A DIMENSÃO ÉTICA NA FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DA EDUCAÇÃO:
reflexões a partir do componente curricular de Ética do Profissional em Educação
Francini Carla Grzeca1 - UNIJUÍ
Celso José Martinazzo2 - UNIJUÍ
Apoio: Capes
Resumo: Este estudo tem a pretensão de trazer para o debate a temática da ética na
perspectiva da complexidade, tendo como referencial básico a obra de Edgar Morin. O texto
foi produzido a partir da reflexão sobre a prática de estágio de docência na graduação,
realizado no componente curricular de Ética do Profissional em Educação de um curso de
Pedagogia de uma Universidade. O foco do trabalho buscou analisar e compreender a
dimensão ética na formação do profissional da educação. O texto pretende repensar qual a
ética necessária para o processo de educação escolar, neste início do século 21, na perspectiva
de pensar a humanidade num mundo com característica de sociedade planetária. As
abordagens reflexivas e teóricas indicam que a questão da ética deve se tornar um prérequisito indispensável e permanente em todos os níveis de ensino tendo em vista a formação
do futuro profissional da educação. A dimensão da ética pode ser abordada em forma de
componente curricular e, sobretudo, como conteúdo transversal que perpasse toda a extensão
dos currículos escolares.
Palavras-chave: Ética. Complexidade. Prática docente. Comunidade planetária.
Considerações iniciais
Este estudo é resultado da análise e compreensão de uma prática docente junto ao
componente curricular de Ética do Profissional em Educação de um curso de Pedagogia de
uma Universidade. A realização desta prática docente inclui observação e intervenção e
ocorre por exigência do componente curricular Estágio de Docência na Graduação, oferecido
pelo Programa de Mestrado como um pré-requisito obrigatório para os mestrandos com bolsa
de estudo da Capes e/ou CNPq. Esta prática configura-se, sobretudo, como uma oportunidade
de estudo, ressignificação e aprendizagem em docência no ensino superior.
O componente curricular de Ética do Profissional em Educação foi introduzido na
estrutura curricular do curso de Pedagogia a partir da Resolução do Conselho Nacional de
Educação (CNE), nº. 1, de 15 de maio de 2006, que instituiu as Diretrizes Curriculares
Nacionais para os Cursos de Graduação em Pedagogia. No artigo 5º dessa Resolução, fica
1
Mestranda em Educação nas Ciências - UNIJUÍ; Graduada em Pedagogia – UNIJUÍ – Campus Santa Rosa;
Professora da rede municipal de Ijuí. E-mail: [email protected]
2
Doutor em Educação pela UFRGS. Professor do Departamento de Pedagogia, do programa de Mestrado em
Educação nas Ciências e colaborador do Programa de Mestrado em Desenvolvimento da Unijuí. E-mail:
[email protected]
evidente a relevância posta na dimensão ética da educação, tanto no exercício da profissão
quanto na formação de professores, ao especificar que o egresso do curso de Pedagogia
deverá estar apto a “atuar com ética e compromisso com vistas à construção de uma sociedade
justa, equânime, igualitária”. A introdução desse componente no currículo escolar pressupõe
que, além da competência conceitual e pedagógica, o estudante de Pedagogia, quando no
exercício da sua profissão docente, necessita atuar em consonância com os fundamentos e
princípios éticos considerados relevantes à sociedade onde atua.
Segundo o Projeto Político e Pedagógico do curso de Pedagogia da instituição em
questão, a ciência da Pedagogia é um campo do saber que se ocupa da formação humana e, de
modo específico, da formação do educador da educação infantil e de séries iniciais. Com essa
preocupação,
promove
situações
concretas
de
formação
do
acadêmico
na
multidimensionalidade do ser humano, bem como propõe o estudo das dimensões filosóficas,
éticas e antropológicas da educação. Nessa perspectiva, o componente curricular de Ética do
Profissional em Educação visa contemplar a demanda da formação ética do acadêmico acerca
da consciência do comprometimento ético-político do profissional da educação na sua prática
educativa e nas demais atividades humanas.
