UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DEPARTAMENTO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA EM MATÉRIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS Curso de Pós Graduação Controle Jurisdicional de Políticas Públicas Profa. Titular Ada Pellegrini Grinover Prof. Titular Kazuo Watanabe Profa. Dra. Suzana Henrique da Costa JULIANA MAIA DANIEL Nº USP 3736441 “As Constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias, são fenômeno corrente em toda a história da América do Sul”. (Sérgio Buarque de Holanda)1 1HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 2a. ed.. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948, p. 273. SUMÁRIO: I – Introdução; II – Discricionariedade Administrativa (do Estado Liberal ao Estado Social); II.1 -Considerações Preliminares: a clássica distinção entre atos vinculados e atos discricionários da Administração Pública; II.2 - Da atribuição legislativa de liberdade de decisão à Administração Pública; III – Discricionariedade Administrativa (conceito, fundamentos e limites); III.1 – Subsunção da atividade administrativa à lei; III.2 - Da atribuição legislativa de liberdade de decisão à Administração Pública; III.3 - Discricionariedade vs. Arbitrariedade (o conceito à luz da Constituição Dirigente); III.4 - Da possibilidade de controle pelo Poder Judiciário; IV – Discricionariedade administrativa na formulação de políticas públicas; IV.1 – Do conceito de políticas públicas; IV.2 – Discricionariedade na peça orçamentária; V – Conclusão; VI - Bibliografia I - INTRODUÇÃO Não é de hoje que se discute o tema da discricionariedade administrativa e sua possibilidade de controle pelo Poder Judiciário. Parafraseando o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, já se verteram rios de tinta sobre esse tema.2 Apesar dos esforços dos estudiosos e toda a produção acadêmica a respeito, até hoje a doutrina não alcançou – tampouco os Tribunais o fizeram – um entendimento uníssono. Ao contrário, observa-se uma “evolução cíclica”,3 um interminável debate sobre a discricionariedade administrativa, cuja abordagem varia desde a clássica distinção entre atos discricionários e atos vinculados da Administração Pública, até a teoria alemã dos conceitos jurídicos indeterminados e os limites da intervenção judicial. A situação agrava-se à medida que a discricionariedade do agente público na tomada de decisões é analisada à luz dos direitos sociais e sua implementação através de políticas públicas, sobretudo nos países em desenvolvimento, cuja insuficiência estrutural atinge principalmente os direitos fundamentais dos cidadãos, deixando evidente a carência de instrumentos para a efetividade dos direitos previstos na Constituição Federal. Nesse contexto de efetivação dos direitos da Carta Política – historicamente marcado pela “abertura normativa”, em que raras são as situações de regulação da conduta da administração por meio de uma estrita vinculação –, a clássica distinção entre “atos discricionários” e “atos vinculados” da Administração Pública já não basta para identificar as hipóteses de arbitrariedade que autorizariam a intervenção judicial. Sem dúvida, o modelo clássico de discricionariedade administrativa que atribui uma margem bastante significativa de liberdade ao administrador, torna-se arma contra a cidadania, na medida em que serve a interesses diversos do interesse público propriamente dito, isto é, as demandas sociais do Estado Democrático de Direito.4 2MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional. 2ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 09. 3KRELL, Andreas. Discricionariedade administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial. Revista Esmafe: Escola da Magistratura Federal da 5ª Região, n. 8, dez. 2004, pp. 178. 4 DAL BOSCO, Maria Goretti; VALLE, Paulo Roberto Dalla. Novo conceito da discricionariedade em políticas públicas sob um olhar garantista, para assegurar direitos fundamentais. Obtido em http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/manaus/direito_humano_adm_pub_maria_dal_bosco_e_paulo_valle.pdf (artigo integrante da tese de doutorado da autora, intitulado “Políticas Públicas e improbidade: uma aproximação garantista”). Acesso em 09 de junho de 2010. Indo além, o problema reside não só no exercício inadequado do “poder discricionário” justificado através do mito do juízo de “oportunidade e conveniência” da Administração, supostamente impassível de controle pelo Poder Judiciário, mas sobretudo nas omissões arbitrárias incorridas pelo agente público que tal abertura normativa permitiria. Realmente, sob qualquer ângulo que se analise o tema da discricionariedade administrativa, a discussão se move sempre entre dois pólos principiológicos: de um lado, o acesso irrestrito aos Tribunais, responsáveis pelo controle da correta aplicação do Direito; de outro, a indispensável autonomia da Administração Pública para exercer a função5 de escolher, dentro dos parâmetros legais, a melhor opção a ser seguida pelo Poder Público diante de uma situação concreta.6 Sem embargo sobre tudo o que já foi escrito sobre o tema, ainda resta espaço para aparar algumas arestas sobre os limites da atuação discricionária da Administração Pública e a consequente possibilidade de controle pelo Poder Judiciário, sobretudo no que se refere à tutela jurisdicional das políticas públicas. Tudo, pois, voltado aos deveres do EstadoAdministração, isto é, no exercício legítimo e parcimonioso da discricionariedade, sempre com o intuito de defender, a sério, o caráter vinculante do direito fundamental à boa administração pública e combater as arbitrariedades por ação e omissão.7 Obviamente que o presente trabalho não tem o escopo de esgotar o assunto, tampouco de uniformizar o entendimento pacificando a discussão. Pretende-se, pois lançar um rápido olhar sobre o instituto, na tentativa de incitar novo debate à luz das demandas atuais da sociedade brasileira. 5O Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello ressalta o caráter funcional da atividade administrativa - “por isso se diz função administrativa” - do qual decorre que o chamado “poder discricionário” nada mais é que o cumprimento de um dever de alcançar a finalidade legal (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional. 2ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 15). 6SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Controle judicial dos atos administrativos:as questões técnicas e os limites da tutela de urgência, 2002, p. 24. 7FREITAS, Juarez de. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 362. Nas palavras do autor, “o controle sistemático dos atos administrativos (vinculados e discricionários) encontra-se vinculado cogentemente ao direito fundamental à boa administração pública, autêntico feixe de princípios e regras que se entende como direito à administração eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas” (p. 362). II – Discricionariedade Administrativa Do Estado Liberal ao Estado Social II.1. Considerações Preliminares: a clássica distinção entre atos vinculados e atos discricionários da Administração Pública Primeiramente, é importante ressaltar que atos da Administração8 e seu controle têm relação íntima com o desenvolvimento do Estado de Direito e do constitucionalismo de cada país, guardando, cada qual, características próprias de acordo com suas condições históricas, políticas, socioeconômicas e culturais. Este, aliás, é o primeiro equívoco de boa parte da doutrina que se dedicou ao estudo do tema até hoje, muitas vezes importando ideias e conceitos inaplicáveis ao constitucionalismo brasileiro. Daí a razão para a inadequação atual da rígida distinção entre “atos vinculados” e “atos discricionários” 9 da administração. De acordo com esse modelo, haveria atuação vinculada quando a norma a ser cumprida já predetermina de modo completo e objetivo qual o único comportamento possível que deve ser tomado pelo administrador em uma dada situação concreta (cuja hipótese também vem descrita em lei). Em outras palavras, no ato administrativo vinculado a atuação do agente público seria regulada por alta densidade normativa retirando-lhe qualquer liberdade, isto é, restaria jungido a cumprir os comandos legais. Exemplo clássico de atos vinculados da Administração seriam as concessões de benefício previdenciário em que, verificados os pressupostos legais – e.g., quando o servidor completa 70 anos -, deveriam necessariamente ser conferidas pelo administrador. Opostamente, haveria atuação discricionária quando a lei não teria previsto exatamente todos os elementos para a atuação do administrador, reservando-lhe uma margem de liberdade de apreciação subjetiva em uma dada situação concreta, segundo critérios de conveniência e oportunidade.10 Embora não seja totalmente equivocada, trata-se de visão incompleta: se de um lado não se nega a existência de atividades administrativas fortemente vinculadas e outras com boa dose de discricionariedade, por outro seria utópico acreditar na vinculação ou discricionariedade absoluta do agente público no direito brasileiro.8 Como toda criação de Direito, a atuação administrativa situar-se-á entre os pólos da inteira liberdade e rigorosa vinculação, sem que as extremas possibilidades jamais se realizem. 11 Afinal, da mesma 8São requisitos de validade do ato administrativo: (i) a competência; (ii) a finalidade pública; (iii) a observância da forma prescrita em lei (guardadas as devidas ressalvas em relação aos formalismos exacerbados); (iv) a motivação, indicando os fatos e fundamentos jurídicos do ato; e (v) o objeto determinável, possível e dotado de juridicidade. 9De se destacar que não é o “ato”, em si, que é vinculado ou discricionário, mas sim a competência do agente. O ato será apenas o “produto” dela (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional. 2ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 1998). Também nesse sentido Renato Alessi, para quem a discricionariedade não é um poder particular da Administração, mas no modo de exercício do poder geral de atuação conferido a esta (Principi di Diritto Amministrativo, Vol. I, Milano: Giuffrè, 1965, p. 206. 10MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1989, p. 143 e seguintes. V. também MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 125 e seguintes. 11WOLFF, Hans Julius; BACHOF, Otto. Verwaltungsrecht, Vol. I. Munique: C. H. Beck'ache Verlag, 1974, p. 186. Apud FREITAS, Juarez de. