Terceira Turma RECURSO ESPECIAL N. 1.021.166-PE (2004/0182461-8) Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Recorrente: M dos P de O Advogados: Maria dos Prazeres de Oliveira e outro Leonardo da Silva Patzlaff Veronica Maria Almeida dos Santos e outro(s) Recorrido: E M V N Advogado: Maria das Graças Miranda de Oliveira - Defensora Pública e outros EMENTA Recurso especial. Processual Civil e Civil. União estável. Reconhecimento e dissolução. Vigência da Lei n. 9.278/1996, partilha de bens. Consectário do pedido de dissolução. Não caracterizadas as exceções à meação previstas no § 1º do art. 5º da Lei n. 9.278/1996. Acórdão mantido. 1. Às uniões estáveis dissolvidas após a data de publicação da Lei n. 9.278/1996, ocorrida em 13.5.1996, aplicam-se as suas disposições. 2. Os bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável, individualmente ou em nome do casal, a partir da vigência da Lei n. 9.278/1996, pertencem a ambos, dispensada a prova de que a sua aquisição decorreu do esforço comum dos companheiros, excepcionado o direito de disporem de modo diverso em contrato escrito, ou se a aquisição ocorrer com o produto de bens adquiridos em período anterior ao início da união (§ 1º). 3. A meação constitui-se em consectário do pedido de dissolução da união estável, não estando o julgador adstrito ao pedido de partilha dos bens discriminados na inicial da demanda. 4. Na hipótese dos autos, embora decretada a revelia, não logrou a demandante demonstrar qualquer uma das hipóteses do § 1º do art. 5º da Lei n. 9.278/1996 para fins de afastar a presunção de condomínio sobre o patrimônio adquirido, ainda que exclusivamente em seu nome, a título oneroso durante a vigência da união estável. REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 5. Ademais, é certo que a Lei n. 9.278/1996 não exige, como previa o regime anterior, a prova de que a aquisição dos bens decorreu do esforço comum de ambos companheiros para fins de partilha. 6. Recurso parcialmente conhecido e não provido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Terceira Turma, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e nesta parte negar-lhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Brasília (DF), 2 de outubro de 2012 (data do julgamento). Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator DJe 8.10.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se, originariamente, de ação de dissolução de sociedade de fato ajuizada em 15.7.1997 por M. dos P. de O. contra E.M.V.N., que mantiveram união estável no período de 24.12.1986 a 24.3.1997, na qual foi formulado o seguinte pedido (fl. 73): (...) b) que ordene a citação de E. M.V.N. para, querendo, contestar a presente ação em todos os seus termos, sob pena de revel, devendo, finalmente, ser a presente ação julgada favoravelmente à autora e declarada dissolvida a sociedade de fato que mantinha com ele e partilhado os bens adquiridos em nome de ambos; (...) (alteração no texto original para preservar o segredo de justiça). O demandado não apresentou contestação tendo sido decretada sua revelia (fl. 12v - autos em apenso); somente em sede de alegações finais alegou cerceamento de defesa e pugnou pelo reconhecimento do direito da meação de todos os bens elencados à fl. 126 (autos em apenso), que teriam sido adquiridos na constância da união estável. 346 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA O Ministério Público Estadual opinou pela decretação da “dissolução da união estável entre a Srª. M. dos P. de O e o Sr. E.M.V.N., procedendo-se à partilha dos bens adquiridos por um deles ou por ambos durante o período da convivência, ou seja, do ano de 1986 a 1997” (fls. 149-152 - autos em apenso). Em sentença de fls. 91-92, o juízo de primeiro grau julgou parcialmente procedente os pedidos, consoante o seguinte dispositivo : “Diante do acima dito, julgo procedente, em parte, o pedido contido na inicial, com base na Lei n. 9.278/1996, decretando o fim da união estável” (fl. 92, verso) entre os litigantes. Foram opostos embargos de declaração pelo demandado, os quais foram acolhidos para, em virtude da ausência de litígio quanto à dissolução da união, declarar que “não cabe condenação em honorários advocatícios na sentença prolatada às fls. 154-1.556 dos presentes autos”. Por sua vez, os declaratórios opostos pela demandante foram rejeitados, sob os seguintes argumentos: (...) No caso concreto, em que pese a revelia do réu, a Lei n. 9.278, de 10.5.1996 no seu artigo 5º estabelece: Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são consideradas fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito. Ora, mesmo o suplicado sendo revel, a partilha de bens tem que atender ao determinado em lei. A sentença prolatada teve por base legal a lei citada acima, e partilhou os bens dos conviventes seguindo o estabelecido no art. 5º. Na sentença, está consignado às fls.. 155: “A prática de infidelidade por parte do suplicado, foi confirmada pelo próprio, quando da tomada do seu depoimento em audiência. Logo, não se pode dizer que houve omissão por parte desse juízo, m se furtar a citar tal feito. Porém na união estável, não existe previsão legal de atribuição de culpa. Afora isto, no caso em tela, não houve litígio em relação a dissolução da entidade familiar. Ambos os litigantes queriam a dissolução. Não há que se falar, também em omissão quanto aos direitos adquiridos pela autora, anteriores à Lei n. 9.278, de 10.5.1996. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 347 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A dissolução da entidade familiar foi trazida a juízo através de uma ação quando a Lei n. 9.278, de 10.5.1996 já regulamentava a matéria. O juízo tinha por obrigação legal adotar a legislação acima, para dirimir os possíveis conflitos. E foi isto que foi feito. Não há que se falar em contradição existente na sentença por ter o juízo partilhado meio a meio os bens adquiridos na vigência da união estável. Mesmo o réu sendo revel, entendo ter agido corretamente, quando adotei para a partilha dos bens o estabelecido no art. 5º da Lei n. 9.278, de 10.5.1996. Inclusive na sentença está dito “Como muito bem disse a Douta Promotora de Justiça em seu parecer às fls. 149-152” (...) O art. 5º da Lei n. 9.278/1996 não impõe a necessidade de comprovação da contribuição dos conviventes na formação do patrimônio, muito ao contrário, estabelece que todos os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos, na constância da união são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum. A restrição antes trazida pela Súmula n. 380 STF, quando falava em esforço comum para efeito de partilha, já é superada, preponderando o entendimento de que não é necessário que a contribuição de uma das partes tenha sido financeira. Além do mais, a própria autora admitiu o desempenho de atividade produtiva pelo réu. Diante do exposto, julgo improcedente os presentes embargos de declaração. Interposta apelação pela demandante, o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco negou provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa: Direito Civil e Processual Civil - Ação de dissolução de sociedade de fato. Procedência, em parte, do pedido. Apelação. Rejeitada, à unanimidade, a preliminar atinente à decisão ultra petita. Separação ocorrida após a vigência da Lei n. 9.278/1996, devendo ser partilhados os bens pelos companheiros. Sentença que merece subsistir. Unanimemente, negou -se provimento ao apelo. Os embargos de declaração opostos foram rejeitados. Nas razões do recurso especial, aponta a recorrente, além de dissídio jurisprudencial, a violação dos seguintes dispositivos legais: a) arts. 319, 320, II, e 460, do Código de Processo Civil, ao confirmar sentença que ignorou os efeitos da revelia e extrapolou os limites do pedido, 348 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA incorrendo em julgamento extra petita, porquanto o pleito formulado na inicial pela demandante, ora recorrente, foi no sentido de ver declarada dissolvida a sociedade e partilhado os bens adquiridos no nome de ambos, sendo certo, ainda, que o demandado não apresentou contestação. Assim, afirma que as instância ordinárias não poderiam ter determinado a partilha de todos os bens adquiridos durante a constância da união. Aduz que “se o recorrido pretendesse a partilha dos demais bens de propriedade da recorrente deveria ter contestado, como não o fez, só lhe restaria então entrar com ação própria com pedido específico de partilha dos bens que não foram colacionados, uma vez que não foram objeto da presente ação” (fl. 32); b) art. 333, incisos I e II, do CPC, porquanto a demandante comprovou que dispunha de renda suficiente para adquirir os bens que constavam de sua propriedade não tendo o demandado refutado referidas provas; c) art. 6º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que alberga o princípio da irretroatividade das leis, ao considerar aplicável a Lei n. 9.278/1996, porquanto vigente quando do fim da união estável ocorrido em 24.3.1997. Afirma a recorrente que o ato jurídico cuja dissolução se buscou por meio da presente demanda, a constituição da sociedade de fato, se deu em 24.12.1986, motivo pelo qual alega que a legislação aplicável é aquela vigente naquela época; d) art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, porque interpretou equivocadamente o art. 5º da Lei n. 9.278/1996. Argumenta que se deve admitir prova em contrário quanto ao direito à partilha de bens adquiridos durante a constância da união estável sob pena de enriquecimento ilícito de uma das partes; e e) art. 2º, incisos I e II, da Lei n. 9.278/1996, haja vista que o reconhecimento da união estável pressupõe o atendimento dos requisitos previstos em referido dispositivo, o que alega não ter sido atendido na hipótese dos autos ante a infidelidade do demandado. Contrarrazões apresentadas às fls. 62-65, foi negado seguimento ao apelo extremo (fls. 66-69). O agravo de instrumento interposto contra a decisão denegatória foi provido (fl. 162), determinando o Ministro Ari Pargendler sua conversão no presente recurso especial. O Ministério Público Federal, em parecer de fls. 182-187, opinou pelo não provimento do recurso, nos termos assim sintetizados: RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 349 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Civil e Processual Civil. Ação de dissolução de sociedade de fato. Procedência em parte. Partilha de todos os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Recurso especial por violação aos arts. 319, 320, II, 333, I e II, 460, do CPC, 2º e 5º da Lei n. 9.278/1996, 5º e 6º da LICC, e dissídio jurisprudencial. Não ocorrência. Acórdão devidamente fundamentado e de acordo com a jurisprudência do STJ. Dissolução da sociedade de fato quando já em vigor a Lei n. 9.278/1996. Plena aplicabilidade do disposto no art. 5º da referida norma. Não incidência da Súmula n. 380-STF. Interposição pela alínea c. Não conhecimento. Ausência de cotejo analítico. Foram requisitados os autos originais ao Tribunal de origem para exame mais acurado da controvérsia. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): Preliminarmente, verifica-se que a matéria versada nos art. 333, incisos I e II, do CPC, art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro e aos incisos I e II do art. 5º da Lei n. 9.278/1996, apontados como violados no recurso especial, não foi objeto de debate pelas instâncias ordinárias, sequer de modo implícito, e embora opostos embargos de declaração com a finalidade de sanar omissão porventura existente, não indicou a parte recorrente a contrariedade ao art. 535 do CPC, motivo pelo qual, ausente o requisito do prequestionamento, incide o disposto na Súmula n. 211-STJ: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo.” No que se refere à suscitada ofensa ao art. 6º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, ao argumento de que seria inaplicável a Lei n. 9.278/1996, afirma a recorrente que legislação aplicável seria aquela vigente à época da constituição da sociedade de fato, que se deu em 24.12.1986. Com efeito, impõe-se consignar que às uniões estáveis dissolvidas após a data de publicação da Lei n. 9.278/1996, ocorrida em 13.5.1996, aplicam-se as suas disposições, consoante já assentado por esta Corte Superior: Recurso especial. União estável. Reconhecimento judicial. Término da relação após a edição da Lei n. 9.278/1996. Partilha de bens. Impossibilidade de responsabilizar a recorrida pelos débitos da empresa. Recurso especial parcialmente conhecido e nessa parte não provido. 350 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 1. Não há que se falar em ofensa ao artigo 535 do CPC, se o Tribunal recorrido examinou as questões pertinentes ao litígio, sabendo-se que ao órgão julgador é suficiente que apresente os fundamentos de sua convicção. 