Deste modo, a intencionalidade desta prática docente foi, justamente, refletir sobre a
pertinência de um componente curricular no curso de graduação em Pedagogia que se ocupe
do estudo da ética e de seus desdobramentos na formação do professor. Essa nova dimensão
da ética visa preencher uma lacuna existente no currículo anterior às Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Curso de Pedagogia no qual a Ética era sugerida como uma temática que
deveria perpassar os componentes curriculares, porém, sem ocupar um lugar específico de
estudo e reflexão.
Os princípios da complexidade e a ética da religação
Consideramos, nesta reflexão, a importância da presença deste tema fundamental,
introduzido, a partir de 2006, como exigência, nos documentos normativos do ensino
superior. Encontramos, nas principais obras de Edgar Morin (2001, 2002, 2005 e 2007), os
princípios basilares de um referencial teórico pertinente que permitem compreender a Ética
num contexto de complexidade crescente que caracteriza o mundo, neste início do século 21.
A Ética, no sentido resgatado pela compreensão complexa do mundo, pode despertar uma
consciência planetária em que a humanidade se reconheça numa identidade humana de
comunidade terrestre.
Uma parte da prática docente consistiu no acompanhamento das aulas do componente
curricular de Ética do Profissional em Educação, durante os meses de maio e junho de 2009.
Este componente é oferecido no currículo de Pedagogia com a carga horária semestral de
trinta e duas horas, divididas em nove encontros presenciais. Com vistas à maior aproximação
com a prática observada, bem como, a melhor compreensão do objetivo proposto para este
estudo,
acompanhamos
todas
as
aulas ministradas
neste
componente curricular.
Integralizamos, assim, trinta e duas horas de estágio, sendo que dessas, vinte e seis horas
foram de observação e oito de intervenção.
No contato prévio com o professor deste componente curricular foram definidos, além
dos objetivos, do conteúdo e da avaliação, a dinâmica da realização do componente e da
intervenção da prática docente em questão. Considerando os encontros e o conteúdo
programático, o plano de aula foi organizado em cinco aulas ministradas pelo professor do
componente, duas aulas foram disponibilizadas para a realização da intervenção pedagógica
pela estagiária e duas foram destinadas à comunicação de trabalhos produzidos pelas
acadêmicas. Nas primeiras aulas deste componente curricular, buscamos a confrontação das
práticas cotidianas e pedagógicas das acadêmicas com os fundamentos e valores da tradição
ético-filosófica ocidental. Essa tarefa oportunizou uma reflexão sobre os valores que orientam
e justificam as práticas pedagógicas e as decisões de conduta nas demais atividades humanas.
O eixo da discussão sobre a temática da ética no componente curricular esteve
referendado pelas contribuições dos filósofos clássicos da modernidade. Com base na
literatura sobre o assunto, foi realizada uma análise crítico-reflexiva dos princípios
normativos que vêm orientando as sociedades ao longo da história e dos conflitos que
atualmente parecem conduzir a humanidade para uma grave crise ética. Após esse primeiro
momento, apresentamos às acadêmicas as concepções éticas de dois autores que representam
duas importantes correntes de pensamento: a do filósofo Lukács (2007), que contempla uma
visão da ética marxista, e a de Edgar Morin, que apresenta elementos do paradigma da
complexidade para repensar a ética com vistas a formar uma sociedade planetária.
Assim, no conjunto desta proposta, a principal contribuição trazida para esta prática do
componente curricular de Ética do Profissional em Educação foi o estudo da concepção ética
com base na obra O Método 6: ética, de Edgar Morin (2007). O desenvolvimento da prática
foi, igualmente, ancorado na leitura e no estudo do capítulo oito do livro Compreender a
Complexidade: Introdução a O Método de Edgar Morin (2007), de Robin Fortin, que
sintetiza as principais contribuições de Morin sobre a Ética.
As aulas foram de caráter expositivo, proporcionando o diálogo, o debate e a reflexão.
Em um dos momentos da aula, para dar oportunidade de interlocução a todas as acadêmicas,
foi realizada uma dinâmica de comunicação da leitura de parte do capítulo. E, como avaliação
parcial, as acadêmicas escreveram, individualmente, suas memórias com base na leitura do
texto indicado e nas discussões realizadas em aula. A escrita das memórias teve como
finalidade o registro dos apontamentos feitos pelas acadêmicas durante a realização do estudo.