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 365. forma que a vinculação não sucumbe a um “guia ou prontuário repleto e não-lacunoso para solução dos casos”12, a discrição completamente desvinculada resulta em arbitrariedade, o que jamais encontra respaldo na Carta Constitucional. Em outras palavras, a vinculação da Administração aos termos da lei apresenta uma variação meramente gradual, inexistindo diferenças na natureza do ato administrativo e discricionário. O que há, em verdade, é uma diferença “quantitativa e não qualitativa”13 no grau de liberdade de decisão concedida pelo legislador. Nessa esteira, torna-se indispensável uma breve digressão sobre a origem e evolução do “poder discricionário” da Administração Pública e seu respectivo controle, tornando mais fácil o estudo do tema e sua adequada conceituação e limites à luz do ordenamento pátrio. III.2 Da atribuição legislativa de liberdade de decisão à Administração Pública A discricionariedade – do verbo latino discernere, que significa separar, distinguir ou avaliar – tem origem na impossibilidade de disciplinar, por lei, todos os aspectos da vida social em que a Administração atua, sendo indispensável atribuir ao agente público certa margem de flexibilidade para regular a vida social e atingir o interesse público. Considerada no início como genuína expressão da soberania do monarca, a discricionariedade assume novos contornos a partir da Revolução Francesa, da teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu14 e do advento do Estado Liberal. Passou-se, então, a impor limites às atividades dos órgãos estatais, em defesa dos direitos individuais dos cidadãos. Nesse processo, o grande desafio do Estado de Direito era conciliar a indispensável liberdade decisória do Executivo com a observância da legalidade, na tentativa de apagar qualquer resquício de arbitrariedade monárquica.15 Não raras vezes a discricionariedade era associada à arbitrariedade, sendo necessário amplo debate até a conclusão de impossibilidade do Parlamento de atender às dinâmicas exigências do mundo moderno. Reconheceu-se, pois, a necessidade do Poder Legislativo, através de maior “abertura normativa”, conceder ao administrador certa margem de flexibilidade para o alcance de determinado fim, sobretudo nas situações em que as circunstâncias da realidade dificilmente são previsíveis. Nessa órbita de livre decisão prevaleceria a avaliação e vontade do administrador, que seria pouco ou nada sindicável pelo Poder Judiciário. Tal controle, ainda 12Vale ressaltar ainda que a vinculação não se dá inteira e exclusivamente em relação ao princípio da legalidade, mas sim de forma mais abrangente, harmonizado com o plexo de princípios constitucionais fundamentais. Assim, por exemplo, constatados os requisitos de aposentadoria, o Estado-Administração tem o dever de efetuá-las em tempo útil, sob pena de responsabilização civil (nesse sentido, v. REsp 1.044.158-MS, de relatoria do Min. Castro Meira). É exatamente por essa razão que mesmo os atos administrativos vinculados devem ser motivados (FREITAS, Juarez de. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 365). 13KRELL, Andreas. Discricionariedade administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial. Revista Esmafe: Escola da Magistratura Federal da 5ª Região, n. 8, dez. 2004, p. 185. 14“Tout seroit perdu si le même homme ou le même corps des principaux, ou des nobles, ou du peuple, exerçoient ces trois pouvoirs: celui de faire des lois, celui d'executer les résolutions publiques, et celui de juger les crimes ou les différends des particuliers” (MONTESQUIEU. De L'esprit des lois. Paris: Garnier Frères, Libraires Éditeurs, 1869, p. 143). 15KRELL, Andreas. Discricionariedade administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial. Revista Esmafe: Escola da Magistratura Federal da 5ª Região, n. 8, dez. 2004, p. 179 quando existente, visava resgatar as liberdades e garantias individuais ameaçadas pelo Estado, em cumprimento ao seu propósito de government by law. A partir da evolução do Estado Liberal para o Estado Social,16 com o reconhecimento não apenas das liberdades e garantias individuais (liberdade de, na terminologia de Norberto Bobbio), 17 mas também dos direitos sociais, que exigem uma atuação estatal para sua realização (a liberdade para), 18 o “poder discricionário” do administrador assume nova roupagem. Admite-se, ainda, a margem de liberdade do administrador, indispensável para atingir o interesse público, mas o arbítrio estatal passa a ser evitado através da reserva de lei e do princípio democrático. Nessa esteira, a busca de melhorias sociais e econômicas dá-se sem sacrifício das garantias jurídico-formais do Estado de Direito. E governar passou a ser não mais a gerência de fatos conjunturais, mas sobretudo o planejamento do futuro, com o estabelecimento de políticas a médio e longo prazo. Para executá-las, contudo, exige-se maior racionalização técnica, o que acaba por revelar-se incompatível com as instituições clássicas do Estado Liberal. E é assim que, “com o Estado Social, o 'government by policies' substitui o 'government by law'”.19 Nessa missão, o Estado trabalha com normas de programação finalista, que servem de base jurídica na implementação de políticas públicas pelas organizações burocráticas governamentais. Esses standards legais têm por função impor metas, resultados e fins para o próprio Estado, muitas vezes sem especificar os meios pelos quais devem ser alcançados, concedendo ao Poder Executivo - que detém as informações estratégicas e o know-how da organização dessas políticas20 - uma maior liberdade de decisão na implementação dessas normas. Como bem lembra Andreas Krell, muitos desses textos legais deixam de trazer consigo as hipóteses de ação, prescrevendo apenas a perseguição de determinados fins.21 À medida que os Parlamentos criam textos legais com pouca densidade regulativa, concede-se amplos espaços de decisão ao administrador para escolher os meios adequados para a solução dos casos concretos, cujos limites são pautados pelo princípio da “reserva de lei”. 16 Sem dúvida, a função do Estado de Direito Moderno não é apenas negativa ou defensiva, mas positiva: deve assegurar, positivamente, o desenvolvimento da personalidade, intervindo na vida social, econômica e cultural. O Estado de Direito atual não se concebe mais como anti-estatal (BERCOVICI, Gilberto. A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. In “Revista de Informação Legislativa”, Brasília, a. 36, n. 142, abr-jun. 1999, p. 37. 17BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política (org. Michelangelo Bovero; trad. Daniela Beccaccia Versiani). Rio de Janeiro: Campus, 2000. 18“A 'liberdade para' atribui ao indivíduo não apenas a faculdade, mas também o poder para fazer. Se houvesse apenas as liberdades negativas, todos seriam igualmente livres, mas nem todos teriam igual poder. Para equiparar os indivíduos, quando os reconhecemos como pessoas sociais também no poder, é preciso que sejam reconhecidos outros direitos, tais como os direitos sociais, os quais devem colocar cada indivíduo em condições de ter o poder para fazer aquilo que é livre para fazer” (BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política (org. Michelangelo Bovero; trad. Daniela Beccaccia Versiani). Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 504). 19GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (initerpretação e crítica). 2ª ed., São Paulo: RT, p. 1991, pp. 13-14. 20DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed.. São Paulo: Atlas, 2004, p. 128. 21 O autor afirma que, no campo do planejamento administrativo, o tradicional “esquema se-então” normativo é substituído quase que na totalidade pelo “esquema fim-meio”. Realmente, a estrutura normativa dos diplomas reguladores de áreas como educação, saúde pública, fomento econômico, planejamento espacial, controle urbanístico e proteção ambiental nem sempre são programadas na tradicional forma condicional (“se A acontecer, então seja B”), característica do Direito Privado e do Direito Penal. (KRELL, Andreas. Discricionariedade administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial. Revista Esmafe: Escola da Magistratura Federal da 5ª Região, n. 8, dez. 2004, p. 181-182). Como se verá adiante, essa atribuição de maior discricionariedade à administração pública – principalmente nos ordenamentos dos países em desenvolvimento – não raro serve de palco para o comportamento arbitrário do agente, que transforma os critérios subjetivos de oportunidade e conveniência em refúgio para uma atuação que pouco ou nada se amolda aos fins legais que deveriam ser perseguidos pela Administração. Assim, a saúde, a educação, a moradia e diversos outros direitos sociais estampados na Constituição de 1988 na forma de “normas programáticas”, continuam sufocados ou precariamente atendidos, em nome da discrição na fixação de prioridades administrativas.22 Torna-se indispensável, portanto, trazer à baila um novo conceito de discricionariedade, adequado aos fins previstos na Carta Política, sob pena de transformá-la e mero papel destituído de vinculação – “lírica constitucional”, nas palavras de Robert Alexy. 23 O capítulo seguinte se destinará a delimitar o conceito de discricionariedade para, então, trazê-lo no plano da implementação de políticas públicas e verificar as situações que autorizariam o controle desses atos pelo Poder Judiciário. 22FREITAS, Juarez de. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 374. Desde já vale destacar as palavras do autor sobre as normas programáticas da Constituição e o dever da Administração Pública de observá-las: “não se infirma a fundamentalidade de um direito por sua difícil concretização. Gradualmente, deve-se rumar para a efetividade, não se devendo desistir, em momento algum, da reiterada e insistente proteção do direito fundamental”. 23 Expressão utilizada por Robert Alexy em Grundrechte im demokratischem Verfassungsstaat in Aulis Aarnio; Robert Alexy; Gunnar Bergholtz (eds.), “Justice, Morality and Society: A tribute to Aleksander Peczenik, Lund: Juristförlaget, 1997, p. 29. Apud SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais. In Cláudio Pereira de Souza Neto & Daniel Sarmento, Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécies. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 587-599. III – Discricionariedade Administrativa Conceito, Fundamentos e Limites III.1. Subsunção da atividade administrativa à lei O surgimento do Estado Democrático de Direito trouxe consigo a confluência de duas concepções políticas: a primeira, de origem “Roussoniana”, consiste na máxima de que “todo poder emana do povo”. 24 A segunda, por sua vez, remonta à Montesquieu e consiste na tripartição do exercício do poder. 