Santos, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo, Cortez,
2003.
Resumo elaborado por Tatiana Wargas de Faria Baptista
Um discurso sobre as ciências é uma versão ampliada da Oração de Sapiência proferida
por Boaventura de Souza Santos na abertura solene das aulas da Universidade de
Coimbra, no ano letivo de 1985/86. O texto foi publicado em formato de livro pela
primeira vez em Portugal no ano de 1987 e posteriormente foi divulgado em outros
países no formato de artigo, inclusive no Brasil (1988). No ano de 2003 o livro já estava
na sua 13a edição.
As ideias apresentadas no livro provocaram amplo debate entre positivistas e
antipositivistas, entre realistas e construtivistas. No prefácio à edição brasileira de 2003
o autor recomenda a leitura do texto em conjunção com outro livro do autor
Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências
revisitado, onde responde às críticas feitas pela corrente positivista e realista.
O texto tem como proposta central a defesa de uma posição epistemológica
antipositivista, pondo em causa a teoria representacional da verdade e a primazia das
explicações causais. Com isso, faz a defesa de que todo o conhecimento científico é
socialmente construído, e que o seu rigor tem limites inultrapassáveis e que sua
objetividade não implica a sua neutralidade. Para desenvolver sua postura
epistemológica descreve a crise do paradigma dominante e identifica os traços
principais do paradigma emergente.
O autor parte de um questionamento sobre o que é a verdade e da necessidade de se
voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples. Afinal, a que
serve a ciência? Questiona o autor (p.15).
Uma série de questões se apresenta conjugadas a esta:
“o progresso das ciências e das artes contribuirá para purificar
ou para corromper os nossos costumes? (...) há alguma relação
entre a ciência e a virtude? Há alguma razão de peso para
substituirmos o conhecimento vulgar que temos da natureza e da
vida e que partilhamos com os homens e mulheres da nossa
sociedade pelo conhecimento científico produzido por poucos e
inacessível à maioria? Contribuirá a ciência para diminuir o
fosso crescente na nossa sociedade entre o que se é e o que se
aparenta ser, o saber dizer e o fazer, entre a teoria e a prática?”
(p.16).
O livro organiza-se em três partes: a primeira apresenta a ordem científica dominante, a
segunda analisa os sinais da crise dessa hegemonia e a terceira especula o perfil de uma
nova ordem científica emergente.
São cinco as hipóteses de trabalho (p.20) enunciadas pelo autor:
1 – Começa a deixar de fazer sentido a distinção entre ciências naturais e ciências
sociais.
2 – A crise que há que operar entre essas ciências tem como pólo catalisador as ciências
sociais.
3 – Para que a crise ocorra as ciências sociais terão de recusar todas as formas de
positivismo lógico ou empírico ou de mecanismo materialista ou idealista com a
consequente revalorização do que se convencionou chamar de humanidades ou estudos
humanísticos;
4 – Esta síntese não visa uma ciência unificada;
5 – À medida que se der essa síntese, a distinção hierárquica entre conhecimento
científico e conhecimento vulgar tenderá a desaparecer e a prática será o fazer e o dizer
da filosofia da prática.
Parte 1 - O paradigma dominante
O autor apresenta o modelo de racionalidade que se constitui a partir da revolução
científica do séc.XVI destacando algumas características:
- o domínio das ciências naturais;
- o modelo global que se distingue do senso comum e dos estudos humanísticos;
- o modelo totalitário
- o modelo pautado em regras metodológicas
- a perspectiva de uma verdade
- a luta contra o dogmatismo e formas de autoridade
- a desconfiança sistemática das evidências da nossa experiência imediata
- a ideia de que a ciência fará do homem o “senhor e o possuidor da natureza”
- a busca de conhecimento profundo e rigoroso da natureza
- a compreensão que a matemática fornece à ciência moderna o instrumento
privilegiado de análise
- a perspectiva de que conhecer significa quantificar
- a defesa de que o rigor científico afere-se pelo rigor das medições (p.27)
- de que o método científico se assenta na redução da complexidade
- que é preciso dividir e classificar, para determinar relações sistemáticas
- que o conhecimento é causal, aspira à formulação de leis, à luz das
regularidades observadas, com o objetivo de prever o comportamento futuro dos
fenômenos.
