Surge em desenvolvimento das principais orientações e disposições relativas à avaliação da
aprendizagem no Ensino Básico que se encontram consagradas no Decreto-Lei nº6/2001, de 18 de
Janeiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 209/2002, de 17 de Outubro.
2
Psicólogo que iniciou, em 1920, na Universidade de Stanford, a investigação no campo dos
sobredotados. Realizou um estudo longitudinal em mais de 1500 crianças de elevado QI e concluiu que
estas constituem um modelo da saúde psicológica.
7
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
rendimento académico (Alencar & Virgolim, 1999; Rimm, 1991; cit. in Alencar e Fleith,
2001:106), suicídio (Cross, Cook & Dixon, 1996; Deslisle, 1986; Fleith, 1998; Hayes &
Sloat, 1990; cit. in Ibidem) e isolamento social (Silverman, 1993b; cit. in Ibidem), entre
outros, afigura-se-nos pertinente atentar, não apenas nas necessidades académicas e
intelectuais, mas também nas necessidades sociais e emocionais dos mais talentosos.
Eis, por ventura, aquilo que nos parece ser a chave para a prevenção ou
minimização de muitos dos problemas que, em contexto escolar, surgem associados à
sobredotação e urge aqui evocar: a inadiável tomada de consciência por parte de
professores e família de que a criança talentosa necessita de um acompanhamento
adequado, que exige, necessariamente uma aproximação àquilo que ela é, pensa e
sente. E não será a expressão plástica, nas suas múltiplas facetas da cor, da forma,
do movimento e da textura, um meio de acesso privilegiado ao mundo tão próprio da
criança sobredotada?
O nosso estudo está dividido em duas partes. Na primeira faremos um
enquadramento teórico do tema em estudo, onde serão abordados alguns dos
conceitos básicos inerentes à sobredotação, de acordo com a perspectiva de vários
autores. Incidiremos sobre as características manifestadas pelas crianças e jovens
sobredotados – idiossincrasias e dissincronias –, com especial destaque sobre os
aspectos sócio-emocionais do seu EU. Para além disso, concedemos análise
significativa ao papel da arte, em geral, e da expressão plástica, em particular, no
desenvolvimento das crianças, remetendo, em última análise para as características
do talento artístico evidenciado por algumas. Finalizamos a primeira parte com uma
incursão nas possíveis estratégias de intervenção que utilizam a expressão plástica
como ferramenta primordial. Na segunda parte – parte empírica – abordaremos os
procedimentos metodológicos utilizados numa hipotética pesquisa, e consideraremos
algumas expectativas face a possíveis resultados.
8
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
I PARTE
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
CAP. 1 - Conceito de Sobredotação
1.
Aproximação conceptual
A temática da sobredotação não é alheia a alguma polémica instigada pela
falta de unanimidade quanto à questão da delimitação semântica do próprio conceito.
Em
literatura
específica,
verificamos
que
a
palavra
‘sobredotado’
remete
3
frequentemente para termos, como, ‘criança prodígio’, ‘idiot savant’ , ‘criança precoce’,
‘criança talentosa’, ‘criança bem dotada’, ‘criança excepcionalmente dotada’ e ‘génio’.
Partilhando
a
concepção
de
Freeman
e
Guenther
(2000:23-24),
consideraremos o termo ‘sobredotado’ relativo a indivíduos que demonstram níveis de
desempenho excepcionalmente altos, quer numa amplitude de realizações, quer numa
área específica delimitada, e ainda aqueles cuja realização de testes não tenha
granjeado o reconhecimento da excelência do seu potencial. Assim, adoptaremos com
sentido análogo os termos ‘sobredotado’, ‘dotados’, ‘bem-dotados’, ‘talentosos’ e ‘mais
capazes’. Salientamos que o conceito de ‘génio’ é o que mais se distancia do nosso
enfoque, porquanto, constitui uma designação confinada à idade adulta e a sujeitos
que, pelo seu legado original, são dignos de louvor e reconhecimento social. Por outro
lado, o conceito revela-se redutor, pois, como considera Hollingworth (cit. in Lombardo,
1997:24), para se ser denominado ‘génio’ é necessário, pelo menos, um Q.I. de 180, o
que se encontra num sujeito entre um milhão.
A análise do conceito de ‘sobredotação’ implica a reflexão em torno de
algumas ideias erróneas que, segundo Winner (1996:19-23), têm vindo a proliferar na
sociedade, dificultando a apropriação do verdadeiro significado daquele termo e, nesta
medida, comprometendo a própria intervenção junto dos mais talentosos. Para a
3
Idiota Sábio - criança que se caracteriza por possuir uma habilidade superior numa área específica,
manifestando um atraso significativo nas outras áreas do desenvolvimento (normalmente o QI varia entre
40 e 70).
9
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
autora, há que empreender esforços, no sentido de destruir os seguintes mitos:
primeiro – a criança sobredotada possui um potencial intelectual geral; segundo – não
há distinção entre talentosos e sobredotados, dado considerar-se que as crianças
sobredotadas na área atlética ou artística não manifestam diferenças relativamente às
sobredotadas nas áreas académicas, relativamente à precocidade, à insistência em se
desenvencilharem sozinhas e à enorme sede de conhecimento; terceiro – ser
sobredotado exige um Q.I. global excepcional; quarto e quinto – dominância de
factores, ou inatos, ou adquiridos, como aspectos etiológicos da sobredotação, em
detrimento da interacção biologia-meio; sexto – as crianças sobredotadas resultam do
desejo impulsivo de pais que ambicionam o sucesso dos filhos; sétimo – a criança
sobredotada constitui um modelo de saúde psicológica e de boa adaptação social;
oitavo – todas as crianças são sobredotadas; nono – uma criança sobredotada tornarse-á, no futuro, um adulto proeminente e criador.
Em termos conclusivos, Winner (1996:23-24) enfatiza a necessidade de olhar a
sobredotação para lá destes falsos conceitos imbuídos de conotação intelectual,
emocional e política, o que abre para as seguintes conclusões: uma criança pode ser
sobredotada numa área, mas mediana ou até possuir dificuldades de aprendizagem
noutra; ter um Q.I. elevado é irrelevante, no que se refere à sobredotação para a arte
ou para a música; o cérebro dos sobredotados é atípico; a família possui um papel
mais importante que a escola no que concerne ao desenvolvimento dos dons; a
sobredotação pode conduzir à depressão ou ao isolamento social; é possível prever
mais fielmente o futuro de uma criança sobredotada, na fase adulta, mais pelas
características de personalidade e não tanto pelo grau da sua sobredotação.
A teoria de Renzulli (1978), pela consistência das suas propostas e ainda pelo
consenso que tem gerado no seio da comunidade científica actual, afigura-se-nos de
abordagem pertinente e de critério de orientação conceptual no decurso das nossas
pesquisas. Para o autor americano (cit. in Lombardo, 1997:25), o conceito de
sobredotação remete para a necessária articulação entre três dimensões – ‘três anéis’
– que se mantêm estáveis ao longo da vida do indivíduo: ‘aptidão’ acima da média,
‘criatividade’ e ‘motivação’ elevadas. Deste modo, as crianças com talento são aquelas
que possuem, ou são capazes de desenvolver, um conjunto de traços e aplicá-los a
qualquer área potencialmente valiosa de realização humana. Para lá da aptidão
cognitiva elevada, factores como a criatividade e o envolvimento nas tarefas surgem,
assim, associados ao comportamento do sobredotado. Por outro lado, a sua
10
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
perspectiva conceptual enfatiza o factor ‘criatividade’, porquanto defende que os
comportamentos dos sobredotados não têm necessariamente de se desenvolver em
pessoas com elevado Q.I..
Posteriormente, a equipa de Renzulli, mais concretamente, Mönks, em 1992
(Serra et al., 2004:51), veio completar este modelo dos três anéis, introduzindo o papel
do meio ambiente – família, escola e grupo de pares – como factor desencadeador do
desenvolvimento do potencial de sobredotação. Perspectiva o desenvolvimento da
criança sobredotada no âmbito de um desenvolvimento psicológico que se patenteia
no decurso do ciclo vital e dos processos de interacção subjacentes. Por este motivo,
afirma no Documento 1248 emitido pelo Conselho Europeu (cit. in Mönks, 1996:16):
A legislação deve reconhecer e respeitar as diferenças individuais. Crianças
altamente
sobredotadas,
como
com
outras
categorias,
necessitam
de
oportunidades de educação adequadas para desenvolver por inteiro as suas
potencialidades”.
A sua proposta, por um lado, em vez de referir a ‘aptidão acima da média’,
enfatiza as ‘grandes habilidades intelectuais’ e, por outro, realiza algumas alterações
conceptuais na teoria de Renzulli: a motivação inclui compromisso de dever, a
perseverança, a procura do risco e uma perspectiva orientada para o futuro (Benito &
Alonso, 2004A:72).
A natureza psicossocial do conceito de sobredotação está também presente na
concepção apresentada por Tannenbaum (1986). Na esteira de Renzulli, este autor
conceptualiza a preponderância da motivação, mas acrescenta a formação de um
auto-conceito estável e outros factores inerentes a interesses académicos/artísticos e
oportunidades promotoras da expressão das capacidades. Tannenbaum (Ibidem)
propõe uma definição psicossocial de sobredotação que considera a excelência como
produto de uma sobreposição de cinco factores: capacidade geral (factor ‘g’,
mensurável por meio de testes); capacidade especial, atitudes e habilidades especiais;
factores não intelectuais, como a força pessoal e a dedicação; factores ambientais que
proporcionam estímulo e apoio; factores fortuitos, ou seja, circunstâncias imprevistas
na estrutura de oportunidades e no estilo de vida habitual.
11
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Em suma, a nossa linha de análise da sobredotação pretende seguir,
fundamentalmente, os contributos legados pelos vários autores referenciados, com
especial destaque para a via teórica inaugurada por Renzulli e cujos percursores
tenderam a potenciar. Trata-se, assim, de procurar relevar o que no comportamento
do sobredotado é lugar manifesto de aptidão, criatividade e motivação, o que constitui
ponto de partida imprescindível a uma análise mais cuidada das suas características
expressivas – no mundo da arte e no mundo afectivo-relacional.
2.
Sobredotação e Inteligência
Atendendo às várias aproximações conceptuais referenciadas anteriormente,
que, de um modo geral, fazem corresponder à sobredotação um desenvolvimento que
se expressa, normalmente, através de elevados níveis de capacidades – cognitivas,
criativas, académicas, intra e interpessoais –, urge esclarecer a intrincada relação que
se estabelece inevitavelmente entre sobredotação e inteligência, à luz de alguns
conceitos, princípios e modelos explicativos. Nesta medida, é importante considerar
que a evolução do conceito de sobredotação ocorreu, ao longo da história do
conhecimento humano, a par de mutações conceptuais em torno da natureza e
estrutura da inteligência.
2.1.
Conceito de Inteligência
O interesse revelado pelo homem acerca da inteligência como “esse não sei
quê através do qual exprime a sua diferença em relação aos seres que o rodeiam”
(Richard; cit. in Jacquard, 1979:148), antecede o nascimento das ciências sociais e
humanas, pois remonta aos primórdios da humanidade, em que o ser humano regia a
sua vida pelas explicações de ordem mitológica.
Da vasta panóplia de mitos que fazem parte integrante da herança cultural do
ocidente, o Mito de Prometeu inaugura a tentativa de explicação para esta capacidade
humana tão complexa, a inteligência. Segundo o relato, aquela divindade grega terá
roubado o fogo, que era de uso exclusivo dos deuses do Olimpo e ofereceu-o aos
seres humanos. Júpiter, encolerizado, ordenou que Prometeu fosse agrilhoado e que
uma águia lhe comesse o fígado, o qual crescia ininterruptamente. Todavia, Prometeu
conseguiu salvar-se graças a Hércules, que mata a águia.
12
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Nesta história, o fogo que a divindade oferece aos seres humanos
representaria a capacidade para intervir e transformar o meio, para produzir
conhecimento e transmiti-lo de geração em geração. O fogo seria a inteligência, que
compensaria a humanidade da sua fragilidade física: não somos os animais mais
fortes e os mais ágeis, mas é nessa consciência da finitude e indigência que reside a
nossa força. Tal significa que a inteligência veio possibilitar a superação destas
limitações, permitindo aos seres humanos conceber formas mais adaptadas de estar
no mundo – cultivar os campos, projectar cidades, voar e navegar, criar normas e
regras de convivência, produzir teorias e construir utensílios.
No âmbito dos estudos da Psicologia, a inteligência surge, não só como uma
das problemáticas mais fascinantes, mas também como umas das mais controversas,
pois, apesar da sua grande popularidade, é um conceito muito genérico, ambíguo e de
difícil definição (Richardson, 1991; cit. in Almeida, 1994:17).
O significado etimológico do termo ‘inteligência’ radica na junção dos termos
latinos ‘inter’ (entre) e ‘eligere’ (escolher). Todavia, em sentido mais amplo, o termo
manifesta alguma polissemia, dada a complexidade e a dinâmica que lhe são
inerentes. Com base nos estudos desenvolvidos por Mark Snyderman e Stanley
Rothman4 (cit. in Gray, 1994:364), nos finais da década de 80, a inteligência refere-se
a várias capacidades, como o raciocínio abstracto, a resolução de problemas, a
capacidade de adquirir conhecimentos, a memória, a adaptação ao meio, as
competências linguística e matemática, a originalidade, a acuidade sensorial, a
orientação para um objectivo e a motivação para a realização.
A aproximação ao conceito de inteligência, sobretudo naquilo que define o seu
quadro explicativo mais actual, implica uma análise breve às várias estratégias de
avaliação e medição desta faculdade e que certos investigadores foram ensaiando e
concretizando. Todavia, pretendemos não deixar de colocar algumas reservas à
aplicação dos testes de inteligência, porquanto a sua utilização abusiva e redutora
pode desembocar naquilo que a própria história registou como exemplos reais de
discriminação social e racial.
4
Estes investigadores interrogaram cerca de mil psicólogos e educadores para identificar, numa lista de
aptidões humanas, aquelas que constituiriam os elementos mais importantes da inteligência.
13
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
No momento em que a psicologia se constitui como ciência experimental, em
finais do século XIX, é sentida a necessidade de se construírem instrumentos capazes
de medir as aptidões intelectuais de uma forma objectiva.
Galton (1822-1911) foi o primeiro investigador a procurar medir essas
diferenças individuais, através de testes sobre a discriminação sensorial5. Na esteira
deste autor, o americano Catell (1860-1944) concebe a designação ‘teste mental’ para
o instrumento capaz de colher informações sobre a inteligência, medindo os tempos
de reacção (Almeida, 1994:62-63).
As concepções de Binet (1857-1911) e dos seus colaboradores demarcaramse das anteriores, dado incidirem sobre o estudo da inteligência total do indivíduo e
das suas funções superiores – memória, imaginação, atenção, tenacidade, etc. –,
enquanto critérios fundamentais para estabelecer as verdadeiras diferenças entre os
indivíduos. Como oportunidade de desenvolver o seu trabalho, Binet aceita, em 1904,
a proposta do Ministério da Instrução francês, que consistia em construir um
instrumento para medir as capacidades das crianças em idade escolar, de modo a
distinguir as crianças normais das ‘subnormais’ e facultar a estas últimas um ensino
especial (Binet & Simon, 1916, cit. in Benito & Alonso, 2004A:13). Nesta medida,
Binet, com a ajuda do seu colega Simon, constrói a Escala Métrica de Inteligência,
destinada a medir as capacidades mentais, através de questões e exercícios sobre
figuras, números, letras, palavras, em ordem crescente de dificuldade e ajustados à
idade cronológica da criança. Para além disso, remetem o conceito de inteligência
para os seguintes termos: ‘juízo’, ‘sentido prático’, ‘iniciativa’ e ‘faculdade de adaptarse às circunstâncias’, pelo que, julgar bem, compreender bem e raciocinar bem,
constituem para os dois autores, as actividades essenciais da inteligência (Benito &
Alonso, 2004A:13).
