António Victorino D’Almeida Toda a Música que eu conheço Volume II Da Alvorada do Século XX até à actualidade Índice I – Gustav Mahler e Hugo Wolf – Zemlinsky – Max Reger Busoni e outros nomes mais .......................................................................................... 11 II – A escola nacional checa: Smetana, Dvorak, Suk, Janacek e Martinu entre outros… .................................................................................................... 35 III – A música da cidade triste: a família Strauss e os irmãos Schrammel Os mestres da opereta: Offenbach e Franz Lehár – O musical do século xx: Frederick Loewe e Lloyd Weber – A revista à portuguesa ................................. 59 IV – Os dois grandes mestres da música francesa: Debussy e Ravel .................. 81 V – O estranho mundo de Erik Satie – Dukas, Florent Schmitt e outros franceses – O génio de Georges Enesco – A escola nacional polaca: Szymanowsky, Paderewsky e Tansman .............................................................. 107 VI – «Escolas nacionais» escandinavas: Niels Gade, Nielsen, Sibelius, Grieg, Berwald ................................................... 133 VII – Escola nacional espanhola – Pedrell, Barbieri, Albéniz, Granados, Falla, Turina, Mompou ..................................................................................... 145 VIII – O verismo: Mascagni, Ponchielli, Leoncavallo, Giordano, Cileia – O génio de Puccini – O caso Rachmaninov .................................................... 165 7 antónio victorino d’almeida IX – Igor Stravinsky – Edgar Varèse .................................................................. 189 X – Músicos mais e menos conhecidos de uma época de transição entre o romantismo e o modernismo – Franz Schmidt, Frank Martin, Charles Widor, Sir Edward Elgar, Walton, Vaughan Williams e muitos mais… ........................ 213 XI – Richard Strauss – Viktor Ullmann – Pfitzner – Carl Orff .......................... 241 XII – A segunda escola de Viena: Schönberg, Alban Berg, Webern – Hanns Eisler e a «música de intervenção» – Theodorakis – José Afonso – A bossa nova brasileira ................................................................................... 265 XIII – Alguns italianos do virar do século: Respighi, Casella, Malipiero e outros – O futurista desaparecido: Luigi Russolo – Um mestre da nova ópera italiana: Menotti – Os mestres da nova Alemanha: Hindemith, Zimmermann, Hans Werner Henze – Grandes pedagogos de Viena: Gottfried von Einem, Karl Schiske e Hanns Jelinek Bruno Bjelinski ................. 297 XIV – Os músicos da Revolução de Outubro: Prokofiev, Chostakovitch, Khatchaturian e mais alguns ............................................................................. 325 XV – A «escola nacional» húngara: Béla Bartók e Zoltan Kodály – A claustrofobia lusitana – Fernando Lopes-Graça .......................................... 347 XVI – Compositores e sinfonistas americanos; Roy Harris, William Schuman, Samuel Barber, Aaron Copland e outros – O génio de Charles Ives – O esquecido George Antheil – George Gershwin – Leonard Bernstein –O «espírito da Broadway» – Pequena história do jazz ..................................... 371 XVII – O Grupo dos Seis: Poulenc – Darius Milhaud e Honegger – Jacques Ibert – Jean Françaix – Henri Dutilleux – Jolivet – Música electrónica e concreta: Parmegiani – O rock sinfónico – Frank Zappa ................................ 401 XVIII – Benjamin Britten – Música em Portugal: Joly Braga Santos – Compositoras portuguesas – Messiaen – Vários compositores franceses – Compositores italianos: Dallapiccola, Petrassi, Maderna e outros mais ......... 433 XIX – Cientifismo e vanguardismo: Pierre Boulez – Karlheinz Stockhausen – Luigi Nono – Luciano Berio – Iannis Xenakis – O alegado provocador John Cage – o heavy metal ......................................... 