25 Nesse sentido, as atividades estatais – notadamente as administrativas – nada mais são que o cumprimento dessa vontade geral fixada no texto constitucional e, claro, na lei. A primeira conclusão que daí se extrai – e que não é nenhuma novidade – é que a atividade administrativa é essencialmente uma atividade infralegal. A atuação administrativa está, portanto, sempre adstrita à lei, independentemente do grau de vinculação. Como exposto no capítulo anterior, inexiste a clássica antítese entre atos vinculados e atos discricionários, sendo tanto um quanto outro atos de mesma natureza, distinguindo-se apenas quantitativamente de acordo com o grau de liberdade de decisão concedida pelo legislador à Administração. Essa adstrição da Administração à lei garante-lhe situação diversa em relação aos administrados: enquanto esses, em princípio, podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que lhe é permitido.26 A diferenciação reside no fato de que o agente estatal atua sempre no interesse de outrem, isto é, na coletividade (interesse público). Daí resulta, pois, o caráter funcional da atividade administrativa. Em outras palavras, a lei traz sempre consigo uma finalidade, cujo alcance deve ser perseguido pelo administrador, sendo essa a sua função. A partir dessa ideia verifica-se que, ao contrário de boa parte da doutrina, que fala em “poder discricionário da Administração”, o que há, antes, é um “dever discricionário”. Sem dúvida, a Administração não tem a possibilidade de exercitar ou não um poder ao seu bel prazer – ela tem o dever de fazê-lo. Diferentemente do Direito Privado, portanto, o eixo metodológico do Direito Público não gira em torno da noção de poder, mas sim de dever, para cumprimento da finalidade legal prevista pelo legislador.27 24Constituição Federal, art. 1º, § 1º: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 25Constituição Federal, art. 2º. “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. 26MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional. 2ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 13. 27MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 14. III.2 Discricionariedade como opção legislativa Assim como a administração tem por função o cumprimento da lei, o legislador, ao elaborá-la, busca regular a conduta do agente público diante das várias possíveis situações a ocorrerem no mundo do “ser”. Nem sempre, contudo, é possível prever as várias situações concretas, estabelecendo de antemão a situação de fato que ensejará uma dada conduta e o respectivo comportamento que deve ser tomado pelo agente. Normalmente, o que ocorre – principalmente no campo das políticas públicas – é a impossibilidade de regular todas as hipóteses que autorizariam uma dada atuação do agente estatal para atingir a finalidade prevista. Em outras situações, ainda, a própria finalidade da norma é expressada através de conceitos indeterminados, restando uma relativa liberdade ao administrador, seja em relação a praticar ou não o ato diante de uma situação, seja em relação ao momento adequado para fazê-lo, seja, ainda, quanto à forma que revestirá o ato, ou, por fim, em relação à providência que deve ser tomada, possibilitando-o decidir entre pelo menos duas alternativas abertas e igualmente legítimas. Nessas situações haverá, pois, a discricionariedade. Em português claro: a discricionariedade atribuída ao administrador pode ter causa28 (i) na hipótese da norma, a partir da descrição de forma imprecisa da situação fática que visa regular; (ii) no comando da norma, deixando ao administrador alternativas de conduta quanto a realizar ou não um ato, quanto ao momento adequado para fazê-lo ou quanto à medida mais satisfatória diante das circunstâncias; (iii) na finalidade da norma, quando esta vem expressa por conceitos imprecisos, vagos, conceitos de valor.29 28MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 19. 29 A discricionariedade atribuída ao agente público pode decorrer da utilização de um conceito indeterminado, sobretudo na finalidade da norma, quando expressada por meio de conceitos plurissignificativos (e.g., “segurança jurídica”, “bem estar social”, etc.). De se ressaltar, contudo, que a discricionariedade não se confunde com a interpretação. Em verdade, a interpretação antecede a discrição, e solucionará apenas a delimitação de um dado conceito empírico contido na norma, adequando-o ao caso concreto. Tais conceitos – no pensamento de Ernst Forsthoff – têm de ser determinados em sua significação concreta partindo do contexto em que se encontram e com efeitos normativos, realizando-se, pois, a interpretação. Assim, o processo de interpretação é vinculado a critérios preexistentes, no qual a vontade do agente é irrelevante (FORSTHOFF, Ernst. Tratado de Derecho Administrativo. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1958, pp. 123-130). O autor prossegue na distinção afirmando que a interpretação não é capaz de delinear os conceitos de valor. Estes, quando presentes, mesmo após realizada a interpretação, surgirá, no momento da subsunção, a vontade do agente (e, portanto, a discricionariedade), que se localizará exatamente entre a zona de certeza positiva e a zona de certeza negativa de seu significado. No mesmo sentido, veja-se COSTA, Regina Helena. Conceitos Jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa. In “Justitia”, São Paulo, 51 (145), jan-mar. 1989, p. 50; e PEREIRA, André Gonçalves. Erro e ilegalidade no acto administrativo. Lisboa: Ática, 1962; e KRELL, Andreas. Discricionariedade administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial. Revista Esmafe: Escola da Magistratura Federal da 5ª Região, n. 8, dez. 2004. Ainda sobre a teoria dos conceitos jurídicos indeterminados, vale a contraposição do quanto exposto acima com o pensamento de Garcia de Enterría, para quem tais conceitos não se confundem com discricionariedade. Para este autor, a indeterminação do enunciado do conceito não corresponde a uma indeterminação de sua aplicação. Ao contrário, afirma que os conceitos indeterminados só permitiriam uma única solução justa em cada caso: ou há boa-fé, ou não há; ou o preço é justo, ou não é. Por outro lado, o exercício do poder discricionário permitiria uma pluridade de soluções justas, isto é, uma opção entre soluções igualmente válidas para o Direito (ENTERRÍA, Garcia de; FERNANDEZ, Tomás. Curso de Derecho Administrativo. Tomo I, 2ª. ed., Madrid: Civitas, 1977). O Prof. Eros Roberto Grau também é adepto da ideia de que os conceitos jurídicos indeterminados em nada se relacionam com a discricionariedade. Para ele, a discricionariedade seria liberdade de escolha baseada em juízo de oportunidade, e só poderia resultar de expressa atribuição legal à autoridade administrativa, e não da circunstância dos termos da lei serem ambíguos, equívocos ou suscetíveis de receber qualificações diversas. Todavia, o Professor critica a conclusão de García de Enterría, de sorte que a interpretação dos conceitos jurídicos indeterminados não ensejariam uma única solução justa. Na concepção do Prof. Eros, interpretação não é ciência, mas prudência (GRAU, De todo modo, é preciso ter em mente que a lei pressupõe sempre um mandamento ótimo (“a lei não contém disposições inúteis”) de forma que, ao regular a conduta do agente estatal, atribui-lhe o dever de adotar a melhor solução para uma dada situação concreta, visando atingir o objetivo nela contido. Assim, quando a norma jurídica vinculadamente estabelece um único comportamento perante situação definida em termos objetivos, ninguém duvida que sua pretensão seja um comportamento ótimo, e que foi considerado possível pré-definir a conduta qualificada como ideal para atender ao interesse que se propôs tutelar. Consequentemente, não é razoável supor que, quando a lei regula uma dada situação em termos dos quais resulta discricionariedade, ela teria aberto mão desse propósito. Sem dúvida, a lei o fez não só diante da impossibilidade de regular uma dada situação de forma mais objetiva, vinculada; mas sim porque a sua finalidade só poderia ser atingida a partir da atribuição dessa margem de liberdade ao agente estatal para que este, analisando a situação concreta, pudesse adotar o comportamento plenamente adequado. Em outras palavras, quando a lei regula discricionariamente uma dada situação, ela o faz deste modo exatamente porque não aceita do administrador outra conduta que não seja aquela capaz de satisfazer excelentemente a finalidade legal. Trata-se, pois, de uma opção legislativa 30 diante da impossibilidade de se conhecer todas as situações de fato que permitam antever um único comportamento ótimo e adequado para todas elas (daí porque, por exemplo, o legislador faz uso dos conceitos indeterminados). A liberdade administrativa atribuída pela norma discricionária nada mais é que o “cumprimento de um dever jurídico funcional de acertar, na situação concreta, a providência ideal para atingir a finalidade legal e satisfazer o interesse da coletividade”31. De se ressaltar que a discricionariedade – que é competência atribuída ao agente, sendo o ato o resultado de sua aplicação – pressupõe uma situação concreta, não sendo possível falar em discricionariedade em abstrato. Em outras palavras, la liberté de choix et la liberté d'abstention32 da Administração somente ocorrerá quando houver necessidade de escolha, tomada de decisão.33 Cabe ao agente administrativo, diante de dada situação fática, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (initerpretação e crítica). 2ª ed., São Paulo: RT, p. 1991, pp. 13-14). 30Nesse sentido, vale mencionar novamente a clara lição do Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello: “Se a lei regula vinculadamente a conduta administrativa, está com isto declarando saber qual o comportamento único que, a seu juízo, atenderá com exatidão, nos casos concretos, ao interesse público por ela almejado. Daí que pré-selecionou o ato a ser praticado e o fez obrigatório, excluindo qualquer interferência do administrador na apreciação dos fatos deflagradores da aplicação da norma e qualquer avaliação quanto à providência mais adequada para atender à finalidade legal. Uma vez que, no comum dos casos de discricionariedade, teria sido perfeitamente possível redigir a lei em termos vinculados, tem-se que concluir que a única razão lógica capaz de justificar a outorga de discrição reside em que não se considerou possível fixar, de antemão, qual seria o comportamento administrativo pretendido como imprescindível e reputado capaz de assegurar, em todos os casos, a única solução prestante para atender com perfeição ao interesse público que inspirou a norma. Daí a outorga da discricionariedade para que o administrador – que é quem se defronta com os casos concretos – pudesse, ante a fisionomia própria de cada qual, atinar com a providência apta a satisfazer rigorosamente o intuito legal”. Com efeito, não se pode supor que a lei preveria ora soluções ótimas, ora soluções ruins para as situações concretas. Assim, diante da impossibilidade de prever um único comportamento ótimo para uma dada situação (ou mesmo de antever todas as situações que gerariam um dado comportamento do agente público), optou pela atribuição de discricionariedade. (Op. Cit., p. 33). 