No decurso da evolução dos testes, o termo Quociente de Inteligência (QI) é
usado pela primeira vez por Stern, na Alemanha, e retomado nos EUA por Terman,
que publica, em 1916, uma versão revista do teste Binet-Simon, a qual passa a ser
designada por Escala Stanford-Binet6. Trata-se de um QI de razão, pois que, o seu
cálculo é feito através da razão da idade mental pela idade cronológica, a multiplicar
por 100 (QI=IM/ICx100).
5
Organizava testes para medir a finura de discriminação de pesos, da sensibilidade aos sons altos, da
discriminação visual e auditiva.
6
Stanford é o nome da Universidade onde Terman leccionava.
14
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Nos finais da década de 30, Wechsler apresenta novos instrumentos de
medida – a Escala de Inteligência de Wechsler para Adultos (WAIS7) e a Escala de
Inteligência de Wechsler para Crianças (WISC8). Para este investigador, a inteligência
é essa heterogeneidade de funções, isto é, constitui
the aggregate or global capacity of the individual to act purposefully, to think rationally
and to deal effectively with his or her environment (Wechsler, 1958; cit. in Almeida,
1994: 65).
Esta orientação metodológica é adoptada, nos anos 60, pelos trabalhos da
British Psychological Society, através dos quais se procurava, simultaneamente,
avaliar uma capacidade cognitiva geral e o desempenho das crianças em algumas
aptidões. Nesta medida, a inteligência continuava a ser definida e avaliada de acordo
com uma multiplicidade de aptidões como o raciocínio, a representação espacial, a
memória, a percepção e a evocação e aplicação de conhecimentos.
Para lá do enorme contributo destes investigadores para o avanço das
pesquisas da psicologia na área cognitiva, nomeadamente, no que concerne à
avaliação/identificação de crianças mais dotadas, importa reter o quanto os resultados
alcançados pelos diversos procedimentos psicométricos se apresentam como uma
parte de um processo que se afigura bastante complexo e, nessa medida, a exigir
estratégias de avaliação complementares. A este propósito, o próprio Binet havia
declarado que um único número, resultado do desempenho de uma criança num teste,
não poderia retratar uma questão tão complexa quanto a inteligência humana.
Em última análise, não obstante constituam um dos maiores contributos da
Psicologia, a aplicação dos testes de inteligência tem sido alvo de diversas críticas,
sobretudo devido às possíveis repercussões para o indivíduo que, por algum motivo,
apresente baixos rendimentos nestes instrumentos (Alencar & Fleith, 2001:26).
2.2.
Modelos de Inteligência
A acrescentar ao seu carácter polissémico, o conceito de inteligência tem
variado sobremaneira ao longo dos tempos, reflectindo diferentes valores e convicções
7
8
Wechsler Adult Intelligence Scale.
Wechsler Intelligence Scale for Children
15
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
sociais. Assim, e de acordo com o recurso aos instrumentos de medida enunciados, as
preocupações em torno da inteligência acabaram por, nalguns casos, legitimar
classificações que distinguiram, de forma radical, os civilizados dos primitivos, os
normais dos anormais, desencadeando, em última análise, preconceitos e atitudes de
exclusão de muitos seres humanos.
Numa consciencialização destes riscos e numa preocupação de preconizar
uma aproximação o mais fiel possível à estrutura da inteligência, certos teóricos
construíram modelos explicativos que, de certo modo, ofereciam resposta a uma das
questões mais discutidas desde finais do século XIX: ‘a inteligência é uma capacidade
única, global, geral, ou é constituída por capacidades que correspondem a aptidões
específicas’? Para testemunhar tão acesa polémica, Galton encara a inteligência como
uma entidade singular e única, enquanto Binet considera que ela é constituída por um
conjunto de atributos (memória, fluência numérica, vocabulário, etc.).
Depois das concepções destes autores, muitos outros – Spearman, Thurstone,
Guilford, Sternberg e Gardner – delinearam as suas propostas de compreensão da
composição da inteligência, num trajecto que vai, preponderantemente, da perspectiva
mais clássica, que afirma que a inteligência é uma capacidade unitária de raciocínio
lógico e abstracto, à perspectiva recente das inteligências múltiplas.
2.2.1. Abordagem Clássica
A concepção clássica da inteligência, cujo representante máximo é o psicólogo
inglês Spearman, perspectiva a inteligência como
uma faculdade unitária ou como um agrupamento de faculdades (tais como o
tempo de reacção, a discriminação sensorial, a capacidade de perceber relações
lógicas e a memória) altamente correlacionadas entre si (Gardner et al., 1998:214).
Por um lado, a inteligência é valorizada enquanto traço inato, global e
relativamente imutável, pois não muda muito com a idade ou com a experiência e, por
outro lado, surge como capacidade de responder a testes de inteligência, o Q.I..
O contributo da teoria de Spearman (1904-1927) para este modelo consistiu na
aplicação de um método estatístico que ele próprio criou – a análise factorial – através
do qual seria possível estabelecer correlações entre as aptidões avaliadas pela
aplicação de vários tipos de testes (memória, percepção, fluência verbal e lógica). Da
16
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
análise dos resultados – as pessoas que têm uma elevada pontuação num tipo de
teste têm tendência a obter também classificações elevadas noutros testes – o
investigador formulou a hipótese da existência de uma capacidade geral (factor G),
que estaria subjacente a todas as funções intelectuais, aos factores específicos
(factores S9). Seria o factor G o responsável pela dinamização do conjunto dos
factores específicos, pelo que, a inteligência geral estaria na base de todos os actos
intelectuais, definindo a capacidade intelectual de cada indivíduo.
Todavia, segundo Benito & Alonso (2004A:29), não podemos escamotear um
aspecto importante na teoria de Spearman: por um lado, as aptidões intelectuais
implicadas nos instrumentos utilizados pelo investigador são muito semelhantes
àquelas que estão implicadas nos testes de idade mental e Q.I. e, por outro, incidem
sobre os processos cognitivos centrais na aprendizagem escolar: memória, domínio
verbal, generalização e estruturação, entre outros.
Na década de 30,
Thurstone (1938) desenvolveu nos
EUA novos
procedimentos estatísticos para o estudo dos diferentes tipos de conduta inteligente e
que se demarcaram da perspectiva de Spearman (Benito & Alonso, 2004A:30).
Aplicou uma bateria de 56 testes de aptidão, submetendo os resultados obtidos a
análise factorial, da qual concluiu não haver fundamento para afirmar a existência do
factor G, mas antes de sete aptidões mentais primárias, independentes umas das
outras e ligadas a tarefas específicas – habilidade numérica, habilidade verbal,
memória, raciocínio, aptidão espacial, rapidez perceptual e fluência verbal.
Abria-se, assim, o caminho para a concepção multifactorial, ou seja, para a
perspectiva de uma inteligência composta por vários factores e, nessa medida, para a
rejeição de uma inteligência geral.
2.2.2. Teoria das Inteligências Múltiplas
Mais recentemente, surgiram novas contribuições teóricas, das quais
destacamos as perspectivas de Guilford (1967, 1979), Sternberg (1990, 1997) e
Gardner (1983, 1993), em virtude de defenderem que o construto inteligência é
multidimensional.
Na sua teoria, Guilford desenvolveu um modelo da Estrutura do Intelecto, onde
são discriminadas três dimensões principais – operações, produtos e conteúdos – que,
9
De entre os factores específicos, Spearman destaca o visual, o verbal e o numérico.
17
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
em combinação específica, justificam a existência de 120 tipos de aptidões diversas
(Alencar & Fleith, 2001:30).
Por sua vez, numa linha cognitiva, a Teoria Triárquica da Inteligência Humana
de Sternberg enfatiza os processos internos e externos implicados na inteligência e,
dessa forma, as suas vertentes experiencial, componencial e contextual (Benito &
Alonso, 2004A:36).
A abordagem realizada por estes autores parece ter constituído condição
essencial para os estudos mais recentes da psicologia – a Teoria das Inteligências
Múltiplas, cujo mentor é o neuropsicólogo e investigador americano Howard Gardner.
Fruto de investigações realizadas em 1983, que culminaram com a publicação da obra
Estruturas da Mente, Gardner concluiu que a inteligência, enquanto capacidade de
resolver problemas ou criar produtos que são importantes num determinado ambiente
cultural ou comunidade (Gardner, 1995:21), é constituída por sete categorias, sendo
que, a competência de cada uma delas não exclui ou inclui competência em qualquer
uma das outras, embora possam interagir. Nesta medida, considera que a inteligência
não é um dado, mas um potencial, através do qual o indivíduo tem acesso a formas de
pensamento apropriadas a tipos específicos de conteúdo. Quase 80 anos depois de os
primeiros testes de inteligência serem desenvolvidos, este investigador vinha acusar a
nossa cultura de definir a inteligência de um modo bastante limitado, pois tendem a
avaliar apenas as inteligências lógico-matemática e linguística e a ignorar todos os
outros tipos, assim como as possíveis combinações existentes entre eles. Por isso,
alerta para a necessidade de alargar o potencial humano para lá dos resultados de
Q.I. e aponta a possibilidade da existência de combinações entre os diferentes tipos
de inteligência. Como nos diz Gardner (1995:30):
Na medida em que quase todos os papéis culturais exigem várias inteligências,
torna-se importante considerar os indivíduos como uma colecção de aptidões, e
não como tendo uma única faculdade de solucionar problemas que pode ser
medida directamente por meio de testes de papel e lápis.
Em 1995, quando acrescenta uma oitava categoria – a naturalista –, Gardner
(cit. in Armstrong, 2001:49-52) apresenta a sua concepção múltipla da inteligência, a
qual contempla:
inteligência linguística - capacidade para usar as palavras de modo
efectivo nas três dimensões do discurso - sintaxe, semântica e
18
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
pragmática - quer na oralidade (por exemplo, como contador de
histórias, orador ou político), quer na escrita (por exemplo, como
escritor ou jornalista); indicia sensibilidade para os sons, ritmos e
significados das palavras, além de uma percepção especial das
diferentes funções da linguagem;
inteligência lógico-matemática - capacidade numérica ou lógica (por
exemplo, como matemático, cientista ou programador de computador);
inclui a utilização de processos de categorização, classificação,
inferência, generalização e cálculo;
inteligência espacial - capacidade de visualizar e de representar
graficamente ideias visuais ou espaciais, ou seja, de perceber com
precisão o mundo visuo-espacial (por exemplo, como guia ou escuteiro)
e de realizar transformações sobre essas percepções (por exemplo,
como
artista,
arquitecto
ou
decorador
de
interiores);
envolve
sensibilidade à cor, à linha, à forma, à configuração e ao espaço;
inteligência corporal cinestésica - capacidade corporal, manual e
desportiva,
que
implica
habilidades
físicas
específicas,
como
coordenação, equilíbrio, destreza, força, flexibilidade e velocidade,
assim como capacidades proprioceptivas, como o tacto; refere-se à
perícia no uso do corpo todo para expressar ideias e sentimentos (por
exemplo, como actor, mímico ou atleta) e facilidade no uso das mãos
para produzir ou transformar coisas (por exemplo, como artesão,
escultor, mecânico ou cirurgião);
inteligência musical - capacidade para apreciar, compor ou reproduzir
uma
peça
musical
(por
exemplo,
compositores,
maestros
e
instrumentistas); inclui discriminação de sons, sensibilidade para ritmos
e timbre;
inteligência interpessoal - capacidade no relacionamento com as
pessoas; inclui sensibilidade a expressões faciais, voz e gestos e a
capacidade de responder a estes sinais de um modo pragmático (por
19
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
exemplo, influenciar um grupo de pessoas para que sigam certa linha
de acção);
inteligência intrapessoal - capacidade de auto-conhecimento, e de o eu
agir adaptativamente com base neste conhecimento; inclui consciência
das forças e limitações, dos estados de humor, das intenções,
motivações, temperamento e desejos, o que implica capacidade de
auto-disciplina e auto-estima;
inteligência naturalista - capacidade de reconhecer e classificar
numerosas espécies - a flora e a fauna - do meio ambiente do indivíduo;
inclui sensibilidade a outros fenómenos naturais.
(Alencar & Fleith, 2001:34-36; Almeida, 1994:39-46; Armstrong, 2001:13-15;
Gardner et al., 1998:217-221)
Mais recentemente, em 1999, Gardner (cit. in Armstrong, 2001:163) escreveu
sobre a ‘possibilidade’ de uma nona inteligência – a existencial – inerente à
preocupação com as questões básicas da vida. O autor descreve esta inteligência
como:
a capacidade de situar-se com referência ao alcance máximo do cosmos - o infinito e o
infinitesimal - e a capacidade relacionada de situar-se com referência a características
existenciais da condição humana como o significado da vida, o significado da morte, o
derradeiro destino dos mundos físico e psicológico, e àquelas experiências profundas
como o amor por alguém ou a total imersão num trabalho de arte (Gardner, cit. in
Ibidem).
A este conjunto de inteligências, o professor brasileiro Nilson Machado10, em
1996, acrescenta uma outra inteligência – a pictórica – que surge identificada pela
capacidade de expressão por meio do traço, pela sensibilidade para dar movimento,
beleza e expressão a desenhos e pinturas. O autor considera que os recursos
pictóricos são elementos essenciais à comunicação e expressão de sentimentos,
permitindo, muitas vezes, revelar personalidades e sintomas diversificados de
desequilíbrios psíquicos. Assim, propõe a relação entre as inteligências apresentadas
por Gardner com a identificação dos pares linguístico-lógico-matemático, intra e
10
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, onde lecciona desde 1972.
20
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
interpessoal, espacial-cinestésico corporal e competência corporal-pictórica (Antunes,
2004:21-22).
Muito embora Gardner não duvide de que a competência pictórica, e a
consequente capacidade de reproduzir ou criar imagens por meio de traços ou cores,
sejam inerentes ao ser humano, o que se evidencia com nível elevado em alguns
indivíduos, rejeita a ideia de essa possibilidade caracterizar uma inteligência. Aliás, o
próprio Gardner chegou a demonstrar essa reprovação quando esta hipótese lhe foi
apresentada por Nilson Machado num seminário sobre Inteligências Múltiplas que se
realizou em São Paulo.
A argumentação de Gardner radica na análise do caso de Picasso e de outros
artistas, pois considera-os indivíduos dotados de extrema sensibilidade espacial para
captar a composição que ilustram, destreza cinestésica para executar essa
composição e percepção interpessoal para a valorização dos outros acerca daquilo
que apresentam (Antunes, 2004:60).
Neste âmbito, aquilo que para Nilson Machado se define como inteligência
pictórica, para Gardner constitui o fluxo de três inteligências que actuam
concomitantemente – a espacial, a cinestésica corporal e a interpessoal.
Concebendo
esta
perspectiva
evolutiva
dos
modelos
explicativos
da
inteligência, as nossas pesquisas assumem um enfoque privilegiado na Teoria das
Inteligências Múltiplas de Gardner, sobretudo no que concerne ao domínio da
inteligência espacial e nas capacidades de percepção, imaginação e criação, o que
legitima a consideração da inteligência pictórica proposta por Nilson Machado.
No entanto, dado que pretendemos compreender o universo relacional e
afectivo da criança sobredotada, as suas inteligências inter e intrapessoal serão
também tidas em linha de conta, abrindo, em última análise, para a possível
abordagem das capacidades relacionadas com a inteligência existencial.
21
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
CAP. 2 - Características do Sobredotado
1.