Num primeiro momento, quando apresentamos à turma a proposta de estudo desta
intervenção, foi realizada uma breve exposição sobre Morin e sua obra, instigando as alunas à
leitura e introduzindo-as no universo conceitual do autor. Edgar Morin é um pensador francês,
nascido em 1921, formado em Geografia, História e Direito, com estudos nas áreas da
Filosofia, Sociologia e Epistemologia. É autor de mais de trinta livros publicados. Conforme
Almeida (2002, p. 175) “Edgar Morin é um dos expoentes mais expressivos do pensamento
mundial contemporâneo”.
O pensamento de Morin sobre a complexidade parte da caracterização e da análise
crítica do conhecimento simplificador, redutor e disjuntivo próprio da racionalidade da
ciência moderna, do método cartesiano, que, por sua vez, resulta em ações unidimensionais e
mutiladoras. Explicando e analisando o pensamento fragmentador, o autor dedica-se à
elaboração de um método que reconheça e contemple a multidimensionalidade da realidade,
ou seja, a complexidade do mundo. Propõe princípios inovadores para um novo método que,
ao mesmo tempo em que conserva o método cartesiano, o ultrapassa, alargando e
complexificando os conhecimentos do chamado método da simplificação.
O método de complexidade, desta forma, pretende uma reforma do pensamento que
permita a rearticulação dos conhecimentos das ciências naturais com os conhecimentos das
ciências antropossociais, de modo que não haja dicotomia e separação estanque entre as
mesmas. Esse novo modo de pensar pretende promover um pensamento que culmine em
ações complexas e evite práticas mutiladoras. Fortin (2007, p. 26) destaca que “este método é
o método de complexidade que Morin propõe. Tal método, ao mesmo tempo em que
ultrapassa o método cartesiano, deverá salvaguardar-lhe a inspiração primeira e as suas
conquistas mais preciosas”.
O método da complexidade é concebido como caminho, percurso, estratégia,
perseguição ao conhecimento. Ele é conetivo, promove a ligação entre os saberes, entre o
sujeito e o objeto, entre o sujeito e o conhecimento. O (re)aprender, na perspectiva complexa,
pressupõe a reforma do pensamento, para que este possa organizar, articular, situar o
conhecimento em seu contexto. O método da complexidade conta com o aporte de princípios
que subsidiam a construção do conhecimento complexo. São esses princípios que conduzem a
reforma das estruturas de pensamento, permitindo a incorporação e a ultrapassagem dos
princípios cartesianos, das ideias claras e distintas, da análise, da ordenação e da
quantificação. Os princípios da complexidade promovem e contemplam a contextualização, a
ligação, a complementaridade, a incerteza e a recursividade. Nas palavras de Martinazzo
(2009, p. 22):
Os principais princípios que colaboram com a construção do pensamento
complexo e transdisciplinar são: o Princípio Hologramático ou
Holográfico (Bohm, 1992), o Princípio da Complementaridade (Bohr,
1995), o Princípio da Incerteza (Heisenberg, 1993) e o Princípio da
Autopoiése (Maturana; Varela, 1995).
Segundo o autor citado, não podemos reduzir o método da complexidade a alguns
princípios para não corrermos o risco de torná-lo programático e estéril, seguindo o mesmo
vício do pensamento simplificador. Alerta o autor para a importância de se ter clareza sobre a
abrangência e as implicações das categorias e princípios da complexidade, sobretudo pelas
mensagens inovadoras que estes comportam.
O
princípio
dialógico
mostra
que
a
mensagem
contida
na
noção
de
ordem/desordem/interação/organização sempre está em relação ambivalente, complementar,
concorrente e antagônica. O pensar dialógico, conforme entende Martinazzo (2009), comporta
contradições e ambivalências, convive com as diferenças e ideias opostas e, ao contrário da
dialética, não necessita de uma síntese que aponte para uma verdade única, mas contempla a
complexidade das relações.
