“Uma ciência com consciência”1: como a ética pode evitar que a produção científica e a tecnologia possam comprometer a existência da humanidade2? Ana Paula Britto Rodrigues3 Resumo: Por que os avanços da ciência e da tecnologia têm colocado a existência do próprio homem em risco? O que se tem verificado é uma espécie de paradoxo no par ciência-tecnologia, em outras palavras progresso e destruição tentam caminhar lado a lado. Como tratar esse impasse? O presente trabalho propõe um apontamento ético frente a tais questões, tendo como baliza o conceito de pensamento complexo introduzido pelo filósofo Edgar MORIN. É inegável que há três séculos o conhecimento científico juntamente com a tecnologia tem tornado possível um extraordinário progresso em inúmeros campos de saber. Basta dizer que até mesmo em domínios, antes considerados sagrados, como vida e morte, o par ciência-tecnologia mostra sua força e poder, ao decifrar a linguagem genética que informa e programa toda a organização viva. Mas, será mesmo tudo isso um progresso? Não é exatamente o que se tem constatado. O homem do século XXI se vê confrontado por si mesmo, ao não mais “saber fazer” diante de tanto saber e poder. Eis aí a outra face deste tão perseguido e almejado progresso: a auto-destruição. Nestes termos, torna-se necessária e urgente uma reflexão ética e moral da ciência contemporânea com fins de repensar que “progresso” o homem quer apostar para as próximas gerações. O presente trabalho, portanto, dedica-se em fazer algumas considerações frente ao caráter paradoxal do progresso promovido pela produção científica-tecnológica, não dispensando, é claro, um apontamento ético frente a tudo isso. Como já explicitado anteriormente, é com urgência que devemos repensar criticamente e eticamente o panorama atual. Afinal, além da gama assustadora de excluídos - pasmem, existem dois bilhões de pessoas sem acesso à água potável - o que 1 A expressão “Uma ciência com consciência” é também nome de um livro de um importante filósofo francês, Edgar Morin, que utilizaremos como referência bibliográfica central do presente trabalho. 2 Trabalho escolhido para discussão e debate no Fórum “Ciência e Tecnologia” do curso de EAD de Metodologia de Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. 3 Professora da graduação em administração de empresas das Faculdades integradas Vianna Júnior/ Fundação Getúlio Vargas, pós-graduada em Psicologia e Psicanálise pelo CES/JF e mestranda em Pesquisa e clínica em Psicanálise pela UERJ. 1 está em jogo também e fundamentalmente, ou melhor, o que está sendo colocado em xeque, é o destino da própria humanidade. É imprescindível elucidar que essa importante e inevitável discussão se justifica não só no âmbito acadêmico, mas, sobretudo, nos demais setores da sociedade, já que se trata de um problema de ordem universal que deveria, a princípio, “afetar”, isto é, trazer conseqüências para todos. 1) A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA DO SÉCULO XVII: ALGUNS RECORTES Dominar, apreender o real! Arriscamo-nos a afirmar que desde sempre o homem foi e é marcado por tal imperativo. No entanto, é somente a partir da chamada revolução científica do século XVII que este “mandamento” começa a ganhar força e a produzir radicais mudanças nos estilos de vida. Vejamos alguns recortes deste momento paradigmático de nossa história. Primeiramente é importante esclarecer que a revolução científica do século XVII ou também chamada de “o nascimento da ciência moderna” se constituiu sobre uma verdadeira desmontagem e destruição da cosmologia antiga e medieval, qual seja a concepção de um cosmo fechado, finito, organizado hierarquicamente e marcado pelo teocentrismo (KOYRÉ, 2006 p.10). Assim, se anteriormente o homem, ainda que reprimido e alienado pelos dogmas e o poderio da Igreja, vivia em um mundo fechado, protegido por Deus, com a revolução científica ele passa a considerar a hipótese de um universo infinito, passível de ser matematizado, isto é, mensurado, representado. O que o homem descobre é que esse infinito (a natureza) ou grande parte dele poderia ser dominado, controlado. Tal descoberta e/ou ruptura produziu conseqüências vivenciadas até os dias de hoje. Segundo KOYRÉ (p. 5, grifo nosso), “enquanto o homem medieval e o antigo visavam à pura contemplação da natureza e do ser, o moderno deseja a dominação e subjugação”. Sabemos que uma revolução como essa não se deu da noite para o dia e exigiu a participação e angústia de muitos. O problema da infinitização do universo, por exemplo, homens como Giordano Bruno, Nicolau de Cusa, Nicolau Copérnico introduziram as primeiras rachaduras, incertezas no saber hegemônico religioso. Avançando um pouco mais, também Galileu Galilei, René Descartes, entre outros, 2 descobriram que esse infinito, ou seja, o real, a realidade poderia ser controlada, através de sua matematização, como já dito anteriormente. Estavam dadas, portanto, as condições lógicas para dali em diante a ciência, já no século XIX, se aliar ao capitalismo e formar o par ciência-tecnologia. 