31 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. Cit., p. 33. O núcleo da discricionariedade está, realmente, na possibilidade de apreciação da melhor solução para o atendimento do interesse público, o que demonstra, por si, estar afastada a hipótese de vinculação do comportamento da Administração (ENTERRÍA, Garcia de; FERNANDEZ, Tomás. Curso de Derecho Administrativo. Tomo I, 2ª. ed., Madrid: Civitas, 1977, p. 273). 32BÉNOIT, Francis-Paul. Le Droit Administratif Français. Paris: Dalloz, 1968, p. 482. 33“De igual manera que la luz cobra solo color quando entre em contato com la materia, así, también, hablando metaforicamente, sucede com los valores, que sólo cobran color em relación com un material empírico” (FORSTHOFF, utilizando-se de um juízo de valor, examinar as condutas que lhe são possíveis e juridicamente permitidas praticar e escolher dentre elas a mais adequada, a que melhor traduz a conveniência e a oportunidade para o interesse público. Feitas tais considerações, é oportuna nova menção ao Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, cuja definição sintetiza de forma magistral todas as considerações feitas até então: “Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto a fim de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente".34 III.3 Discricionariedade vs. Arbitrariedade – o conceito à luz da Constituição Dirigente Do quanto exposto no tópico anterior, percebe-se que a discricionariedade observa limites claros que remontam, para a doutrina clássica, à finalidade legal. Realmente, se por um lado a absoluta vinculação – ainda que possível – nem sempre resulta em boa administração, a atribuição de discricionariedade ao administrador não lhe garante um salvo-conduto.35 Exatamente porque seu propósito não é outro senão permitir o alcance da finalidade legal, não se pode tomar a discricionariedade como um pretexto para decisões ineficientes, sejam as que não atendam o interesse público implícito na finalidade legal, sejam as que o atendam de maneira deficiente.36 Indo além, a atuação da administração pública encontra limites hoje não só na finalidade legal, mas na Constituição e no primado harmônico dos direitos fundamentais. buscando sempre a efetividade do direito à boa administração pública.37 Tal raciocínio tem origem na constituição dirigente – como é nossa Carta Política de 1988 – cujo escopo é estabelecer um fundamento constitucional para a política. Vale dizer, a Constituição não substitui a política, mas torna-se a sua premissa material. O poder estatal transforma-se, nessa medida, em um poder com fundamento na Constituição, e seus atos devem ser considerados constitucionalmente determinados. Assim, mesmo na ausência de Ernst. Tratado de Derecho Administrativo. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1958, p. 126). 34MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. Cit., p. 48. Nas palavras do autor, “a relação existente entre um indivíduo e a lei é meramente uma relação de não contradição, enquanto que a relação existente entre a Administração e a lei, é não apenas uma relação de não contradição, mas é também uma relação de subsunção”. 35 BENJAMIN, Antonio Herman. Os princípios do Estudo de Impacto Ambiental como Limites da Discricionariedade Administrativa. BDJUR, obtido em http://www.bdjur.stj.gov.br, acesso em 10 de junho de 2010. 36“La discrecionalità no ncostituisce una potestà particolare dell'amministrazione, sibbene semplicemente un modo di essere della potestà di azione giuridica conferita dalla legge, nei modi che si non visti, all'amministrazione: modo di essere, cioè, che si riferisce all'imprecisione dei limiti posti alla potestà di azione conferita in guisa, cioè, di consentire una sfera di apprezzamento dell'opportunità dell'azione in relazione ao pubblico interesse” (ALESSI, Rrenato. Introduzione ad un corso di Diritoo Amministrativo. Terza edizione, Milano, Giuffrè, 1960, p. 213). 37FREITAS, Juarez de. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 371. densa regulação normativa de uma dada situação, a Constituição fornece ao administrador uma direção permanente, uma exigência de sua atuação.38 Não se olvide que todas as normas constitucionais, inclusive as programáticas, são dotadas de eficácia vinculante. 39 Para além de mera “lírica constitucional”, 40 tais normas geram efeitos imediatos e objetivos desde o início de sua vigência, seja porque revogam atos normativos anteriores que disponham em sentido colidente com o princípio que consubstanciam; seja porque carreiam um juízo de inconstitucionalidade para os atos normativos editados posteriormente que com elas sejam incompatíveis. 41 Uma vez detentoras de eficácia jurídica, as normas programáticas têm, assim, possibilidade de ter alcançados os seus objetivos, ou seja, possuem perspectiva de efetividade.42 Daí porque pouco importa se o ato administrativo é “vinculado” ou “discricionário”. Todas as possibilidades, em maior ou menor escala, têm de guardar fundamentação na intimidade do sistema, para evitar dois fenômenos simétricos igualmente nocivos: tanto a vinculação dissociada da subordinação a outros princípios além da estrita legalidade, quanto a discricionariedade tendente a dar as costas à vinculação ao sistema, minando, pela arbitrariedade interditada, a própria racionalidade do ordenamento.43 É assim que os direitos fundamentais previstos na Carta Constitucional consistem em verdadeiros parâmetros no controle da discricionariedade. Nesse sentido, vale lembrar a lição de Robert Alexy, para quem o texto das disposições de direitos fundamentais vincula a argumentação por meio da 38Assim, o programa constitucional não tolhe a liberdade do legislador nem a discricionariedade do governo, tampouco impede a renovação da direção política e a confrontação partidária. Essa definição de linhas de direção política tornouse o cumprimento dos fins que uma república democrática constitucional fixou em si mesma. Cabe ao governo selecionar e especificar sua atuação a partir dos fins constitucionais, indicando os meios ou instrumentos adequados para sua realização (CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed., Coimbra: Almedina, pp. 1.191 e 1.192). Citando Canotilho, v. também: BERCOVICI, Gilberto. problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. In “Revista de Informação Legislativa”, Brasília, a. 36, n. 142, abr-jun. 1999, p. 39. 39O próprio art. 5º, § 1º da Constituição Federal estabelece que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Nos dizeres de José Afonso da Silva: “Temos que partir, aqui, daquela premissa já tantas vezes enunciada: não há norma alguma destituída de eficácia. Todas elas irradiam efeitos jurídicos importando sempre uma inovação da ordem jurídica preexistente à entrada em vigor da Constituição a que aderem e a nova ordenação instaurada. O que se pode admitir é que a eficácia de certas normas constitucionais não se manifesta na plenitude dos efeitos jurídicos pretendidos pelo constituinte enquanto não se emitir uma normação jurídica ordinária ou complementar executória, prevista ou requerida” (SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1998, pp. 81-82). 40Expressão utilizada por Robert Alexy em Grundrechte im demokratischem Verfassungsstaat in Aulis Aarnio; Robert Alexy; Gunnar Bergholtz (eds.), “Justice, Morality and Society: A tribute to Aleksander Peczenik, Lund: Juristförlaget, 1997, p. 29. Apud SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais. In Cláudio Pereira de Souza Neto & Daniel Sarmento, Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécies. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 587-599. 41BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades na Constituição brasileira. 3ª. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 1996, pp. 117-118. 42Não se pode confundir eficácia jurídica com eficácia social. Como visto acima, a partir do momento do início de sua vigência, todas as normas têm eficácia jurídica imediata. Já a efetividade, ou eficácia social, refere-se à implementação do programa finalístico que orientou a atividade legislativa. A norma só será efetiva quando seu objetivo for alcançado por força de sua eficácia, ou seja, quando ocorrer a concretização do comando normativo no mundo real (SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1998, pp. 65-66). Boa parte da confusão pode ser atribuída à Constituição Federal que, como visto na nota 39 acima, atribui “aplicabilidade imediata as normas definidoras de direitos fundamentais”. Como leciona o prof. José Afonso da Silva, muitas dessas normas, embora de eficácia jurídica vinculante, têm eficácia social limitada. Isso não significa, contudo, que seu cumprimento não deva ser sempre buscado pelo agente estatal. 43FREITAS, Juarez de. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 376. criação de um ônus argumentativo a seu favor.44 Desse raciocínio extrai-se que se o agente estatal, no momento de decisão ante a situação concreta, realizar uma escolha que não se coadune com os princípios estabelecidos na Constituição, sua conduta não estará pautada pela discricionariedade, e sim pela arbitrariedade – o que não pode ser tolerado. Esse, pois, o ponto crucial do presente trabalho: sempre que a conduta da administração ultrapassar os limites da discricionariedade – limites esses que vão além da finalidade legal, englobando os princípios fundamentais e o dever de boa administração – o Poder Judiciário, uma vez provocado, está autorizado a intervir.45 Nessa ordem de considerações, os dois principais vícios no exercício da discricionariedade administrativa revelam-se (i) na arbitrariedade por ação, situação em que o agente público ultrapassa os limites impostos à competência discricionária, optando por solução sem lastro em regra válida ou desviando-se da finalidade constitucional-legal; e (ii) na arbitrariedade por omissão, hipótese em que o agente deixa de exercer a escolha administrativa ou a exerce de forma insuficiente. Nessa segunda modalidade igualmente patológica, o (não) comportamento do agente estatal traduz-se como descumprimento das diligências impositivas.46 Tanto numa quanto noutra situação deverá ocorrer o controle pelo Judiciário. Desde já cumpre mencionar que essa possibilidade de controle não significa, a priori, a judicialização invasiva ou a falta de deferência à esfera administrativa. O mérito administrativo (assim entendido como os juízos de conveniência e oportunidade) pode até permanecer “incontrolável”, não podendo ser substituído pelo entendimento judicial,47 mas o demérito – tanto o excesso arbitrário quanto a omissão antijurídica – o será, sempre.48 44ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais (trad. Virgílio Afonso da Silva). São Paulo: Malheiros, 2008, p. 553. 