O princípio hologramático pontua a relação parte/todo, em que a parte só pode ser
entendida em função do todo e o todo, do mesmo modo, só pode ser entendido em função das
partes. Nesse caso, a mensagem de complexidade contida neste princípio é de que o
conhecimento é engendrado em rede, interligado e interdependente. Para conhecer, portanto, é
necessário contextualizar, ligar o todo a suas partes e as partes ao todo.
Outro princípio importante é o anel recursivo ou o princípio da recursão
organizacional, que traz para a complexidade o conceito de auto-organização e de
autoprodução. Esses processos ocorrem devido à recursividade causa/efeito, em que os efeitos
retroagem sobre as causas, num processo circulatório no qual o produto ou o efeito se torna
elemento primeiro e causa primeira (Fortin, 2007). A ideia de recursão, de circularidade,
contida neste princípio é que estabelece a lógica da complexidade. Uma lógica recursiva que
permite pensar as coisas de modo articulado, considerando sua co-produção. Segundo Fortin,
“a idéia de recursão conduzirá Morin, passo a passo, à elaboração de uma lógica recursiva. A
lógica recursiva é por definição uma lógica da complexidade” (2007, p. 29). Assim, com base
nesses princípios da lógica da complexidade, o pensamento complexo pode ser ilustrado como
um pensar em espiral ascendente/descendente, que liga e articula, superando a linearidade dos
princípios da simplificação.
Tais princípios epistemológicos incorporam, superam e ultrapassam a
epistemologia cartesiana e mostram as condições de uma visão complexa.
Esses operadores cognitivos ampliam o foco de observação e o campo de
análise e, portanto, podem possibilitar um novo olhar investigativo na
pesquisa e nas ciências em geral (Martinazzo, 2009, p. 25).
É com base nesses princípios da complexidade que Edgar Morin se apoia para
repensar a ética cristã ou, mesmo, toda a ética tradicional construída na dicotomia bem/mal,
certo/errado, material/espiritual, natural/sobrenatural. Os princípios do conhecimento
complexo, que nos permitem repensar a complexidade humana, podem também nos levar a
repensar a ética com um olhar na complexidade. A compreensão ética com base na
complexidade é alargada e comporta incerteza, contradição e aposta. A ética apoiada na
complexidade constitui-se em uma ética da compreensão, da solidariedade e do cuidado, que
se pretende universalista na emergência da sociedade planetária e, também na tomada de
consciência da comunidade de origem e de destino da humanidade.
Compreender a visão linear da ética antropocêntrica, centrada no sujeito racional e de
consciência moral, formado nos dogmas da ética cristã, bem como apresentar uma nova
perspectiva teórica para uma ética humana complexa e planetária constituiram o pano de
fundo da nossa ação e intervenção nesta prática docente.
Ética e sociedade planetária
As ações e organizações humanas que levam em conta os princípios da complexidade
destacam a importância e a centralidade da questão da ética. Morin percebeu a importância
desta temática na formação humana. Com a finalidade de resgatar o sentido e o lugar da ética
na educação escolar, escreveu o livro Os sete saberes necessários à educação do futuro
(2001), no qual coloca a ética como um dos saberes indispensáveis em todos os âmbitos e em
todas as culturas. Segundo o autor, a tomada de consciência sobre a questão ética se torna
uma necessidade sem precedentes para a humanidade, tendo em vista o desafio de formar uma
comunidade planetária. O surgimento de uma comunidade planetária, de uma sociedademundo ou mesmo de uma Terra-Pátria, tem sua origem e consolidação na própria constituição
do ser humano, não sendo apenas fenômeno do contexto atual de globalização.
Na concepção complexa, a espécie humana é compreendida, na sua evolução e
condição cosmobioantropológica, como parte da natureza e da vida e reconhecida como parte
da epopeia cósmica que originou o mundo atual: “somos física e quimicamente filhos do
cosmos [...], somos filhos do mundo vivo, saímos da evolução da vida” (Morin, 2005, p. 269).
Além da identidade terrena, física e biológica, o ser humano comporta, na sua
constituição, uma identidade antropológica, caracterizada pelos aspectos psicossocioculturais
desenvolvidos no processo de hominização. Deste modo, na concepção complexa, a condição
humana é composta pela tríade indivíduo/sociedade/espécie. Nesta tríade, o ser humano é
compreendido como indivíduo, como parte da sociedade e como membro da espécie humana.