Aproximação às idiossincrasias
A abordagem conceptual da inteligência e dos seus instrumentos de medida foi
acompanhada de um interesse permanentemente renovado acerca da natureza do
sobredotado, suas características intrínsecas e comportamentos associados.
Ainda que numa linha teórica de valorização do Quociente de Inteligência, a
investigação realizada por Terman, na década de 20, representa a tentativa pioneira
de
levantamento
das
principais
características
idiossincráticas
do
indivíduo
sobredotado. Foi sua intenção acompanhar um grupo de crianças sobredotadas
durante toda a sua vida, no sentido de perscrutar, por um lado, os seus traços físicos,
intelectuais e de personalidade e, por outro lado, o tipo de adultos que estas crianças
se tornariam. As conclusões do estudo vieram derrubar muitas ideias erróneas que
proliferavam na época acerca do sobredotado, entre as quais se destacam as
seguintes afirmações: a sobredotação e a insanidade estão intrinsecamente
associadas11, a criança precoce apresenta também um declínio precoce da sua
inteligência, e a criança brilhante é fraca e doente, pelo que, a sua inteligência superior
é uma forma de compensar a sua inferioridade noutras áreas, que não a intelectual.
A investigação de Terman e da sua equipa não só veio desmistificar todas
aquelas ideias, como veio apresentar novos dados: os sobredotados apresentam um
desenvolvimento físico mais acelerado, mas também um comportamento sócio-moral
mais ajustado (Alencar & Fleith, 2001:62-63).
A partir de Terman, o âmbito da investigação em torno da sobredotação
converte-se em terreno fértil de concepções diversas, mas que apresentam um ponto
em comum – defendem que o Q.I. não podia ser o critério exclusivo para definir um
sobredotado e que não possibilitava a identificação de indivíduos que, mais tarde, se
vinham a destacar em actividades artísticas, como a música, a pintura ou o desporto.
Registou-se, assim, uma ampliação do conceito, que passou a incluir crianças
consideradas talentosas por apresentarem outros talentos e não, ou unicamente, o
talento intelectual.
Foi com o aparecimento da Teoria das Inteligências Múltiplas de Gardner que a
aproximação à natureza idiossincrática do sobredotado – áreas/características em que
11
Ideia que resultara de pesquisas realizadas por Lombroso e Nisbet no século XIX.
22
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
se manifesta o seu comportamento – conhece novo impulso, revestindo-se de
perspectivas inovadoras, como as de Renzulli, Winner e Guenther, e dos seus
respectivos percursores. Ao colocar de lado o conceito unidimensional de inteligência,
Gardner fundamenta a ideia de uma multiplicidade de ‘sobredotações’, de acordo com
os tipos de inteligência que mais se evidenciem no indivíduo, o que terá inspirado a
proposta conceptual de Falcão (1992:70):
Criança sobredotada é aquela que possui um potencial humano de nível superior e
frequência constante em qualquer uma, ou mais, das áreas operacionais das I.M.
(Inteligências Múltiplas), permitindo prognosticar, se fornecidas adequadas
oportunidades de desenvolvimento, um elevado grau de competência específica,
quer na solução de problemas, quer na criação de problemas.
De acordo com este enquadramento teórico, e tal como referimos no capítulo
anterior, a concepção de Renzulli (cit. in Lombardo, 1997:37-38) acerca das
características dos sobredotados invoca aspectos relacionados com a capacidade
intelectual em geral e aptidão académica específica, o pensamento criativo e
produtivo, a liderança, as artes plásticas, a habilidade psicomotora, a motivação e a
vontade. Para o autor, crianças e jovens sobredotados revelam um conjunto bem
definido de traços: obtêm facilmente êxito na aquisição de conhecimentos ou
competências, manifestam uma capacidade de trabalho invulgar orientada pela
perseverança e motivação, e revelam um pensamento criativo e divergente, pela
frequência e natureza das suas perguntas, jogos e associações de ideias. Como nos
diz Renzulli (1986, cit. in Rodrigues, 1992:46-47),
O comportamento sobredotado consiste em comportamentos que reflectem uma
interacção entre três agrupamentos básicos de traços humanos – sendo tais
agrupamentos capacidades gerais ou específicas superiores à média, níveis
elevados de empenho na tarefa e níveis elevados de criatividade. As crianças
sobredotadas e talentosas são as que possuem ou são capazes de desenvolver
este conjunto compósito de traços e de aplicá-lo a qualquer área potencialmente
válida de desempenho humano.
Nesta medida, e no sentido de facilitar a avaliação do professor em relação às
características do aluno, Renzulli, Smith, White, Callahan e Hartman, em 1976 (cit. in
Alencar & Fleith, 2001:73-74) desenvolveram as Escalas para Avaliação das
23
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Características Comportamentais de Alunos com Habilidades Superiores, as quais
contemplam os seguintes itens:
-
possui um vocabulário avançado para o seu nível etário, com riqueza
expressiva, elaboração e fluência (na área de aprendizagem);
-
necessita de pouca motivação externa para dar continuidade a um trabalho
que lhe agrada (na área de motivação);
-
demonstra grande curiosidade acerca de várias coisas, o que evidencia
com um questionamento constante (na área de criatividade);
-
revela auto-confiança, tanto no seu relacionamento com os pares como
com os adultos (na área da liderança);
-
tende a seleccionar a arte como meio de expressão para actividades livres
ou projectos em sala de aula (na área das artes);
-
é sensível ao ritmo da música (na área da música);
-
usa gestos e expressões faciais de forma efectiva para comunicar os seus
sentimentos (na área do teatro);
-
possui várias formas de expressar ideias, de modo a ser entendido pelos
outros (na área da comunicação);
-
determina as informações e os recursos que são necessários à realização
de uma tarefa (na área da planificação).
Esta tentativa de encontrar alguns traços específicos das crianças e jovens
sobredotados prossegue com as pesquisas de Winner. Para a investigadora em
Psicologia Infantil em Harvard, não obstante a constatação dos grandes avanços no
estudo da sobredotação, não podemos ignorar os mitos e concepções falaciosas em
que o mesmo se encontra enredado e que já tratamos no capítulo anterior. Para lá
destas ideias erróneas, Winner (1996:16-17) chama a atenção para algumas
características atípicas da criança sobredotada e que fazem dela um ser
qualitativamente distinto da criança normal: a precocidade, uma insistência em se
desenvencilharem sozinhas e uma sede enorme de conhecimentos. Tal significa que,
por um lado, inicia a aprendizagem de um domínio numa idade inferior à média das
outras crianças; por outro lado, goza de autonomia e de um ritmo próprio na resolução
de problemas e, finalmente, é intrinsecamente motivada no domínio em que revela
maior precocidade. Assim, como nos diz, Se existem indivíduos capazes de resolver a
vasta panóplia de problemas que ameaçam a sobrevivência humana, vamos encontrálos certamente neste grupo (Winner, 1996:25).
24
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Todavia, com Guenther (2000:44), partilhamos a ideia de que as crianças bemdotadas e talentosas não constituem um grupo único e homogéneo, pelo que cada
uma apresenta uma combinação singular de características resultantes da interacção
de factores biológicos e genéticos com factores ambientais. Face a este princípio, a
autora (2000:47-49) entende, na esteira de muitos outros investigadores, que as
crianças portadoras de talentos podem apresentar algumas características gerais, que
constituem fonte de orientação dos professores na identificação das capacidades
superiores no grupo de alunos e em contexto de sala de aula. São elas:
-
inteligência e capacidade geral, que se manifesta através de uma
vivacidade mental (curiosidade, gosto por desafios, senso de humor, boa
capacidade de memória e aprendizagem) e automotivação e confiança
(independência e elevado compromisso com as tarefas);
-
capacidade pronunciada – talento académico – que se evidencia em áreas
escolares, como a linguagem (talento verbal), as ciências e a matemática
(pensamento abstracto);
-
criatividade e produção original, científica ou artística, associada a
pensamento holístico e intuitivo;
-
talento
psicossocial,
demonstrado
pela
capacidade
e
gosto
pela
cooperação, senso de justiça e respeito pelo outro;
-
talento psicomotor, revelada na demonstração de habilidades sensoriomotoras e no desempenho físico-motor qualitativamente superior.
Face à enunciação de tais características, Guenther (2000:50) alerta para o
facto de muitos talentos não se apresentarem sob a forma de tipos puros e exclusivos,
mas antes de acordo com uma certa combinação entre si, com ou sem predominância
de um certo tipo, o que requer atenção à configuração geral do comportamento da
criança ou jovem – formas de ser, agir e pensar nos múltiplos contextos de interacção
com o eu e com os outros. Para além disso, é importante não esquecer a
singularidade de cada criança, o que torna possível haver uma criança em que não
encontramos muitos daqueles traços já diferenciados, mas que, por outras
manifestações – interesses e atitudes perante as situações da vida – sinaliza a
existência de capacidade superior.
25
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Eis, em última análise, alguns traços relativamente abstractos e, por diversas
vezes, escondidos ou disfarçados na sala de aula, e que Serra (2001, cit. in APCS,
2004:17) enunciou de acordo com os seguintes atributos:
percepção e memória elevadas, raciocínio rápido, habilidade para conceptualizar e
abstrair, fluência de ideias, flexibilidade de pensamento, originalidade e rapidez na
resolução de problemas, superior
inventividade e produtividade, elevado
envolvimento na tarefa, persistência, entusiasmo, grande concentração, fluência
verbal, curiosidade, independência, rapidez na aprendizagem, capacidade de
observação, sensibilidade e energia, auto-direcção, vulnerabilidade e motivação
intrínseca.
Na sequência das várias perspectivas teóricas – sobretudo a de Renzulli – que
contribuíram
para
a
aproximação
à
especificidade
das
competências
e
comportamentos do sobredotado, elencamos, a seguir, de acordo com diversas áreas
– aprendizagem, motivação, criatividade, liderança e sócio-moral – as características
que mais se evidenciam em crianças e jovens sobredotados.
CARACTERÍSTICAS GERAIS DE COMPORTAMENTO DAS CRIANÇAS E JOVENS SOBREDOTADOS
Vocabulário avançado para a idade e para o nível escolar;
CARACTERÍSTICAS NO
Hábitos de leitura independente (por iniciativa própria);
PLANO DAS
preferência por livros que normalmente interessam a
APRENDIZAGENS
crianças ou jovens mais velhos;
Domínio rápido da informação e facilidade na evocação de
factos;
Fácil compreensão de princípios subjacentes; capacidade
para generalizar conhecimentos, ideias, soluções;
Resultados e/ou conhecimentos excepcionais numa ou mais
áreas de actividade ou de conhecimento.
Tendência a iniciar as suas próprias actividades;
CARACTERÍSTICAS
Persistência na realização e finalização das tarefas;
MOTIVACIONAIS
Busca da perfeição;
Aborrecimento face a tarefas de rotina.
Curiosidade elevada perante um grande número de coisas;
CARACTERÍSTICAS NO
Originalidade na resolução de problemas e relacionamento
PLANO DA
de ideias;
CRIATIVIDADE
Pouco interesse pelas situações de conformismo.
26
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Autoconfiança e sucesso com os pares;
CARACTERÍSTICAS DE
Tendência a assumir a responsabilidade nas situações;
LIDERANÇA
Fácil adaptação às situações novas e às mudanças de
rotina.
Interesse e preocupação pelos problemas do mundo;
CARACTERÍSTICAS NOS
Ideias e ambições muito elevadas;
PLANOS SOCIAL E DO
Juízo crítico face às suas capacidades e às dos outros;
JUÍZO MORAL
Interesse marcado para se relacionarem com indivíduos
mais velhos e/ou adultos.
In Ministério da Educação (1998:8).
Todavia, a esta proposta não são alheios, por um lado, o seu carácter
orientador na tarefa sinalizadora de educadores e, por outro, a sua atitude de abertura
à multiplicidade dos contextos em que cada um vive e experiencia os seus talentos, o
que implica, em muitos casos, atentar nas idiossincrasias, mas sem deixar de
perspectivar possíveis disssincronias.
2.
Aproximação às dissincronias
Pelas características genéricas enunciadas anteriormente e que delineiam o
quadro de actuação dos mais talentosos no seu mundo físico e sócio-cultural,
facilmente entendemos cada criança ou jovem como alguém que revela um excelente
desempenho nas suas diversas actividades. No entanto, uma análise mais cuidada à
realidade única de cada um, pode revelar-nos um mundo interior susceptível de
contradições e desfasamentos. Esta convicção surge, aliás, corroborada pelos
profissionais de educação, dado considerarem que estas crianças experimentam
múltiplas dificuldades durante a sua escolaridade. Para além disso, vários estudos têm
revelado que existem crianças com potencialidades extraordinárias que passam
completamente despercebidas na sala de aula ou então que manifestam problemas de
comportamento, atenção, interesse pelas tarefas escolares e desempenho social,
chegando mesmo as ser identificadas como ‘alunos problemáticos’. (Ministério da
Educação, 1998:5). Por este motivo, tal como referimos, cumpre a cada educador
lançar um olhar atento à individualidade de cada sobredotado, para que a sua
actuação assente na consideração dos traços idiossincráticos e, simultaneamente, das
possíveis idiossincrasias.
27
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
São os estudos de Terrasier (1990 e 1992, cit. in Benito & Alonso, 2004C:58)
que conferem importância significativa aos níveis heterogéneos patenteados no
desenvolvimento das crianças sobredotadas, o que ele designou por ‘síndrome da
dissincronia’12 das crianças intelectualmente sobredotadas e precoces. Este
investigador começou por constatar um desfasamento notório entre o nível intelectual
e a capacidade de leitura precoce, por um lado, e as frequentes dificuldades na
escrita, por outro, o que o terá levado a concluir, neste caso, acerca de uma falta de
sincronia
do
desenvolvimento
psicomotor
relativamente
ao
desenvolvimento
intelectual.
O termo ‘dissincronia’ foi introduzido por B. Gibello (cit. in Ibidem) para
designar especificamente ‘uma classe de disgnosia em relação ao tempo’, pelo que,
no plano clínico, as crianças discrónicas são instáveis, impulsivas, desorganizadas no
tempo e, nessa medida, apresentam problemas de adaptação escolar. Todavia, para
evitar a ambiguidade terminológica, Terrasier criou a designação ‘dissincronia interna’
para se referir ao desenvolvimento heterogéneo específico das crianças sobredotadas
e, dado que estas dificuldades específicas podem também ocorrer no plano da relação
com os outros, apresentou o termo ‘dissincronia social’.
Partindo de uma análise da personalidade da criança, Terrasier evidencia,
portanto, os seus níveis heterogéneos de desenvolvimento – a evolução intelectual,
verbal e lógica, a evolução psicomotora, a organização do espaço e a evolução
afectiva –, dando especial destaque à identificação de algumas dificuldades que
advêm dessa diversidade de ritmos.
Muitas
daquelas
dificuldades
radicam
na
dissincronia
inteligência-
psicomotricidade, porquanto o nível psicomotor das crianças sobredotadas, que se
traduz, por exemplo, na habilidade da escrita, está mais ligado à sua idade cronológica
que à sua idade mental, o que torna possível manifestar grandes desempenhos na
matemática e, simultaneamente, comprometimento na ortografia e expressão escrita.
O autor (cit. in Benito & Alonso, 2004C:62-63) refere ainda as possíveis dissincronias
ao nível dos diferentes sectores do desenvolvimento intelectual, dado que, na maioria
das vezes, a idade mental relativa às aquisições verbais não chega à idade mental de
raciocínio verbal ou não verbal.
Dado o enfoque do nosso trabalho, concedemos maior atenção à dissincronia
inteligência-afectividade, através da qual Terrasier enfatiza o desnivelamento entre o
12
Esta denominação foi acolhida com interesse no II Congresso Mundial para a educação das crianças
sobredotadas que se realizou em São Francisco, em 1977.