461 8 toda a música que eu conheço XX – A música moderna em vários países: Ligeti e Kurtag – Emmanuel Nunes, Jorge Peixinho e Álvaro Cassuto – Takemitsu – Maurício Kagel Birtwistl – Carter – Os grandes orquestradores americanos – Blitzstein ......................................................................................................... 489 XXI – Kurt Weill – Música «mininal repetitiva» – Joaquin Rodrigo – Músicos modernos espanhóis: Luis de Pablo – Músicos modernos portugueses –Carlos Paredes – Vinko Globokar – Leo Brouwer ........................................... 511 XXII – A bossa nova brasileira: António Carlos Jobim – Compositores clássicos brasileiros: Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e outros – Os argentinos: Ginastera e Astor Piazzola – Novos compositores americanos – Nino Rota – Grandes compositores polacos: Penderecki, Lutoslawski e outros .......................................................................................... 539 XXIII – António Victorino D’Almeida – Zykan – Arvo Pärt – Shchedrin – Schnittke – Denisov – Gubaidulina – A vitória sobre Cronos ......................... 561 9 I Gustav Mahler e Hugo Wolf – Zemlinsky – Max Reger Busoni e outros nomes mais GUSTAV MAHLER Se errar é uma contingência humana fora de discussão, mentir ou escamotear o erro, para aparecer tempos depois com o sorriso jactante de quem sempre acertou, já revela uma formação ética a precisar de urgente reforma… Hoje, não haverá praticamente nenhum músico ou musicólogo que não saiba quem foi Gustav Mahler e não se mostre apto a pronunciar-se acerca daquilo que ele representa… Contudo, não será preciso recuar muitas décadas – quando muito uns quarenta e tal anos… – para nos confrontarmos com uma situação em que o conhecimento concreto deste extraordinário compositor estava longíssimo de ser um fenómeno alargado ao grande público, incluindo nesse vasto conceito o universo alegadamente especializado dos chamados melómanos. Mesmo em Viena, na década de sessenta, o que significava Mahler para a maioria das pessoas? Exactamente aquilo que significou durante toda a sua vida – e que se prolongou por mais cinquenta anos após a sua morte. 11 antónio victorino d’almeida Dizia-se, em suma, que Mahler tinha sido um notável director da Ópera de Viena, também um excelente chefe de orquestra e sobretudo, uma personalidade marcante na sua época. Além disso, também compunha… – e é isso que se encontra em enciclopédias prestigiadas e ainda relativamente recentes. Mesmo no meio musical de Viena, de longe a cidade onde Mahler mais se afirmou, havia pessoas que ainda relacionavam determinadas passagens das suas gigantescas sinfonias com música ligeira, dadas algumas estruturas melódicas e harmónicas que utilizava, parecendo abdicar de qualquer aproximação sensível aos princípios tornados quase obrigatórios da moderna atonalidade. E mesmo que não se lhe exigisse tanto rigor vanguardista – pois Bartók e Stravinsky (com excepção das últimas partituras…) também acabavam por ser tonais, o mesmo se passando com algumas obras do próprio Schönberg… –, a verdade é que os ouvintes mentalizados para a fruição dessa modernidade já não aceitavam uma tal avalanche de acordes perfeitos e de resoluções aparentemente banais da dominante para a tónica… Quando se entra por esse tipo de análise, verifica-se que as coisas nunca são tão evidentes como poderá julgar-se. E assim as mesmas argumentações que Vincent d’Indy utilizava para classificar as harmonias de Wagner dentro de uma ordem tonal absolutamente estabelecida podem funcionar ao contrário. Ou seja: tal como o mestre da Schola Cantorum evocava «as dissonâncias ocasionais devidas ao movimento melódico das partes, mas alheias aos acordes», nós também poderemos detectar na música de Mahler a existência de notas que são alheias aos acordes, provocando eventuais «consonâncias artificiais» ou relações harmónicas falsamente tradicionais, uma vez que os sons foram descartados das suas funções tonais… Na realidade, os problemas estéticos nunca estiveram na tónica, na dominante, nos modos, nas tonalidades ou nas relações entre os diversos graus da escala, mas sim na própria banalidade que possa residir, sim ou não, no espírito do