Neste sentido, o humano é concebido na sua totalidade, na interdependência dos três termos
desta relação trinitária, em que os termos inscrevem-se uns nos outros, cada um contendo o
outro e vice-versa.
No nível antropológico, a sociedade vive para o indivíduo, o qual vive
para a sociedade; a sociedade e o indivíduo vivem para a espécie, que
vive para o indivíduo e para a sociedade. Cada um desses termos é ao
mesmo tempo meio e fim: é a cultura e a sociedade que garantem a
realização dos indivíduos, e são as interações entre indivíduos que
permitem a perpetuação da cultura e a auto-organização da sociedade
(Morin, 2001, p. 54).
É a tomada de consciência da condição humana como um ser cosmobioantropológico,
ou seja, “ser ao mesmo tempo indivíduo/sociedade/espécie” (Morin, 2001, p. 17), que
fundamenta o sentimento de pertencimento a uma comunidade planetária. Torna-se possível
reconhecer, nos tempos de hoje, que, apesar das diversidades culturais, étnicas, religiosas e
sociais, a humanidade é uma só: que os seres humanos têm uma origem comum, formam uma
comunidade de origem, bem como compartilham do mesmo destino. O limite físico do
planeta impõe à humanidade, como comunidade de destino, a necessidade de compartilhar a
mesma casa, a Terra, o que implica uma retomada radical dos pressupostos filosóficos das
muitas éticas comunitárias em uma ética universalista.
O que torna possível a ideia de uma ética universal, segundo Morin (2007, p. 160), é a
condição de conexão e interdependência das comunidades, nações e indivíduos ao todo
planetário e ao universal humano que a era planetária vem proporcionar. Revisitar a ética
nessas condições implica considerar o caráter da condição humana na própria ética, que, por
sua vez, conduz a uma antropoética. Para Morin (2001, p. 106), a antropoética é a ética
propriamente humana, pois ela emerge da consciência da condição humana de ser
indivíduo/sociedade/espécie. A antropoética conserva o caráter trinitário deste circuito
fazendo com que os seres humanos possam se compreender como humanidade. Com base
numa antropoética, portanto, a humanidade pode recuperar o espírito e o sentimento
propriamente humano e, desta forma, constituir uma comunidade terrena vivendo uma
verdadeira cidadania planetária.
A ética universalista, tornada concreta, é antropoética: impõe-se cada vez
mais nos desenvolvimentos atuais da era planetária que não apenas
colocaram os seres humanos em comunicação e em interdependência,
mas, mais ainda, fizeram emergir uma comunidade de destino para a
espécie humana (Morin, 2007, p. 160).
Morin (2007) entende que a ética manifesta-se no humano como um imperativo, um
dever, uma exigência moral proveniente de três fontes interligadas entre si. Uma de origem
interior ao indivíduo, que se traduz em dever; outra de origem exterior, relativa às crenças e
normas que regulam a conduta social imposta pela cultura; e, por fim, uma fonte anterior,
referente à herança genética da espécie.
O autor, mais uma vez, liga a ética ao caráter trinitário da condição humana. É com
base na tríade inaugurada por ele, para construir a concepção complexa de sujeito, que surge a
noção de ética numa concepção igualmente complexa. Morin esclarece que (2007, p. 30) “não
se trata, portanto, para nós de encontrar um novo fundamento para a ética, mas, ao mesmo
tempo, de dar-lhe novas fontes, novas energias e de regenerá-la no circuito de religação
indivíduo/espécie/sociedade”. A complexidade, portanto, aponta para a necessidade de a ética
recorrer a várias fontes (interior/exterior/anterior) para constituir-se em “auto-socio-antropoética” (Fortin, 2007, p. 204).