28
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
desenvolvimento intelectual da criança sobredotada e o seu nível afectivo. Esta
vertente do síndrome vem realçar a interferência da inteligência brilhante nas
necessidades afectivas, podendo desencadear na criança uma tentativa para adoptar
um comportamento que esconda a sua imaturidade. Tal significa que, ao mesmo
tempo que a sua inteligência lhe permite captar uma vasta panóplia de informações
acerca de tudo o que a rodeia, procura esconder vivências secretas, como a
ansiedade e os medos, comprometendo sobremaneira o seu equilíbrio psicológico e,
em última análise, fazendo emergir um comportamento de padrão neurótico, que
normalmente os adultos significativos têm dificuldade em aceitar.
Esta dissincronia inteligência-afectividade permite, assim, ser analisada à luz
da perspectiva psicanalítica, pois que o ego destas crianças, quando não consegue
expressar livremente os seus desejos e pulsões, desencadeia frequentemente um
mecanismo de defesa – ‘racionalização’ ou ‘intelectualização’ – que se traduz numa
estratégia inconsciente de repressão daquele material e pela qual a criança se refugia
num discurso friamente intelectual. Neste âmbito, Terrasier realça a seguinte
advertência do psicanalista J. Guillemaut (cit. in Benito & Alonso, 2004C:65):
Hay que permitir a este niño expresar sus pulsiones y sus placeres, sus disgustos,
sus vergüenzas, sus furias. Hace falta también dejarle vencer dificultades para que
pueda desear, malhumorarse, fallar. Si no puede equivocarse, si no puede desear,
va a naufragar en el aburrimiento, y el aburrimiento es una forma de depresión en
el niño.
No que concerne à dissincronia social, o desfasamento está patente pela
diferença entre a rapidez do desenvolvimento mental da criança sobredotada e a
celeridade média das outras crianças, a qual determina a estandardização do percurso
escolar. Ora, neste processo que se pretende padronizado, muitas das necessidades
e características dos sobredotados são esquecidas, o que, por sua vez, tende a tornar
a criança cada vez mais desinteressada e distraída num ambiente que se torna
escasso
de estimulação
e
interesse.
Encontramos
aqui,
normalmente,
um
comportamento peculiar da criança, que E. de Bono (cit. in Benito & Alonso, 2004C:66)
designou por efeito Everest, ou seja, enquanto se mantém interessada nas actividades
escolares, tem uma tendência a concentrar-se naquelas que são mais complexas e
difíceis e a não dar importância, e mesmo a falhar, nas mais simples. Neste âmbito, o
sobredotado constrói a ideia de que o sistema escolar apenas lhe pede um saber
29
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
mínimo, o que representa um abalo na sua curiosidade e, consequentemente, nas
suas potencialidades intelectuais.
Este aspecto social da dissincronia também está patente no seio familiar e no
grupo de pares, porquanto quer os pais quer as outras crianças esperam do
sobredotado uma actuação correspondente à sua idade real. Para os pais, torna-se
difícil, por vezes, compreender a especificidade inerente ao comportamento do seu
filho e ter, ao mesmo tempo, um diálogo que corresponda ao nível intelectual da
criança e ao seu nível de evolução afectiva, o que surge, inevitavelmente, agudizado
num contexto familiar mais debilitado do ponto de vista cultural. Nessa medida, não
compreender a criança é bastante prejudicial, mas o facto de a criança compreender
que os seus pais não a conseguem compreender é muito pior. A relação com os pares
reveste-se também de desfasamento, em virtude da criança ter uma tendência para
procurar estabelecer relações com colegas mais velhos, com quem possa manter um
diálogo mais interessante sobre diversos assuntos. Todavia, contraditoriamente,
quando se trata de jogos desportivos – dimensão física – a tendência é para interagir
com colegas da mesma idade. Um estudo realizado por Gallagher & Crowder (cit. in
Benito & Alonso, 2004C:69) numa escola primária americana revelou o contributo das
interacções entre as crianças sobredotadas, pois o desinteresse aumenta pelo facto
de não haver outras crianças com potencialidades idênticas na mesma sala de aula.
A análise destas diferentes perspectivas, à luz das quais é possível conferir
sentido às múltiplas manifestações do mundo intrínseco do sobredotado, pretende,
pois, abrir caminho para uma maior flexibilidade no modo de tornarmos a problemática
da sobredotação mais inteligível, e oferecer uma maior resistência à tentativa de
aplicar invariavelmente a cada sobredotado as características que resultam de maior
evidência e generalização.
3.
Desenvolvimento sócio-emocional
Atendendo ao conjunto das características apontadas pelos vários teóricos,
num percurso que vai das idiossincrasias às dissincronias, urge conceder lugar de
análise preponderante ao desenvolvimento sócio-emocional de alunos sobredotados,
com as inevitáveis relações ao seu contexto educacional. Por um lado, porque o
aspecto afectivo e relacional constitui parte integrante e decisiva do desenvolvimento
global de qualquer criança e, por outro, porque, até aqui, constatamos a singularidade
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A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
das vivências internas das crianças com talentos superiores, o que se repercute nas
suas relações externas, que ocorrem nos locais privilegiados de socialização.
Para a reflexão em torno desta problemática, entendemos necessário tomar
como ponto de partida as concepções de Horowitz (1987) e Roeper (1982) (cit. in
Alencar & Fleith, 2001:106), segundo as quais, este desenvolvimento emocional e
social não ocorre mais rapidamente ou precocemente do que o das outras crianças,
mas antes de um modo diferenciado, em função da especificidade de cada criança
sobredotada.
Nesta medida, consideramos necessário prever a identificação de certas
características sócio-emocionais genéricas, apontadas por outros autores, como
Alencar & Virgolim (1999), Fleith (1998), Lovecky (1993), Piechowski (1991),
Silverman (1993) (cit. in Alencar & Fleith, 2001:106-107): idealismo e senso de justiça,
perfeccionismo, nível de energia elevado envolvido na realização de actividades,
senso de humor desenvolvido, fascínio e paixão pela aprendizagem, perseverança,
inconformismo, sensibilidade às expectativas dos outros, sensibilidade emocional e
consciência apurada de si mesmo.
Todavia, para lá de generalizações que se afiguram profícuas à investigação,
importa perspectivar cada criança de acordo com as suas idiossincrasias e
dissincronias específicas em interacção com os diversos agentes significativos do
meio onde procura responder aos vários desafios com os quais se confronta
diariamente.
A concepção de Winner (1996:233) evidencia este carácter diferenciado do
desenvolvimento sócio-emocional, pois admite a existência de três modos em que a
estrutura da personalidade e a experiência social e emocional dos sobredotados se
distinguem da norma. Considera que estas crianças são muito motivadas para o
trabalho como veículo do domínio de conhecimentos, pois obtêm grande prazer dos
desafios que lhe são colocados e possui, sobretudo a partir da adolescência, uma
noção do que quer vir a ser; concebe-as como seres sobremaneira independentes e
inconformistas que, ao nível das relações interpessoais são, normalmente, mais
introvertidos e solitários, em virtude de se sentirem diferentes e desejarem estar
sozinhos para desenvolver o seu talento.
Portanto, esta criança apresenta um perfil de personalidade diferente, o que se
reflecte necessariamente na sua vida afectiva e relacional, e que, para a autora, pode
inclusivamente, determinar a vivência de problemas emocionais e sociais, sobretudo
quando se trata de uma aptidão excepcional. Muito embora Winner saliente que nem
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A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
todas as crianças sobredotadas são ‘problemáticas’, aquelas que apresentam níveis
de sobredotação mais elevados, tendem a confrontar-se com dificuldades emocionais,
que as remetem, muitas vezes, para um sofrimento psicológico e um certo isolamento,
que se deve ao facto de não se encontrarem ao mesmo nível dos seus pares. As
dificuldades de adaptação, em virtude de uma disparidade de gostos, motivações e
interesses relativamente aos dos colegas e àqueles que a própria escola veicula, são
frequentemente o motivo de inadaptação ao contexto escolar, o que se manifesta em
atitudes e comportamentos de introversão, insegurança, ansiedade e depressão.
Como afirma a autora (1996:245):
As crianças com uma sobredotação elevada têm problemas em se relacionarem
com os colegas, em parte, porque há muito pouco em comum entre si. Assim, a
sensibilidade e intensidade tornam-nas crianças diferentes. Para além disso,
também possuem interesses, passatempos e mesmo preferências de jogos na
primeira infância diferentes.
A estas dificuldades enunciadas por Winner, no nosso entender, subjaz uma
perspectiva de dissincronia entre os domínios cognitivo e emocional, tal como foi
enfatizada por Terrassier. Por um lado, quando procuram amigos mais velhos na
tentativa de que estes possuam uma idade mental equivalente, as crianças
sobredotadas confrontam-se com uma certa rejeição, pois os mais velhos reconhecem
a peculiaridade daquelas, pela sua imaturidade do ponto de vista físico, social e
emocional. Por outro lado, dado o desenvolvimento intelectual mais acelerado das
crianças sobredotadas, que lhes permite um pensamento mais rápido e divergente, em
possível interacção com os mais velhos, acentua-se o fosso inerente à idade mental.
Em contexto de sala de aula, este conflito pode traduzir-se ainda numa quebra
do rendimento académico do sobredotado, pois, na tentativa de granjear a simpatia e
a aceitação dos colegas, o sobredotado tende a trabalhar muito aquém do seu
potencial. Portanto, as crianças sobredotadas tendem a viver num conflito permanente
entre a realização máxima do seu potencial intelectual e o estabelecimento de
relações afectivas e sociais, pelo que,
Escolhendo a intimidade, arriscam-se a perder a motivação para se distinguirem e
podem desinteressar-se pelo seu domínio de talento. Se escolherem a excelência,
têm de enfrentar a solidão e o isolamento. Apenas os que desejam e são capazes
de escolher a excelência obtêm a oportunidade de serem bem sucedidos no
32
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
percurso que vai da criança sobredotada ao adulto proeminente. (Winner,
1996:251)
Esta concepção de Winner, como anteriormente referido, veio contrariar o
anterior modelo explicativo apresentado por Terman, segundo o qual a criança com
talentos superiores realiza uma feliz inserção na sociedade, representando um
paradigma de harmonia sócio-emocional. Tal teria, segundo Delisle (cit. in Alencar e
Fleith, 2001:106) precipitado a ideia errónea de que os alunos com potencial superior
seriam ‘imunes’ a qualquer desajuste afectivo ou social, não necessitando de apoio
por parte dos agentes de socialização envolventes – família, escola e comunidade.
Todavia, para lá das conclusões de Winner, outros estudos têm evidenciado os
problemas
emocionais dos
alunos
sobredotados,
tais
como sub-rendimento
académico, suicídio, isolamento social, entre outros, o que confere sentido à afirmação
de Schmitz e Galbraith (1985; cit. in Alencar e Fleith, 2001:106): ser sobredotado não
significa necessariamente ter mais sucesso, ser mais feliz, saudável, socialmente
ajustado ou mais seguro.
Por outro lado, numa postura mais optimista, Freeman e Guenther contrapõem
as asserções de Winner, ao defenderem que não há provas científicas conclusivas
quanto à correlação capacidade excepcionalmente elevada e problemas emocionais.
Num estudo realizado nos E.U.A., ao comparar-se tipos e graus de problemas de
comportamento em crianças comuns e crianças bem-dotadas, não se patentearam
diferenças significativas (Cornell et al., 1994; cit. in Freeman e Guenther, 2000:85); e
num estudo comparativo com adolescentes, os bem dotados demonstram melhor
ajustamento pessoal (Nail e Evans, 1997; cit. in ibidem). Referem ainda o contributo de
outras investigações, realizadas em Israel (1993, Kener; 1996, Zorman) e Itália (1996,
Boncori) para a reflexão em torno desta problemática: estas crianças ou jovens são
emocionalmente mais fortes do que as outras pessoas, apresentam maior e melhor
produtividade, um maior índice motivacional, auto-estima mais elevada, maior grau de
satisfação pessoal, maior capacidade de integração social e um nível ansiógeno mais
reduzido (Freeman e Guenther, 2000:86).
Do confronto destas perspectivas, concluímos, principalmente, a falta de
unanimidade quanto à mundividência intra e intersubbjectiva da criança sobredotada,
o que parece ser sinónimo, não de posturas dogmáticas e inconciliáveis, mas de um
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A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
terreno que, pela sua natureza de intrínseca complexidade, denuncia a necessidade
de múltiplos olhares.
Nesta medida, o intuito é conseguir atentar na vasta panóplia de possibilidades
com as quais os educadores e professores se poderão confrontar no espaço
privilegiado de aprendizagens e interacções: a sala de aula. Será, por isso, pertinente
prever atitudes/comportamentos heterogéneos, que veiculem ora o modelo de saúde
psicológica, ora o modelo de alguma disfunção afectiva e relacional. De qualquer
forma, entendemos que a actuação de todos os profissionais deve orientar-se no
sentido da implementação de estratégias para a eventual emergência de certos
comportamentos problemáticos, pois o aluno sobredotado pode:
-
mostrar-se intolerante, para com os outros;
-
mostrar um comportamento irregular – facilmente perturbável;
-
manifestar dificuldades em integrar-se com os outros;
-
manifestar desinteresse na realização de tarefas escritas;
-
parecer aborrecido;
-
exigir muito tempo de atenção ao professor;
-
revelar-se dominador na relação com os colegas.
In Ministério da educação (1998:15)
Cônscios de que a manifestação daqueles comportamentos pode ocorrer em
qualquer criança ou jovem, independentemente do seu nível cognitivo e talentos
superiores, interessa certamente identificar a sua causa, para poder agir em
conformidade com a situação e especificidade de cada aluno. Mas se, eventualmente,
a eles associarmos um quadro de sobredotação, é necessário que, no âmbito de uma
perspectiva
holística,
sejam
consideradas
as
características,
interesses
e
necessidades possíveis de encontrar na criança ou jovem sobredotado para podermos
optimizar o seu potencial cognitivo, emocional e social.
34
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
CAP. 3 - Arte e Sobredotação
1. O lugar da arte no desenvolvimento infantil
Das
várias
estratégias
de
actuação
susceptíveis
de
promover
o
desenvolvimento global da criança, independentemente dos seus talentos superiores,
a arte, entendida como linguagem dos sentimentos e das emoções, assume um papel
que vem sendo valorizado ao longo da história da cultura ocidental. A arte surge como
absolutamente fundamental e a prova disso é o facto incontestável de, desde as
origens, não ter existido uma única sociedade humana que tenha podido passar sem
ela e que não lhe tenha encontrado uma forma à sua medida. René Huyghe
(1986:285-286) evidencia este carácter da arte, comparando-a com as funções vitais
do nosso corpo, indispensáveis à manutenção da vida:
Se o nosso organismo não seria capaz de se manter sem trocas com o mundo
exterior, como por exemplo a respiração, a arte é igualmente necessária à vida
mental, de que é, de facto, uma espécie de respiração.
A presença inegável da arte em qualquer aqui e agora da cultura ocidental
poderá ter desencadeado, nos tempos hodiernos, uma certa falta de reconhecimento
do seu valor na formação bio-psico-socio-cultural da esfera humana. Se os nossos
antepassados tinham consciência do papel da arte (Winner & Hetland, 2000; cit. in
Bahia, 2002A:17), cumpre-nos relevar esse estatuto e, nessa medida, promover
estratégias que testemunhem uma presença cada vez mais acentuada nas nossas
vidas.