2. Esbarra no óbice na Súmula n. 7-STJ, o exame de afronta ao § 1º do artigo 5º da Lei n. 9.278/1996, alegada ao fundamento de que os bens havidos na constância da união estável, foram adquiridos por sub-rogação. 3. Afirmando o acórdão que inexiste responsabilidade solidária da convivente pelas dívidas da empresa, por não haver a comprovação que qualquer dos débitos tenha sido contraído em data anterior a 1999, época do término da união, impossível se afigura a apreciação dessa matéria em sede de recurso especial. 4. Incontroversa a união estável pelo período de 18 anos, cujo término se deu sob a vigência da Lei n. 9.278/1996, é cabível a partilha dos bens adquiridos durante o convívio. 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. (REsp n. 986.290-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22.2.2011, DJe 28.2.2011). No mesmo sentido, interpretando-se a contrario sensu, as ementas dos seguintes arestos: Civil e Processual. Dissolução de sociedade de fato ocorrida antes da Lei n. 9.278/1996. Contribuição da mulher para a consolidação do patrimônio comum. Comprovação. Matéria de fato. Súmulas n. 380-STF e n. 7-STJ. Aplicação. Partilha de bens. Violação ao art. 535 - CPC. Inexistência. I. Comprovada a participação direta e indireta da mulher na consolidação do patrimônio do casal enquanto perdurou a união estável, cujo término ocorreu antes da vigência da Lei n. 9.278/1996, faz jus à partilha dos bens, adquiridos durante a vida em comum, nos termos da Súmula n. 380 do STF. II. Aplicação da Súmula n. 7-STJ ao delineamento fático estabelecido na instância ordinária. III. Não se anula o julgado que aborda as questões objeto do especial apenas porque dissentiu do interesse da parte. IV. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 623.566-RO, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 20.9.2005, DJ 10.10.2005). Direito Civil. Dissolução de sociedade de fato anterior à vigência da Lei n. 9.278/1996. Partilha de bens. Presunção do art. 5º. Inaplicabilidade das disposições dessa lei. Necessidade de demonstração do esforço comum na aquisição do patrimônio disputado para ensejar a sua partilha. Precedentes. Recurso desacolhido. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 351 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA I - Não se aplicam às uniões livres dissolvidas antes de 13.5.1996 (data da publicação) as disposições contidas na Lei n. 9.278/1996, principalmente no concernente à presunção de se formar o patrimônio com o esforço comum, pois aquelas situações jurídicas já se achavam consolidadas antes da vigência desse diploma normativo. II - A jurisprudência das Turmas que integram a Segunda Seção desta Corte é firme no sentido de que somente com a prova do esforço comum na formação do patrimônio disputado, mesmo que em contribuição indireta, tem lugar a partilha dos bens. (REsp n. 147.098-DF, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 25.3.1999, DJ 7.8.2000). Na hipótese dos autos, consignando as instâncias ordinárias, de modo incontroverso, que a união foi dissolvida em 24.3.1997, evidencia-se a incidência da Lei n. 9.278/1996, motivo pelo qual impõe-se rejeitar a suscitada afronta ao princípio da irretroatividade das leis. No que se refere ao alegado julgamento extra petita, o art. 5º da Lei n. 9.278/1996 dispõe que os “bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito”. Assim, a meação constitui-se consectário do pedido de dissolução da união estável, motivo pelo qual o julgador não fica adstrito ao pedido de partilha dos bens elencados na inicial da demanda. Os bens adquiridos a título oneroso enquanto perdurar a união estável individualmente ou em nome do casal, a partir da vigência da Lei n. 9.278/1996, pertencem a ambos, excepcionado o direito de disporem de modo diverso em contrato escrito, ou se a aquisição ocorrer com o produto de bens adquiridos em período anterior ao início da união (§ 1º). Na hipótese dos autos, embora decretada a revelia, não logrou a demandante demonstrar qualquer uma das hipóteses do § 1º do art. 5º da Lei n. 9.278/1996 para fins de afastar a presunção de condomínio sobre o patrimônio adquirido, ainda que exclusivamente em seu nome, a título oneroso durante a vigência da união estável. Nesse sentido, os precedentes: 352 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Processo Civil. União estável. Partilha. Bem anterior. Sub-rogação. Incomunicabilidade do valor. Prova testemunhal amizade com o filho da parte. Ausência de prequestionamento. Súmula n. 7-STJ. 1. Os bens adquiridos pelos conviventes na constância da união estável e a título oneroso pertencem a ambos em condomínio e em partes iguais, exceto se houver estipulação contrária em contrato escrito ou se a aquisição patrimonial ocorrer com o produto de bens anteriores à união, assim como aqueles que no lugar deles se sub-rogarem. 2. O recurso especial não é sede própria para rever questão referente à inversão do ônus da prova se, para tanto, faz-se necessário reexaminar elementos fáticos. Aplicação da Súmula n. 7-STJ. 3. Recurso especial não-conhecido. (REsp n. 602.199-PB, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 3.9.2009, DJe 14.9.2009). Direito Civil. Família. União estável. Regime de bens. Imóvel adquirido na constância do relacionamento. Esforço comum que se presume. - Não há ofensa ao art. 535 do CPC se, embora rejeitados os embargos de declaração, o acórdão recorrido examinou, motivadamente, todas as questões pertinentes. - É inviável, em sede de recurso especial, o reexame de matéria fática. Incidência da Súmula n. 7, STJ. - O regime patrimonial da união estável implica em se reconhecer condomínio com relação aos bens adquiridos por um ou por ambos os companheiros a título oneroso durante o relacionamento, conforme dispõe o art. 5º da Lei n. 9.278/1996. - A comunicabilidade de bens adquiridos na constância da união estável é regra e, como tal, deve prevalecer sobre as exceções, que merecem interpretação restritiva. - Deve-se reconhecer a contribuição indireta do companheiro, que consiste no apoio, conforto moral e solidariedade para a formação de uma família. Se a participação de um dos companheiros se resume a isto, ao auxílio imaterial, tal fato não pode ser ignorado pelo direito. Recurso parcialmente provido. (REsp n. 915.297-MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13.11.2008, DJe 3.3.2009). Ademais, é certo que a Lei n. 9.278/1996 não exige, como previa o regime anterior, a prova de que a aquisição dos bens decorreu do esforço comum de ambos companheiros para fins de partilha. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 353 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A propósito: Recurso especial. União estável. Reconhecimento judicial. Término da relação após a edição da Lei n. 9.278/1996. Partilha de bens. Impossibilidade de responsabilizar a recorrida pelos débitos da empresa. Recurso especial parcialmente conhecido e nessa parte não provido. 1. Não há que se falar em ofensa ao artigo 535 do CPC, se o Tribunal recorrido examinou as questões pertinentes ao litígio, sabendo-se que ao órgão julgador é suficiente que apresente os fundamentos de sua convicção. 2. Esbarra no óbice na Súmula n. 7-STJ, o exame de afronta ao § 1º do artigo 5º da Lei n. 9.278/1996, alegada ao fundamento de que os bens havidos na constância da união estável, foram adquiridos por sub-rogação. 3. Afirmando o acórdão que inexiste responsabilidade solidária da convivente pelas dívidas da empresa, por não haver a comprovação que qualquer dos débitos tenha sido contraído em data anterior a 1999, época do término da união, impossível se afigura a apreciação dessa matéria em sede de recurso especial. 4. Incontroversa a união estável pelo período de 18 anos, cujo término se deu sob a vigência da Lei n. 9.278/1996, é cabível a partilha dos bens adquiridos durante o convívio. 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. (REsp n. 986.290-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22.2.2011, DJe 28.2.2011 - grifou-se). Direito Civil. Família. União estável. Regime de bens. Imóvel adquirido na constância do relacionamento. Esforço comum que se presume. - Não há ofensa ao art. 535 do CPC se, embora rejeitados os embargos de declaração, o acórdão recorrido examinou, motivadamente, todas as questões pertinentes. - É inviável, em sede de recurso especial, o reexame de matéria fática. Incidência da Súmula n. 7, STJ. - O regime patrimonial da união estável implica em se reconhecer condomínio com relação aos bens adquiridos por um ou por ambos os companheiros a título oneroso durante o relacionamento, conforme dispõe o art. 5º da Lei n. 9.278/1996. - A comunicabilidade de bens adquiridos na constância da união estável é regra e, como tal, deve prevalecer sobre as exceções, que merecem interpretação restritiva. - Deve-se reconhecer a contribuição indireta do companheiro, que consiste no apoio, conforto moral e solidariedade para a formação de uma família. Se a participação de um dos companheiros se resume a isto, ao auxílio imaterial, tal fato não pode ser ignorado pelo direito. 354 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Recurso parcialmente provido. (REsp n. 915.297-MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13.11.2008, DJe 3.3.2009 - grifou-se). Consectariamente, o acórdão recorrido não comporta reparos porquanto, consignando não estarem configuradas as exceções previstas no § 1º do art. 5º da Lei n. n. 9.278/1996, vai ao encontro do entendimento desta Corte Superior acerca do deferimento da partilha dos bens havidos por um ou por ambos companheiros na constância da união estável dissolvida na vigência de referido diploma. Ante o exposto, conheço parcialmente do recurso, mas nego-lhe provimento. É como voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.119.803-MA (2009/0015349-2) Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Recorrente: Cargill Agrícola S/A Advogados: Cristiane Romano e outro(s) Eduardo José Leal Moreira e outro(s) Leonardo Pimentel Bueno Recorrido: Devanir Bazoni e outro Advogados: Rogério Reis de Avelar Aldo de Mattos Sabino Junior e outro(s) Andre Barroso Lopes Moura Ferraz EMENTA Recurso especial. Direito Processual Civil. Violação do art. 535 do CPC. Não ocorrência. Mera aplicação do direito considerado cabível à espécie. Afastamento. Títulos de crédito. Cédula de produto rural. Endosso. Entrega do produto à cooperativa endossante. Quitação. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 355 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Validade reconhecida no acórdão recorrido. Recurso especial que não ataca todos os fundamentos. Inviabilidade. Súmula n. 283-STF. Art. 940 do CC. Má-fé na cobrança judicial. Reconhecimento pelo Tribunal de origem. Motivação suficiente. Reexame em sede de recurso especial. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. Art. 940 do CC. Pena tarifada. Base de cálculo. Observância estrita. Indenização exorbitante. Revisão. Necessária correlação com o valor da dívida paga e com os danos presumidamente sofridos. Art. 944 do CC. Regra geral. Aplicação. 1. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o Tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível à hipótese, apenas não no sentido pretendido pela parte. 2. Apesar de a cédula de produto rural haver sido endossada para a recorrente e de haver prova da efetiva entrega do produto, o acórdão recorrido considerou válida a quitação dada pela cooperativa na cédula firmada pelos produtores-recorridos por dois fundamentos: nulidade do endosso e impossibilidade de a recorrente desconhecer a entrega, pelas peculiaridades do caso. Se o recurso especial não ataca os dois fundamentos, incide o óbice da Súmula n. 283-STF. 3. Se o acórdão recorrido efetivamente apresenta as razões pelas quais entendeu ter havido má-fé na cobrança, mostra-se inviável o recurso especial (Súmula n. 7-STJ). 4. Conquanto represente pena e imponha indenização tarifada, cuja base de cálculo equivale ao dobro do valor cobrado por dívida já paga, por dizer respeito a espécie de responsabilidade civil, a aplicação do art. 940 do CC não pode resultar em condenação exorbitante, sem nenhuma correlação com a dívida quitada e com os danos sofridos. O valor indenizado, ainda que presumido por lei, conforme a regra geral do art. 944 do CC, deve sempre estar relacionado com a extensão do dano. 5. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Sra. Ministra Nancy Andrighi, 356 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA a Turma, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial. Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Massami Uyeda, Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente nesta assentada, o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília (DF), 3 de maio de 2012 (data do julgamento). Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator DJe 13.9.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial interposto com fundamento no art. 