Essa percepção ética introduzida por Morin é apontada, por Almeida, (2005, p. 139)
como um “divisor de águas no oceano das inumeráveis interpretações filosóficas e
sociológicas sobre ética”. Isto porque o argumento usado pelo autor assinala a dificuldade de
fundar a ética em pressupostos reducionistas na figura de um sujeito antropocêntrico, como a
ética racionalista, em que o fundamento último para tudo é a razão autocentrada; ou, então,
nas éticas transcendentais, em que a verdade e o bem são revelados por um ser supremo,
exterior ao próprio homem. A ética inaugurada sob a ótica da complexidade transpõe a visão
clássica de ética, pois traz no seu âmago uma nova concepção de homem e de mundo.
A compreensão de sujeito que Morin considera ao longo de sua obra é a qualidade de
natureza própria de todo ser vivo, do unicelular ao homem. Tal qualidade de sujeito é
definida, em Fortin (2007, p. 92), como traços de individualidade que repousam sobre o egoauto-centrismo e a ego-auto-referência. O predomínio do egocentro faz com que cada ser vivo
se considere o centro do seu universo e o reconhecimento de Si, como ser único distinto de
tudo o que lhe é exterior, o faz auto-referente. Para o autor, são estas as qualidades, de
organização e de natureza própria do indivíduo vivo e que definem o sujeito, pois, que lhe
garantem a existência e salvaguardam sua sobrevivência.
Essa concepção de sujeito, introduzida pela complexidade, pode parecer puramente
biológica; no entanto, ela não é restritiva a um biologismo. A qualidade de sujeito é
acompanhada pelo desenvolvimento da reflexão, da linguagem, do pensamento, bem como
pela sua condição de inacabamento, que lhe permite tornar-se singular. A concepção
complexa de sujeito sempre está vigilante para lembrar que o homem é um ser vivo, como o
unicelular, a planta e o animal. Este elo, que liga a constituição do sujeito humano ao
biológico, ao social e ao individual, é assim sinalizado por Almeida:
O sujeito humano se engendra no interior das contingências sóciohistóricas e bio-culturais - outra forma de dizer que ele emerge do interior
de reorganizações não exclusivamente humanas, históricas e sociais. Para
Morin, é possível distinguir, mas não isolar, nem contrapor, os domínios
individuais, sociais e biológicos que juntos configuram o paradigma
aberto e inacabado da espécie humana, do sujeito e da ética. (2005, p.
140).
Alargando a compreensão de sujeito, tirando-o do lócus solitário e privilegiado da
razão e enredando-o na complexidade, Morin atribui novos contornos à ética, pouco
considerados até este momento. Segundo Morin (apud Fortin, 2007, p. 189): “O ser humano é
um ser extraordinariamente complexo, que une dialogicamente (recursivamente) em si vários
componentes e contém sempre contradição, ambigüidade, incerteza”. Assim, o humano é
entendido na sua dimensão de homo sapiens, mas também demens; ele é dialogicamente
sapiens/demens, um contendo o outro de forma simultânea e inseparável. Na visão complexa,
o ser humano é, ao mesmo tempo, racional, louco, poético, prosaico, afetivo, estético, lúdico,
ou seja, homo complexus.
Considerando que o homem oscila entre razão, demência, pulsão e afetividade, sendo,
ao mesmo tempo, egoísta e altruísta, acreditamos que a ética não pode ser uma questão
simples, mas algo que comporta contradição, incerteza, engano e ambiguidade. Distingue-se,
portanto, da compreensão em que a esfera ética é fundamentada em verdades reveladas ou em
certezas de uma razão pura. Fortin (2007, p. 204) escreve que: “Acreditar na possibilidade de
uma ética transparente, auto-suficiente e omnisciente, é não conhecer a ética e desconhecer as
perversões, inversões, contradições, desvios e voltas que a acção ética pode sofrer”. A ética,
sob o olhar da complexidade, comporta a multidimensionalidade do humano e entende que as
decisões de cunho ético sempre estão sujeitas à incerteza. A ética, desta forma, é provisória,
estratégia, escolha e risco.