45 A interferência ocorrerá basicamente de duas formas: caso se trate de conduta comissiva da Administração Pública que contrarie a norma constitucional, seu ato será declarado inconstitucional e, portanto, nulo; se a conduta for omissiva, isto é, caso a Administração deixe de agir quando deveria fazê-lo por força constitucional – arbitrariamente, portanto – o Judiciário determinará a consecução daquele ato. 46FREITAS, Juarez de. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 372. 47 A possibilidade do controle em nada se confunde com o “ativismo judicial” em seu sentido pejorativo aplicado por parte da doutrina. Sobre o tema, v. entrevista do constitucionalista Luis Roberto Barroso à Revista Consultor Jurídico sobre os 20 anos da Constituição brasileira: “Na medida em que o assunto está na Constituição, ele sai da esfera política, da deliberação parlamentar, e se torna matéria de interpretação judicial. Então, em uma primeira abordagem, a Constituição de 88 contribui sim para que o Judiciário tenha um papel muito mais ativo na vida do país. Mas há um segundo motivo para isso. O atual sistema político brasileiro levou a um descolamento entre a sociedade civil e a classe política. Há algumas demandas da sociedade que não são atendidas a tempo pelo Congresso Nacional. E o que acontece? Nos espaços em que havia demandas sociais importantes e o Legislativo não atuou, o Judiciário se expandia. Aqui penso ser oportuno fazer uma distinção entre judicialização e ativismo judicial, que são ideias que estão próximas, mas não se confundem. Judicialização é um fato, que identifica a circunstância que muitas questões que antes eram próprias da política passaram a ser decididas pelo Judiciário, foram transformadas em pretensões veiculadas perante juízes e tribunais. O ativismo é uma atitude, que identifica uma interpretação expansiva da Constituição, incluindo no seu âmbito de alcance questões que não foram nela expressamente contempladas” (Obtido em http://www.conjur.com.br/2009-mar-07/luis-roberto-barroso-traca-historico-direito-constitucional-tv. Acesso em 10 de junho de 2010). 48FREITAS, Juarez de. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 370. III.4 Da possibilidade de controle pelo Poder Judiciário Muito embora a análise detalhada da possibilidade e limites do controle judicial da atuação administrativa não seja o propósito do presente trabalho, cumpre trazer algumas considerações a respeito do tema para adequá-lo às hipóteses em que a discricionariedade torna-se arbitrariedade do agente estatal, legitimando o controle. De início, destaca-se que a legitimidade do Poder Judiciário para intervenção decorre do próprio sistema constitucional, originado da common law. Com efeito, o próprio art. 5º, XXXV da Constituição Federal, ao estabelecer que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”, legitima a possibilidade de intervenção do juiz, caso provocado. Indo além, tal legitimidade de controle decorre também dos deveres de imparcialidade e motivação a que o juiz está adstrito.49 Uma vez legitimado, não resta dúvida acerca da possibilidade de intervenção do Judiciário na hipótese de discricionariedade excessiva por parte da administração (o vício da arbitrariedade por ação acima exposto). Realmente, se o agente estatal atua contrariamente à finalidade prevista na lei ou na Constituição, a doutrina e os Tribunais não têm grandes dificuldades em reconhecer a possibilidade de intervenção para declarar a inconstitucionalidade do ato e sua nulidade, uma vez que a própria Carta Constitucional prevê mecanismos para sindicabilidade dessas situações.50 O problema reside, contudo, nas hipóteses de omissão arbitrária da Administração Pública, isto é, nas situações em que o agente estatal deixa de cumprir o dever prescrito na norma, geralmente de caráter programático. Não é difícil prever que a maior ocorrência de omissões arbitrárias dá-se exatamente no campo das políticas públicas, cuja implementação exige um dever prestacional por parte do Estado-Administração e, como tal, impacta nos cofres públicos.51 A realidade nua e crua 49A verificação da legitimidade do Judiciário para intervir nas decisões do executivo e decidir na área de políticas públicas depende de como a separação de poderes é concebida em determinada constituição. Na Constituição de 1988, contudo, não restam mais dúvidas: “deixar o Judiciário de fora do debate com base apenas em uma ideia anacrônica de separação de poderes é uma estratégia que não será considerada aqui. O mesmo pode ser dito acerca do argumento baseado exclusivamente na falta de legitimidade democrática do Judiciário. Ambos os argumentos – separação de poderes e ausência de legitimidade democrática – costumam ser usados de uma forma extremamente maniqueísta, a qual pretendo aqui evitar. Por isso, e por outras razões argumentativas, pretendo aqui presumir que um amplo controle de constitucionalidade é um ponto inquestionável do sistema constitucional e que, nesse sentido, deve ser aceito que os juízes têm legitimidade para interferir em questões legislativas e governamentais” (SILVA, Virgílio Afonso da.. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais. In Cláudio Pereira de Souza Neto & Daniel Sarmento, Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécies. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 591-592). 50Assim, por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por ação ou a Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental, esta última de caráter subsidiário àquela. Reconhecida a inconstitucionalidade da atuação estatal, o ato será declarado nulo. Tradicionalmente, tais ações visam tutelar as chamadas liberdades públicas, ou direito de defesa, que são os direitos fundamentais de primeira geração, que têm como objetivo garantir uma esfera de autonomia aos indivíduos, no interior da qual o Estado não deve intervir. Os direitos dessa natureza normalmente não causam grandes problemas aos juízes ou à relação entre os poderes políticos e o poder judiciário, especialmente nos países acostumados a algum controle de constitucionalidade. Nessas situações, sempre que o Executivo ou o Legislativo forem além da barreira do “não-fazer”, é tarefa dos juízes garantir os direitos individuais, declarando tais medidas como inválidas e assegurando a volta do status quo ante (SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit, pp. 588-589). 51 Não raro a doutrina diferencia os direitos individuais dos direitos sociais afirmando que os primeiros não exigem um dever prestacional do Estado e, como tais, não exigem alocação de recursos fundamentais. Tal afirmação, na visão de é que, na maior parte dos casos, o governo e as maiorias parlamentares são a expressão de um mesmo partido político ou uma coalizão de partidos. Logo, destaca-se a verdadeira autonomia do Legislativo diante do Poder Executivo, pois grande parte das leis aprovadas são de iniciativa do próprio governo. Esse, por sua vez, dispõe de um grande poder regulamentar e de planejamento, autorizado pela Constituição e atribuído pela legislação ordinária.52 Diante dessa realidade, torna-se necessária uma atuação mais presente do Poder Judiciário no controle de políticas públicas que realizam direitos fundamentais sociais, afastando as atuações da Administração que se desviam das prioridades deixando de assegurar tais direitos aos cidadãos. Por essa razão é que o Judiciário, no controle de políticas públicas, deve ser visto como uma das funções da soberania do Estado em ação, atuando no suprimento da ausência do legislador ou da Administração. Na esteira do quanto já foi dito, cumpre destacar a significativa mudança no entendimento dos Tribunais acerca do tema da discricionariedade administrativa em matéria de políticas públicas e a possibilidade de controle dos atos do agente estatal pelo Judiciário.53 Se no início prevalecia o posicionamento de que não se poderia obstaculizar as atividades do administrador definidas segundo critérios de conveniência e oportunidade – impassíveis, portanto, de controle jurisdicional – atualmente observa-se uma tendência Abramovich e Courtis, é falaciosa. Segundo tais autores, a realização e a proteção de direitos sempre custam dinheiro, seja no caso dos direitos sociais, seja no dos direitos civis e políticos. Nesse sentido, recursos públicos são indispensáveis também para a proteção da liberdade de imprensa, do direito de propriedade, do direito de associação, etc., uma vez que a realização desses direitos depende da criação e manutenção de instituições públicas, judiciárias e de segurança, que necessariamente implicam em gastos para o Estado (ABRAMOVICH, Vitor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Trotta, 2002, p. 23). Todavia, como bem lembra o Prof. Virgílio Afonso da Silva, os direitos sociais e econômicos distinguem-se sim dos direitos civis e políticos pelos gastos que sua realização pressupõe. Muito embora a realização e garantia de qualquer direito implique em gasto estatal, não se pode negar que a realização dos direitos sociais e econômicos custa “mais dinheiro” (SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit., pp. 591-592). 52DAL BOSCO, Maria Goretti; VALLE, Paulo Roberto. Novo conceito de discricionariedade em políticas públicas sob um olhar garantista, para assegurar direitos fundamentais, p. 25. Obtido em http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/manaus/direito_humano_adm_pub_maria_dal_bosco_e_paulo_valle.pdf (artigo integrante da tese de doutorado da autora, intitulado “Políticas Públicas e improbidade: uma aproximação garantista”). Acesso em 09 de junho de 2010. 