Muito embora o homem se expresse artisticamente desde os primórdios, como
o provam os mais remotos artefactos e pinturas rupestres, é em Platão que
encontramos as primeiras reflexões sistemáticas em torno da importância e natureza
da arte. O pensador concebe-a como algo inatingível e infinitamente superior ao
homem, de nível transcendente, para o qual ele tende; através da arte, o homem
aproxima-se da sua vida espiritual, dado que a contemplação de obras é susceptível
de despertar o sentimento espiritual do Belo. Nesta concepção, a contemplação leva à
inspiração e esta, por sua vez, à criação e ao estado de elevação espiritual.
35
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Volvidos vários séculos, Herbert Read13 (1893-1968) retoma a perspectiva de
Platão, ou seja, o pressuposto de que a arte deve constituir a base de toda a
educação, pelo que salienta a sua união indissolúvel e a sua importância em todos os
níveis de desenvolvimento da pessoa. Quando se refere ao papel da arte na educação
do homem, em geral, e da criança, em particular, o autor não se reporta ao domínio
restrito do ‘ensino das artes’ nem apenas ao âmbito exclusivo das ‘artes plásticas’. É,
antes, sua intenção referir-se a algo mais amplo, a uma ‘educação estética’ como uma
educação que engloba os vários modos de expressão individual – musical, dançada,
plástica, verbal, literária e poética – e que tem repercussões nas diversas faculdades
humanas. Como nos diz,
(…) A educação pode ser definida como o cultivo dos modos de expressão – é
ensinar crianças e adultos a produzir sons, imagens, movimentos, ferramentas e
utensílios. O homem que sabe fazer bem essas coisas é um homem bem educado.
Se ele é capaz de produzir bons sons, é um bom falante, um bom músico, um bom
poeta; se consegue produzir boas imagens, é um bom pintor ou escultor; se pode
produzir bons movimentos, um bom dançarino ou trabalhador; se boas ferramentas
ou utensílios, um bom artesão. Todas as faculdades, de pensamento, lógica,
memória, sensibilidade e intelecto, são inerentes a esses processos, e nenhum
aspecto da educação está ausente deles. (Read, 2001:12)
Com Read, conferimos importância a este papel inalienável de uma educação
estética a realizar-se preponderantemente na infância e a prolongar-se na
adolescência, dado que, no seu pleno sentido, é capaz de consumar a relação
harmoniosa do ser humano com o mundo exterior e, dessa forma, conseguir a
construção de uma personalidade integrada, ou seja, ligada a experiências e a valores
que incitam o indivíduo a resolver autonomamente os seus problemas. Trata-se, em
nosso entender, de, pela arte, privilegiar a comunhão entre o mundo exterior e o
mundo interior de cada um, ora como espectador ora como criador, tão importante a
uma vida adaptada e, assim, (…) pela arte o homem sente que domina e detém enfim
o poder de imobilizar e conservar, não só o que viu à sua volta, mas também o que
viveu dentro de si (Huyghe, 1986:13).
Este papel assumido pelo ensino das artes parece patentear-se no actual
sistema de ensino, validando os resultados já apresentados por alguns investigadores
13
Foi presidente da UNESCO e da Associação Internacional de Educação pela Arte (INSEA). É um dos
críticos e estudiosos da arte – filosofia da arte, história da arte, sociologia da arte e educação pela arte –
com maior representação nos países de língua inglesa.
36
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
nos anos 70 (Descombes, 1974, Sokolov, 1975, Coopersmith, 1976, e Harter, 1978,
cit. in Sousa, 2003:62). Trata-se do contributo de uma educação artística capaz de
promover o aumento da auto-estima, da auto-percepção e da auto-realização,
extremamente profícuo no fortalecimento de um EU interior em estreita relação com o
mundo envolvente e, por esse motivo, no modo de motivar as crianças para as
actividades escolares, em particular, e para a sua vida, em geral.
Não pretendemos aqui fazer a apologia de uma educação artística como
veículo de ensinamentos técnicos e teóricos circunstanciados, ou seja, entendemos
que a promoção integral do EU por via da arte não se deve limitar à inclusão curricular
de disciplinas específicas, como Educação Visual e Tecnológica, Música, Dança,
Teatro, entre outras. Entendemos, pois, que qualquer situação educacional, em
contexto curricular artístico ou outro, deve constituir pretexto inadiável para estimular
nas crianças ou jovens a sua atitude estética e, consequentemente, a sua capacidade
para formular juízos de gosto. Por atitude estética, entendemos a vivência do ser
humano caracterizada por uma predisposição para se emocionar face a seres e
situações naturais, bem como a obras produzidas pelo homem, valorizando-as em
termos de beleza. Por juízo estético, entendemos a formalização e exteriorização das
impressões vividas pelo sujeito durante a criação ou contemplação dos objectos belos
da natureza e da arte. Pela análise etimológica do termo grego ‘estética’ – aisthésis –,
que significa ‘sensibilidade’, a experiência estética que a educação deve privilegiar
implica quer uma dimensão cognitiva, ou de captação sensorial dos objectos, e uma
dimensão afectiva, ou seja, a vivência de sentimentos e emoções, que se traduzem
em admiração ou repúdio.
Portanto, pela via artística, e pelos aspectos emocionais e afectivos que a ela
andam associados, objectivos como o ‘conhecer’, o ‘saber’ e o ‘aprender’ devem ser
complementados com o ‘sentir’, o ‘criar’ e o ‘descobrir’, com o intuito de se atingir a
plena realização do desenvolvimento cognitivo, afectivo e social da criança ou jovem.
Mais do que ensinar arte, trata-se de a utilizar como meio de educação, ou seja, como
estratégia propiciadora da construção da personalidade de cada um. Educar para e
pela arte consiste, assim, em oferecer uma ferramenta cultural – segundo Vygotsky
(1930/60) –, uma alavanca de conhecimento – segundo Bruner (1997) –, e uma forma
inovadora de semear pomares de ideias – segundo Gopnik (1991) (cit. in Bahia,
2002A: 21).
Facilmente constatamos que, de acordo com a educação tradicional, há uma
certa tendência para se ensinar a criança a falar antes de perceber o que ouve,
37
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
ensiná-la a ler antes de saber falar ou ensiná-la a desenhar ou a pintar antes de saber
manusear os materiais e a sentir a realidade envolvente. Interessa, contudo, conceder
tempo necessário para compreender a criança nas suas emoções, necessidades,
interesses, desejos e na sua procura de felicidade (Sousa, 2003:81-82).
Neste sentido, a Educação pela Arte, nas suas diversas áreas – música,
pintura, dança, teatro, etc. –, e por meio da expressividade, da imaginação e da
sensibilidade que lhe são intrínsecas, vem permitir à criança uma maior liberdade de
expressão emocional e, consequentemente, uma base psicológica consistente para
lutar contra eventuais frustrações e para realizar aquisições cognitivas. Como surge
consignado no Decreto-lei nº 344/80, de 2 de Novembro (art. 2º), um dos objectivos da
Educação Artística consiste em:
a) Estimular e desenvolver as diferentes formas de comunicação e expressão
artística, bem como a imaginação criativa, integrando-as de forma a assegurar um
desenvolvimento sensorial, motor e afectivo equilibrado.
Pelo exposto, torna-se legítimo afirmar que, na infância, as primeiras
experiências artísticas constituem, muitas vezes, o critério de distinção entre as
crianças adaptadas e felizes e aquelas que manifestam dificuldades de adaptação ao
meio sócio-cultural. Como nos diz Lowenfeld (1977:19), para as crianças,
a arte pode constituir o equilíbrio necessário entre o intelecto e as emoções. Pode
tornar-se como um apoio que procuram naturalmente – ainda que de modo
inconsciente – cada vez que alguma coisa os aborrece; uma amiga à qual as
crianças se dirigirão, quando as palavras se tornarem inadequadas.
Portanto, aquelas crianças para quem a oportunidade de aproximação ao
mundo da estimulação artística se afigura irrealizável, permanecerão arredadas da
dimensão do sonho e da força comunicativa dos objectos à sua volta, num
comprometimento significativo do seu desenvolvimento global. Por sua vez, aquelas
que vivam num ambiente de estimulação estética, sentir-se-ão sempre estimuladas
por tudo aquilo que as rodeia. Desde cedo, incitadas a usar os seus olhos, o seu tacto,
a sua audição e os seus sentimentos, reagirão ao mundo de modo sensitivo, serão
sensíveis às mudanças e serão maleáveis perante a diversidade de estímulos que
virão ao seu encontro (Lowenfeld, 1977:42).
38
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
2. O papel da expressão plástica no desenvolvimento infantil
A promoção de uma educação artística deve permitir que a criança se exprima
livremente, através de uma atitude estética que se revela quer na contemplação, quer
na criação. Desta forma, consegue-se uma exteriorização de sentimentos, ideias e
emoções que têm como reflexo um mundo de múltiplas percepções e vivências.
Para a consecução deste objectivo, em muito contribui o domínio da
expressão plástica, circunscrita no nosso estudo ao desenho e à pintura, pois, se por
um lado, não podemos escamotear o poder que as imagens exercem no mundo
actual, por outro lado, a esfera das cores, das formas e das texturas, que se observa
ou que se produz num misto de racionalidade e instinto, constituem um meio
primordial de estimulação da sensibilidade e do prazer sensorial.
Curiosamente, o prazer sensorial manifesta-se com mais intensidade e pureza
na infância que na idade adulta, o que legitima a sua exploração em contexto
educacional. Há uma diferença significativa entre a actividade plástica da criança ‘cujo
dom a controla’ e a do adulto ‘que controla o seu dom’ (Malraux, cit. in Gardner,
1999:86). Embora a criança possa estar ciente que está a produzir algo diferente do
adulto, ela não se preocupa com as regras e as convenções. Pelo contrário, o adulto
tem nessas regras e convenções as directrizes do seu trabalho ou mesmo os
elementos a rejeitar, muitas vezes à custa de um grande abalo psicológico. O próprio
Picasso (cit. in Gardner, 1999:85) adverte: Costumava desenhar como Rafael, mas
levei uma vida inteira para aprender a desenhar como uma criança. A mesma ideia
surge reiterada com Matisse (cit. in Rodrigues, 2002:11):
O artista deve ver tudo como se estivesse a ver pela primeira vez. É preciso ser-se
capaz de ver pela vida fora como quando em criança víamos o mundo, pois a
perda desta capacidade de ver significa, simultaneamente, a perda de toda a
expressão original.
Todavia, o elo de ligação entre ambos está patente, pois, quer para a criança
quer para o adulto, uma actividade artística proporciona os meios para expor e
transpor ideias e emoções de grande significado que não se prestam a discussão
verbal (Gardner, 1999:86). Para ambos, a criação surge como uma possibilidade de
expressar sentimentos, emoções e afectos inerentes a um EU íntimo que se dirige aos
outros e, dessa forma, promove o fortalecimento do EU social.
39
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
De qualquer modo, a autenticidade da expressão e a criatividade são duas
referências primordiais que o professor deve respeitar e estimular. Por isso, é
importante ser sensível aos aspectos mais inesperados da imaginação criadora da
criança. No campo das artes plásticas, tanto as obras figurativas como as abstractas
devem constituir material de suporte a analisar e, nessa medida, a servir de estímulo à
capacidade de interpretação da criança. Os borrões, as manchas ocasionais, as
nuvens ou o céu podem ser lugar da projecção do comportamento humano; daí que
Leonardo da Vinci aconselhasse os seus discípulos a observarem essas manchas
para estimularem a sua capacidade visionária (Rodrigues, 2002:11).
Devendo
a
técnica
ser
subsidiária
da
expressão,
a
qualidade
do
desenvolvimento global da criança em muito depende da quantidade e qualidade dos
estímulos que o educador oferece. Facilmente uma forma abstracta, o azul, uma flor,
uma mancha ou a linha do horizonte são elementos sugestivos e desencadeadores da
expressão e da criatividade. Trata-se de permitir à criança sentir a forma, a cor ou a
linha como elementos expressivos, isto é, carregados de uma simbologia mais
implícita que explícita.
De um modo geral, a criança manifesta prazer ao desenhar ou ao pintar,
através da multiplicidade de materiais e técnicas que o adulto lhe coloca ao dispor.
Todavia, a possibilidade de contacto com a obra de arte – em locais a visitar ou em
recursos bibliográficos – permite potenciar aquela satisfação, pois passa a ter ao seu
alcance novas fontes de inspiração e novas formas de materializar a sua criatividade.
Nesta atitude de estimulação da experiência estética da criança, o professor
estará a fomentar a expressão livre daquela, o que pesa sobremaneira na vertente
afectiva e relacional da criança. Ao ser incentivada a exprimir-se livremente em
momentos de contemplação e de criação, intensifica-se a consolidação da sua autoconfiança e da sua auto-estima, o que se traduz numa maior eficácia das relações
interpessoais, pois a criança torna-se mais responsável, cooperante e aberta ao outro.
Ao cultivar a sua expressão pessoal e ao respeitar a formulação do juízo de gosto dos
pares, a criança torna-se capaz de realizar trabalhos individuais e colectivos que são a
marca de uma infância livre e feliz (Lowenfeld, 1977:39).
Por esta via, entendemos que o desenvolvimento emocional e social surge
impulsionado através da arte, em geral, e da expressão plástica, em particular, o que
radica numa estimulação preferencial do pensamento divergente – intuitivo, flexível e
criativo –, face ao pensamento convergente – lógico, objectivo e concreto, tal como
foram analisados por Guilford. Na verdade, é o pensamento divergente
40
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
que caracteriza o espírito de aventura e de fantasia, o pensamento do artista, do
sábio, do pioneiro, do inovador, também a forma de pensamento dominante na
criança de idade pré-escolar. Digamos que o pensamento divergente é a própria
tradução, no plano psicológico, do termo ‘criatividade’ (Clero, 1980:36).
Dado que cada ser humano manifesta estas duas formas de pensar
complementares, cabe à escola e aos educadores criarem e ampliarem as condições
que favoreçam o seu desenvolvimento harmonioso e, nessa medida, a construção
integral da pessoa.
Ainda que todos os indivíduos sejam potencialmente criativos e a sua
criatividade se possa cultivar individualmente e em grupo (Gonçalves, 1991:23), no
nosso estudo importa atentarmos na realidade das crianças sobredotadas,
independentemente da(s) área(s) em que elas manifestem talento superior.
Assim, de acordo com os seus aspectos idiossincráticos genéricos, delineados
no capítulo anterior, sobretudo no que concerne ao plano das aprendizagens e da
criatividade, às características motivacionais, de liderança e sócio-morais, a expressão
plástica permite uma resposta espontânea e livre para as necessidades mais
prementes das crianças.
Atendendo à concepção apresentada por Renzulli, situamos a expressão
plástica como estratégia que confere sentido mais amplo a uma aptidão cognitiva
elevada, mas essencialmente à criatividade e ao envolvimento nas tarefas que tão
frequentemente identificam o comportamento do sobredotado. Se desenvolver o poder
de discriminação em relação às formas e cores, sentir a composição de uma pintura e
tornar-se capaz de identificar o que está representado, requer trabalho e motivação do
sujeito (Fróis et al., 2000:201), na criança que possui talentos superiores, estas
características, na maioria das vezes, já são um dado, mas urgem ser acompanhadas.
Por isso, em nosso entender, trata-se de tomar o desenho e a pintura como
actividades cujo prazer proporcionado é compatível, por um lado, com a perseverança
e a motivação inesgotáveis, e, por outro, com um pensamento sobremaneira criativo e
divergente.
Todavia, se atendermos às dissincronias mais comuns, evocadas por
Terrasier, essencialmente a que se refere ao desfasamento inteligência-afectividade,
entendemos mais facilmente o papel da expressão plástica. Como referimos, uma vez
que a aptidão intelectual destas crianças em muito ultrapassa o seu equilíbrio afectivo,
o seu ego mune-se de certas estratégias inconscientes capazes de libertar, de forma
41
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
disfarçada, tensões e frustrações acumuladas. Entendemos que a compensação
emerge preferencialmente na criação plástica como mecanismo de defesa contra a
eventual fragilidade psicológica da criança, seja ela real ou apenas sentida; e a
projecção surge na contemplação como um reflexo do EU íntimo da criança, a
necessitar de análise por parte do adulto.