Como tudo o que caracteriza o humano, a ética não escapa do problema da
contradição; a contradição ética está no bojo da relação intenção/ação. Com esse alerta, Morin
traz para a discussão da ética o hiato existente entre a intenção da ação e a ação em si e suas
consequências. A incerteza ética reside justamente na impossibilidade de previsibilidade dos
efeitos da ação. Como explica Fortin (2007, p. 205), seguindo o princípio da ecologia da ação,
toda ação escapa à vontade do seu autor na medida em que se inscreve no interior do meio em
que ela se desenrola e entra no jogo das inter-retro-ações. Assim, os efeitos pretendidos pela
ação podem ser desviados do seu fim, ou ainda, podem ter efeito contrário ao pretendido.
É nesta perspectiva que ganha sentido a frase popular “é de boas intenções que o
inferno está cheio”. Por melhores que sejam as intenções, ao entrar no jogo das inter-retroações, a ação escapa da vontade do seu autor e seus fins tornam-se incertos. No caso dos seus
efeitos serem esperados num longo prazo, os resultados tornam-se ainda mais imprevisíveis.
A compreensão de como opera a ecologia da ação, segundo Almeida (2005, p. 141), é
fundamental para pensar as problemáticas éticas, que nada têm de evidentes. A ética, à luz da
complexidade, não estabelece princípios superiores ou exteriores pelos quais a ação se deve
pautar. Só há incertezas e imprevisibilidade onde a ética aparece como estratégia, aposta e
escolha.
A ética, revigorada nas fontes da complexidade, alarga os horizontes da deliberação e
do julgamento moral. Ela entende e comporta as incertezas, as contradições, os antagonismos,
os erros e as ilusões que as tomadas de decisão, ao nível ético, podem sofrer. A complexidade
aponta que, nas questões referentes ao ser humano, principalmente nos assuntos que exigem o
julgamento moral, há sempre incerteza e ambiguidade. Por isso, na perspectiva da
complexidade, a ética tende a superar o código binário bem/mal, justo/injusto, da moral
simples e da exclusão. Morin entende que (2007, p. 60) “a ética complexa concebe que o bem
possa conter um mal, o mal um bem, o justo o injusto, o injusto o justo”.
Para enfrentar a complexidade ética, as incertezas, ilusões e ambiguidades, Morin
propõe um exercício à consciência de permanente estado de alerta, uma cultura psíquica que
tem por finalidade a vigilância ética: “Trata-se efetivamente de uma forma de introspecção
capaz de revelar todas as possibilidades de cegueiras que sem tréguas enviesam os nossos
julgamentos, falseando a nossa percepção das coisas e até a nossa percepção de nós” (apud
Fortin, 2007, p 212). A esse estado de vigilância ética, que consiste no movimento de autoanálise e autocrítica, de olhar para si, Morin (2007, p. 93) tem denominado de auto-ética “[...]
uma ética de si para si que desemboca naturalmente numa ética para o outro”.
A auto-ética convida à aprendizagem da compreensão, de si mesmo e do outro. Fortin
escreve que a auto-ética (2007, p. 215): “obriga-nos a compreendermo-nos melhor a nós
mesmos e a compreender melhor os outros, a compreender melhor que, tal como o outro, nós
podemos enganar-nos e iludir-nos e ser incapazes de ver que nos enganamos e iludimos”. A
compreensão é trazida para a discussão da ética, não como sinônimo de perdão ou pelo
sentimento de bondade que ela contém, mas porque a compreensão alarga e complexifica a
visão, permitindo outras perspectivas ao julgamento moral. Assim, a ética propriamente
humana ou a antropoética, necessária à emergência da cidadania planetária, é a ética da
compreensão, que se desdobra em ética da solidariedade, pressuposto para a constituição de
uma sociedade na sua dimensão planetária.
A ética, ressignificada sob o olhar da complexidade, revigora-se em ato de ligação:
indivíduo/espécie/sociedade. Renova, no indivíduo, o sentimento de pertencimento ao mundo
e de identidade terrena, despertando sua consciência de responsabilidade e de solidariedade
com o outro, com a natureza, com a sociedade e com a espécie. A compreensão da
complexidade humana passa a ser pressuposto para uma ética de intersolidariedade, tão
necessária para o surgimento e a consolidação de uma sociedade planetária.