53Nesse sentido, vale destacar uma polêmica de repercussão considerável que envolveu alguns atores espanhóis da década de 1990 acerca do conceito de discricionariedade que deveria ser tomado pelo País após o fim do regime franquista. De um lado estavam Parejo Alfonso e Sánchez Morón, sustentando a impropriedade de um rígido controle jurisdicional da Administração, sob a justificativa de que o Poder Executivo ganhara, a partir da ditadura franquista, legitimidade suficiente para representar a vontade dos administrados. De acordo com esses autores, a decisão judicial que modificasse uma decisão administrativa significaria a substituição do administrador pelo juiz. O controle pelo Judiciário resumir-se-ia, então, na supervisão, censura e correção da ação do outro poder declarando sua ilegalidade, mas nunca determinando a indenização para reposição dos prejuízos aos administrados. Com entendimento diametralmente oposto estava Tomás-Ramon Férnandez, para quem o sistema autorizaria não apenas anular as decisões administrativas arbitrárias, mas também o ressarcimento dos danos causados ao particular, em autêntica substituição da decisão administrativa. A questão começa a resolver-se com Garcia de Enterría, ao afirmar que a discricionariedade deve submeter-se sempre ao interesse público visado pela norma jurídica marcada por um conceito indeterminado. Na visão de Enterría, deve o juiz controlar a aplicação do conceito pela Administração sem que isso signifique em controle absoluto da discricionariedade, tampouco em substituição completa da decisão administrativa pela decisão judicial (DAL BOSCO, Maria Goretti; VALLE, Paulo Roberto. Novo conceito de discricionariedade em políticas públicas sob um olhar garantista, para assegurar direitos fundamentais, pp. 11-12. Obtido em http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/manaus/direito_humano_adm_pub_maria_dal_bosco_e_paulo_valle.pdf. Acesso em 09 de junho de 2010). majoritária em direção oposta,54 embora nem sempre o faça observando-se os limites do Judiciário no controle do ato administrativo. Em outras palavras, o controle sistemático e articulado dos atos administrativos há de ser calcado não só nas regras, mas também nas normas constitucionais e nos princípios de direito, ultrapassando-se, pois, a rigidez das antigas classificações de atos administrativos e destacando-se a inaceitabilidade de atos exclusivamente políticos: tanto os atos administrativos vinculados quanto os discricionários devem guardar vinculação forte com o sistema positivado. Numa visão sistemática consentânea com a supremacia da ordem consitucional, o mérito do ato, por via reflexa, pode ser inquirido, efetuando-se o controle da arbitrariedade por ação ou omissão do agente estatal. Essa a razão pela qual o controle sistemático deve ser realizado com maior rigor, uma vez que a discrição existe para que o agente concretize com maior presteza as finalidades vinculantes da Constituição Dirigente. Logo, obrigatoriamente, os atos administrativos – vinculados ou não – devem ser constitucionalmente justificáveis. Obviamente que, quanto maior a liberdade, maior deve ser o controle, nos recíprocos contrapesos entre os Poderes.55 Por outro lado, não se pode confundir o aprofundamento do controle com um excesso paralisante, uma vez que não se trata de exigir uma escolha unívoca, adotando a lógica do “tudo-ou-nada”. O que se busca é que a escolha do agente estatal no exercício de sua competência seja válida e legítima, sendo a melhor escolha possível (e não “a” única escolha possível) dentre as várias opções legítimas que lhe são disponibilizadas. O controle deve ser proporcional, abrangendo com maior cuidado a íntegra da motivação dos atos administrativos.56 54Isso não significa, contudo, que ainda não se encontre uma doutrina e jurisprudência mais resistente, para os quais os atos administrativos ainda seriam impassíveis de controle em seu mérito. Tal posicionamento é sustentado com base na rígida separação de poderes (assim entendida como a impossibilidade do Poder Judiciário intervir no Poder Executivo), bem como em uma suposta falta de legitimidade do Judiciário à luz do princípio democrático, uma vez que seus representantes não seriam eleitos pelo povo. De todo modo, a tendência – principalmente dos tribunais superiores – é de analisar o mérito do ato administrativo e, caso verificada a existência de arbitrariedade por parte da Administração Pública, anulá-lo. Essa é a conclusão verificada por Andressa Lialn Fidelis em monografia defendida na Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP, intitulada A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no controle da Administração Pública: uma releitura do controle dos atos administrativos discricionários (São Paulo, 2008, obtido em http://www.sbdp.org.br – acesso em 05 de maio de 2010). Como já visto no presente trabalho, no campo das políticas públicas o controle do mérito do ato administrativo (comissivo ou omissivo) resulta, não raro, na imposição de um dever ao agente de determinar o fornecimento de um medicamento, custear tratamentos, construir escolas, hospitais, etc. Atualmente, os Tribunais têm inclusive utilizado de astreintes e, quando possível, a responsabilização pessoal do agente para compelí-lo ao cumprimento da decisão judicial, seja para implementar uma política pública (assim entendida em seu caráter universal), seja para conceder uma tutela individualmente pleiteada. 55 FREITAS, Juarez de. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed, São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 367 e 393. 56FREITAS, Juarez de Op. cit., pp. 367 e 393. IV – Discricionariedade Administrativa na Formulação de Políticas Públicas O campo das políticas públicas é, historicamente, o ambiente da discricionariedade administrativa. 57 Tal fato encontra justificativa em duas razões: a primeira, porque esse caráter provedor do Estado se mostra mais intensificadamente na efetivação das políticas sociais; a segunda, porque as normas fundamentadoras dessas políticas encontram abrigo na Constituição Federal, e são marcadas pelo caráter programático da efetivação dos direitos fundamentais. Em português claro: ao mesmo tempo em que as políticas públicas têm fundamento em normas constitucionais de carga semântica consideravelmente aberta, atribuindo maior discricionariedade ao administrador, exigem deste uma atuação direta para consecução dos direitos sociais que visa tutelar. Como já exposto no presente trabalho, o caráter programático dessas normas, cujas finalidades vêm estatuídas na forma de conceitos de valor, são irredutíveis a uma objetividade completa. Nessas situações, além de toda a interpretação possível, remanescerá sempre ao administrador alguma discrição em sua escolha diante da situação concreta. Se por um lado a carga semântica aberta dos princípios e direitos fundamentais é indispensável para atingir o comportamento ótimo exigido do administrador na aplicação da norma, por outro, a margem de liberdade acaba propiciando arbitrariedades pelo agente Estatal.58 De se considerar, ainda, que as políticas públicas visam à consecução dos direitos sociais que, por exigirem uma atuação direta do Estado, indubitavelmente possuem um custo mais alto que os direitos civis e políticos. É certo que esses últimos possuem um custo que não pode ser ignorado, pois exigem a manutenção de um aparato estatal; todavia, a realização de direitos sociais como a saúde e a educação têm interferência muito maior no orçamento público. De mais a mais, esses “gastos institucionais” incorridos pelo Estado na manutenção do aparato para realização dos direitos civis e políticos também são indispensáveis na efetivação dos direitos sociais, tratando-se, pois, de “gastos diluídos” na efetivação de todo e qualquer direito, não servindo de base para a comparação entre o custo dos direitos sociais e econômicos, de um lado, e o custo dos direitos civis e políticos, de outro.59 57DAL BOSCO, Maria Goretti; VALLE, Paulo Roberto. Op. cit., p. 01. 58Citando Konrad Hesse, a força normativa da Constituição não se limita somente à sua adaptação à realidade concreta, mas sim de sua efetivação na prática (“vontade de Constituição”), o que resulta na imposição de tarefas ao administrador que devem ser efetivamente realizadas. De acordo com Hesse, a “vontade de Constituição” possui três vertentes: a compreensão da necessidade de uma ordem normativa contra o arbítrio, a constatação de que essa ordem não é eficaz sem o concurso da vontade humana e de que a ordem normativa adquire e mantém sua vigência sempre mediante atos de vontade (HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. 2ª. edición. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, pp. 19-20). 59SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit., pp. 591-592). V. nota n. 50. IV.1 Do conceito de políticas públicas A partir das considerações acima expostas, torna-se evidente a presença da discricionariedade administrativa no campo das políticas públicas. Assim como o legislador infraconstitucional atua na “determinação” e “conformação material” da Constituição Dirigente, o enfoque das políticas públicas destaca o papel da Administração na “determinação e conformação” material das leis e das decisões políticas a serem executadas no nível administrativo. Quer-se dizer que as políticas públicas são hoje instrumentos de ação dos governos, o government by policies em substituição ao government by law.60 Mas, afinal, qual o conceito jurídico de políticas públicas? De acordo com Maria Paula Dallari Bucci, políticas públicas são programas de ação governamental que resulta de um processo ou um conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.61 Como se percebe, o conceito de políticas públicas pressupõe modelos de “ações”, “programas” ou “atividades” públicas, evidenciando o comprometimento de todas as funções do Estado com a realização das metas de efetivação dos direitos fundamentais previstos na Carta Constitucional. Logo, não há, a priori, exclusão de qualquer função do Estado quanto ao compromisso para promoção e efetivação dessas políticas, uma vez que, como exposto no capítulo anterior, a Constituição Federal dá a direção e regula a atuação do Estado, assim compreendido na totalidade dos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Sem dúvidas, mesmo na concepção atual da harmonização dos poderes há divisão de atribuições distintas dentro do aparato estatal. Na realidade, o que se verifica é que a elaboração dos planos de governo, que encerram políticas públicas em todas as áreas da Administração, costuma ficar a cargo do Executivo e do Legislativo. Não raro, porém, tais poderes são comandados pelas mesmas forças políticas que vencem as eleições. As possibilidades de escolha atribuídas ao Executivo neste momento são amplas e pequeno é o número de situações nas quais os investimentos têm finalidade vinculada, como ocorre com a educação e a saúde.62 E é assim que a omissão arbitrária da administração na realização dos direitos sociais é dilema corriqueiro no cenário do país, legitimando a intervenção judicial para coibir o desajuste da escolha de prioridades orçamentárias adotadas pelo governo.63 60COMPARATO, Fábio Konder. Planejar o desenvolvimento: a perspectiva institucional. In “Para viver a democracia”. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 102. 61BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em Direito. In “Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico”. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 39. 62DAL BOSCO, Maria Goretti; VALLE, Paulo Roberto Dalla. Op. cit., pp. 09-10. 