compositor. Com efeito, a originalidade e o bom gosto são como a elegância do comportamento: há pessoas que se mostram naturalmente educadas, mesmo que abordem os assuntos mais escabrosos, e outras que já se revelam pífias ou grosseiras na simples intenção de dar os bons-dias… Chega a ser cruel aquilo que também se verifica na pintura, quando uma qualquer associação de formas e de cores nos revela um Miró e outra, aparentemente idêntica, denuncia um inequívoco pinta-monos… 12 toda a música que eu conheço Logo, o erro de base que se terá verificado há mais de um século e prolongado até algumas décadas em relação à apreciação da música de Mahler estaria, uma vez mais, no facto de se avaliarem as fórmulas antes de se verificarem os resultados… Nunca perguntei aos cirurgiões se, no dia em que se apaixonam, alargam toda essa gama de sentimentos às entranhas e à ossatura das namoradas, mas há efectivamente pessoas que se comprazem em analisar a música com esse rigor anatómico. E a opinião pública que se oriente por tais conselheiros está igualmente sujeita a enganar-se, podendo confundir lesões traumáticas com malformações congénitas – ou passagens de teor psicanalítico de Mahler com música ligeira ou marchas de quartel… Isso já não acontece, mas aconteceu e – o que é ainda mais grave – a obtusidade do sistema está longe de ter desaparecido dos nossos horizontes culturais e artísticos. Uma prova cabal e suficiente do absurdo ostracismo a que a obra de Mahler foi longamente votada – e em que as entidades mais prejudicadas foram, como é evidente, as várias gerações que nunca ouviram essa música admirável… – encontra-se no Tratado de Orquestração, de Koechlin. Por espantoso que isso pareça, não me lembro de alguma vez ter lá encontrado uma referência a Mahler, sendo obviamente citados outros grandes orquestradores, tais como Wagner, Berlioz, Debussy, Ravel, Stravinsky, Schönberg… Ora, se há um aspecto em que a arte consumada de Mahler não pode ser posta minimamente em causa é na sua qualidade de orquestrador emérito – e até, nalguns aspectos, incomparável… Logo, se Koechlin publicou o seu Tratado em 1944 sem nele apresentar nenhum exemplo de Mahler – e o que não falta nas partituras de Mahler são efeitos originais ou mesmo revolucionários –, isso apenas pode significar que não conhecia o compositor, embora fosse impossível que também ignorasse o chefe de orquestra, o mítico director da Ópera de Viena e, obviamente, a tão falada «personalidade»… É certo que também não se encontram nesse Tratado – pelo menos, que eu desse por eles, insisto… – exemplos de Tchaikovsky, o que é igualmente grave, embora não tanto, pois a orquestração do compositor russo é brilhante, é perfeita, mas segue os melhores modelos do sinfonismo ocidental, sendo exagerado afirmar-se que tenha trazido uma tão flagrante quantidade de ideias e sonoridades novas. Simplesmente, estas omissões não podem considerar-se puramente acidentais e constituem mais um documento da falta de isenção e objectividade com que a musicologia é por vezes exercida. 13 antónio victorino d’almeida Um tratado de orquestração não poderá considerar-se um trabalho musicológico, mas sim pedagógico, pois não se exige a um musicólogo que seja um orquestrador criativo – apenas se esperando que consiga ler uma partitura com a mesma eficiência com que um maestro ou um compositor o fazem. De facto, um crítico literário não é obrigado a escrever, mas impõe-se que saiba ler e não apenas soletrar… Ora, se o autor de um grande tratado de orquestração, porventura o melhor, ignorar a figura de Mahler, isso já reflecte uma inaceitável lacuna musicológica. E por mais que se queira hoje em dia camuflar o fenómeno que se passou, a verdade é que não foi através de trabalhos sobre história da música – mas sim de um filme – que o público chegou ao conhecimento deste compositor. Com efeito, a esmagadora maioria das pessoas interessadas em música só soube efectivamente da sua existência quando o realizador Lucchino Visconti estreou o seu belíssimo filme A Morte em Veneza, adaptado de uma novela de Thomas Mann que, na realidade, até nada tem que ver com a personalidade de Mahler… Fez-se luz com o adagietto da Sinfonia n.