Se considerarmos ainda a perspectiva de Winner, no que concerne às
necessidades sócio-emocionais e que contrariam o quadro de saúde psicológica
destas crianças, apontado por Terman, então teremos que tomar a expressão plástica
como possível actividade de índole ‘terapêutica’: porventura estas crianças poderão
encontrar na expressão plástica a forma mais acessível e menos penosa de transferir
o seu sofrimento, angústias e ansiedades, essencialmente, por se sentirem
incompreendidas por todos aqueles que as rodeiam – família, pares e professores – e,
dessa forma, granjear o auto-conhecimento e a superação das dificuldades de
adaptação aos contextos socais, em geral, e, ao contexto escolar, em particular.
Talvez por aí seja possível esbater (…) a monotonia, a rotina, o desperdício de tempo,
a hostilidade dos colegas, a independência rebelde e a atitude de alguns professores
(Serra, 2004:25) que frequentemente têm consequências nefastas no desempenho
destes alunos.
É justamente este o nosso propósito: averiguar o papel da expressão plástica
no mundo afectivo e relacional da criança sobredotada e observar o modo peculiar de
sobredotação no domínio da expressão plástica, o que, remete, necessariamente,
para algumas estratégias susceptíveis de garantir a máxima felicidade para estas
crianças.
3. A criança sobredotada no domínio das artes plásticas
Do conjunto das crianças que poderão ser identificadas como sobredotadas e
para as quais a expressão plástica pode assumir importância crucial na expressão dos
seus sentimentos, emoções e afectos, com maior ou menor influência na sua vida
relacional, o nosso enfoque vai, neste ponto, para a análise das crianças que
manifestam um talento superior no domínio das artes plásticas, designadamente, no
desenho e na pintura.
Não obstante as dúvidas inerentes à medição e definição do talento artístico,
parece estar fora de questão que certas crianças e jovens possuem uma aptidão
natural para a competência nas artes. Independentemente das suas habilidades em
42
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
desporto, em relações interpessoais ou de pensamento lógico, demonstram desde
cedo um fascínio e uma aptidão para progredir rapidamente nos sistemas de símbolos
das várias formas de arte. Daí que, façam esboços e pintem com facilidade, cantem e
façam rimas primorosamente (Gardner, 1999:85).
Esta capacidade para perceber o mundo visuo-espacial através da
sensibilidade à cor, à forma e ao espaço, bem como para realizar transformações nas
percepções, permite-nos afirmar, no âmbito da Teoria das Inteligências Múltiplas
apresentada por Gardner, e anteriormente analisada, que a criança sobredotada no
domínio das artes plásticas apresenta uma inteligência espacial, cujas aptidões se
evidenciam, possivelmente em estado combinatório com outras inteligências,
sobretudo a ‘cinestésica corporal’ e a ‘interpessoal’. Todavia, como vimos no Capítulo
1, Nilson Machado (cit. in Antunes, 2004:60-61), no prolongamento da teorização
acerca da inteligência espacial, situa uma inteligência pictórica, à qual circunscreve as
aptidões mais directamente relacionadas com as actividades plásticas, ou seja,
inerentes à capacidade para dotar os desenhos e as pinturas de expressão e beleza.
No que concerne à identificação da sobredotação neste domínio, Lowenfeld
(1977:53) chama a atenção para a necessidade do adulto distinguir claramente entre
crianças que possuem dotes raros para os trabalhos de criação artística, e as que, em
virtude das suas habilidades especiais, parecem ser bem dotadas. Ainda que as
primeiras sejam criativas e tenham facilidade de expressão, as realmente talentosas
expressam-se artisticamente sem nenhuma motivação especial e não têm como
preocupação criar algo ‘agradável’ ao gosto do espectador, pelo que, muitas vezes,
dada a dificuldade de entender a sua arte, o reconhecimento do seu talento não é
imediato.
Actualmente, a identificação de talentos na área das artes plásticas é realizada
com base em critérios específicos, como por exemplo, aqueles que são utilizados pelo
Gifted Education Resource Institute, nos EUA, e que consistem em submeter o
candidato a um conjunto de quatro desenhos originais – figura humana, natureza
morta, paisagem e um desenho de imaginação – feitos com lápis, tinta ou carvão, os
quais são posteriormente avaliados por uma equipa de especialistas (Alencar & Fleith,
2001:78).
A concepção de outros autores, como Reis & Renzulli (1997:44), aponta para a
afirmação de um comportamento dotado (para as artes plásticas) actual e operatório,
contrariando a tese de uma natureza dotada. Consideram, assim, que os indivíduos
talentosos são pessoas cometidas com o viver, empenhadas na busca de objectivos
43
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
ambiciosos, para quem o esforço pode representar dor ou prazer. Na verdade, de
acordo com as biografias dos mais talentosos e criativos, como Leonardo da Vinci,
Picasso, Beethoven, Pasteur, estes indivíduos mostraram-se auto-confiantes,
curiosos, arrojados, intuitivos, flexíveis, energéticos e indomáveis (Davis, 1991:174275; cit. in Zamith-Cruz & Soares, 2002:41), ainda que os seus resultados escolares
nem sempre correspondessem a este nível de sucesso.
Todavia, de acordo com a análise de Winner e Martino (2000, cit. in Alencar &
Fleith, 2001:78) afigura-se legítimo afirmarmos que a criança sobredotada na
expressão plástica é capaz de codificar informação visual de forma aprimorada, de
perceber o mundo mais em termos de formas do que em conceitos e manifesta uma
memória visual acima da média. São estas qualidades que lhe vão permitir capturar as
formas precisas dos objectos, representar a ilusão do volume e da profundidade,
desenhar com perspectivas invulgares e explorar o mesmo tema de modo exaustivo.
Se atendermos às características do desenho da criança sobredotada, tendo
como padrão de comparação os diferentes estádios do desenvolvimento do desenho
infantil configurados por Burt14 (1927; cit. in Read, 2001:130-132), algumas
generalizações apontadas por Winner15 (1996:91-101) constituem referência essencial
na nossa análise. Segundo a autora (1996:91),
A aptidão mais importante da criança sobredotada nas artes visuais é a
precocidade espacial-visual e motora, que torna possível captar os contornos de
objectos tridimensionais para uma superfície bidimensional.
Esta aptidão, enquanto a maior parte das crianças rabisca até cerca dos 3
anos, permite à criança sobredotada desenhar formas bem definidas e reconhecíveis
por volta dos 2 anos e, enquanto as crianças em idade pré-escolar desenham
esquematicamente por adição – por justaposição de formas geométricas – as
sobredotadas tendem a desenhar todo o objecto com uma linha de contorno fluida e
confiante, com uma grande riqueza de pormenores16 e partindo de um ponto invulgar;
14
Cf. Anexo 1.
Winner considera mais adequado designar as crianças com aptidão excepcional para a arte ou para a
música “talentosas” do que “sobredotadas”, dado reservar o termo "sobredotado” para o âmbito
escolástico. Todavia, na análise do talento superior na área artística nestas verifica que as possuem os três
componentes que, na sua perspectiva, identificam a sobredotação – são precoces, caminham ao seu
próprio ritmo e manifestam um desejo intenso de dominar os conhecimentos –, pelo que utiliza de modo
recorrente o termo “sobredotado”.
16
Cf. Anexo 2.
15
44
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
por exemplo, Picasso (Richardson17, 1991; cit. in Winner, 1996:92) conseguia
desenhar um cão, a partir de uma orelha, sem que isso implicasse um decréscimo de
velocidade ou de confiança na execução da tarefa. Relativamente à composição do
desenho, contrapondo a natural evolução da criança para a simetria – tendência para
alinhar objectos ao longo de uma linha horizontal – a criança sobredotada utiliza aquilo
a que Rudolf Arnheim (cit. in Winner, 1996:97) chamou “equilíbrio dinâmico”, ou seja, a
procura do equilíbrio do desenho, através da distribuição harmoniosa das formas e das
cores; por exemplo, uma forma grande do lado direito é, normalmente, compensada
com uma mais pequena do lado esquerdo. O desenho da criança sobredotada é ainda
singular pela ilusão de realismo que ela consegue em idade anterior àquela que é
mais comum, não só pelos pormenores patentes no desenho, mas também pelo
recurso às várias técnicas para sugerir a profundidade18 – escorços, ocultação parcial,
redução de tamanho, modelagem e perspectiva linear – o que, em situações normais,
ocorre preponderantemente no final da infância ou no início da adolescência. Por outro
lado, enquanto que a maioria das crianças escolhe quase sempre a mesma orientação
das figuras no desenho – frontal ou lateral –, as crianças mais talentosas variam
frequentemente a posição das mesmas.
Em jeito de conclusão, Winner alerta para a necessidade de interpretarmos as
características do desenho da criança sobredotada no âmago do seu meio sóciocultural e das estimulações externas que lhe são proporcionadas pelos seus agentes
de socialização, pois estes elementos são condição sine qua non de um talento
excepcional artístico ora potenciado ora comprometido. Daí que, tal como afirma
Gardner (1999:167-168),
Os destinos destas crianças são (…) variados: algumas (como Mozart e Picasso)
seguem adiante e tornam-se génios reconhecidos; muitos outros resvalam para o
esquecimento ou tornam-se praticantes medíocres de uma especialidade.
Por este motivo, ganha sentido a actuação de pais e professores que, uma vez
atentos à especificidade dos talentos da criança, artístico ou outros, procura conceber
e implementar estratégias adequadas à optimização do seu desenvolvimento global
e/ou das suas aptidões expressivas e criativas.
17
18
Um dos biógrafos de Picasso.
Cf. Anexo 3.
45
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
4. Estratégias de Intervenção
Tal como vem sendo referido, a realidade específica das crianças e jovens
sobredotados exige uma intervenção educativa que tenha em conta as suas
necessidades peculiares, de modo a potenciar as suas competências e a evitar
possível subaproveitamento, desencadeado por atitudes de desinteresse face às
actividades escolares. Portanto, atendendo à necessidade cada vez mais premente de
implementar esforços no sentido da prossecução de uma verdadeira escola inclusiva
e, concomitantemente, de uma sociedade mais justa, as medidas educativas
diferenciadas para as crianças sobredotadas não devem ser esquecidas ou
deliberadamente entregues ao critério exclusivo da sensibilidade e da boa vontade dos
professores e das escolas. Na verdade,
Todas as crianças e jovens têm direito a uma flexibilização das respostas
educativas produzidas pela escola de maneira a respeitar as características
individuais de cada criança, bem como o seu universo de relações e as
circunstâncias próprias do seu desenvolvimento (Paixão, cit. in Ministério da
Educação, 1998:4).
Infelizmente, as directrizes legislativas do nosso país carecem ainda de
investimento convicto na apresentação de estratégias concretas de apoio e
atendimento às crianças e jovens sobredotados, sobretudo quando atendemos ao que
vem sugerido no Enquadramento Teórico da Declaração de Salamanca (1994:17), nos
seguintes termos:
O princípio orientador deste Plano de Acção consiste em afirmar que as escolas se
devem ajustar a todas as crianças, independentemente das suas condições físicas,
sociais, linguísticas ou outras. Neste conceito, devem incluir-se crianças com
deficiência ou sobredotadas, crianças da rua ou crianças que trabalham, crianças
de populações remotas ou nómadas, crianças de minorias linguísticas, étnicas ou
culturais e crianças de áreas ou grupos desfavorecidos ou marginais.
No domínio nacional, em muito a realidade se distancia daqueles ideais, pois
os responsáveis do Ministério da Educação circunscrevem a educação especial e as
necessidades educativas às deficiências, dificuldades e vulnerabilidades dos alunos
(Miranda & Almeida, 2002; cit. in Miranda & Almeida, 2005:3266). A escassa atenção
46
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
às necessidades dos alunos sobredotados é provavelmente explicada à luz da crença
de que estes alunos são, por natureza intrínseca, dotados e, nessa medida,
desprovidos de fragilidades e problemas (Tourron & Renyero, 2000; cit. in ibidem).
É certo que, muito recentemente, este domínio testemunhou um avanço
assinalável, pois, pelo que vem consignado no Despacho Normativo nº 50-2005
(art.5º), vemos reconhecida a necessidade de criar planos de desenvolvimento para
alunos que revelem capacidades excepcionais (ponto 2), nas nossas escolas, de
modo a prover respostas adequadas àquilo que são, ora as suas idiossincrasias, ora
as suas dissincronias. Indica o referido documento (art. 5º, ponto 3) que o plano de
desenvolvimento pode incluir, entre outras, as seguintes estratégias:
a) Pedagogia diferenciada na sala de aula;
b) Programas de tutoria para apoio a estratégias de estudo, orientação e
aconselhamento do aluno;
c) Actividades de enriquecimento em qualquer momento do ano lectivo ou no
início de um novo ciclo.
A partir de então, pela via legal, o conjunto das eventuais estratégias a
implementar junto dos sobredotados ganha novo impulso e sentido, parecendo deixar
margem significativa para o empenho, a autonomia e a criatividade dos docentes –
diversificação de metodologias e estratégias – no sentido de adequar o plano de
desenvolvimento não só às habilidades ou capacidades superiores de cada criança e
às suas áreas fracas, como também ao seu ritmo e ao seu estilo de aprendizagem
próprios.
De qualquer forma, a actuação das escolas e de cada docente junto destas
crianças requer a consideração de muitos dos objectivos gerais que alguns
investigadores procuraram definir no âmbito da concepção de programas de
atendimento ao sobredotado. Tannenbaum (1983, cit. in Alencar & Fleith, 2001:125),
sem descurar o papel deliberativo de cada escola, indica os seguintes objectivos
apropriados à maior parte dos programas:
1. Ajudar aqueles indivíduos com um alto potencial a desenvolver ao máximo os
seus talentos e habilidades.
2. Favorecer o seu desenvolvimento global, de tal forma que venha a dar as
maiores contribuições possíveis à sociedade, possibilitando-lhe, ao mesmo tempo,
viver de uma forma satisfatória.
47
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
3. Fortalecer um auto-conceito positivo.
4. Ampliar as experiências desses alunos em uma diversidade de áreas e não
apenas em uma área especializada do conhecimento.
5. Desenvolver no aluno uma consciência social.
6. Possibilitar ao aluno uma maior produtividade criativa.
Objectivos idênticos estão patentes numa análise dos vários programas de
atendimento ao sobredotado, realizada por Arn e Frierson (1971, cit. in Alencar &
Fleith, 2001:125-126), de entre os quais se salientam:
1. Melhores oportunidades para o crescimento académico através da provisão de
condições que favoreçam o desenvolvimento de habilidades nesta área.
2. Desenvolver bons hábitos de trabalho e de estudo.
3. Incrementar um clima de aprendizagem que resulte em maior produtividade.
4. Incrementar a motivação.
5. Favorecer o ajustamento pessoal e emocional.
6. Promover o desenvolvimento social.
7. Oferecer melhores oportunidades que atendam ao ritmo individual de
crescimento e aprendizagem.
8. Possibilitar a expansão dos interesses.
9. Desenvolver valores estéticos.
Ainda que os referidos objectivos testemunhassem uma grande diversidade,
estes autores, partindo da análise dos diferentes programas realizados nos EUA,
verificaram um enfoque significativo no desenvolvimento de habilidades académicas,
em detrimento de outros aspectos, como por exemplo, o desenvolvimento dos valores
estéticos e o desenvolvimento social e afectivo (Alencar & Fleith, 2001:126).