63Ademais, como lembra Maria Paula Dallari Bucci, o fato de ser a política pública um “quadro normativo de ação” informado por elementos de poder público, elementos de expertise e elementos que tendem a constituir uma ordem local – todos da órbita do aparelho burocrático – faz com que a Administração desempenhe um papel relevante na análise e na elaboração dos pressupostos que dão base à política pública. A ideia de uma sucessão de atos no tempo, em que o Legislativo e o governo traçam primeiro as diretrizes da política para depois a Administração Pública executá-la, Vê-se, pois, que a exteriorização da política pública está muito distante de um padrão jurídico uniforme e claramente apreensível pelo sistema. Isto se reflete em dúvidas quanto à vinculatividade dos instrumentos de expressão das políticas – o seu caráter cogente em face de governos e condições políticas que mudam – e quanto à justiciabilidade dessas mesmas políticas, isto é, a possibilidade de exigir o seu cumprimento em juízo.64 IV.2 A discricionariedade na peça orçamentária A partir das premissas assentadas nos capítulos anteriores de que (i) tanto a lei quanto a Constituição Federal – sem esquecer dos princípios do ordenamento pátrio – prevêem fins a serem perseguidos pelo Estado; que (ii) a atuação administrativa, assim como de todos os outros poderes, está vinculada a tais finalidades normativas (independentemente do grau de regulação estabelecida nas normas); que (iii) tais comandos normativos prevêem sempre um comportamento ótimo do agente estatal para viabilizar o alcance da finalidade da melhor forma possível diante da possibilidade de escolha à luz da situação concreta; pôde-se concluir que, caso a conduta dos agentes – seja comissiva, seja omissiva – não esteja intimamente relacionada com tais premissas, deflagrar-se-á como uma arbitrariedade a ser combatida pelo Poder Judiciário. Visto que as políticas públicas revelam-se como o campo de maiores arbitrariedades cometidas pelos agentes estatais no exercício de sua função, não pode ser outra a conclusão de que o Judiciário tem o dever de coibir os abusos também nessa seara, na tentativa de efetiva realização dos direitos sociais. Todavia, falar em política pública implica necessariamente abordar orçamento, isto é, na escolha de prioridades realizadas pela Administração. Todas essas reflexões permitem perquirir se seria possível engendrar ação judicial cujo foco não fosse os direitos subjetivos previamente definidos ou os que adviessem como resultado de atividades estatais já bem sucedidas, mas a própria atividade procedimental realizada para a implementação da policy: as decisões fundamentais à luz das possibilidades orçamentárias. Quer-se dizer que deverá ser objeto de controle, por exemplo, a adequação da política às diretrizes orçamentárias e aos princípios magnos; a destinação das verbas vinculadas à saúde e à educação; o exame das prioridades. Isso porque, muito embora não se discuta que é o administrador público quem melhor conhece a realidade administrativa e financeira do ente público, por outro é necessário evitar que, na prática, a discricionariedade torne-se um passa a ser mais um tipo ideal que um dado da realidade. Principalmente no campo dos direitos sociais como saúde, educação e previdência, em que as prestações do Estado resultam da operação de um sistema extremamente complexo de estruturas organizacionais, recursos financeiros, figuras jurídicas, cuja apreensão é a chave de uma política pública efetiva e bem-sucedida. Conhecer, portanto, os princípios jurídicos da Administração Pública, os condicionamentos legais à contratação de funcionários ou serviços, as formas de organização jurídica da Administração direta e indireta, além dos dados materiais geridos pela Administração em seu cotidiano, são operações que necessariamente fazem parte do processo de formulação da política pública. Por outro lado, esse processo representa o modo de formação da vontade administrativa no espaço da ação discricionária – especialmente num país de regime presidencialista, em que os aparelhos do governo e da Administração se confundem no Poder Executivo (BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit., p. 250). 64BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit., p. 257. “cheque em branco” ao agente estatal para desenvolver as políticas públicas. Assim, à medida que a discricionariedade do agente atinge a escolha das prioridades orçamentárias, essa não pode ser imune ao controle judicial sob o manto dos juízos de “oportunidade e conveniência” ínsitos à Administração. Afinal, é a peça orçamentária que permite a existência e o manejo dos recursos necessários à efetivação máxima das políticas públicas. 65 Daí porque toda e qualquer discussão de omissão administrativa na implementação de políticas públicas recai sobre o orçamento, sobretudo à luz do limite da “reserva do possível”, tão invocado pela administração para afastar o controle pelo Judiciário de sua conduta omissiva. Deve-se coibir, pois, as atitudes irresponsáveis, as omissões arbitrárias que coloquem em xeque a própria efetividade do sistema. Mas quais seriam, então, as omissões arbitrárias praticadas pelo agente estatal em matéria de políticas públicas? A questão é de difícil resposta. Se por um lado não se nega a vinculação do administrador ao dever de realizar os direitos sociais – a “vontade de Constituição” a que Hesse se refere – por outro é notório que a Administração não tem condições de acabar com a totalidade das mazelas sociais, garantindo um serviço público eficiente em saúde, educação, moradia, previdência, etc. Daí porque parte da doutrina e a jurisprudência fala em um núcleo de direitos fundamentais inafastável pelo poder público, porque indispensáveis para a garantia do primado constitucional da dignidade humana. A partir dessa ideia, haveria um mínimo existencial a ser garantido pelo Estado em toda e qualquer hipótese, 66 cuja omissão seria inarredavelmente arbitrária. Muito embora a iniciativa seja louvável, até agora não se alcançou um conceito objetivo do mínimo existencial, divergindo-se sobre quais direitos fundamentais deveriam integrar o “mínimo”, participando da delineação do conceito. Admite-se, inclusive, certa flexibilidade no conceito, que assumiria contornos diversos no tempo e espaço.67 65BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Miradas sobre o controle jurisdicional de políticas públicas: dos preceitos judiciais à teoria (obtido em http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/miradas.pdf – acesso em 11 de junho de 2010). 66Sem muitas delongas – já que não é este o objeto do presente trabalho – pode-se mencionar que os critérios utilizados pela doutrina e jurisprudência acerca dos limites do controle jurisdicional em matéria de políticas públicas são: (i) o mínimo existencial, isto é, um núcleo de direitos fundamentais intangíveis que, por se relacionarem intimamente com o primado da dignidade humana, deveria necessariamente ser concedido pelo Judiciário em caso de omissão administrativa; (ii) a razoabilidade, isto é, a análise da situação concreta para verificar se o administrador pautou sua conduta de acordo com os interesses maiores do indivíduo ou da coletividade; e (iii) a reserva do possível fática e jurídica: a primeira, estabelecendo que não é possível exigir uma prestação positiva do Estado se não há, de fato, materialmente, dinheiro em caixa; a segunda, baseada na falta de previsão orçamentária, dentro do sistema vigente, para o gasto com este ou aquele direito (JACOB, César Augusto Alkmin. A Reserva do Possível: obrigação de previsão orçamentária e de aplicação da verba – no prelo). No que se refere ao mínimo existencial, este não seria oponível sequer à falta de recursos da Administração Pública (“reserva do possível”): diante da impossibilidade – devidamente demonstrada pela Administração – de garantir a efetivação do “direito mínimo” naquele exercício financeiro, poderia o Poder Judiciário determinar a inclusão, na peça orçamentária, de uma política pública para a realização futura daquele direito. Nessa esteira, deve-se diferenciar a reserva do possível jurídica da fática. Cite-se, por exemplo, um pequeno Município do árido sertão nordestino cujos recursos são excessivamente restritos. Diante da impossibilidade fática de realização daquele direito mesmo futuramente, não há como garantir-se sequer o mínimo existencial. Trata-se, contudo, de exemplo extremado. De todo modo, sobrexiste a possibilidade de alocação de recursos para efetivação daquele direito, uma vez que o Município, os Estados e a União são solidariamente responsáveis por sua implementação. 67 Para elucidar melhor a questão, mencione-se o exemplo utilizado pelo Prof. Kazuo em sala de aula: o direito à indumentária. Muito embora para os povos indígenas habitantes do Estado do Amazonas a indumentária não configuraria no rol de direitos indispensáveis para assegurar a dignidade humana (por questões inclusive culturais), a Outra interessante questão que se coloca sobre o exercício abusivo da discricionariedade administrativa passível de controle pelo Poder Judiciário seria o caso de intervenção judicial para adequar determinada política pública já realizada pela Administração aos fins constitucionais. Em outras palavras, questiona-se sobre a possibilidade do Judiciário, uma vez provocado para tanto, determinar a correção ou implementação de outra política pública na hipótese do ente estatal já desenvolver uma política no mesmo setor. À luz do quanto discutido sobre a exigência de um comportamento ótimo do agente estatal, a tendência é concluir que sim, o Judiciário pode intervir caso a política adotada pela Administração não esteja cumprindo de forma eficiente a finalidade legal ou constitucional, desde que a ineficiência da política já existente reste demonstrada e que a Administração, de seu turno, não consiga se desincumbir do ônus de provar a falta de recursos para melhoria dessa política.68 Não se pode esquecer que mesmo a flexibilização da clássica teoria da separação dos poderes (admitindo-se, hoje, o controle jurisdicional) mantém um núcleo intangível de atribuições específicas para cada ente Estatal, cuja ultrapassagem seria igualmente nociva ao sistema. Realmente, não é tarefa da alçada do Judiciário definir políticas públicas, tampouco substituir o administrador na escolha das prioridades orçamentárias, daí resultando a necessidade de impor limites ao poder Judiciário ao intervir nas decisões do agente administrativo, não podendo sobrepor-se sobre a este. Indo além, nem sempre o Judiciário analisa a tensão discricionariedade vs. arbitrariedade administrativa e a consequente possibilidade de controle da forma mais adequada, muitas vezes intervindo em hipóteses que não deveriam ser submetidas a controle ou, ainda que o fossem, através de justificativa sem o devido rigor jurídico-constitucional.69 indumentária é, sem dúvida, item indispensável para os habitantes da região Sul, em razão das baixas temperaturas. Elevando-se à última potência, é possível concluir que a delimitação do conceito esbarra no princípio da razoabilidade e, na situação concreta, da proporcionalidade. Partindo das ideias de Robert Alexy, nenhum direito fundamental é aprioristicamente superior à outro, sendo indispensável a aplicação do princípio da proporcionalidade à luz do caso concreto para, então, decidir pela preponderância de um valor em relação a outro. 