º 5… Como é costume dizer-se, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. E tal como já escrevi no primeiro volume, a moderna musicologia terá nascido com Mattheson, o crítico surdo cujas aleivosias acerca de Johann Sebastian Bach contribuíram de forma decisiva para que várias gerações ficassem privadas de conhecer a obra desse extraordinário compositor. É óbvio que figuras como Mozart, Beethoven, Schubert, Weber e toda uma série de outros músicos profissionais não precisaram de esperar por Mendelssohn e pela sua histórica execução da Paixão segundo São Mateus em Berlim para conhecerem a música de Bach. Do mesmo modo, a música de Gustav Mahler era conhecida e admirada por um maestro como Bruno Walter (1876-1962), que seria, aliás, seu assistente, ou por um filósofo, teórico e também compositor – há que não esquecer… – como Theodor Adorno (1903-1969). As suas partituras eram naturalmente uma referência para figuras fundamentais da música, tais como Schönberg, Alban Berg, Webern e os seus alunos ou seguidores mais próximos. Mas a prática da omissão actuou com extrema eficácia em relação à obra do compositor, o que o levou a comentar por várias vezes para a sua mulher, Alma Mahler: – O meu tempo ainda não chegou… 14 toda a música que eu conheço Na realidade, Mahler percebia que o sistema de lhe exaltarem «outras qualidades» – mormente os elogios aparentemente simpáticos àquela abstracção que lhe dava direito a ser classificado com «uma personalidade»… – sempre funcionou como estratégia destinada a escamotear valores infinitamente mais concretos e relevantes… Ou seja: se além de o apontarem como «personalidade», o elogiassem como director da Ópera e até como maestro, quem poderia levar a mal que não conhecessem nada da música que ele compunha – mesmo que fosse essa a sua primordial actividade…?! Isso aconteceu – e acontece – em todas as épocas, pelo que há que temer bastante mais certos encómios do que a própria boçalidade dos atolambados que enveredem pelo insulto soez e pela consequente recusa de «quaisquer qualidades». Apesar de tudo, são menos perniciosos e, principalmente, menos eficazes. AS ORIGENS DE MAHLER Gustav Mahler nasceu em Kalischt, na Boémia, filho de uma família cuja pobreza roçou por várias vezes a indigência, ao ponto de terem passado por períodos em que nem sequer teriam vidros nas janelas – o que, em climas como o dessa região, não oferece perspectivas risonhas para nenhum Inverno… A mortalidade infantil era tremenda nesse tempo, pelo que o número de qualquer forma aterrador de seis mortes em doze crianças que nasceram não constituía uma total excepção para a época. O pequeno Gustav foi um dos seis sobreviventes. Para além das dificuldades financeiras, também já se verificavam na altura problemas sempre agravados de anti-semitismo que afectavam a inserção social da família Mahler, tanto na Boémia como na Morávia – para onde acabariam por emigrar –, vivendo aí nas imediações de um quartel cujos toques de clarim ao longe o compositor viria mais tarde a reproduzir em muitas das suas sinfonias… E ainda que associada a uma instituição militar – e inevitavelmente de teor belicista –, a memória auditiva desses sons talvez constituísse a melhor recordação que Mahler traria da sua infância. O pai conseguira montar um albergue que não seria decerto recomendado em nenhum Guia Michelin, e teria desenvolvido em tempos mais difíceis um modesto comércio ambulante de vinhos e outras bebidas de teor alcoólico que, segundo testemunhos da época, ele próprio consumia em excesso…. 