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, assim ementado (fl. 702, e-STJ): Processual Civil. Cédula de Produto Rural. Entrega da mercadoria conforme o disposto no título. Existência de endosso. Quitação pela empresa que endossou o título. Possibilidade. Repetição de indébito. Comprovação de má-fé. Inscrição do nome em órgão de proteção ao crédito. Inscrições anteriores. Dano moral. Ocorrência. Honorários advocatícios. Requisitos para fixação. Art. 20, § 3º, do CPC. I - A mercadoria dada em garantia de Cédula de Produto Rural deve ser entregue no local e prazo fixados no título, embora haja endosso do título entre a Cooperativa que a recebeu e deu a quitação e o Banco com o qual firmara contrato de depósito. II - Conforme precedentes do c. STJ, para que haja a repetição do indébito é necessária a demonstração de má-fé por parte do credor, circunstância dos autos. III - A existência de inscrições anteriores em cadastros de proteção ao crédito em nome do postulante dos danos morais não exclui a indenização, dado o reconhecimento da existência de lesão. Precedente do STJ. IV - O § 3º, do art. 20, do CPC, dispõe que os honorários serão fixados entre o mínimo de 10% e o máximo de 20% sobre o valor da condenação, atendidos: a) o grau de zelo do profissional; b) o lugar de prestação do serviço; c) a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço, cabendo ao magistrado, de acordo com as circunstâncias da causa, determiná-los. V - Recurso parcialmente provido. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 357 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Na origem da controvérsia, Cargill Agrícola S.A., ora recorrente, e a Cooperativa Agropecuária Batavo do Nordeste Ltda., ora recorrida, firmaram contrato de compra e venda de soja a granel, a preço fixo (fls. 88-91, e-STJ). Pela avença, a primeira comprometeu-se a adquirir 25.000.000 kg (ou 25 mil toneladas) de soja da safra 2002/2003, a serem disponibilizados pela cooperativa até 30.5.2003 em seus armazéns (mediante contrato de depósito entre as partes), a quem se adiantou o preço contratado. Para lastrear mencionado adiantamento, foram entregues pela cooperativa à recorrente, por endosso e aval, trinta e uma Cédulas de Produto Rural - CPR, cuja soma totalizava 26.539.500 kg (ou 26,53 mil toneladas) de soja, nas quais se incluia aquela firmada pelos recorridos. De acordo com a referida cédula, aos recorridos cabia a entrega à cooperativa de 1.020.000 kg (ou 1,02 mil toneladas) do produto até 30.5.2003. Vencido o prazo, não recebendo o total contratado (25 mil toneladas), a recorrente entendeu por bem buscar judicialmente o pactuado, a fim de que lhe fosse entregue a soja faltante, equivalente a 8.236.240 kg (ou 8,26 mil toneladas). Em 20.10.2003, a recorrente ajuizou execução embasada nos títulos (fls. 62-77, e-STJ) arrolando no polo passivo, como devedores solidários (art. 46 do Código de Processo Civil - CPC), a cooperativa e os trinta e um produtores firmatários das CPRs endossadas. Na petição inicial, mencionou a quantidade de produto prevista em cada cédula, sem especificar, contudo, quanto de cada uma havia sido entregue. Requereu a citação dos executados para que entregassem o produto em dez dias ou depositassem o bem em juízo se pretendessem embargar a execução. Pugnou, para o caso da não entrega, pela expedição de mandado de busca e apreensão e, uma vez não localizado o produto, a conversão da execução em execução por quantia certa, com apuração dos valores correspondentes ao produto sonegado, na forma do art. 627 do CPC. Valorou a causa em R$ 4.529.932,10 (quatro milhões, quinhentos e vinte e nove mil, novecentos e trinta e dois reais e dez centavos), valor do produto faltante segundo o montante praticado no contrato. Citados, os executados apresentaram exceção de pré-executividade que, apesar de rejeitada em primeiro grau, foi acolhida pelo Tribunal de Justiça em agravo de instrumento, sob o argumento de que os títulos que embasavam a ação careciam de liquidez porquanto não traziam no verso anotações acerca 358 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA da parte da soja recebida, sendo impossível, por isso, exigir-se o saldo sem dita especificação (fls. 348-350, e-STJ). Foi então que os recorridos ingressaram com a ação ordinária a que diz respeito o presente recurso. No primeiro grau, a causa foi julgada improcedente (fls. 60-66, e-STJ). Em grau de apelação (fls. 702-714, e-STJ), o Tribunal deu provimento ao recurso, reconhecendo a quitação da dívida representada pela CPR, ao argumento de que houve a efetiva entrega do produto, além da nulidade do endosso. Entendeu o Tribunal de origem, ainda, que a recorrente agiu de má-fé ao acionar os recorridos solidariamente com outros produtores, justificando que demandou a cobrança de dívida que deveria saber ter sido paga, pois havia firmado contrato de depósito com a cooperativa, para quem a mercadoria foi entregue. Com fundamento no art. 940 do CC, condenou a recorrente a pagar, a título de indenização, o dobro do valor cobrado na execução, que era de R$ 4.529.932,10 (quatro milhões, quinhentos e vinte e nove mil, novecentos e trinta e dois reais e dez centavos). Como reposição dos danos morais sofridos por conta de restrição cadastral, condenou também a recorrente a pagar o valor de R$ 8.000,00 (oito mil reais). Os embargos declaratórios opostos pela recorrente foram rejeitados. No recurso especial, a recorrente alegou violação dos seguintes dispositivos: (a) art. 535 do Código de Processo Civil - CPC, por negativa de prestação jurisdicional no julgamento dos embargos declaratórios, pois a Corte de origem não teria se manifestado a respeito da influência do art. 884 do Código Civil CC no arbitramento da pena imposta, qual seja, o pagamento, em razão da máfé na cobrança, do equivalente do dobro da quantia demandada judicialmente (art. 940 do Código Civil - CC); (b) art. 893 do CC, c.c. art. 10 da Lei n. 8.929/1994, pois, como a cédula de produto rural - CPR havia sido endossada pela cooperativa à recorrente, sua legítima quitação dar-se-ia pela devolução do título mediante a entrega regular do produto, o que não teria ocorrido; por isso, não havendo como presumir a satisfação da dívida, tendo sido dada por terceiro (a cooperativa), não há falar em quitação idônea; (c) art. 940 do CC, por três aspectos: (i) a recorrente não cobrou “dívida já paga”, mas executado obrigação de dar coisa incerta pela mercadoria não recebida; (ii) por não haver provas de que agiu com má-fé em tal demanda; e RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 359 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (iii) por se ver obrigada a pagar aos recorridos quantia exorbitante, equivalente ao dobro do valor da execução ajuizada (de R$ 4.529.932,10 - quatro milhões, quinhentos e vinte e nove mil, novecentos e trinta e dois reais e dez centavos), apesar de o título dos recorridos equivaler a muitíssimo menos; (d) art. 884 do CC, porque não poderia o Tribunal condenar a recorrente a pagar aos recorridos, como indenização por danos materiais, o dobro do valor executado cumulativamente com danos morais, estes arbitrados em R$ 8.000,00 (oito mil reais), contrariando a vedação de enriquecimento sem causa. Com contrarrazões, o recurso especial foi admitido. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): 1. Da alegada violação do art. 535, II, do Código de Processo Civil. Não se vislumbra a alegada contrariedade, porquanto, no julgamento dos embargos declaratórios, o Tribunal de origem abordou todos os pontos levantados pela embargante, motivando adequadamente sua decisão e solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entendeu cabível à hipótese, apenas em sentido contrário às pretensões da parte. Ora, a falta de referência expressa ao art. 884 do CC deu-se, certamente, porque a Corte de origem considerou a regra inaplicável. De fato, o acerto dessa decisão será demonstrado mais adiante. Por isso, a mera circunstância de o acórdão, ao resolver os embargos declaratórios, não ter se referido expressamente ao dispositivo citado não induz a negativa de serviço jurisdicional, motivo pelo qual o inconformismo não prospera no ponto. 2. Da alegada violação do art. 10 da Lei n. 8.929/1994, c.c. o art. 893 do CC. Não viceja também a alegação de negativa de vigência dos artigos citados, porque o recurso padece de vício que impede seu conhecimento no ponto por deficiência de fundamentação. É que para acolher como válida a quitação dada pela cooperativa aos recorridos, aliada à prova do efetivo cumprimento das obrigações, o Tribunal 360 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA invocou dois fundamentos: (i) o endosso padecia de vício que comprometia sua validade, pois não foi realizado no próprio título, e (ii) as peculiaridades do caso, como a falta de notificação sobre o endosso e a existência de contrato de depósito entre a cooperativa e a recorrente, impediam a recorrente de alegar desconhecimento acerca do produto que teria sido entregue pelos produtores. A propósito, atente-se ao seguinte trecho da decisão recorrida: Quanto à declaração de quitação da dívida, ressalto que, a meu ver, restou plenamente provado que os apelantes cumpriram com a obrigação constante da CPR de n. 22/2002, vez que os grãos de soja que lhes competiam entregar (1.020.000 Kg) foram entregues na data e no local designado na cédula, qual seja, armazém localizado em Gerais de Balsas, de propriedade da Cooperativa Agropecuária Batavo Nordeste Ltda., tendo sido dada, inclusive, a competente quitação desta que era a sua credora originária, conforme documento de fl. 55, documento que, inclusive, não foi contestado pela ora apelada. Ao que se denota dos autos, a controvérsia sob exame reside precisamente no fato de saber se, uma vez “endossado” o título à apelada, tem ou não validade a referida quitação, mormente diante do que estabelece o art. 10, inciso I, da Lei n. 8.929/1994, que institui a Cédula de Produto Rural e segundo o qual “o endosso deve ser completo”. Em razão deste dispositivo, a apelada, considerando ter havido o endosso, entende que somente ela poderia dar a quitação da CPR aos apelantes, já que nessa hipótese teria havido transferência de propriedade do título – o que legitimaria a execução tomada por ela e, porventura, seu aponte nos cadastros restritivos. No entanto, as circunstâncias aqui trazidas indicam que outro foi o contexto em que tais títulos foram “endossados” à apelada. Conforme se observa do documento de fl. 138, tem-se que o endosso padece de vício formal, pois não foi o mesmo realizado no próprio título, o que, no mínimo, acarretaria em sua invalidade. Mais ainda, afirma a apelada não ter recebido por parte dos apelantes as sojas oriundas da CPR n. 22/2002, ou que as mesmas não lhes foram entregues em sua totalidade. (...). O fato é que a apelada firmou com a Cooperativa Batavo, contrato de depósito (fls. 315 e 316, Vol. II), ficando esta última como depositária da primeira. Ora, se a apelada tinha este contrato com a Cooperativa, que além de credora originária era sua fiel depositária, não há como se vislumbrar não ter a apelada recebido o que pactuado no referido título. (...). Ora, na ausência da comunicação a respeito, como exigir dos apelantes que fizessem o pagamento ao então detentor do título? Responde-se: até onde lhes RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 361 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA era dado saber que o título fora endossado, já que era a Cooperativa credora daquela mercadoria que recebeu no local e prazos assinalados. (grifou-se). Ocorre que o argumento da invalidade do endosso, capaz, por si só, de prejudicar a pretensão da recorrente, não foi atacado no recurso especial e resta, por isso, incólume. Assim sendo, como o acórdão recorrido utilizou-se de mais de um fundamento suficiente para ser mantido, não tendo a recorrente atacado todos eles especificamente, o conhecimento do apelo esbarra na Súmula n. 283-STF: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles.” Nessa linha são os precedentes: Processo Civil. Recurso especial. Execução de cédula rural hipotecária. Embargos à execução improcedentes. Honorários advocatícios. Supressão ex officio. Reformatio in pejus. Possibilidade de dupla condenação em honorários. (...). 2. Não merece ser conhecido o recurso especial que deixa de impugnar fundamento suficiente, por si só, para manter a conclusão do julgado. Inteligência da Súmula n. 283 do STF. (...) 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (REsp n. 1.051.339-ES, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 6.10.2011). Processual Civil. Agravo regimental no recurso especial. Ação rescisória. Prazo decadencial. Termo inicial. Fundamento inatacado. 1. - “O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial” (Súmula n. 401-STJ). 