68 Nesse sentido, veja-se recente decisão do Superior Tribunal de Justiça no julgamento de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 28.962/MG, j. em 25 de agosto de 2009. O Ministro Relator Benedito Gonçalves negou a concessão do medicamento pleiteado que não constava da lista do SUS por entender que o impetrante não demonstrou que a resposta em seu tratamento seria melhor com o remédio pleiteado que com os medicamentos fornecidos pelo SUS. O Ministro chama a atenção, ainda, para a prudência na análise das ações ajuizadas contra os entes públicos com o escopo de obrigar-lhes indiscriminadamente ao fornecimento de medicamentos de alto custo. 69 A título exemplificativo, cita-se TJSP, Ap. Cível 275.964-5/9-00, julgado em 14 de março de 2005, relator Desembargador Milton Gordo. Com base o raciocínio do Relator, a discricionariedade administrativa estaria seriamente mitigada, vez que o Judiciário estaria apto a determinar o conteúdo de uma política pública de acesso a deficientes – determinando a construção de rampas em uma escola - não sendo possível concluir que o Município, de fato, estivesse se omitindo quanto a todas as inúmeras opções de efetivação da mesma finalidade legal, qual seja, garantir acesso aos deficientes. Ademais, o argumento utilizado pelo Relator seria de que a medida (construção de rampa de acesso) teria custo baixo e, como tal, não interferiria no orçamento do município. A despeito de alguns acórdãos reconhecerem a existência de políticas públicas específicas para DST/AIDS, nenhum deles tratava pormenorizadamente do desenho institucional da política pública praticada pelo Estado. Nos casos em que o Estado já empreende uma política pública, como no analisado, verificou-se que “o Judiciário ignora por completo o modus operandi da mesma, não procurando adequar a esse suasdecisões, quando possível” (Conforme Pesquisa realizada por estudantes da graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, coordenada pelo Prof. Dr. José Eduardo Faria e Prof. Dr. Diogo R. Coutinho - PET-FD-USP - intitulado O Judiciário e as políticas públicas de saúde no Brasil: o caso AIDS, 2004, p. 24. Apud SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realiza- A discussão sobre os limites ao controle jurisdicional assume hoje relevância tão grande quanto da própria necessidade de implementação das políticas públicas, à medida que os Tribunais possuem uma postura cada vez mais ativa no controle das omissões administrativas. Todavia, nem sempre o controle é realizado com o devido rigor jurídico. Envolvidos pela compaixão social que o tema desperta, juízes e Tribunais concedem, por exemplo, tratamentos médicos no exterior e medicamentos que não constam da lista da Anvisa sem sequer considerar o impacto de suas decisões no orçamento público e a inviabilidade que poderia delas advir na implementação de outras políticas públicas – eventualmente até na mesma área da saúde – já estabelecidas pela Administração. Vale destacar, ainda, a existência das demandas individuais que não raras vezes conseguem decisões para “furar a fila”,70 sem qualquer resultado social na implementação da política pública propriamente dita. Tudo isso porque decidir sobre o que seja ou não factível nos limites do orçamento do Executivo implica conhecer detalhes técnicos que não são comuns à prática dos magistrados. Nesse ínterim, não há como se compreender a política pública sem compreensão do regime das finanças públicas. Para tanto, porém, é preciso inseri-las nos princípios constitucionais que estão além dos limites ao poder de tributar. Precisam estar inseridas no direito que o Estado recebeu de planejar não apenas suas contas, mas o desenvolvimento nacional, que inclui e exige a efetivação de condições de exercício dos direitos sociais pelos cidadãos brasileiros. 71 Assim, o Estado não só deve planejar seu orçamento anual, mas ção dos direitos sociais. In Cláudio Pereira de Souza Neto & Daniel Sarmento, Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécies. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 594). 70Trata-se do que Virgílio Afonso da Silva chama de “ativismo judicial despreparado”: “por exemplo, ao distribuir tratamentos médicos de forma individual (i.e., sem considerar as políticas governamentais na área), os juízes podem estar prejudicando outras políticas públicas na área da saúde (ou em outras áreas), mesmo que eles consigam 'resolver' alguns casos isolados. Isso porque, em um cenário de recursos escassos, o dinheiro tem que ser necessariamente retirado de outros programas para atender as decisões judiciais”. O autor afirma que, diante da inexistência de recursos para todas as carências sociais, as decisões do juiz concedendo medicamentos em demandas individuais implicam no deslocamento de recursos de outras áreas. Assim, muito embora haja boas intenções, as histórias de sucesso individual nem sempre são histórias de sucesso coletivo. Nessa esteira, conclui que “esses direitos não podem ser tratados, exceto em casos excepcionais, como se seguissem o mesmo padrão individualista em que se baseiam relações entre um credor e um devedor. (…) Se, pelas razões expostas, o Judiciário não deve distribuir medicamentos ou bens similares de forma irracional a indivíduos, ele deveria ser capaz de canalizar as demandas individuais e, em uma espécie de diálogo constitucional, exigir explicações objetivas e transparentes sobre a alocação de recursos públicos por meio das políticas governamentais, de forma a estar apto a questionar tais alocações com os poderes políticos sempre que necessário for” (SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais. In Cláudio Pereira de Souza Neto & Daniel Sarmento, Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécies. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 595-596). Também a profa. Ada Pellegrini Grinover concorda que só há implementação de política pública quando se pensa coletivamente. Conforme exposto em sala de aula, a profa. diferencia as demandas individuais das ações coletivas afirmando que as primeiras só têm o condão de implementar políticas públicas quando têm efeito coletivo reflexamente (por ex., ação ingressada por um deficiente físico visando a construção de rampas de acesso, que seriam, pois, aproveitadas por todos os deficientes). Não se olvide, porém, que tais ações individuais muitas vezes funcionam como forma de pressão social na implementação de políticas públicas, como ocorreu no caso da Aids. Segundo a OMS, “the viability of the Brazilian HIV/AIDS programme, including treatment distribution, owes much to effective social mobilization, including representation of affected communities in government, non-governmental organizations, and other fora. The distribution of free antiretrovirals in itself prevented the problems associated with black market or substandard regimens.” (World Health Organization, Treatment Works. In http://www.who.int/3by5/en/treatmentworks.pdf). Não se pode negar a pressão social existente no caso decorrente da propositura de diversas ações individuais visando o acesso gratuito aos medicamentos para tratamento do HIV. 71LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais: o dilema do judiciário no Estado social de direito. In “Direitos humanos, direitos sociais e justiça (org. José Eduardo Faria). São Paulo: Malheiros, 1994, p. 132133). também suas despesas de capital e programas de duração continuada, colocando em prática a “vontade de Constituição”. Assim, se por um lado o orçamento público não pode mais ser considerado esfera intocável pelo Judiciário, de outro a decisão judicial deve usar da razoabilidade na avaliação das possibilidades do orçamento, fixando prazos razoáveis e compatíveis com a execução orçamentária. V – CONCLUSÃO Como vimos, o tema da discricionariedade administrativa, tão debatido pela doutrina e jurisprudência, está longe de alcançar um entendimento uníssono quanto aos seus limites e possibilidade de controle pelo Poder Judiciário. De tudo o que já se escreveu, percebe-se que a antinomia atos vinculados vs. atos discricionários há muito não é capaz de solucionar as questões enfrentadas atualmente pelo Estado Democrático de Direito, sobretudo quando se trata da discussão de políticas públicas. Embora não se negue a clássica concepção de que a administração está adstrita à lei, pautando seus atos pelo princípio da legalidade, tal vinculação também não é suficiente para a salvaguarda dos direitos fundamentais previstos na Carta Política. Tratando-se a Constituição de 1988 de uma constituição dirigente, torna-se indispensável um novo conceito de discricionariedade, adequado aos fins previstos na Carta Política, sob pena de transformá-la e mero papel destituído de vinculação. Deve-se, pois, pensar em uma discricionariedade pautada nos fins constitucionais, vinculando a atuação do administrador aos direitos fundamentais e ao dever de boa administração. Nessa esteira, não há mais espaço para compreender a discricionariedade como um pretexto para decisões ineficientes, sejam as que não atendam o interesse público implícito na finalidade legal, sejam as que o atendam de maneira deficiente. Numa visão sistemática consentânea com a supremacia da ordem constitucional, o mérito do ato, por via reflexa, pode ser inquirido, efetuando-se o controle da arbitrariedade por ação ou omissão do agente estatal. Essa a razão pela qual o controle sistemático deve ser realizado com maior rigor, uma vez que a discrição existe para que o agente concretize com maior presteza as finalidades vinculantes da Constituição Dirigente. Logo, obrigatoriamente, os atos administrativos – vinculados ou não – devem ser constitucionalmente justificáveis. Obviamente que, quanto maior a liberdade, maior deve ser o controle, nos recíprocos contrapesos entre os Poderes. Por outro lado, não se pode confundir o aprofundamento do controle com um excesso paralisante, uma vez que não se trata de exigir uma escolha unívoca, adotando a lógica do “tudo-ou-nada”. O que se busca é que a escolha do agente estatal no exercício de sua competência seja válida e legítima, sendo a melhor escolha possível (e não “a” única escolha possível) dentre as várias opções legítimas que lhe são disponibilizadas. O controle deve ser proporcional, abrangendo com maior cuidado a íntegra da motivação dos atos administrativos. VI - BIBLIOGRAFIA ABRAMOVICH, Vitor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Trotta, 2002. ALESSI, Renato. Principi di Diritto Amministrativo, Vol. I, Milano: Giuffrè, 1965. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais (trad. Virgílio Afonso da Silva). São Paulo: Malheiros, 2008. BARCELLOS, Ana Paula de. 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