E assim conclui,
“As leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como
funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas” (p.30).
Ou seja, um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto a ideia
de ordem e de estabilidade do mundo, a ideia que o passado se repete no futuro. De que
o mundo funciona como uma máquina (mundo-máquina).
O positivismo, para o autor, é a expressão deste modelo. No positivismo só há duas
formas de conhecimento científico: as disciplinas formais da lógica e da matemática e
as ciências empíricas segundo o modelo mecanicista das ciências naturais. Por isso
também indica que as ciências sociais nasceram para ser empíricas (p.33).
A partir desta concepção há duas variantes de pensamento. A primeira ressalta as
ciências naturais como a concretização de um modelo universalmente válido, o único
válido, submetendo as ciências sociais a ele. (pág.35 a 37). A segunda prove das
ciências sociais que passam a reivindicar um estatuto metodológico próprio, apontando
para a subjetividade da ação humana e para o método qualitativo (p.38/39), numa crítica
ao pensamento positivista e assentada na tradição filosófica da fenomenologia. Mas
mesmo nesta variante as ciências sociais ainda se mantêm refém de um modelo que
distingue natureza/ser humano, natureza/cultura, humano/animal, ainda prisioneira da
prioridade cognitiva das ciências naturais.
Parte 2 - A crise do paradigma dominante
Boaventura defende que a crise do paradigma dominante da ciência é profunda e
irreversível, sendo resultado de uma pluralidade de condições, teóricas e sociais.
O autor indica a contribuição de Einstein para a constituição do que denominou ‘o
primeiro rombo no paradigma da ciência moderna’ por romper com o círculo vicioso da
simultaneidade dos acontecimentos e admitir a arbitrariedade no tempo e espaço. Com
isso mostra como Einstein contribuiu com a crítica à ideia de simultaneidade
universal e possibilitou a percepção do relativismo.
O passo seguinte para a crise paradigmática se deu pela demonstração, proposta por
Heisenberg e Bohr, de que é impossível observar ou medir um objeto sem interferir
nele. Afirmou-se assim que “não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou
seja, que não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele”(pág.44), o que ficou
definido como princípio de incerteza de Heisenberg.
As implicações do princípio da incerteza e a admissão da interferência no objeto
levaram ao entendimento de que só podemos aspirar resultados aproximados,
prováveis, pois não há determinismo mecanicista e muito menos uma totalidade do
real. E, assim, a totalidade do real não é a soma das partes que dividimos para observar
e medir e com isso, aponta-se que a distinção entre sujeito/objeto é muito mais
complexa, assumindo uma forma de continuum.
O terceiro momento de crise do paradigma moderno se deu com a apresentação do
teorema da incompletude e os teoremas sobre a impossibilidade de encontrar dentro de
um dado sistema formal a prova da sua consistência. A própria medição da matemática
revelou-se incompleta. A partir disto tornou-se possível “questionar o rigor da
matemática como também redefini-lo enquanto forma de rigor que se opõe a outras
formas de rigor alternativo” (pág.46).
A quarta condição da crise do paradigma moderno foi constituída pelos avanços do
conhecimento nos domínios da microfísica, da química e da biologia, passando-se a se
admitir que as mudanças ocorrem por fenômenos microscópicos que acabam por mudar
o todo.
“Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a
imprevisibilidade; em vez de mecanicismo, a interpenetração, a
espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade,
a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem;
em vez da necessidade, a criatividade e o acidente” (pág.48)
Características das Ciências Moderna e Pós-Moderna
Ciência Moderna
Ciência Pós-Moderna
Eternidade
História
Determinismo
Imprevisibilidade
Mecanicismo
Reversibilidade
Ordem
Necessidade
Interpenetração Espontaneidade e autoorganização
Irreversibilidade e a evolução
Desordem
Criatividade e acidente
É a partir desta reflexão sobre as condições da crise do paradigma moderno de ciência
que Bouventura questiona o conceito de lei e o de causalidade:
“As leis têm assim um carácter probabilístico, aproximativo e
provisório, bem expresso no princípio da falsificabilidade de
Popper. Mas acima de tudo, as simplicidade das leis constitui
uma simplificação arbitrária da realidade que nos confina a um
horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da
natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse humano,
ficam por conhecer”(p.51).