2. - Ausente impugnação a fundamentos do acórdão recorrido, aplica-se a Súmula n. 283 do Supremo Tribunal Federal. 3. - Agravo Regimental improvido. (AgRg no n. REsp n. 556.568-PE, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 22.9.2011). 3. Da alegada violação do art. 940 do CC por não haver provas de que agiu com má-fé na ação nem de que demandou por dívida comprovadamente paga. Nesses aspectos, os inconformismos também não têm fundamento. Segundo consta expressamente do acórdão recorrido, o Tribunal firmou seu 362 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA entendimento no contexto das provas dos autos, fazendo mais do que meramente afirmar presente a má-fé. Justificou o porquê de entender dessa forma. Veja-se: (...) Ressalto, ainda, ser pertinente incidir à espécie o disposto no art. 940 do CC, ou seja, a repetição do indébito, vez que verifico a existência da má-fé por parte da apelada quando da cobrança do que entendeu devido, posto ter firmado contrato de depósito com a Cooperativa Batavo, ficando esta última como fiel depositária da primeira, o que demonstra ter a apelada recebido o pactuado. Mesmo assim, a recorrida objetivou a cobrança de dívida já paga, conforme já demonstrado acima (fl. 711, e-STJ) (grifou-se). Assim, como o acolhimento das teses demandam o revolvimento do quadro fático-probatório dos autos, incide o óbice da Súmula n. 7-STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.” A propósito: Agravo regimental. Agravo de instrumento. Descontos indevidos em contacorrente. Má-fé da instituição financeira reconhecida no acórdão recorrido. Determinação de devolução em dobro. Afastamento. Reexame do conjunto fático-probatório. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. Decisão agravada mantida. Agravo improvido. 1. - Ultrapassar os fundamentos do acórdão e acolher a tese sustentada pelo Agravante, afastando a aplicação da penalidade prevista no artigo 42, do CDC, demandaria inevitavelmente, o reexame de provas, incidindo o óbice da Súmula n. 7 desta Corte. 2. - Agravo Regimental improvido. (AgRg no Ag n. 1.327.819-RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 10.11.2011). Agravo regimental. Processual Civil e Civil. Repetição em dobro do indébito. Necessidade de comprovação da má-fé. Precedentes. Revisão. Impossibilidade. Súmula n. 7 do STJ. Dissídio não demonstrado. Recurso não provido. 1. Nos termos da consolidada jurisprudência desta Corte, a devolução em dobro do valor indevidamente recebido depende da constatação da má-fé, dolo ou malícia por parte do credor. 2. Para se modificar a conclusão do Tribunal de origem, no sentido de inexistência de má-fé, dolo ou malícia, seria necessário o reexame de provas, providência vedada pelo óbice da Súmula n. 7-STJ. (...). 4. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp n. 1.190.608-PB, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 26.10.2011). RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 363 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Processual Civil. Agravo regimental. Agravo em recurso especial. Execução de cédulas rurais pignoratícias. Quitação da dívida e má-fé do exequente. Não ocorrência. Sucumbência recíproca. Honorários advocatícios. Reexame. Súmula n. 7-STJ. Divergência jurisprudencial. Ausência de demonstração. Não provimento. 1. A conclusão de que o exequente não agiu de má-fé e de que parte dos títulos, não apresentados com a inicial da execução, foram objeto de confissão pelo devedor não pode ser revertida sem reexame do conteúdo fático da demanda, prática que em sede de recurso especial que enfrenta o veto do Enunciado n. 7 da Súmula do STJ. (...) 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AREsp n. 4.400-PE, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe 1º.2.2012). 4. Da alegada violação do art. 940 pelo fato de a recorrente ter executado obrigação de dar coisa incerta, pela mercadoria não recebida, e não ter cobrado “dívida já paga”. A circunstância aventada pela recorrente considera a hipótese de que o dispositivo em questão seria aplicável às dívidas pecuniárias, o que, todavia, não procede. Ora, a bem da coerência do sistema de normas que regem o direito das obrigações, é certo que o mencionado artigo de lei se destina a proteger o devedor genericamente considerado, isto é, aquele sobre o qual recai uma obrigação, pois por “dívida” se entende o “ato ou prestação a que está adstrito o sujeito passivo da relação obrigacional. A dívida, por outras palavras, consiste no objeto das obrigações” (in Enciclopédia Saraiva de Direito/Org. Rubens Limongi França. São Paulo: Saraiva, 1997. Vol 29, p. 30). Desse modo, o dispositivo se presta a proteger aquele que cumpre suas obrigações do credor que, violando a boa-fé, pauta-se de modo desatento e irresponsável em relação ao pagamento, pensando recair sobre o devedor todos os ônus para provar sua quitação pela simples condição que lhe é ínsita. Não fosse isso, é sabido que o não cumprimento das obrigações de dar coisa incerta dá margem a perdas e danos (arts. 389 e 947 do CC), podendo a respectiva execução, inclusive, converter-se em execução por quantia certa, nos termos do art. 672 do CPC (REp n. 327.650-MS, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, DJ 6.10.2003, p. 273), como, aliás, pretendeu a recorrente na demanda executória. 364 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Tais aspectos mostram que ditas obrigações se revestem, e não raro assim de fato ocorre, de caráter nitidamente econômico, gozando por vezes de indiscutível liquidez, como é o caso de commodities do mercado agrícola, de que trata a ação. Dessa forma, seja por interpretação literal ou pelo aspecto teleológico da regra, não se revela idônea a diferenciação proposta pela recorrente para efeito de afastar a incidência do art. 940 do CC. 5. Da contrariedade ao art. 940 do CC no que se refere ao montante da indenização arbitrada. Nesse ponto assiste razão à recorrente, mas a solução, contudo, passa à margem da aplicação do art. 884 do CC, outro dispositivo alegadamente violado, pelos motivos adiante explicitados. Como defendido pela própria recorrente, o art. 940 do CC é regra de responsabilidade civil (em sentido lato, pois afeta à modalidade contratual) e não se afeiçoa de nenhum modo com o enriquecimento sem causa (art. 884 do CC), que constitui espécie distinta de obrigação. A propósito da repartição do direito das obrigações, Fernando Noronha assim classifica (in “Enriquecimento sem causa”. Revista de Direito Civil, São Paulo, n. 56, p. 51): Temos para nós que a divisão fundamental dos direitos de crédito, ou obrigações (e, por conseguinte, também do Direito das Obrigações) é tripartida: obrigações negociais, de responsabilidade civil e de enriquecimento sem causa. As primeiras (negociais) nascem dos contratos ou de negócios jurídicos unilaterais e nelas tutela-se o interesse do credor na realização da sua expectativa de alteração patrimonial, fundada no compromisso assumido no âmbito da autonomia privada. As segundas (responsabilidade civil em sentido estrito) nascem da prática de atos danosos, com violação do dever geral de neminem laedere, e nelas tutela-se o interesse do credor na reparação dos danos sofridos, repondo-se o seu patrimônio (quando o dano seja patrimonial) no status quo ante. As terceiras (enriquecimento sem causa) nascem da apropriação por outrem, ou do mero aproveitamento por outrem, ainda que não doloso nem culposo, de bens que o ordenamento jurídico destina (reserva) ao titular respectivo e nelas tutela-se o interesse do credor na reversão para o seu patrimônio dos bens, ou do valor do aproveitamento obtido à “sua custa”, mesmo quando ele nenhum dano (isto é, redução patrimonial) haja sofrido. As obrigações negociais nascem de compromissos assumidos no âmbito da autonomia privada, a responsabilidade civil (em sentido estrito) tem por causa a RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 365 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA danificação de bens alheiros e o enriquecimento sem causa nasce dos benefícios auferidos com a intervenção não justificada na esfera jurídica alheia. Como se vê, malgrado se possa cogitar de divergências conceituais, a hipótese dos autos nitidamente não diz respeito ao enriquecimento sem causa, porquanto o direito dos recorridos de obter a indenização pretendida (indenização esta previamente estipulada em um patamar mínimo pelo legislador com a regra do art. 940) adveio de causa muito bem definida, qual seja, a violação, pelo credor, de um dever correlato à boa-fé, do cuidado que deveria guardar no momento em que o devedor apresentou-se para satisfazer a obrigação. A respeito colhe-se a doutrina de Hamid Charfa Bdine Jr. (in “Código civil comentado: doutrina e jurisprudência”. Barueri: Manole. 3 ed. 2009. p. 867): (...) A ausência de causa jurídica é o requisito mais importante para o reconhecimento do enriquecimento sem causa. Não haverá enriquecimento sem causa quando o fato estiver legitimado por um contrato ou outro motivo previsto em lei. Somente quanto não houver nenhum destes dois fundamentos é que haverá ilicitude no locupletamento. Portanto, ao defender a impossibilidade de condenação cumulativa de danos materiais com morais (tese, ademais, totalmente superada pela Súmula n. 37-STJ que diz serem “(...) cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”), a alegação de contrariedade do art. 884 do CC se encontra dissociada da controvérsia, pois o inconformismo está centrado, na realidade, na desconsideração dos arts. 186 e 944 do CC no arbitramento da pena de que trata o art. 940, como se observa da lição de Pontes de Miranda (in “Tratado de Direito Privado”. Campinas: Bookseller. 2008. v. 54, p. 94), quando regia a matéria o Código Civil de 1916: Abstração do elemento subjetivo do dano. O art. 1.530 e o art. 1.531 do Código Civil abstraem do dano, que possa ter existido. Trata-se de pena privada. Se dano houve, (...), a ação pode ser a de indenização pelo ato ilícito conforme os princípios gerais (arts. 159 e 1.518). (...). Quando o demandado pede a aplicação do art. 1.530 e ou do art. 1.531, pode pedir, como plus, a indenização por ter sofrido danos. A pretensão é outra, sem que se possa ser incabível acumulação. Adentrando-se especificamente a natureza da obrigação prevista no art. 940 do CC, correlato ao art. 1.531 do Código Civil de 1916, convém atentar 366 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA às seguintes considerações de Maria Helena Diniz (in “Análise Hermêutica do art. 1.531 do Código Civil e dos arts. 16 a 18 do Código de Processo Civil”. Jurisprudência Brasileria. v. 147, p. 14-15): Essa responsabilidade civil constitui uma sanção civil, por decorrer de infração de norma de direito privado, cujo objetivo é o interesse particular e, em sua natureza, é compensatória, por abranger reparação do prejuízo decorrente de cobrança indevida. Por isso, tem dupla função: garantir o direito do lesado à segurança, protegendo-o contra exigências descabidas e servir como meio de reparar o dano, exonerando o lesado do ônus de provar a ocorrência da lesão. (...). O suporte fático da cobrança a que se refere o art. 1.531 do Código Civil é a dívida. É preciso assinalar, de antemão, que se deve repelir toda e qualquer interpretação extensiva dessa norma por conter pena rigorosa. Além disso, sob o prisma lógico não será considerado como bom critério interpretativo aquele que implicasse inculcar em desfavor de uma parte ônus excessivos, extraindo do art. 1.531 do Código Civil vantagens desmesuradas para uma das partes, lançando encargos demasiados às custas da outra. Ao se interpretar o art. 1.531 do Código Civil, dada a suma gravidade da pena nele prevista, deve-se buscar o sentido e alcance, pondo-o em conexão com as normas, fatos e valores que compõem o direito, levando em conta o precedente e o subsequente comportamento dos litigantes. É imprescindível que se entenda os termos do art. 1.531 do Código Civil de modo que realize equânime temperamento dos interesses em jogo. Ante o rigor da penalidade imposta por esse dispositivo legal deve-se interpretá-lo restritivamente, limitando-se sua incidência, impedindo a produção dos efeitos indesejáveis ou injustos. No caso dos autos, a indenização imposta pelo Tribunal de origem resultou em favor dos recorridos, em uma indenização superior a R$ 9.000.000,00 (nove milhões de reais), resultado da dobra de R$ 4.529.932,10 (quatro milhões, quinhentos e vinte e nove mil, novecentos e trinta e dois reais e dez centavos), valor dado à execução apresentada solidariamente contra os requeridos, a cooperativa e demais produtores, pela não entrega de 8.236.240 de kg (8,23 mil toneladas) de soja. Já a quantidade de soja entregue pelos recorridos em conformidade com a CPR por eles firmada, foi de 1.020.000 de kg (1,02 mil toneladas) RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 367 