Considerações Finais
Considerando a perspectiva de um mundo em constante transformação, com
possibilidade de uma planetarização da sociedade humana e de uma cidadania terrestre, Morin
(2001) sugere o estudo e o ensino da ética como um dos saberes necessários à educação
escolar. De acordo com o referencial teórico da complexidade, o estudo da ética, enquanto
metaponto de vista, pode conduzir a uma reflexão sobre a condição e identidade humana,
influenciando positivamente nas decisões ao nível da ação ético-moral dos indivíduos. Por
isso, a dimensão da ética necessita consolidar seu espaço em todos os níveis da educação
escolar.
O componente curricular de Ética do Profissional em Educação, objeto de estudo para
esta prática docente, trata das dimensões éticas da educação, com vistas à reflexão sobre os
valores, objetivos e princípios que visam normatizar as práticas sociais e educacionais. Tem a
pretensão de redimensionar o processo de formação profissional dos educandos no que se
refere às questões éticas e aos juízos morais presentes na organização e condução das
atividades escolares.
Neste sentido, além de atender as orientações postas pelo componente curricular em
questão, tivemos a pretensão de realizar esta atividade de estágio de docência no ensino
superior com as acadêmicas do curso de Pedagogia, analisando e expondo as bases para a
construção de uma ética complexa e planetária. Concordamos com Morin (2001) de que a
ética constitui uma lacuna nos currículos escolares. No entanto, segundo ele, o estudo e o
ensino da ética não podem ser tomados como uma lição de moral ou de doutrinação
dogmática. O componente de ética deve concorrer para a formação de mentes reflexivas e
críticas em relação ao contexto em que a humanidade vive hoje. Assim, é importante
compreender a complexidade do ser humano em sua constituição e condição de indivíduo que
compõe uma espécie e, ao mesmo tempo, integra uma sociedade.
Apresentamos, neste texto, alguns elementos para a compreensão da ética em Morin e
que serviram de subsídio para a nossa prática docente. A abordagem do tema da ética
referendada sobre os pressupostos antropológicos apresenta-se como uma pré-condição para a
emergência da sociedade planetária e, por isso mesmo, como uma exigência de pauta para o
debate na educação escolar em todos os níveis.
A análise reflexiva sobre a prática docente, realizada no componente curricular de
Ética do Profissional em Educação e registrada neste texto, corrobora a proposição de que o
estudo e o ensino da ética é uma questão pertinente em todos os níveis da educação, seja ela
em forma de componente específico, seja como temática transversal que perpasse todo o
currículo escolar. As considerações de Morin que apontam para esta necessidade, bem como
os depoimentos das acadêmicas do curso de Pedagogia no decorrer das aulas, também
ressaltam a importância do estudo e do ensino da ética na formação do educador. Percebemos,
nesses discursos, o interesse que a questão da ética desperta e o quanto esta atividade
contribuiu para a tomada de consciência, por parte das acadêmicas, da crise dos fundamentos
das interpretações clássicas da ética, que deixam insuficiências para pensar o mundo atual.
Neste sentido, entendemos ser pertinente que num curso de formação de professores,
haja um componente curricular específico que se ocupe em promover o estudo da ética e suas
implicações. E, como explicitamos ao longo do texto, é fundamental pensar esta formação
ética com base em outros pressupostos que caracterizam o ser e o agir humano numa
perspectiva de sociedade planetária.
Referências:
ALMEIDA, Maria da Conceição Xavier de. Saudação a Edgar Morin. Margem (PUCSP),
São Paulo, v. 16, p. 175-176, 2002.
_______. O Método 6: ética. Revista FAMECOS. Porto Alegre, n. 27, p. 130 - 143, ago. 2005.
FORTIN, Robin. Compreender a complexidade: introdução a O Método de Edgar Morin.
Lisboa: Instituto Piaget, 2007.
LESSA, Sérgio. Lukács - ética e política: observações acerca dos fundamentos ontológicos da
ética e da política. Chapecó: Argos, 2007.
MARTINAZZO, Celso José (Org.). Educação escolar e outras temáticas: ensaios do pensar
complexo. Ijuí: Unijuí, 2009.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2001.
_______. O método 5: a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2002.
_______. (Org.). A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2005.
_______. O Método 6: ética. Porto Alegre: Sulina, 2007.
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