Mais recentemente19, o interesse pela resposta às necessidades destas
crianças e jovens surge reforçado e direccionado para o desenvolvimento de vários
domínios: cognitivo, mas também social e afectivo (ibidem).
Tendo em conta os objectivos evidenciados por aqueles investigadores, sem
descurar o necessário atendimento à diversidade dos talentos individuais, à
singularidade de cada criança e à diversidade dos meios de acesso aos
conhecimentos, de acordo com a multiplicidade de modelos culturais, sociais ou
19
Nos EUA, em 1983, mais de 1 220 000 alunos talentosos ou intelectualmente superiores encontravamse a participar em programas especiais, o que atesta o interesse crescente em atender estas crianças ou
jovens de uma forma adequada (Oglesby & Gallagher, cit. in Alencar & Fleith, 2001:127).
48
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
intelectuais das nossas sociedades (Ministério da Educação, 1998:4), afigura-se-nos,
poderem a arte, em geral, e a expressão plástica, em particular, contribuir para uma
intervenção mais eficaz e profícua. Para além disso, a fundamentação teórica em
torno da importância da expressão plástica para o desenvolvimento infantil, realizada
no capítulo anterior, constitui razão para supor que o desenho e a pintura poderão
constituir estratégias de enriquecimento benéficas a incluir num possível plano
individualizado.
Ainda que a aceleração represente uma forma de responder às necessidades
do sobredotado, por meio da sua admissão precoce na escola ou do cumprimento em
menos tempo, do programa de um determinado ciclo de estudos20, as estratégias de
enriquecimento, que consistem na diversificação da oferta de oportunidades
educativas no sistema de ensino regular, são as mais comuns, envolvem menos riscos
e reflectem uma maior consonância com os ideais da Escola Inclusiva (Alencar &
Fleith, 2001:127-141; ME, 1998:21-22; Freeman & Guenther, 2000:109-133). Como
defende Hill (cit. in Freeman & Guenther, 2000:124), as actividades de enriquecimento
permitem:
aumento na capacidade de analisar e resolver problemas, desenvolvimento de
interesses mais valiosos e mais profundos; estimulação da originalidade, iniciativa
e autodirecção.
As vantagens das estratégias de enriquecimento são evidenciadas por Renzulli
(1978, 1986, 1994; cit. in Alencar & Fleith, 2001:134-137, Benito & Alonso, 2004C:174)
ao propor um modelo de enriquecimento escolar (Modelo de Enriquecimento
Triádico/Porta Giratória) constituído por três tipos de actividades associadas –
Enriquecimento de Tipo I, que consistem em actividades exploratórias gerais que
expõem os alunos a novos campos de conhecimento, dinamizadas por uma
diversidade de procedimentos, como palestras, exposições, mini-concursos, visitas,
etc; Enriquecimento de Tipo II, constituído pela utilização de métodos, materiais e
técnicas que promovem o desenvolvimento de níveis superiores de processos de
pensamento (analisar, sintetizar e avaliar), de habilidades criativas e críticas, nas
20
Em Portugal, esta medida foi tornada possível no 1º ciclo do ensino básico no quadro normativo
estabelecido conjuntamente pelo Despacho nº6/SERE/88 de 6 de Abril, pelo Dec. Lei nº 319/91, de 23 de
Agosto e pelo Despacho nº 173/ME/91 de 23 de Outubro, prevendo-se a possibilidade de cumprimento
acelerado do programa do 1º ciclo, assim como o ingresso no primeiro ano do ensino básico a crianças
que completem 5 anos até ao início do ano escolar e cuja avaliação psico-pedagógica conclua pela
existência de precocoidade excepcional a nível do desenvolvimento global (ME, 1998:21).
49
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
habilidades de pesquisa, de busca de referências bibliográficas e processos
relacionados com o desenvolvimento pessoal e social; e Enriquecimento de Tipo III,
cujas actividades permitem que os alunos se tornem investigadores de problemas
reais e, nessa medida, produtores de conhecimento, em vez de meros consumidores
da informação existente.
Mais recentemente, Renzulli (1997; cit. in Alencar & Fleith, 2001:134-137)
apresentou uma nova proposta de intervenção – Grupo de Enriquecimento – que
reflecte uma ampliação das estratégias de enriquecimento anteriores. Consiste em
constituir grupos de alunos que partilham interesses idênticos e, em encontros
regulares fora do horário escolar, têm oportunidade de desenvolver projectos
baseados nesses interesses. Trata-se, assim, de actividades extra-curriculares que
promovem
o
conhecimento
avançado
numa
área
específica,
estimulam
o
desenvolvimento de habilidades superiores de pensamento e incentivam a aplicação
destas em situações criativas e produtivas (Renzulli, 1997; cit. in Alencar & Fleith,
2001:137)
Numa perspectiva teórica idêntica, Freeman e Guenther (2000:127-128)
apresentam
um
conjunto
de
sugestões
para
organizar
as
actividades
de
enriquecimento21, das quais destacamos as 5ª e 10ª orientações, designadamente, a
que se refere à implementação de apoio ao enriquecimento através de clubes e
associações da comunidade, e a que propõe a realização de trabalho fora do horário
escolar, com especialistas ou professores, através de cursos, projectos ou outras
iniciativas.
As concepções teóricas até aqui consideradas no âmbito das estratégias de
enriquecimento, constituem o fundamento da eventual possibilidade das actividades
de expressão plástica, a implementar no contexto escolar de sala de aula ou de
situação extra-curricular, darem resposta às necessidades das crianças e jovens
sobredotados, a exigir, todavia, novas investigações. Conjecturamos, nessa medida, o
possível contributo da dinamização de uma oficina de expressão plástica, para a
promoção do desenvolvimento global do indivíduo – cognitivo, afectivo e relacional –,
através de um conjunto de actividades que incidam preponderantemente na
estimulação das inteligências espacial e pictórica, à luz das directrizes conceptuais de
Gardner e Machado, respectivamente.
21
Cf. Anexo 4.
50
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
II PARTE
INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA
CAP. 1 - Aspectos Metodológicos
1.
Problemática e questões de investigação
Pelo exposto no Enquadramento Teórico, à luz de várias perspectivas e
conceitos propostos, concluímos acerca da especificidade do sobredotado, nas
vertentes cognitiva, afectiva e social, a exigir medidas concretas de intervenção nos
diferentes domínios da sociedade onde esta criança ou jovem se encontra inserido.
Todavia, é das escolas, em geral, e dos professores, em particular, que se espera a
concepção e a implementação sistemática de um conjunto de estratégias mais
eficazes, conducentes a uma vida adaptada e feliz destas crianças e jovens. Não
podemos, por isso, ignorar que
Quer pelos dons de inteligência, pelos talentos mais variados, quer pelos
interesses manifestados desde cedo para este ou aquele campo da vida, da
natureza, de máquinas, da beleza e harmonia de formas e expressão artística …
ou interesses voltados para relações sociais, organização de grupos para fins os
mais variados, ou ainda interesse em produzir riqueza… esses alunos, crianças ou
adolescentes, reclamam atenção especial e compreensão por parte dos mestres.
(Helena Antipoff, 1973. cit. in Freeman & Guenther, 2000:71)
Deste modo, circunscrevemos a problemática do nosso estudo à necessidade
de encontrar estratégias concretas que constituam resposta efectiva às necessidades
específicas do sobredotado, o que aponta para uma questão essencial:
Constitui a experiência estética, enquanto contemplação e criação plástica,
resposta possível às necessidades da criança sobredotada na arte?
Em virtude da complexidade da referida problemática, esta questão de carácter
abrangente poderá desencadear outras de carácter mais específico, como sejam:
51
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
De que forma é que a criança sobredotada no domínio artístico expressa o
seu mundo sócio-emocional?
Como é que a criança bem dotada nas artes plásticas manifesta a
criatividade e a motivação22?
Quais as emoções evidenciadas pela criança na experiência estética –
contemplação e criação?
Qual
a
especificidade
do
desenvolvimento
relacional
da
criança
sobredotada em situação de experiência estética?
2.
Objecto de estudo e objectivos do estudo
O nosso estudo incide sobre o vasto domínio da sobredotação com enfoque
nas aptidões superiores que se evidenciam no âmbito da experiência estética e com
as possíveis ligações ao mundo emocional e relacional da criança sobredotada. Tratase de, pela arte (desenho e pintura), procurar perscrutar em contexto empírico o
alcance das propostas teóricas dos vários autores – Renzulli, Gardner, Machado,
Winner, Terrasier, Freeman e Guenther, entre outros – acerca das quais fomos
fazendo referência ao longo do presente trabalho.
A procura de eventuais respostas para as questões anteriormente formuladas
visa, essencialmente, compreender a forma peculiar como o sobredotado vivencia,
emocionalmente, o seu mundo psíquico e social. Neste sentido, concebendo a arte
como um veículo de significados, conceitos, emoções, representações internas e
externas, por excelência, pretendemos criar um conjunto de condições ideais, por
meio de experiências teórico-práticas, que sejam capazes de clarificar a especificidade
das crianças cujos talentos também se evidenciem no campo artístico, naquilo que são
as suas necessidades, características, interesses, motivações, afectos, relações, mas,
simultaneamente, dificuldades e conflitos.
Para além disso, face à ainda probabilidade da identificação, no decurso das
sessões, de comportamentos desajustados no que concerne à dimensão afectiva e
social de algumas crianças, indagaremos acerca do grau de influência da expressão
plástica nestas situações.
22
Alta criatividade e grande envolvimento com as tarefas (para além da habilidade acima da média)
constituem, segundo Renzulli, características, que os sobredotados mantêm estáveis ao longo da vida.
52
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Em última análise, pretendemos fundamentar a proficuidade das estratégias de
enriquecimento a realizar no contexto escolar, enquanto modelos de intervenção
susceptíveis de dar resposta aos interesses e necessidades dos mais talentosos. Ora,
como alegam Freeman e Guenther (2000: 123), mediante a estimulação intencional e
planeada, os programas de enriquecimento permitem aprofundar o currículo escolar
básico das crianças e jovens, naquilo que são os seus conhecimentos, informações e
ideias e, desta forma, ampliar a sua compreensão acerca de cada tema, assunto ou
área do saber.
Todavia, é de salientar que, no âmbito de uma perspectiva interventiva, a
implementação da referida estratégia não tem como objectivo único a optimização do
potencial cognitivo dos indivíduos; antes, numa perspectiva holística, defendida por
Alencar e Fleith (2001:105), pretendemos promover o seu crescimento social e
afectivo, de acordo com as competências de relacionamento interpessoal e de
conhecimento intrapessoal, num ambiente artístico propício à expressão, à criatividade
e à manipulação, susceptível de instauração em qualquer escola do nosso país.
3.
Formulação de hipóteses
Numa perspectiva que se pretende aberta à possibilidade de vir a encontrar
neste estudo conclusões que ora se distanciem ora se aproximem de certas
conjecturas, julgamos legítimo formular as seguintes hipóteses:
-
A experiência estética, pela natureza emocional implícita, pode constituir uma
forma de conhecer a realidade afectiva e social da criança sobredotada.
-
A criança sobredotada no domínio artístico encontra no desenho e na pintura
formas de satisfazer, a sua natureza criativa e os seus índices motivacionais, pela
via da contemplação e/ou da criação.
4.
Delimitação de conceitos
A formulação das hipóteses do nosso estudo exige a delimitação de certos
conceitos que, muito embora tenham constituído já objecto de análise na parte teórica
do presente trabalho, carecem de maior explicitação acerca do sentido em que são
evocados e utilizados na investigação empírica.
53
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Por atitude ou experiência estética, entendemos a vivência do ser humano
caracterizada por uma predisposição para se emocionar face a seres e situações
naturais, bem como a obras produzidas pelo homem, valorizando-as em termos de
beleza. A experiência estética envolve uma dimensão cognitiva, ou de captação
sensorial dos objectos, e uma dimensão afectiva, ou seja, a vivência de sentimentos e
emoções. Desta experiência emocional resulta necessariamente o juízo estético:
exteriorização das impressões vividas pelo sujeito durante a contemplação
(apreciação) dos objectos belos da natureza e da arte e/ou durante a criação
(produção) de objectos artísticos, por meio da criatividade.
Por criatividade, entendemos um pensamento de tipo divergente que, de
acordo com a distinção de Guilford, se distingue de um pensamento convergente, e
apresenta três aspectos essenciais: fluidez (capacidade para descobrir múltiplas
soluções), flexibilidade (capacidade para mudar de estratégia na resolução de um
problema) e originalidade (capacidade para descobrir novas formas para resolver
problemas). Situamos, por isso, o conceito de criatividade no âmago da Teoria dos
Três Anéis de Renzulli, segundo a qual, a criança sobredotada revela criatividade
através de uma grande curiosidade e de questionamento constante acerca de várias
coisas.
Por motivação, entendemos, genericamente, o conjunto de forças internas que
mobilizam a acção do indivíduo em direcção a determinados objectivos como resposta
a um estado de necessidade, carência ou desequilíbrio (Nuttin, 1985:16). Tal como a
criatividade, a motivação é circunscrita ao domínio teórico de Renzulli e, assim, a
criança demonstra grande motivação por meio de um acentuado envolvimento nas
tarefas, necessitando de pouca motivação externa para dar continuidade a um
trabalho que lhe agrada.
A emoção e a afectividade remetem para o âmbito da expressão dos
sentimentos que, normalmente, surgem com elementos cognitivos e psicológicos
associados (Feldman, 2001:344). É, por isso, nosso objectivo averiguar a forma como
a criança sobredotada na arte expressa aquilo que vivencia intrasubjectivamente.
Intrinsecamente ligada aos aspectos anteriores, a sociabilidade traduz, por sua
vez, a predisposição do indivíduo para o estar com os outros, numa relação de
abertura, cooperação e diálogo. Portanto, no âmbito das necessidades sociais e
relacionais da criança sobredotada, trata-se de averiguar a validade das teses que
incidem sobre esta problemática, sobretudo, a de Winner.
54
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
5.
Metodologia adoptada
Atendendo aos objectivos da nossa pesquisa, a opção metodológica que aqui
assumimos possui um carácter essencialmente qualitativo, constituindo-se como um
Estudo de Caso, um dos modos de investigação possíveis no domínio das estratégias
qualitativas. Consideramos que esta metodologia é a que mais se adequa ao estudo
de um fenómeno humano complexo, como aquele que pretendemos estudar – o
mundo afectivo-relacional da criança sobredotada no domínio artístico – que urge ser
compreendido a partir do seu interior. Ora, segundo De Bruyne et al. (cit. in LessardHébert, 1994: 168), o estudo de caso representa uma abordagem centrada num
campo real, porque não construído, aberto e não controlado, uma vez que não é
manipulável pelo investigador, sendo que o campo de investigação é analisado a partir
do seu interior.
Na verdade, este método implica uma análise profunda de um fenómeno
individual, que pode ser uma pessoa, uma turma, uma escola, uma organização, e
cuja única exigência es que posua algún limite físico o social que lhe confiera entidad
(Gómez, 1999:92). É, normalmente, usado em Ciências Sociais e Humanas com o
intuito de gerar hipóteses a partir de relações estabelecidas, tentar estabelecer
relações causais e explicações para os fenómenos observados, interpretar e avaliar as
situações ou seja, de uma forma genérica, explorar, descrever, explicar, avaliar e/ou
transformar.
Pretendemos, desta forma, adoptar um método de tipo holístico e indutivo,
susceptível de nos proporcionar uma análise exaustiva e pormenorizada do fenómeno
em estudo, a sobredotação, que, pela sua complexidade própria, requer uma base
metodológica de relação entre os dados progressivamente recolhidos e a sua
interpretação.
6.