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A partir desses dados é possível extrair, mediante aplicação de simples “regra de três”, que, ao tempo do ajuizamento da ação, tal quantidade de produto equivalia a R$ 561.000,02 (quinhentos e sessenta e um mil reais e dois centavos). Desse modo, malgrado terem realmente suportado, assim como os demais trinta produtores, a cobrança de R$ 4.529.932,10 (quatro milhões, quinhentos e vinte e nove mil, novecentos e trinta e dois reais e dez centavos), comparando o valor da cédula dos recorridos, de R$ 561.000,02, com a indenização obtida, de R$ 9.059.864,20 (nove milhões, cinquenta e nove mil, oitocentos e sessenta e quatro reais e vinte centavos), percebe-se que a desproporção é gritante, equivalente a dezesseis vezes o valor do título. É sabido que trata-se de pena a regra do art. 940 do CC e, por isso, pode ser aplicada “ainda que o devedor não experimente prejuízo, ou mesmo quando o prejuízo por ele porventura experimentado seja bastante inferior à cifra a lhe ser paga,” como leciona Sílvio Rodrigues (in “Direito Civil”. São Paulo: Saraiva, 20 ed. 2003. p. 36). Todavia, diante das peculiaridades do caso dos autos, apesar de se tratar de indenização cujos parâmetros são trazidos pela própria lei (dita “tarifada”), porque deve o juiz atender aos fins sociais a que a norma se destina (art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB, Decreto-Lei n. 4.657/1942) e ser pena também decorrente de ilícito, não há como afastar, na hipótese, os demais preceitos gerais da responsabilidade civil. E entre eles vigora o de que a indenização se mede pela extensão do dano (art. 944 do CC). Atento a tais parâmetros, sob nenhum aspecto se mostra razoável acreditar que os recorridos possam ter suportado dano material sequer próximo ao montante arbitrado, superior a R$ 9.000.000,00 (nove milhões de reais), mesmo a despeito da temeridade da lide como proposta pela recorrente. E nem cabe aqui defender que em tal valor estariam incluídos os danos morais pela alegada severa restrição cadastral que sofreram, porquanto a tal título foi arbitrada indenização específica, de módicos R$ 8.000,00 (oito mil reais), em relação à qual não houve recurso de ambas as partes. Reforça a percepção a respeito da desarrazoabilidade do aresto recorrido a consideração de que se a cada um dos trinta e um produtores fosse assegurado o mesmo direito que o dos recorridos, a recorrente se veria obrigada a desembolsar mais de R$ 270.000.000,00 (duzentos e setenta milhões de reais), cifra cujo absurdo fala por si só. 368 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Nesse passo, não se pode considerar como base da indenização o valor exigido na execução, mas apenas o concernente ao título firmado pelos recorridos, cuja quitação foi considerada efetiva, pena que atende aos princípios que governam o arbitramento das indenizações, e que vem conforme à ratio informadora do art. 940 do CC. Ante o exposto, dou parcial provimento ao recurso especial para restringir a indenização de que trata o art. 940 do CC ao dobro do valor equivalente ao produto referido na Cédula de Produto Rural firmada pelos recorridos, considerado na data em que ajuizada a execução pela recorrente. É o voto. VOTO O Sr. Ministro Massami Uyeda: Sr. Presidente, eu estava aguardando o voto-vista da eminente Ministra Nancy Andrighi, porque, na ocasião, apenas aqui havia sido disponibilizada a ementa. E a ementa do eminente Relator dizia que o valor indenizado, ainda que presumido por lei, conforme a regra geral do art. 944 do Código Civil, deve sempre estar relacionado com a extensão do dano. Então, na verdade, com relação à conclusão a que chega o Sr. Ministro Relator, acompanhado agora pela Sra. Ministra Nancy Andrighi, parece-me que essa análise foi feita adequadamente, porque, senão, iríamos também dar azo, um motivo a um enriquecimento indevido. Acompanho o voto do Sr. Ministro Relator, no sentido de dar parcial provimento ao recurso especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.197.284-AM (2010/0104097-0) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Recorrente: R O dos Santos - Novo Horizonte Advogado: José Carlos Marinho Recorrente: Fundação Nokia de Ensino Advogado: João Batista Lira Rodrigues Junior e outro(s) RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 369 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Recorrido: José Galvão Neto e outro Advogados: Maria Glades Ribeiro dos Santos Rafael Albuquerque Gomes de Oliveira e outro(s) EMENTA Recurso especial. Responsabilidade civil. Acidente de trânsito. Transporte escolar. Morte de criança. Responsabilidade solidária do transportador e da instituição de ensino contratante. Pensionamento. Dano moral. Quantum indenizatório. Dissídio jurisprudencial. Critérios de arbitramento equitativo pelo juiz. Método bifásico. Valorização do interesse jurídico lesado e das circunstâncias do caso. Juros legais moratórios. Taxa Selic. 1. Ação de indenização por danos materiais e morais movida pelos pais de adolescente morto em acidente de trânsito com ônibus escolar na qual trafegava, contando com 14 anos de idade. 2. Responsabilidade solidária da empresa transportadora e da fundação contratante do serviço de transporte escolar dos alunos de suas casas para a instituição de ensino. 3. Afastamento da alegação de força maior diante do reconhecimento da culpa do motorista do ônibus pelas instâncias de origem. 4. Discussão em torno do valor da indenização por dano moral, do montante da pensão e da taxa dos juros legais moratórios. Dissídio jurisprudencial caracterizado com os precedentes das duas Turmas integrantes da Segunda Secção do STJ. 5. Redução do valor da indenização por dano moral na linha dos precedentes desta Corte, considerando as duas etapas que devem ser percorridas para esse arbitramento, para o montante correspondente a 500 salários mínimos. Aplicação analógica do enunciado normativo do parágrafo único do art. 953 do CC/2002. 6. Fixação do valor da pensão por morte em favor dos pais no valor de dois terços do salário mínimo a partir da data do óbito, pois a vítima já completara 14 anos de idade, até a data em que ela completaria 65 anos idade, reduzindo-se para um terço do salário 370 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA mínimo a partir do momento em faria 25 anos de idade. Aplicação da Súmula n. 491 do STF na linha da jurisprudência do STJ. 7. Fixação do índice dos juros legais moratórios com base na Taxa Selic, seguindo os precedentes da Corte Especial do STJ (REsp n. 1.102.552-CE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki). 8. Recursos especiais parcialmente providos. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar parcial provimento aos recursos especiais, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Massami Uyeda. Dr(a). Arthur Lima Guedes, pela parte recorrente: Fundação Nokia de Ensino. Dr(a). Rafael Albuquerque Gomes de Oliveira, pela parte recorrida: José Galvão Neto. Brasília (DF), 23 de outubro de 2012 (data do julgamento). Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator DJe 30.10.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: R O dos Santos - Novo Horizonte e Fundação Nokia de Ensino interpuseram recurso especial no curso da ação de reparação de danos materiais e morais contra elas ajuizada por José Galvão Neto e Fabíola de Paula Galvão, em face de grave acidente automobilístico, ocorrido em 1º de setembro de 2003, na Cidade de Manaus, que causou a morte de seu filho (Bruno de Paula Galvão - nascido em 28.9.1988). Nesse dia, a vítima estava em um ônibus escolar pertencente à empresa Novo Horizonte, que, ao prestar serviços à Fundação Nokia de Ensino, se envolveu em grave acidente de trânsito, quando transportava crianças para estabelecimento da fundação recorrente. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 371 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A vítima ficou hospitalizada por cerca de duas semanas, falecendo no dia 14 de setembro de 2003. Em primeiro grau de jurisdição, os pedidos formulados pelos autores foram julgados procedentes, sendo as rés condenadas solidariamente ao pagamento de indenização por danos morais no valor de 3.000 salários mínimos para cada um dos autores; ao pagamento de pensão por morte no valor de dois salários mínimos até a data em que a vítima completaria 65 anos, reduzindo-se por metade na data em que ela completaria 25 anos de idade. Foi determinada ainda a incidência de juros legais moratórios de 1% ao mês desde 18 de abril de 2004 (data da citação). O Tribunal de Justiça do Estado da Amazonas deu parcial provimento à apelação dos réus para redução da indenização por dano moral para 1.500 salários mínimos para cada um dos autores, confirmando, no mais, a sentença. Os embargos declaratórios opostos foram parcialmente acolhidos para esclarecer que os juros moratórios são de 1% ao mês desde a data da fixação da indenização por danos morais pelo Tribunal e, em relação aos danos materiais, desde a data do evento danoso. Foram interpostos, os presentes recursos especiais pelas duas empresas requeridas. Nas razões do seu recurso especial, a empresa Novo Horizonte sustentou a ocorrência de violação ao art. 884 do CC/2002, postulando a redução do quantum arbitrado a título de indenização por danos morais para o valor equivalente a 500 salários mínimos, para evitar o enriquecimento sem causa, colacionando, para tanto, julgados desta Corte para fins de caracterização do dissídio pretoriano. Postulou ainda a redução do valor da pensão mensal fixada nas instâncias de origem para dois terços do salário mínimo, reduzindo-se para um terço a partir da data em que a vítima completaria 25 anos de idade, e a alteração do índice dos juros moratórios para a Taxa Selic, também na linha da jurisprudência desta Corte. Pediu o provimento do recurso especial. Nas razões do seu recurso especial, a Fundação Nokia reiterou o pedido de redução das parcelas indenizatórias na mesma linha do recurso especial da empresa transportadora. Após relatar as circunstâncias do acidente de trânsito quando o menor, que era aluno da fundação recorrente, era transportado para a escola, acrescentou que o ônibus estava em perfeitas condições e que o fato ocorreu por provável imperícia do motorista, embora fosse devidamente capacitado e habilitado para a função. Sustentou a responsabilidade exclusiva 372 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA do transportador pelo evento danoso, na forma do art. 734 do Código Civil. Alegou a inaplicabilidade do CDC à relação mantida com o “de cujus” e seus pais, que foi estabelecida sem qualquer remuneração, não se aplicando as regras dos arts. 2º, § único, 17 e 29 do CDC. Alegou ainda afronta ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa, em face dos valores das indenizações concedidas pelas instâncias de origem (art. 473 e segs. do CC). Afirmou que não houve análise da situação econômica do “de cujus” e de sua família, tendo sido aplicadas indevidamente “punitive damages”. Impugnou ainda o termo final da pensão, pois a expectativa de vida de um menor de 14 anos de idade seria, segundo o IBGE, 57,6 anos, e não 65 anos de idade. Pediu o provimento do recurso para afastar a responsabilidade solidária e objetiva da fundação recorrente, bem como a redução dos valores concedidos a título de indenização aos pais da vítima. Houve o oferecimento de contra-razões. O Presidente do Tribunal a quo admitiu os recursos especiais na origem. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Relembro, inicialmente, que o filho dos recorridos (Bruno de Paula Galvão - nascido em 28 de setembro de 1988) faleceu em acidente de trânsito, na Cidade de Manaus, no dia 1º de setembro de 2003, quando estava em um ônibus pertencente à empresa transportadora recorrente, que prestava serviços de transporte escolar para Fundação Nokia, sendo conduzido de sua casa para escola. As questões controvertidas devolvidas ao conhecimento desta Corte pelos recursos especiais interpostos pelas duas empresas requeridas situam-se em torno dos seguintes tópicos: a) responsabilidade solidária da fundação recorrente; b) valor da indenização por danos morais; c) valor da pensão por morte; d) taxa de juros legais moratórios incidentes à espécie. Analiso cada questão separadamente, adiantando que o recurso especial merece integral provimento na linha da jurisprudência desta Corte. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 373 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1) Responsabilidade solidária da Fundação Nokia A responsabilidade civil do transportador, contratada pela fundação recorrente para transporte de crianças, é objetiva, na forma do art. 734 do Código Civil, sendo, consequentemente, desnecessária a comprovação de culpa para o seu reconhecimento. O rigor com o tratamento conferido ao transportador deve-se ao reconhecimento da existência de uma cláusula de incolumidade implícita no contrato de transporte. Trata-se do dever de garantir a incolumidade física e patrimonial do passageiro da partida até o seu destino, constituindo uma obrigação de resultado. No caso, porém, as instâncias de origem foram ainda mais longe, reconhecendo a ocorrência de culpa do motorista do ônibus, afirmando a sua imperícia no evento danoso. Na sentença, a Magistrada consignou o seguinte: Extrai-se do Laudo de Exame realizado no local do acidente, pelo Instituto de Criminalística da Polícia Civil, a seguinte conclusão: Ante o exposto, apontam os Peritos Criminais como provável causa determinante da ocorrência que motiva o presente laudo, o desvio direcional à direita, em razão da imperícia e reação retardada por parte do condutor do veículo ônibus de placas JXB-5600, uma vez não constatados elementos que pudessem determinar tivesse o mesmo sua trajetória interceptada por obstáculo móvel a sua dianteira (fl. 28). Portanto, evidente a responsabilidade civil da empresa transportadora. Em relação à responsabilidade solidária, a sentença, ao analisar a legitimidade passiva da Fundação Nokia, consignou o seguinte: Sobressai cristalino, contudo, de uma simples análise dos documentos carreados pelos autores, que o serviço de transporte fornecido aos alunos da Instituição requerida, apesar de prestado pela empresa Novo Horizonte, era monitorado, fiscalizado e regulamentado pela Fundação Nokia de Ensino, sendo os veículos utilizados para tal transporte considerados, expressamente, como “uma extensão da Fundação” (fls. 21). A própria Fundação Nokia de Ensino, em sua contestação, reconheceu a sua gestão sobre o serviço de transporte, ao afirmar que “o transporte escolar, por sua vez, é disponibilizado como uma cortesia por parte da requerida Fundação Nokia de Ensino” (fls. 59). 374 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA É nítida, assim, a responsabilidade que a primeira ré detém sobre aludido serviço, devendo zelar pela sua prestação em condições seguras, por profissionais aptos, habilitados e submetidos a escalas razoáveis de serviço, com observância de todas as regulamentações legais, e sendo por conseguinte responsável por qualquer ilícito indenizável decorrente de sua prestação. Pensar de modo diverso seria permitir que a Fundação Nokia de Ensino pudesse livremente ditar as regras para a utilização do serviço, sem, no entanto, responder pela sua má-prestação, ou pelos riscos advindos da consecução de tal serviço, hipótese que não há de ser acolhida por este juízo. Consequentemente, responde solidariamente com a empresa transportadora a Fundação Nokia que a contratou para a prestação de serviços de transporte escolar, conduzindo seus alunos de suas residências para a escola por ela mantida, atuando como seu preposto, na forma do art. 932, III, do CC de 2002. Basta a incidência das regras do art. 942 e de seu parágrafo único, do CC, para o reconhecimento da responsabilidade solidária da fundação recorrente com a empresa recorrente, não havendo sequer necessidade de invocação das normas dos artigos 2º, 17 e 29 do CDC. De todo modo, na jurisprudência desta Terceira Turma, tem sido reconhecida a possibilidade de aplicação das regras do Código de Defesa do Consumidor no contrato de transporte, consoante se observa da seguinte ementa: Processo Civil, Civil e Consumidor. Transporte rodoviário de pessoas. Acidente de trânsito. Defeito na prestação do serviço. Prescrição. Prazo. Art. 27 do CDC. Nova interpretação, válida a partir da vigência do novo Código Civil. - O CC/1916 não disciplinava especificamente o transporte de pessoas e coisas. Até então, a regulamentação dessa atividade era feita por leis esparsas e pelo CCom, que não traziam dispositivo algum relativo à responsabilidade no transporte rodoviário de pessoas. - Diante disso, cabia à doutrina e à jurisprudência determinar os contornos da responsabilidade pelo defeito na prestação do serviço de transporte de passageiros. Nesse esforço interpretativo, esta Corte firmou o entendimento de que danos causados ao viajante, em decorrência de acidente de trânsito, não importavam em defeito na prestação do serviço e; portanto, o prazo prescricional para ajuizamento da respectiva ação devia respeitar o CC/1916, e não o CDC. - Com o advento do CC/2002, não há mais espaço para discussão. O art. 734 fixa expressamente a responsabilidade objetiva do transportador pelos danos RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 375 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA causados às pessoas por ele transportadas, o que engloba o dever de garantir a segurança do passageiro, de modo que ocorrências que afetem o bem-estar do viajante devem ser classificadas de defeito na prestação do serviço de transporte de pessoas. - Como decorrência lógica, os contratos de transporte de pessoas ficam sujeitos ao prazo prescricional específico do art. 27 do CDC. Deixa de incidir, por ser genérico, o prazo prescricional do Código Civil. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 958.833-RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 8.2.2008, DJ 25.2.2008, p. 1). Portanto, não assiste razão neste tópico à irresignação recursal, tendo o o acórdão recorrido reconhecido corretamente a responsabilidade solidária das duas recorrentes no evento danoso. Finalmente, não há que se cogitar das excludentes da força maior ou do fato exclusivo de terceiro, previstas nos artigos 735 e 735 do Código Civil, pois as instâncias ordinárias expressamente reconheceram a culpa do motorista do ônibus escolar. 2) Pensão por morte Impugnam as recorrentes o valor da pensão fixada pelas instâncias de origem, bem como o seu termo final. Relembro apenas que, em sede doutrinária, tive oportunidade de analisar essa questão relativa à possibilidade de pagamento de pensão em favor dos pais em função da morte de crianças ou adolescentes que ainda não haviam ingressado no mercado de trabalho foi desenvolvida com criatividade pela jurisprudência brasileira (Princípio da Reparação Integral – Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 275-313). A questão relativa à indenizabilidade dos danos decorrentes da morte de uma criança era bastante controvertida na jurisprudência brasileira por não se vislumbrar prejuízo patrimonial efetivo, além das despesas de funeral e de tratamento médico-hospitalar. Como não se admitia também a indenização dos danos morais sofridos pelos familiares, a reparação aos pais ficava restrita ao ressarcimento das despesas indicadas. O argumento contrário a essa indenização, expresso em antigo acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, era simples, sintetizado no seguinte trecho do voto do relator: “Como o falecido, menor com 10 anos de idade, não devia alimentos a quem quer que fosse; pelo contrário, era alimentado por seus pais; não tem cabida a condenação em alimentos”. 376 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA A jurisprudência, entretanto, foi cedendo gradativamente ao argumento de que os filhos menores, nas famílias de baixa renda, representariam um valor econômico potencial e que a sua morte precoce frustraria as expectativas dos pais de sua possível contribuição futura na subsistência doméstica. O STF, que resistia à indenizabilidade do dano moral, sensibilizou-se com essa linha de argumentação e mudou a sua jurisprudência, passando a reconhecer o direito dos pais ao recebimento de uma pensão pela morte do filho menor, em 1966, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 59.940, relatoria do Min. Aliomar Baleeiro, culminando, inclusive, por editar a Súmula n. 491 do STF (“É indenizável o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado”). Após a CF/1988, que consagrou a indenizabilidade do dano moral, a jurisprudência, especialmente do STJ, não apenas continua admitindo essa modalidade de pensionamento em favor das famílias de baixa renda, presumindo o auxílio futuro da vítima menor de idade, como também aceita a sua cumulação com a indenização por danos morais. Esse posicionamento tem sido objeto de crítica doutrinária, pois, após a consagração da indenização por dano moral, não se justificaria mais essa cumulação de parcelas indenizatórias. Cavalieri Filho critica enfaticamente essa posição jurisprudencial, considerando insustentável a concessão de pensionamento aos pais a título de dano patrimonial e afirmando constituir sofisma falar-se em valor econômico potencial e expectativa de alimentos. A crítica não tem procedência, pois o que se está a reparar, em última análise, é a perda de uma chance, visto que o direito à indenização somente é reconhecido em favor de famílias de baixa renda em que a contribuição econômica dos filhos aos pais, em sua velhice, não apenas é fato corriqueiro, mas é necessária à sua manutenção. Não se repara o dano final, mas a chance perdida pelos pais com a morte precoce do filho, o que é uma realidade nas famílias de baixa-renda. Mostra-se, assim, em conformidade com a teoria da perda de uma chance a orientação jurisprudencial dominante ainda hoje no STJ no sentido da concessão de pensão aos pais do menor precocemente falecido, sendo também condizente com o princípio da reparação integral o valor fixado a título de pensionameno, bem como quando se reconhece a possibilidade de cumulação com indenização por danos morais. Ressalte-se também que essa concepção restritiva da jurisprudência nacional de concessão da indenização apenas às famílias de baixa renda mostraRSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 377 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA se adequada, permitindo superar a objeção de que se estaria a indenizar dano hipotético, pois nesses grupos familiares efetivamente é comum a colaboração dos filhos aos pais, especialmente após a aposentadoria destes, quando, em sua velhice, não conseguem mais desempenhar qualquer atividade laboral para complementação da renda doméstica. Indeniza-se, na verdade, a chance perdida pela família de baixa renda de colaboração da criança precoce e abruptamente falecida no reforço da renda doméstica, quando ingressasse no mercado de trabalho. Estabelecida a indenizabilidade dos prejuízos causados pela morte de uma criança, resta fixar quem são os seus pensionistas, a duração da pensão e o seu montante, com base, especialmente, na jurisprudência do STJ. O termo inicial do pensionamento, diferentemente do que ocorre na morte de pessoa adulta, não é, normalmente, o dia do óbito, mas a data em que a vítima ingressaria no mercado de trabalho. Embora, na prática, nas famílias de baixa renda, que, conforme já aludido, são as destinatárias desse pensionamento, as crianças comecem a trabalhar bastante cedo, especialmente no meio rural, o termo inicial da pensão tem sido fixado no momento em que ela legalmente poderiam começar a desenvolver atividades laborativas. Como a Constituição Federal, em seu artigo 7º, inciso XXXVIII, entre os direitos sociais, apenas permite que os adolescentes comecem a trabalhar aos 16 anos, ressalvando a possibilidade de atuarem como aprendizes a partir dos 14 anos de idade, a jurisprudência tem fixado o termo inicial do pensionamento na data em que a vítima completaria 14 anos de idade. A orientação jurisprudencial mostra-se mais uma vez correta, pois concilia a norma constitucional com a realidade social, aproximando o “país formal” do “país real”, conferindo efetividade ao princípio da reparação integral do dano, pois, pelo menos aos 14 anos de idade, nas famílias de baixa renda, os jovens adolescentes passam a colaborar no orçamento familiar. Portanto, no caso da morte de criança ou adolescente, que ainda não ingressara no mercado de trabalho, o termo inicial da pensão é a data em que criança completaria 14 anos de idade e em que passaria a colaborar com o orçamento familiar. No caso, deve-se fixar o termo inicial do pensionamento na data do óbito, pois a vítima já contava com 14 anos de idade na data do evento danoso. 