15 antónio victorino d’almeida Diz-se ainda que, a despeito da sua baixa condição, o pai de Mahler se interessava por assuntos cujo conhecimento não seria muito comum nos meios que habitualmente frequentava. E deste modo, enquanto deambulava pelas ruas, empurrando a carripana onde transportaria o produto do seu negócio, proferia discursos sobre as mais diversas matérias, o que lhe fizera receber a alcunha de «o sábio da carroça». Outros afirmavam que os efeitos da bebida não se reflectiam apenas na verve e na sabedoria, pelo que seriam frequentes e sempre lamentáveis as cenas domésticas em que a mãe de Mahler acabava sistematicamente por não sair ilesa… HUGO WOLF No mesmo ano em que Mahler veio ao mundo, ainda que três meses antes, nasceu na pequena cidade austríaca de Windischgräz, actualmente na Eslovénia, um outro futuro compositor, de nome Hugo Wolf (1860-1903). E o destino destes dois músicos iria cruzar-se ao longo das respectivas vidas, por vezes até de forma algo dramática, conquanto Wolf tivesse uma infância, ao que se sabe, isenta de situações tormentosas, filho de um comerciante de peles que também se dedicava à música – e que até seria o seu primeiro professor, tanto em piano como em violino. Em 1875, conheceram-se ambos no Conservatório de Viena, sendo normal que a família de Wolf inscrevesse o filho na referida escola, pois disporia de meios pecuniários suficientes para o fazer. Pelo contrário, consta que Mahler fugiu de casa na sequência de mais uma cena conjugal entre o pai e a mãe – e o seu primeiro verdadeiro contacto com a música teria sido ao escutar, enquanto errava pelas ruas, o som de um realejo… Não garanto que a história seja verídica, mas é perfeitamente plausível que se associem certas sonoridades do futuro compositor à música ambulante que se tocava nas esquinas, tal como ao toque característico dos clarins da caserna… De qualquer forma, não terá sido por influência do «sábio da carroça» que o jovem Gustav, então com quinze anos, foi admitido no conservatório, com a curiosa indicação de que se tratava de um «músico inato»… Wolf e Mahler estudaram composição com Robert Fuchs (1847-1927), que era um compositor e pedagogo muito estimado por Brahms, e também com outros professores, até porque ambos se caracterizavam 16 toda a música que eu conheço por atitudes que não primavam pela disciplina – sendo-lhes comum uma admiração ilimitada por Wagner, que não seria propriamente um nome muito estimado dentro do ensino oficial do conservatório… Mahler conseguiu assim mesmo terminar o seu curso com as mais altas classificações, enquanto Wolf, muito menos controlado nas suas reacções, acabaria por ser expulso da instituição antes ainda de terminar os estudos. Ao contrário do que se propalou em várias histórias da música, nenhum deles foi propriamente aluno de Bruckner, ainda que o simpático mestre – também um wagneriano, como se sabe… – lhes fosse extremamente útil com os seus conselhos ou até, aqui e além, com alguma verdadeira lição. E a admiração por Bruckner foi uma constante das suas vidas. Em 1881, Mahler concorreu com uma espécie de Cantata – que viria mais tarde a refundir com o nome de Das Klagendelied «A Canção do Pranto», seria a minha tradução… – ao Concurso Beethoven, anualmente organizado em Viena, em cujo júri se encontravam Brahms e o intratável Hanslick… O prémio foi-lhe recusado e sempre se atribuiu essa decisão ao conservadorismo destas duas figuras. Contudo, há que admitir que, em 1883, um júri cujo presidente era Franz Liszt – vulto insuspeito de conotações conservadoras ou reaccionárias – também se recusou a apreciar a obra. E, por último, haverá ainda que não esquecer o facto de que o próprio Mahler – a despeito da enorme ternura que tinha por este seu primeiro grande trabalho – procederia à sua revisão, em 1898. Algumas razões teria… No entanto, há igualmente que admitir que a maioria das raízes do futuro Mahler já se encontra ligada a esta obra, nomeadamente a utilização da chamada «música ao longe», tocada por instrumentos fora do palco. É evidente que esse efeito não era original e até já se tornara famoso, por exemplo, na famosa abertura Leonor n.