2) OS PARADOXOS DO PAR CIÊNCIA-TECNOLOGIA: Por que haveria paradoxos no par ciência-tecnologia? Ou melhor, como pode a ciência juntamente com a tecnologia apresentar opostos que convivem lado a lado? Como pode a ciência com suas espetaculares descobertas ao mesmo tempo salvar inúmeras vidas e colocar outras em sério risco ou até mesmo extingui-las? A ciência triunfa: jamais seu poder foi tão evidente. Ela conseguiu vencer doenças que dizimavam, abolir trabalhos braçais que extenuavam, suprimir tarefas repetitivas que entediavam. Tornou vizinho o longínquo, alargou os limites de nossos conhecimentos tanto do infinitamente grande, quanto do infinitamente pequeno, tanto do mundo inerte, quanto do mundo vivo. Conquistou, em resumo, o poder de modelar nossas vidas, de modificar a vida. Mas também aperfeiçoou o poder de aniquilá-la. A forma de um Exército pode fundamentar-se no número e na determinação de seus combatentes, mas também, e principalmente, no grau de sofisticação tecnológica de seus armamentos, como o demonstram os bombardeios sobre o Iraque e, mais recentemente, sobre a Sérvia. (SILVA,199, p.2) O que podemos depreender é que quaisquer que sejam as descobertas realizadas pelo homem, todas elas, sem exceção, podem ser usadas contra ou a favor da vida. Na verdade, o homem pode usar sua inteligência, seus pensamentos e, por conseqüência, seu poder tanto a favor como contra si próprio e contra o outro. Não é sem razão que FREUD (1980, p. 87) em seu texto “O mal-estar na civilização” vai afirmar que “o perigo mora ao lado do progresso” e que “as sociedades primitivas são mais éticas que as civilizadas modernas”. O que ele quer dizer com isso? Queria ele dizer que é “contra” o progresso? Claro que não! Freud era um homem terminantemente marcado pelo espírito das luzes. O que Freud nos aponta é caráter paradoxal do psiquismo humano, isto é, dos nossos pensamentos e impulsos que ele vai nomear de pulsão de vida e de morte, conceito este considerado fundamental da psicanálise que, dado sua enorme complexidade, é merecedor de um outro trabalho. Diferentemente do pensamento aristotélico, que defende uma ética para o bem, que todo homem tende para o bem, FREUD vai defender que o psiquismo humano é paradoxal, isto é, que não existe um sujeito que age só para o bem, porque o bem-estar de um inevitavelmente significará o mal-estar de outro. Trata-se de uma dialética, que não há como excluir os opostos, mas sim conviver, ou melhor, poder bem dizê-los. 3 Será isso possível, nos dias de hoje, já que vivemos sob a égide do capitalismo, que tem como premissa fundamental a competição? 3) “UMA CIÊNCIA COM CONSCIÊNCIA”: É exatamente o que MORIN, filósofo francês, propõe, frente a essa crise ética e moral que assola a ciência: uma ciência com consciência. Mas o que MORIN quer dizer com “uma ciência com consciência”? Primeiramente quando MORIN (2003, p 30) diz que a ciência, isto é, o paradigma científico não tem consciência, trata-se de uma não consciência do seu lugar no mundo. Nas palavras de MORIN: As ciências humanas não têm consciência dos caracteres físicos e biológicos dos fenômenos humanos. As ciências naturais não têm consciência da sua inscrição numa cultura, numa sociedade, numa história. As ciências não têm consciência do papel na sociedade. As ciências não têm consciência dos princípios ocultos que comandam as suas elucidações. As ciências não têm consciência de que lhes falta uma consciência (Ibidem.) As conseqüências dessa não-consciência, segundo MORIN, são: eliminação da subjetividade e dos conceitos não quantificáveis, hiper-especialização e isolamento das disciplinas, incapacidade de olhar as organizações e os fenômenos de forma sistêmica e complexa, como poluição, violência, etc. enfim, um reducionismo incapaz e despreparado para lidar com a complexidade. Por isso, é preciso e inevitável um “pensamento complexo”. É preciso re-introduzir o conhecimento dentro do conhecimento, isto é, reconhecer nos saberes, mesmo os científicos, seu caráter de construção social, histórica e cultural, individualmente determinados. Aqui chegamos, portanto, na proposta de nosso trabalho! A necessidade de um pensamento complexo, apontada por MORIN, é antes de tudo uma proposta ética, porque um pensamento complexo é um pensamento capaz de tratar a coexistência de opostos, de paradoxos, partindo do princípio de que estes se auto-produzem mutuamente. Por exemplo: as dualidades ordem-desordem, objetividade-subjetividade, certeza-incerteza, separabilidade-inseparabilidade entre outras. Só assim poderemos melhor nos aproximar de uma ciência com consciência e, portanto, ética. Como explicitamos anteriormente, nossa proposta para se discutir a ética no par ciência-tecnologia se apresenta ancorada na proposta de Edgar Morin, qual seja a de um pensamento complexo. Acreditamos que até mesmo “A Declaração sobre a ciência e o uso do conhecimento científico” que defende importantes pontos como: a diminuição 4 da pobreza, a melhora na educação e na pesquisa, tornando-as mais acessíveis ao domínio público, o respeito à diversidade, a manutenção da vida através de um desenvolvimento sustentável, só poderá ser efetivada se houver um mudança da lógica subjacente atual, isto é, uma mudança de um pensamento, digamos, simplificador, para um pensamento complexo. 4) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Declaração sobre a ciência e o uso do conhecimento científico. SILVA, S. CIENCIA: por que e para quem? O correio. Rio de Janeiro: FGV, ano 27, n 7, jul.1999. FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização” (1929) Em: Obras completas, KOYRÉ, Alexandre. Do Mundo fechado ao Universo infinito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. MORIN, Edgar. Uma ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 5