378 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA A fixação do termo final tem-se constituído em questão controvertida, tendo sofrido interessantes e profundas oscilações na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Tradicionalmente, o termo final era fixado na data em que a vítima completaria 25 anos de idade, que seria o momento em que ele sairia de casa e cessaria a sua ajuda econômica aos pais . Ocorre, porém, que a jurisprudência do STJ, sensível à realidade sócioeconômica das famílias mais humildes, emque a colaboração dos filhos é maior exatamente na velhice dos pais, quando recebem parca aposentadoria do INSS e não podem mais trabalhar para complementar o orçamento doméstico, ampliou o termo final para a data em que a vítima completaria 65 anos. Tornou-se, assim, a pensão, praticamente, em uma prestação vitalícia, pois é muito raro que uma pessoa de 65 anos de idade ainda tenha os pais vivos. Em momento posterior, o STJ cedeu em parte nessa posição, acolhendo o argumento no sentido de que, a partir dos 25 anos, quando presumidamente a vítima sairia de casa, o valor da colaboração ao orçamento doméstico também seria reduzido. Com isso, estabeleceu-se que o valor da pensão seria reduzido pela metade a partir da data em que a vítima completaria 25 anos de idade. Chegou-se, assim, a um ponto de equilíbrio, concretizando o princípio da reparação integral a essa situação. A pensão será integral desde a data em que a vítima completaria 14 anos de idade até aquela em que chegaria aos 25 anos, reduzindo-se, então, por metade o seu valor e prosseguindo o seu pagamento até o momento em que implementaria os 65 anos. Essa orientação jurisprudencial mostra-se também adequada com o princípio da reparação integral, uma vez que compatibiliza a duração do pensionamento com a realidade social brasileira. No caso, pretende a fundação recorrente restringir o termo final para a data em que a vítima completaria 57,6 anos, pois, conforme o IBGE, seria a expectativa de vida de um menor de 14 anos do sexo masculino. Embora tenha simpatia pela utilização das tabelas estatísticas do IBGE para fixação do termo final do pensionamento por morte, trata-se de matéria de fato, cuja apreciação por esta instância especial esbarra no óbice da Súmula n. 7-STJ. Deve-se manter, assim, a orientação consolidada desta Corte em fixar o termo final na data em que a vítima completaria 65 anos de idade. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 379 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Outro ponto delicado do pensionamento por morte de criança ou adolescente que ainda não iniciara suas atividades laborativas reside na fixação do valor da pensão. Como não se indeniza o dano potencial ou hipotético, mas a perda de uma chance, não se pode presumir a profissão que a vítima teria na idade adulta, pois se ingressaria no terreno das hipóteses. Além disso, como a vítima e os beneficiários são pessoas integrantes de famílias de baixa renda, o valor da base de cálculo da pensão tem sido arbitrado em um salário mínimo, reduzindo-se de um terço correspondente aos gastos pessoais do falecido. Conseqüentemente, o valor da pensão tem sido arbitrado em dois terços do salário mínimo até a data em que a vítima completaria 25 anos de idade (P = 2/3 SM), reduzindo-se, desde então, para um terço do salário mínimo até o dia em que atingiria 65 anos de idade (P = 1/3 SM). Desse modo, embora o período de pensionamento ser prolongado, o valor da prestação mensal é modesto. Essa solução jurisprudencial de utilizar o valor do salário mínimo como base de cálculo, limitando o valor da pensão, mostra-se correta, em face do princípio da reparação integral, pois não é possível presumir qual seria a renda da vítima quando alcançasse a idade adulta. Se tal ocorresse, estar-se-ia a indenizar um prejuízo hipotético, o que não se mostraria adequado. Relembre-se que a jurisprudência desta Corte é firme nesta linha, bastando a lembrança dos seguintes precedentes, verbis: Processual Civil e Administrativo. Recurso especial. Responsabilidade civil do Estado. Queda em buraco. Ação de indenização. Acidente que causou morte de filho menor dos recorrentes. Pretensão de majorar o valor dos danos morais. Valor não irrisório. Súmula n. 7-STJ. Extensão do período de pensão por danos materiais. 1/3 de salário-mínimo até a idade em que os pais completem 65 anos, conforme pedido recursal. Honorários advocatícios. Súmula n. 7-STJ. 1. Tratam os autos de ação, ajuizada pelos ora recorrentes, de indenização por danos morais e materiais, alegando a responsabilidade do Estado pelo acidente de causou a morte do filho dos recorrentes, à época, com um ano e nove meses. Segundo o acórdão a quo, o referido acidente ocorreu quando a família passeava no canteiro central de uma avenida na cidade de São Paulo e a criança caiu em um buraco que dava acesso a uma galeria pluvial, na qual corria bastante água. Apesar das buscas efetuadas pelo Corpo de Bombeiro, o corpo da criança jamais foi encontrado. 2. Não se conhece do apelo especial pela alínea a do permissivo constitucional, uma vez que o único dispositivo legal apontado como violado (art. 5º da LICC) 380 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA não foi objeto de discussão pelo acórdão a quo, o que acarreta a ausência de prequestionado, incidindo, na espécie, a Súmula n. 282-STF. 3. O Superior Tribunal de Justiça consolidou orientação no sentido de que a revisão do valor da indenização somente é possível quando exorbitante ou insignificante a importância arbitrada, em flagrante violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. No particular, o Tribunal de origem, ao considerar as circunstâncias do caso concreto, as condições econômicas das partes e a finalidade da reparação, entendeu por bem reduzir o valor fixado em sentença, de R$ 450 mil para cada um dos recorrentes, genitores da criança para R$ 50 mil para cada um deles. A pretensão trazida no especial não se enquadra nas exceções que permitem a interferência desta Corte, uma vez que o valor arbitrado não é irrisório em face dos parâmetros adotados por esta Corte para casos semelhantes. Incidência da Súmula n. 7-STJ. 4. Por outro lado, no que concerne ao período de recebimento de pensão a título de danos materiais, a jurisprudência do STJ é no sentido de que essa indenização é devida na ordem de 2/3 de salário-mínimo no período entre 16 e 25 anos do falecido, e, após este período, o valor é reduzido para 1/3 de salário mínimo, sendo tal pensão limitada até o momento em que a vítima faria 65 anos de idade. 5. Entretanto, na hipótese dos autos, impossível dar provimento ao apelo especial para garantir o 1/3 de salário-mínimo até o momento em que a vítima completasse 65 anos. Isso porque, no recurso especial foi requerida a “ampliação do período de incidência do pensionamento deferido, para que o mesmo perdure até a idade de 65 (sessenta e cinco) anos dos genitores da vítima”. 6. Assim, considerando-se o que foi pleiteado no apelo nobre, tem-se que o recurso especial merece provimento para aumentar o período de pagamento de pensão, a títulos de danos materiais, no valor de 1/3 de salário-mínimo, até o momento em que os ora recorrentes completem 65 anos de idade. 7. Este Tribunal possui jurisprudência uníssona pela impossibilidade de revisar o quantum estabelecido em verba honorária, uma vez a análise dos parâmetros estabelecidos nos arts. 20, § § 3º e 4º, do CPC depende do reexame de matéria fático-probatório, o que é vedado, de acordo com o Enunciado n. 7 da Súmula do STJ. 8. A despeito de não haver expressa previsão legal para que a regulação temporal da pensão seja feita pela idade dos genitores da vítima, não há nenhum óbice à concessão do pedido nos moldes em que foi proposto, porquanto a condenação da recorrida será menos gravosa do que aquela decorrente do entendimento preconizado na jurisprudência do STJ. 9. Recurso especial parcialmente conhecido, e, nessa parte, parcialmente provido. (REsp n. 1.094.525-SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 20.10.2009, DJe 23.10.2009). RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 381 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Processual Civil e Administrativo. Responsabilidade civil do Estado. Morte de criança causada por atropelamento de viatura do Estado em serviço. Dano material. Cabimento. Pensionamento mensal. Valor do dano moral. Revisão. Possibilidade quando irrisório ou exorbitante. Recurso especial parcialmente provido. 1. No que se refere ao dano material, a orientação do STJ está consolidada no sentido de fixar a indenização por morte de filho menor, com pensão de 2/3 do salário percebido (ou o salário mínimo caso não exerça trabalho remunerado) até 25 (vinte e cinco) anos, e a partir daí, reduzida para 1/3 do salário até a idade em que a vítima completaria 65 (sessenta e cinco) anos. (REsp n. 1.101.213-RJ, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 2.4.2009). 2. O STJ consolidou orientação de que a revisão do valor da indenização somente é possível quando exorbitante ou insignificante a importância arbitrada, em flagrante violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. (AgRg no Ag n. 894.282-RJ, Rel. Min. Denise Arruda, DJ de 29.11.2007, p. 209). 3. Atentando-se às peculiaridades do caso, em que o acórdão recorrido reconheceu a culpa exclusiva do recorrido, município de pequeno porte do interior do Estado de São Paulo, e, por outro lado, ao fato de se tratar de morte brutal de filha de pais lavradores, com 14 (catorze) anos à época do acidente, mostra-se razoável, para a compensação do sofrimento experimentado pela genitora, majorar o valor da indenização por danos morais fixados em R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais) pelo Tribunal de origem, para R$ 100.000, 00 (cem mil reais), tomando-se como parâmetro os precedentes dessa Corte. 4. Recurso especial parcialmente provido. (REsp n. 976.059-SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 4.6.2009, DJe 23.6.2009). Administrativo. Responsabilidade civil do Estado. Queda da janela do 3ª andar de escola infantil. Morte da criança. Dano moral aos pais e avós. Pensionamento mensal. Correção. 1. Não há violação do art. 535 do CPC quando o Tribunal de origem resolve a controvérsia de maneira sólida e fundamentada, apenas não adotando a tese do recorrente, no caso houve expressa manifestação acerca da legitimidade ativa dos avós. 2. O sofrimento pela morte de parente é disseminado pelo núcleo familiar, como em força centrífuga, atingindo cada um dos membros, em gradações diversas, o que deve ser levado em conta pelo magistrado para fins de arbitramento do valor da reparação do dano moral. 3. Os avós são legitimados à propositura de ação de reparação por dano moral decorrente da morte da neta. A reparação nesses casos decorre de dano individual 382 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA e particularmente sofrido por cada membro da família ligado imediatamente ao fato (artigo 403 do Código Civil). 4. Considerando-se as circunstâncias do caso concreto e a finalidade da reparação, a condenação ao pagamento de danos morais no valor de R$ 114.000,00 para cada um dos pais, correspondendo à época a 300 salários mínimos e de R$ 80.000,00 para cada um dos dois avós não é exorbitante nem desproporcional à ofensa sofrida pelos recorridos, que perderam filha e neta menor, em queda da janela do terceiro andar da escola infantil onde estudava. Incidência da Súmula n. 7-STJ. Precedentes, entre eles: REsp n. 932.001-AM, Rel. Min. Castro Meira, DJ 11.9.2007. 5. No que se refere ao dano material, a orientação do STJ está consolidada no sentido de fixar a indenização por morte de filho menor, com pensão de 2/3 do salário percebido (ou o salário mínimo caso não exerça trabalho remunerado) até 25 (vinte e cinco) anos, e a partir daí, reduzida para 1/3 do salário até a idade em que a vítima completaria 65 (sessenta e cinco) anos. 6. Recurso especial conhecido em parte e provido também em parte. (REsp n. 1.101.213-RJ, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 2.4.2009, DJe 27.4.2009). Agravo regimental. Art. 500 do Código de Processo Civil. Prequestionamento. Ausência. Reexame do conjunto fático-probatório. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. Dano moral. Quantum. Decisão agravada mantida. Improvimento. I. O artigo 500 do Código de Processo Civil, indicado como ofendido, não foi prequestionado, sendo certo que não foram opostos embargos de declaração visando sanar eventual omissão. II. A convicção a que chegou o acórdão recorrido decorreu da análise do conjunto fático-probatório, e o acolhimento da pretensão recursal demandaria o reexame do referido suporte, obstando a admissibilidade do especial à luz da Súmula n. 7-STJ. III. A indenização fixada, pela morte de filho menor, não é absurda, descabendo o dissídio quanto ao tema. IV. O agravante não trouxe qualquer argumento capaz de modificar a conclusão alvitrada, a qual se mantém por seus próprios fundamentos. Agravo improvido. (AgRg no Ag n. 647.569-PE, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 12.8.2008, DJe 3.9.2008). Assim, no caso, seguindo a jurisprudência consolidada do STJ, deve-se reduzir o valor da pensão mensal fixada na origem para dois terços do salário RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 383 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA mínimo até a data em que a vítima completaria 25 anos de idade, reduzindo-se, desde então, para um terço do salário mínimo até o dia em que atingiria 65 anos de idade. 