Em substituição à ideia de causa fala em favor da finalidade. Ou seja, ao invés de visar
intervir no real e determina-lo busca entender o para que serve o conhecimento.
Em contraposição à forma visa discutir o conteúdo do conhecimento, extrapolando a
perspectiva de um conhecimento mínimo que fecha as portas aos muitos outros saberes
sobre o mundo.
Parte 3 - O paradigma emergente
Nesta parte o autor apresenta o que seriam as principais teses de sustentação do
paradigma emergente, enunciado como paradigma do conhecimento prudente para uma
vida decente (pág.60).
1. Todo o conhecimento científico-natural é científico-social.
Nesta Tese o autor sustenta que a distinção entre as ciências naturais e ciências sociais
deixou de ter sentido e utilidade, pois todo conhecimento tende a ser um conhecimento
não dualista, que se funda na superação das distinções até então aplicadas, tais como
natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, coletivo/individual,
objetivo/subjetivo, animal/pessoa.
A superação da dicotomia ciências naturais/ciências sociais tenderá a revalorizar os
estudos humanísticos, ou seja, a pessoa será entendida enquanto autor e sujeito do
mundo, no centro do conhecimento; (diferente das humanidades tradicionais porque a
natureza está no centro da pessoa) – ver pág.71/72.
Esta superação promoverá a “situação comunicativa”, onde sentidos diversos passam a
estar em relação.
2. Todo o conhecimento é local e total.
No paradigma emergente há uma crítica a parcelização e disciplinarização do
conhecimento científico e a busca pelo conhecimento total. Ou seja, o conhecimento
pós-moderno não é um conhecimento determinístico, nem descritivista, é um
conhecimento sobre as condições de possibilidade. “As condições de possibilidade da
acção humana projectada no mundo a partir de um espaço-tempo local”.
Nesta perspectiva, o conhecimento é relativamente imetódico, pois constitui-se a partir
de uma pluralidade metodológica, numa transgressão metodológica, que não segue um
estilo unidimensional (p.78), com isso possibilita-se uma maior personalização do
trabalho científico.
3. Todo o conhecimento é autoconhecimento.
Neste paradigma assume-se que o objeto é a continuação do sujeito por outros meios e
que justamente por isso todo o conhecimento científico é também autoconhecimento.
Afirma-se assim a ideia de que a ciência não descobre, cria. Trata-se de uma acto
criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica em seu conjunto.
A explicação científica dos fenômenos é a autojustificação da ciência enquanto
fenômeno central da nossa contemporaneidade. A ciência é autobiográfica.
4. Todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum.
Assume-se que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional e tenta
dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas. Assim, o
que se almeja na ciência pós-moderna é o salto do conhecimento científico para o
conhecimento do senso comum. “O conhecimento científico pós-moderno só se realiza
enquanto tal na medida em que se converte em senso comum” (pág.90/91).
“A ciência pós-moderna, ao sensocomunizar-se, não
despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas
entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em
autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve
traduzir-se em sabedoria de vida. É esta que assinala os
marcos da prudência à nossa aventura científica. A
prudência é a insegurança assumida e controlada.” (pág.
91)
Características da Ciência Moderna e da Ciência Pós-Moderna
Ciência Moderna
Ciência Pós-Moderna
Distinção entre as ciências naturais e Integração das ciências
ciências
sociais.
Dualismo Crítica ao dualismo
natureza/cultura; objetivo/subjetivo e
outros.
Especialização e disciplinarização do Conhecimento total
conhecimento
Conhecimento global e leis universais
Conhecimento local e condições de
possibilidade
Conhecimento
metódico,
regras Conhecimento imetódico, pluralidade e
metodológicas e quantificáveis
transgressão metodológica
Conhecimento objectivo, factual e O conhecimento é um ato criativo
rigoroso, sem a interferência dos valores protagonizado por cada cientista e pela
humanos ou religiosos
comunidade científica em seu conjunto.
Naturalização da explicação do real
Incerteza do conhecimento
Ciência racional
Nenhuma forma de conhecimento é
racional, o mais importante é o
conhecimento do senso comum, vulgar e
prático
Ciência ativa
Ciência contemplativa
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