º 3 de Beethoven, mas Mahler transformou-o num elemento estético que vai muito para além do simples efeito… Entretanto, uma vez expulso do conservatório, Wolf ia tentando a sua sorte junto de diversas personalidades, admitindo até mostrar alguns dos seus trabalhos a Brahms, num encontro que viria a revelar-se desastroso… Com efeito, o compositor alemão, já radicado em Viena, olhou durante alguns minutos para a partitura e – talvez por estar informado 17 antónio victorino d’almeida acerca da veneração fanática que o jovem músico nutria por Wagner… – reagiu de forma algo desagradável, limitando-se a rosnar: – Olhe, em primeiro lugar é preciso que você aprenda qualquer coisa, pois só então eu poderei dizer-lhe se tem ou não algum talento… Não espantará também que, ao assumir, em 1884, a crítica musical de uma revista denominada Salonblatt, Wolf tenha retribuído, sempre que tinha ocasião para isso, na mesma moeda, sendo famosa a sua afirmação: – Brahms é um verdadeiro génio, infelizmente sem qualquer jeito para a música… De um modo geral, Hugo Wolf deixou incompletas quase todas as suas primeiras obras, denotando uma instabilidade de espírito que já se revestia de alguns aspectos preocupantes. No entanto, aos vinte e oito anos, começou a escrever de uma forma febril mas eficaz uma quantidade imensa de Lieder sobre poemas de Moerike, Goethe, Eichendorf, Keller, além de poesias espanholas e italianas, do que resultaram várias colectâneas geniais, nomeadamente o Italienisches Liederbuch. Depois de Schubert – e não numa posição de subalternidade –, Hugo Wolf poderá decerto classificar-se entre os maiores autores de Lieder de todos os tempos, sendo absolutamente justa a classificação que dava a esse seu trabalho, substituindo a expressão Lied por poema para voz e piano. A interligação entre as palavras e a música – tanto a que parte da voz como a que se desenvolve no piano – atingiu com Wolf um dos seus pontos mais altos, sendo efectivamente importante um certo conhecimento da língua alemã para se valorizar devidamente a arte quase incomparável deste compositor. Mahler escreveu Lieder notáveis para voz e orquestra, mas quando aborda esse género com acompanhamento de piano, a sua linguagem, embora seja de uma extrema elegância, não tem o lastro de força expressiva que caracteriza a obra de Wolf, nem representa aquela impressionante osmose entre o som musical e o efeito – inclusivamente onomatopaico – das palavras. Mas assim como podia trabalhar da forma mais intensa e produtiva, Wolf estava sujeito a crises durante as quais não escrevia, que se saiba, uma só nota, pois tanto se apresentava como alguém pleno de confiança, já nos terrenos de um orgulho arrogante nas suas capacidades, como caía em estados depressivos que o impediam de acreditar fosse no que fosse – e menos ainda em si próprio. Bastariam os traumas da sua infeliz infância para se admitir que Mahler também fosse um tanto neurótico, ainda que de outro tipo – 18 toda a música que eu conheço não cabendo obviamente no meu quadro de competências tecer quaisquer considerações de carácter mais especializado acerca do assunto. Posso, no entanto, confirmar que se tratava de um espírito muito mais organizado e até pragmático, pelo que o desaire no Concurso Beethoven não o impediu de continuar na sua luta pela vida, começando por reger operetas onde calhasse oferecerem-lhe esse emprego, e fazendo-o com tal rigor profissional que não tardou que obtivesse o posto de segundo-director de orquestra na Ópera de Kassel. Daí passou por Praga e Leipzig, até que, em 1888, foi nomeado director da Ópera de Budapeste, tendo-se estreado com enorme êxito nessas novas funções, pelo que ficaram na memória dos espectadores duas extraordinárias produções com O Ouro do Reno e As Valquírias. De promoção em promoção, foi contratado pela ópera de Hamburgo, onde dirigiu praticamente todas as noites durante cerca de seis anos. E perante uma tamanha actividade como chefe de orquestra e director de teatros, Mahler compreendeu que a única hipótese que tinha de compor seria no Verão, aproveitando todo o tempo possível das férias que lhe fossem concedidas. Assim, a sua Sinfonia n.