Definição da amostra e população alvo
Trata-se, assim, de um estudo situado e contextualizado numa amostra de
crianças sobredotadas no domínio artístico, previamente identificadas, e com interesse
manifesto em participar no nosso estudo, através de aplicação de Ficha de
Diagnóstico susceptível de avaliar o grau de motivação das crianças e das suas
famílias para as actividades a realizar. O grupo será composto por seis a oito crianças
55
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
de ambos os sexos, que frequentam o projecto Sábados Diferentes na Escola Superior
de Educação de Paula Frassinetti, cujas idades podem variar entre os 9 e os 11 anos,
o que significa que, maioritariamente, frequentam o 2º Ciclo do Ensino Básico.
Assumimos, por conseguinte, que esta pesquisa não procura resultados que
possuam um elevado grau de generalização, ou seja, como entendem Bogdan e
Biklen (1994: 65-66), que os seus resultados sejam aplicáveis a locais e sujeitos
diferentes. Antes, o objectivo primordial prende-se com os significados subjectivos que
se patenteiam nas experiências de observação e criação plásticas, cujo alvo é um
grupo de crianças já identificadas como excepcionalmente talentosas na vertente
artística, ainda que manifestem habilidade superior noutros domínios.
56
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
CAP. 2 - Condições de Realização
1.
Estratégias a implementar
No sentido de desenvolver a investigação empírica do nosso trabalho e
encontrar possíveis respostas para a questão de partida – Constitui a experiência
estética,
enquanto
contemplação
e
criação
plástica,
resposta
possível
às
necessidades da criança sobredotada na arte? – propomos a concepção e
implementação de uma ‘oficina de expressão plástica’, onde o desenho e a pintura
constituam as formas privilegiadas de estimular a fruição e a criação do grupo de
crianças que constituem a nossa amostra.
No decurso das várias sessões teórico-práticas que pretendemos realizar, não
só a contemplação de obras de arte, como também a realização de trabalhos pelas
crianças serão objecto de análise/interpretação por meio da formulação de juízos de
valor estéticos, no sentido de aferir as suas representações afectivas e sociais.
Desta forma, procuramos estudar algumas das características específicas das
atitudes e comportamentos das crianças sobredotadas, que foram enfatizadas pelas
diversas perspectivas teóricas, no âmbito da criatividade, da motivação, da
afectividade, da emoção e da sociabilidade.
Para uma intervenção mais estruturada e eficaz, apresentamos no Quadro 1
um plano23 possível, de natureza flexível, ou seja, aberto a reajustamentos e
reformulações ao longo de todo o processo, em virtude do carácter dinâmico dos
comportamentos em análise e do carácter contínuo da sua avaliação.
23
As áreas a observar – criatividade, motivação, emoção/afectividade e sociabilidade – e as competências
gerais são transversais às diferentes estratégias/actividades e às competências específicas.
57
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Oficina de Expressão Plástica para Crianças Sobredotadas na Arte
Estimulação das Inteligências Espacial e Pictórica
ÁREAS EM
COMPETÊNCIAS
COMPETÊNCIAS
OBSERVAÇÃO
GERAIS
ESPECÍFICAS
Desenvolver
Criatividade
ACTIVIDADES /ESTRATÉGIAS
RECURSOS
- Aprender a
Actividade 1
Imagens
capacidades
observar o todo
(Anexo 5)
em suporte
cognitivas,
e o particular;
Observação/contemplaç
de papel e
Oficina de
afectivas e
- Reconhecer o
ão dos edifícios mais
em suporte
expressão
sociais
valor estético do
antigos da cidade do
informático
plástica em
património
Porto e registo, em
contexto
Ampliar a
artístico e
desenho, dos
escolar
sensibilidade
cultural da sua
pormenores captados
extra-
estética
região.
AVALIAÇÃO
Internet e
Actividade 2
observar,
computador
contemplar e
- Compreender a
(Anexo 6)
6
Contínua e
fruir o mundo
representação
Contemplação/interpreta
sessões
reajustável
natural e o
do rosto humano
ção da expressão do
Teórico-
ao
mundo artístico
e do olhar como
rosto patente nas obras
-práticas
processo
veículo de
Gioconda de Leonardo
Retroprojec
(120
Mobilizar
comunicação de
da Vinci e O Grito, de
tor
minutos
diferentes
expressões,
Munch
inteligências,
emoções e
experiências,
afectos;
Descodificação de
conceitos e
- Contextualizar
expressões e
saberes
as obras de
mensagens em
ou
cada)
Diapositivos
em
Leonardo da
diferentes registos
contexto
Conhecer as
Vinci e Munch;
fotográficos do olhar de
privilegiado
linguagens da
- Conhecer a
pessoas e animais
(projecto
expressão
corrente
plástica
expressionista
Desenho individual de
(desenho e
na pintura;
um rosto humano que
pintura)
- Ser capaz de
transmita um estado
Emoção/Afec
tividade
DURAÇÃO
-curricular
Aprender a
Motivação
LOCAL
Sábados
representar,
emocional e construção
Analisar/Interpret
através do
de um painel de grupo
ar criações
desenho do
com os trabalhos
plásticas
rosto humano,
individuais
Diferentes
na ESEPFTelas
Porto)
diferentes
Compreender a
Sociabilidade
expressões.
Actividade 3
obra de arte
como
Conhecer a
(Anexo 7)
manifestação do
técnica cadavre
Realização de cadavre
mundo exterior e
exquis;
exquis (jogo gráfico em
do mundo
- Conhecer o
papel dobrado; desenho
Pincéis
58
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
interior do
movimento
individual, mas com
criador
Surrealista
pintura colectiva)
Grafite
(utilizou a
Compreender
técnica cadavre
Atribuição de título ao
mensagens
exquis);
trabalho e exposição
visuais (cor,
- Ser capaz de
oral por cada grupo da
Lápis de
forma, textura)
resolver um
mensagem (código) do
cor
problema gráfico
trabalho realizado
Manifestar e
partindo de
partilhar juízos
algumas pistas
Contemplação,
de valor
(traços de
interpretação de
estéticos
ligação);
criações plásticas em
Canetas de
- Realizar
cadavre exquis
feltro
Desenvolver
trabalho
realizadas por outras
formas
colectivo de
crianças, seguida de
personalizadas
pintura,
formulação de juízos de
de expressão e
utilizando a cor
valor estéticos
comunicação
como elemento
Lápis de
de ligação.
cera
Relacionar-se
emotivamente
- Conhecer a
Actividade 4
com a obra de
técnica frottage
(Anexo 8)
arte
(textura por
Desenho e pintura em
fricção);
frottage:
Expressar
- Conhecer
captar a textura de uma
sentimentos,
obras realizadas
superfície irregular ou
emoções e
com a técnica
áspera, numa folha de
afectos
frottage (Max
papel, através da fricção
Ernst);
com lápis de cera,
Mobilizar
-Desenhar/pintar
pastel ou grafite;
diferentes
sobre fotocópias
e fazer desenho livre
Acrílico/
inteligências,
de texturas;
com pintura a partir do
óleo
experiências,
- Criar uma
efeito visual da textura,
conceitos e
representação
atribuindo-lhe um título
saberes
gráfica a partir
Pastel
de uma
Partilhar
impressão
Essência
dificuldades e
visual.
de
Actividade 5
dúvidas
- Conhecer e
(Anexo 9)
Identificar obras
experimentar as
Divulgação de obras
de arte como
diversas
realizadas através da
manifestações
técnicas de
técnica de borrão (Miró)
de uma cultura
borrão e/ou
terebentina
Aguarela
mancha do
Exploração da técnica
Valorizar o
acaso;
de borrão e/ou mancha
património
- Desenvolver a
do acaso
artístico nacional
espontaneidade
59
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
criativa através
Produção escrita da
do imprevisível;
relação possível entre o
Conhecer novas
- Conhecer
trabalho criado e um
Papel de
técnicas e
obras de arte
acontecimento marcante
desenho
materiais de
criadas a partir
da sua vida pessoal
expressão
da técnica de
plástica
borrão.
Produzir/criar
- Ser capaz de
Actividade 6
objectos
extrair diferentes
(Anexo 10)
Papel de
pásticos
significados da
Exploração
cenário
obra Guernica;
(contemplação e
Desenvolver a
- Sensibilizar
interpretação) da
expressão
para o juízo de
simbologia da obra de
espontânea
valor estético;
Picasso Guernica
e internacional
- Reconhecer na
Papel de
aguarela
Procurar
obra Guernica a
Reprodução
soluções
expressão do
personalizada da obra
originais e
mundo exterior e
Guernica – exploração
diversificadas
do mundo
da parte/pormenor;
para os
interior do artista
selecção livre de cores e
problemas
(Picasso);
de técnicas
Cartão
- Conhecer o
Escolher
contributo de
Construir um painel
técnicas e
Picasso na
colectivo de temática
instrumentos
história da
contrária à Guernica
com intenção
pintura ocidental.
expressiva
Tesoura
- Ampliar o seu
Actividade 7
Inventar
mundo de
Visita a Serralves – casa
símbolos/código
valores e
museu, exposição de
1 sessão
s para
experiências
arte contemporânea e
(visita:
representar o
estéticas no
jardim
240m/4h)
material artístico
âmbito da
contemplação da
Cooperar nas
obra de arte e da
tarefas de grupo
natureza.
Cola
Actividade 8
1 sessão
Seguir
- valorização do
Exposição dos trabalhos
(Montag.
instruções e
trabalho
realizados pelos alunos
Expos.:
cumprir normas
individual, do
durante as sessões
estabelecidas
outro e do grupo
240m/4h)
Cavaletes
democraticamen
Total:
te
8sessões
Quadro 1 – Planificação de Oficina de Expressão Plástica para Crianças Sobredotadas no
Domínio Artístico.
60
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
2.
Instrumentos de pesquisa, procedimentos e recolha de
dados
A implementação do plano anterior pressupõe uma aproximação do
investigador ao domínio das realizações estudadas, mais concretamente, através do
contacto directo com os sujeitos-alvo, por meio de observação participante. Este
constitui o recurso metodológico preponderante no nosso estudo, porquanto, tal como
considera Woods (cit. in Serrano, 1994:25), é um meio para chegar mais
profundamente à compreensão e à explicação da realidade que o investigador quer
estudar.
Atendendo à perspectiva de Quivy (1998:197), segundo a qual, a validade
deste recurso metodológico deverá basear-se, por um lado, na precisão e no rigor das
observação e, por outro, no confronto constante entre as observações e as hipóteses
interpretativas, decidimos pela utilização e registo de grelhas de observação como
instrumento de pesquisa, acompanhada de conversas informais. Dada a complexidade
do objecto do nosso estudo, a investigação empírica poderá, eventualmente, ser
complementada com a aplicação de outros instrumentos, como questionários e
entrevistas semi-estruturadas para as crianças e para os pais.
Pelo carácter intensivo que reveste a pesquisa de terreno, sob a forma de um
estudo de casos, é necessário que o investigador, à medida que vai procedendo à
recolha da informação, através do registo de atitudes e comportamentos nas grelhas
de
observação,
durante
as
sessões
e/ou no
final
das
mesmas,
realize,
simultaneamente, a interpretação dos dados obtidos. Na verdade, a análise dos dados
permitirá proceder à sua organização sistemática com vista a aumentar a sua
compreensão e permitir a apresentação de conclusões (Bogdan & Biklen, 1994: 207).
Assim, no decurso de várias sessões teórico-práticas direccionadas para o
domínio da expressão plástica, as atitudes e os comportamentos das crianças
manifestos, não apenas na análise/interpretação de objectos e obras, como também
na concepção/criação de trabalhos plásticos, serão objecto de registo em grelha de
observação24. Tendo em conta a delimitação conceptual realizada no ponto 4 do Cap.
1 (II Parte), este instrumento visa aferir os aspectos peculiares da criatividade, da
motivação, da emoção/afectividade e da sua sociabilidade do grupo que constitui a
nossa amostra.
24
Cf. Anexo 11.
61
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
3.
Previsão dos resultados
A planificação até aqui delineada, por meio da definição da problemática e da
questão de partida, do objecto de estudo, das finalidades e das hipóteses, da
metodologia e da amostra, dos instrumentos de pesquisa e procedimentos, e ainda
das estratégias de intervenção, pretende servir de base sólida para uma eventual
investigação futura. Para além disso, de acordo com as quatro tendências das
Ciências Sociais indicadas por Toulmin (cit. in Flick, 2004:26-27), entendemos que, a
ser implementada, esta investigação apresenta a marca da oralidade, pois privilegia os
processos de comunicação estabelecidos com as crianças; parte de um problema
específico, particular, que emerge numa situação determinada; é uma pesquisa
localizada, direccionada para as realizações e expressões das crianças; é oportuna,
na medida em que a sobredotação representa uma questão educativa pertinente,
palco de muitas reflexões e debates, que exige uma competência especializada e
eficaz por parte dos educadores.
As nossas expectativas prendem-se com a possibilidade de comprovar a
exequibilidade de estratégias de enriquecimento na escola, ou fora dela, para as
crianças sobredotadas, através da concretização futura da parte empírica da nossa
investigação e, nessa medida, alcançar uma maior compreensão do mundo dos
afectos e das relações destas crianças, o que poderá conduzir a tentativas de
minimização de eventuais problemas de algumas crianças neste domínio.
Perante a possibilidade de concretizar o nosso plano de investigação empírica,
estamos conscientes da dificuldade inerente à constituição da amostra (crianças
sobredotadas no domínio artístico) e da necessidade de reformulação de
objectivos/estratégias, decorrente do contacto com as crianças e as suas famílias.
Em última análise, dado cada criança ser uma realidade única e singular, a
comprovar-se pela complexidade inerente ao estudo de qualquer fenómeno humano,
as nossas pesquisas poderão enfrentar alguma dificuldade na elaboração de
conclusões que se pretendem claras e fidedignas, o que requer, necessariamente, o
contributo de investigações e intervenções futuras de maior alcance.
62
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
Considerações Finais
A problemática que nos propomos estudar – sobredotação – pelas diversas
análises teóricas que dela se procuram apropriar, encontra-se envolta de dúvidas,
interrogações e acesos debates. Por este motivo, percebemos a necessidade de
tomar esta pesquisa como um mero ponto de partida de renovadas análises e de
contínuas investigações, numa atitude profunda, insatisfeita e séria, capaz de
confrontar-se com uma multiplicidade de perspectivas e aproximar-se o mais possível
de um quadro explicativo coerente.
Todavia, para lá do confronto de teorias que conferem significativa
complexidade à abordagem especulativa da sobredotação, o domínio práxico da
implementação de estratégias, ou seja, das respostas adequadas às idiossincrasias e
dissincronias destas crianças ou jovens, parece surgir ainda carregado de cepticismo
e envolto em falso espírito de abertura e iniciativa.
Por este motivo, é nossa intenção poderem o presente trabalho e eventuais
investigações empíricas constituir uma ínfima parte de uma iniciativa que se deseja
conjunta, inter e multidisciplinar, em suma, capaz de contribuir
para que a escola se transforme em factor de coesão social e seja a instituição
chave para a integração ou a reintegração, podendo assim a educação básica
tornar-se passaporte para a vida para todas as crianças e jovens.
(Teresa Vasconcelos, cit. in Ministério da Educação, 1998:4)
Em suma, constituirá nossa intenção sensibilizar os diferentes agentes de
socialização destas crianças, sobretudo os docentes, para o cumprimento inalienável
do seu papel: conceder a cada criança um feixe de possibilidades que lhe permita
realizar o seu potencial, conhecer as características cognitivas, afectivas e sociais de
cada criança, para poder agir de um modo diferenciado e, deste modo, permitir uma
felicidade vivida no presente, mas projectada num futuro que é de TODOS.
63
A Arte na Sobredotação e a Sobredotação na Arte
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