º 1 foi composta durante os tempos de Budapeste, onde foi estreada em 1889, com o nome de Poema Sinfónico em Duas Partes, sendo mais tarde repetida – agora com cinco andamentos – em Weimar e Hamburgo. O próprio Mahler deu-lhe o nome de Titan, e a peça tinha um carácter programático de que o autor mais tarde prescindiu – e que, em meu entender, não lhe faria qualquer falta… A Sinfonia n.º 1 conta-se entre as obras sinfónicas da minha especialíssima preferência, e fascina-me muitíssimo mais o mistério sem explicações de qualquer espécie daquele espantoso terceiro andamento em forma de marcha fúnebre de palhaços, de saltimbancos – ou talvez de uma carroça com garrafas de vinho, empurrada por um estranho orador etilizado… –, tendo como base temática a canção do Frère Jacques em modo menor… Há várias gravações magníficas das sinfonias de Mahler – de Bernstein, Abbado, Solti, Inbal, Maazel, etc. –, mas creio em que a execução mais perfeita desse terceiro andamento ainda continua a ser a de Rafael Kubelik, por ser aquela que melhor nos dá a imagem desse cortejo absurdo, espécie de pesadelo-«buffo»… A Sinfonia n.º 1 foi mal recebida pelo público e também pela crítica, por via das suas avantajadas dimensões e também do permanente fervilhar de sensações contraditórias… 19 antónio victorino d’almeida Em resposta, Mahler escreveu a sua Sinfonia n.º 2 (Ressurreição), que ainda é bastante mais longa e mais perturbadora, constituindo uma complexa meditação sobre a temática da morte e da ressurreição. Mahler afirmava que a composição de uma Sinfonia equivalia a «construir um mundo» – e o mundo da Sinfonia n.º 2 levou seis anos a construir. Foi durante os tempos de Hamburgo, em que a obrigatoriedade de reger uma ópera todas as noites lhe dava a sensação de viver numa prisão. Até que chegava, finalmente, o momento das «férias» – aquele em que podia regressar à construção de um mundo que deixara parada desde o ano anterior, pois, como sempre dizia, era um compositor de Verão… O VERGONHOSO ENSAIO DA PENTHESILEA Entretanto, Hugo Wolf, tentara escrever – ainda na sua juventude, com pouco mais de dezassete anos – duas sinfonias, das quais apenas conseguiu terminar um scherzzo e um rondo finale, que, todavia, se nos apresentam como a obra de um compositor maduro e solidamente preparado em termos de técnica contrapontística, além de já se mostrar um óptimo orquestrador. Até que, de 1883 a 1885, conseguiu por fim organizar-se mentalmente de forma a compor uma obra completa – Penthesilea –, um poema sinfónico de grande envergadura sobre o drama de Kleist que relata os amores entre a rainha das Amazonas e Aquiles. Como qualquer compositor que nunca ouviu a sua obra – tratando-se neste caso da primeira obra orquestral de sua autoria que iria escutar –, Wolf manifestou o seu desejo de assistir aos ensaios, pois a peça fora entregue à Orquestra Filarmónica de Viena. Infelizmente, a dita orquestra, mais conhecida e justamente consagrada em todo o mundo como Wiener Philarmoniker, respeitava várias tradições, uma das quais – verdadeiramente escandalosa e só há pouco tempo abolida – era não permitir a inclusão de mulheres nos seus quadros… A outra consistia em não autorizar que os compositores assistissem aos ensaios de leitura, a fim de que os músicos e o maestro – que seria neste caso o famoso Hans Richter, a quem Bruckner entregara uma gorjeta… – se sentissem à vontade para fazerem todo o tipo de comentários que a obra lhes viesse a inspirar… Wolf era, como já o dissemos, um espírito rebelde e até caótico no seu comportamento, pelo que arranjou forma de se introduzir no inte20 toda a música que eu conheço rior da Musikverein, agachando-se entre duas filas da plateia, de forma a que a sua presença não fosse notada. E podemos imaginar a cena a todos os títulos penosa que se desenrolou, com a orquestra e o próprio maestro a fazerem troça da obra e do compositor, parodiando várias passagens com desafinações propositadas, no meio de gargalhadas cruéis, enquanto o infeliz Wolf, acocorado no seu improvisado esconderijo, não teve outra solução senão aguentar calado esse suplício de mais de uma hora de pseudo-ensaio, até que a peça foi mesmo recusada e oficialmente apontada como impossível de executar… Trata-se de uma das cenas que mais terão envergonhado a classe dos músicos, até porque, poucos anos depois, a Wiener Philarmoniker passaria a incluir a Penthesilea nos seus programas de Concerto, executando a obra com grande respeito e assumido orgulho por essa grande figura da música austríaca – na realidade, eslovena… O caso humano de Wolf é lamentável. Mas a música em geral ficou igualmente a perder com o comportamento daquele grupo de ocasionais gandulos em que também se inseriu o venerando chefe de orquestra… De facto, os Lieder de Wolf já começavam a ser conhecidos e apontados até como obras de referência, havendo mesmo uma alusão altamente elogiosa a um deles numa peça teatral de Arthur Schnitzler, Viena ao Crepúsculo. Pelo contrário, considerava-se que o autor não estaria de modo algum vocacionado para a escrita sinfónica, o que ficaria cabalmente desmentido com a posterior consagração de Penthésilea – que eu até considero menos conseguida em termos de transparência tímbrica do que os dois andamentos que nos chegaram do projecto das sinfonias… Perante o linchamento moral a que estivera sujeito, é natural que Wolf não tivesse desenvolvido qualquer posterior atracção pela música instrumental, pelo que nos resta uma curta obra-prima da música para pequena orquestra, que é a Serenata Italiana – além de um Quarteto de Cordas escrito ao longo de vários anos e só estreado por Helmesberger no ano da morte do compositor, O Quarteto é uma obra estranha, angustiada, com algumas possíveis influências harmónicas de Bruckner e reveste-se de um dramatismo desesperado que pode em certos casos sugerir o espírito da Grande Fuga de Beethoven. 21 antónio victorino d’almeida MAHLER E A ÓPERA DE VIENA – ALMA MAHLER Em 1897, Mahler decidiu fazer-se baptizar, uma vez que a direcção da Ópera de Viena estivera até aí vedada – ainda que não houvesse nenhuma lei a esse respeito, como é evidente… – a pessoas de origem judaica. E acertou nessa sua decisão, pois a verdade é que, meses depois, foi nomeado director da Wieneroper, contando para isso com o importante apoio de Brahms, que já se encontrava muito próximo da morte. Em 1902, Mahler casou com Alma Schindler, filha de um famoso paisagista, Emil Jacob Schindler (1845-1892), que pertencia a um movimento artístico de verdadeira vanguarda e rotura com certos aspectos de um passado tornado serôdio, chamado por isso Sezession (a Secessão), ao qual estavam ligados grandes nomes das artes plásticas e da arquitectura, tais como Otto Wagner, Gustav Klimt, Josef Hoffmann e outros. A casa dos Schindler era também visitada por escritores e músicos, tais como Arthur Schnitzler, Hugo von Hofmannstahl, Alban Berg, e outros. A jovem Alma começou a estudar piano aos dez anos com um organista cego, de nome Joseph Labor, e passou depois a ser orientada pelo compositor Zemlinsky, revelando-se uma óptima pianista e também compositora, basicamente autora de excelentes Lieder. Aparece em várias enciclopédias musicais com o nome de Alma Mahler (1879-1964) e na exclusiva qualidade de mulher do compositor Gustav Mahler, o que se revela tanto mais injusto quanto é certo que este até a dissuadiu durante vários anos de compor – e há mesmo quem afirme que utilizou alguns dos seus temas, pois era música de muito boa qualidade… Tiveram duas filhas, Maria e Anna, a primeira das quais viria a morrer apenas com cinco anos, devido a uma escarlatina que se transformou em difteria – o que provocou um abalo irreparável na vida dos pais. Mahler acabara de compor uma peça sobre textos de Rückert – Kindertotenlieder – cuja temática, de qualquer forma mórbida, sobre a morte de crianças, acabaria por ser considerada por ambos como um presságio da tragédia que se abateria sobre as suas vidas. Entretanto, a acção de Mahler como director e também principal maestro da ópera de Viena tornou-se quase lendária, tal a qualidade dos espectáculos que produzia. E quando chegava o Verão, voltava ao trabalho de compositor, instalando-se a partir de certa altura numa pequena casa em Mayernick, no Sul da Áustria, onde escreveria a maior 22