3) Indenização por danos morais Outro tópico de irresignação das duas partes demandadas dirigiu-se contra o valor arbitrado a título de danos morais pelo acórdão recorrido no montante correspondente a 1.500 salários mínimos para cada um dos genitores. Merecem parcial acolhida nesse ponto os dois recursos especiais. A reparação dos danos extrapatrimoniais, especialmente a quantificação da indenização correspondente, constitui um dos problemas mais delicados da prática forense na atualidade, em face da dificuldade de fixação de critérios objetivos para o seu arbitramento. Em sede doutrinária, tive oportunidade de analisar essa questão, tentando estabelecer um critério razoavelmente objetivo para essa operação de arbitramento da indenização por dano moral (Princípio da Reparação Integral – Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 275-313). Na sessão desta Turma de 16 de abril de 2011, tive oportunidade de analisar essa questão perante esta Corte, tendo sido a seguinte a ementa do acórdão: Recurso especial. Responsabilidade civil. Acidente de trânsito. Morte. Dano moral. Quantum indenizatório. Dissídio jurisprudencial. Critérios de arbitramento equitativo pelo juiz. Método bifásico. Valorização do interesse jurídico lesado e das circunstâncias do caso. 1. Discussão restrita à quantificação da indenização por dano moral sofrido pelo esposo da vítima falecida em acidente de trânsito, que foi arbitrado pelo Tribunal de origem em dez mil reais. 2. Dissídio jurisprudencial caracterizado com os precedentes das duas Turmas integrantes da Segunda Secção do STJ. 3. Elevação do valor da indenização por dano moral na linha dos precedentes desta Corte, considerando as duas etapas que devem ser percorridas para esse arbitramento. 4. Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em grupo de precedentes jurisprudenciais que apreciaram casos semelhantes. 384 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 5. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias do caso, para fixação definitiva do valor da indenização, atendendo a determinação legal de arbitramento equitativo pelo juiz. 6. Aplicação analógica do enunciado normativo do parágrafo único do art. 953 do CC/2002. 7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 8. Recurso especial provido. (REsp n. 959.780-ES, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 26.4.2011, DJe 6.5.2011). Tomo a liberdade de expor novamente os fundamentos desse critério bifásico em que se procura compatibilizar o interesse jurídico lesado com as circunstâncias do caso. 3.1) Tarifamento legal Um critério para a quantificação da indenização por dano extrapatrimonial seria o tarifamento legal, consistindo na previsão pelo legislador do montante da indenização correspondente a determinados eventos danosos. A experiência brasileira, porém, de tarifamento legal da indenização por dano moral não se mostrou satisfatória. O próprio CC/1916 continha dois casos de tarifamento legal em seus artigos 1.547 (injúria e calúnia) e 1.550 (ofensa à liberdade pessoal), estatuindo, que, quando não fosse possível comprovar prejuízo material, a fixação de indenização deveria corresponder ao “dobro da multa no grau máximo da pena criminal respectiva”. Esta Corte, em função do valor absurdo alcançado, firmou entendimento, com fundamento nos postulados normativos da proporcionalidade e da razoabilidade, no sentido da inaplicabilidade desse tarifamento legal indenizatório, inclusive porque a remessa feita pelo legislador do CC/1916 à legislação penal era anterior ao próprio Código Penal de 1940, mais ainda em relação à reforma penal de 1984. A recomendação passou a ser no sentido de que os juízes deveriam proceder ao arbitramento eqüitativo da indenização, que foi também a orientação seguida pelo legislador do CC de 2002 ao estabelecer a redação do enunciado normativo do parágrafo único do art. 953: RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 385 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Parágrafo único - Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, eqüitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso. Outra hipótese muito importante de tarifamento legal indenizatório encontrada no Direito brasileiro era a prevista pela Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/1967), que, em seus artigos 49 e segs., regulava a responsabilidade civil daquele que, no exercício da liberdade de manifestação de pensamento e de informação, com dolo ou culpa, causar danos materiais e morais. Em relação aos danos materiais, estabelecia, em seu art. 54, que a indenização tem por finalidade restituir o prejudicado ao estado anterior ao ato ilícito, acolhendo, assim, expressamente o princípio da reparação integral. Porém, em relação aos danos morais, estabelecia, no art. 51, um limite indenizatório, que, para o jornalista profissional, variava entre dois e vinte salários mínimos, conforme a gravidade do ato ilícito praticado. Em relação à empresa jornalística, o valor da indenização, conforme indicado pelo art. 52, poderia ser elevado em até dez vezes o montante indicado na regra anterior. Com isso, o valor máximo da indenização por danos morais por ilícitos civis tipificados na Lei de Imprensa poderia alcançar duzentos (200) salários mínimos. Passou a ser discutida, a partir da vigência da CF/1988, a compatibilidade desse tarifamento legal indenizatório da Lei de Imprensa com o novo sistema constitucional, que, entre os direitos e garantias individuais, em seu art. 5º, logo após regular o princípio da livre manifestação do pensamento, assegurou “o direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” (inciso V ), bem como estabeleceu que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (inciso X). A jurisprudência do STJ, após longo debate, com fundamento no disposto nessas normas do art. 5º, incisos V e X, da CF/1988, firmou o seu entendimento no sentido de que foram derrogadas todas as restrições à plena indenizabilidade dos danos morais ocasionados por atos ilícitos praticados por meio da imprensa, deixando de aplicar tanto as hipóteses de tarifamento legal indenizatório previstas nos artigos 49 a 52, como também o prazo decadencial de três meses estatuído pelo art. 56 da Lei da n. 5.250/1967. Consolidada essa orientação, houve a edição da Súmula n. 281 em que fica expressa essa posição firme do STJ no sentido de que “a indenização por dano moral não está sujeita à 386 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA tarifação prevista pela Lei de Imprensa”. Com isso, com fulcro nas normas constitucionais, a jurisprudência culminou por consagrar a determinação da reparação integral dos danos materiais e morais causados por meio da imprensa. Nessas hipóteses de tarifamento legal, seja as previstas pelo CC/1916, seja as da Lei de Imprensa, que eram as mais expressivas de nosso ordenamento jurídico para a indenização por dano moral, houve a sua completa rejeição pela jurisprudência do STJ, com fundamento no postulado da razoabilidade. 3.2) Arbitramento equitativo pelo juiz O melhor critério para quantificação da indenização por prejuízos extrapatrimoniais em geral, no atual estágio do Direito brasileiro, é por arbitramento pelo juiz, de forma eqüitativa, com fundamento no postulado da razoabilidade. Na reparação dos danos extrapatrimoniais, conforme lição de Fernando Noronha, segue-se o “princípio da satisfação compensatória”, pois “o quantitativo pecuniário a ser atribuído ao lesado nunca poderá ser equivalente a um preço”, mas “será o valor necessário para lhe proporcionar um lenitivo para o sofrimento infligido, ou uma compensação pela ofensa à vida ou integridade física” (NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 569). Diante da impossibilidade de uma indenização pecuniária que compense integralmente a ofensa ao bem ou interesse jurídico lesado, a solução é uma reparação com natureza satisfatória, que não guardará uma relação de equivalência precisa com o prejuízo extrapatrimonial, mas que deverá ser pautada pela eqüidade. Na Itália, Valentina di Gregório, a partir da norma do art. 1.226 do Código Civil italiano, ressalta a presença da eqüidade integrativa, pois a norma confere poderes ao juiz para proceder eqüitativamente à liquidação do dano (lucros cessantes, danos futuros – art. 2.056), inclusive dos danos morais, nos seguintes termos: Art. 1.226 (Valutazione equitativa del danno): “Se il danno non può essere provato nel suo preciso ammontare, è liquidato dal giudice com valutazione equitativa (art. 2.056). Refere Valentina di Gregório que a Corte de Cassação italiana deixa claro que não se trata de decidir por eqüidade, conforme autorizado pelo art. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 387 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 114 do CPC italiano para alguns casos, mas de liquidação eqüitativa do dano, considerando os seus aspectos objetivos, a sua gravidade, o prejudicado, a condição econômica dos envolvidos, deixando claro que, embora a avaliação seja subjetiva, deve ser pautada por critérios objetivos. (GREGORIO, Valentina di. La valutazione eqüitativa del danno. Padova: Cedam, 1999, p. 4). Em Portugal, Almeida Costa chama também a atenção para aspecto semelhante, afirmando, com fundamento no art. 496, n. 3, do CC português, que a indenização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser pautada segundo critérios de eqüidade, atendendo-se “não só a extensão e a gravidade dos danos, mas também ao grau de culpa do agente, à situação econômica deste e do lesado, assim como todas as outras circunstâncias que contribuam para uma solução eqüitativa”. Ressalva apenas que esse critério não se confunde com a atenuação da responsabilidade prevista no art. 494 do CC português (correspondente ao parágrafo único do art. 944 do CC/2002), pois esta norma pode ser utilizada apenas nos casos de mera culpa, enquanto o art. 496, n. 3, mostra-se aplicável mesmo que o agente tenha procedido com dolo (COSTA, Mário Júlio Almeida. Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, 2004, 554). No Brasil, embora não se tenha norma geral para o arbitramento da indenização por dano extrapatrimonial semelhante ao art. 496, n. 3, do CC português, tem-se a regra específica do art. 953, parágrafo único, do CC/2002, já referida, que, no caso de ofensas contra a honra, não sendo possível provar prejuízo material, confere poderes ao juiz para “fixar, eqüitativamente, o valor da indenização na conformidade das circunstâncias do caso”. Na falta de norma expressa, essa regra pode ser estendida, por analogia, às demais hipóteses de prejuízos sem conteúdo econômico (LICC, art. 4º). Menezes Direito e Cavalieri Filho, a partir desse preceito legal, manifestam sua concordância com a orientação traçada pelo Min. Ruy Rosado de que “a eqüidade é o parâmetro que o novo Código Civil, no seu artigo 953, forneceu ao juiz para a fixação dessa indenização” (DIREITO, Carlos Alberto Menezes; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao novo Código Civil: da responsabilidade civil, das preferência e privilégios creditórios. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 13, p. 348). Esse arbitramento eqüitativo será pautado pelo postulado da razoabilidade, transformando o juiz em um montante econômico a agressão a um bem jurídico sem essa natureza. O próprio julgador da demanda indenizatória, na mesma sentença em que aprecia a ocorrência do ato ilícito, deve proceder ao 388 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA arbitramento da indenização. A dificuldade ensejada pelo art. 946 do CC/2002, quando estabelece que, se a obrigação for indeterminada e não houver disposição legal ou contratual para fixação da indenização, esta deverá ser fixada na forma prevista pela lei processual, ou seja, por liquidação de sentença por artigos e por arbitramento (arts. 603 a 611 do CPC), supera-se com a aplicação analógica do art. 953, parágrafo único, do CC/2002, que estabelece o arbitramento eqüitativo da indenização para uma hipótese de dano extrapatrimonial. Com isso, segue-se a tradição consolidada, em nosso sistema jurídico, de arbitrar, desde logo, na mesma decisão que julga procedente a demanda principal (sentença ou acórdão), a indenização por dano moral, evitando-se que o juiz, no futuro, tenha de repetir desnecessariamente a análise da prova, além de permitir que o Tribunal, ao analisar eventual recurso, aprecie, desde logo, o montante indenizatório arbitrado. A autorização legal para o arbitramento eqüitativo não representa a outorga pelo legislador ao juiz de um poder arbitrário, pois a indenização, além de ser fixada com razoabilidade, deve ser devidamente fundamentada com a indicação dos critérios utilizados. A doutrina e a jurisprudência têm encontrado dificuldades para estabelecer quais são esses critérios razoavelmente objetivos a serem utilizados pelo juiz nessa operação de arbitramento da indenização por dano extrapatrimonial. Tentando-se proceder a uma sistematização dos critérios mais utilizados pela jurisprudência para o arbitramento da indenização por prejuízos extrapatrimoniais, destacam-se, atualmente, as circunstâncias do evento danoso e o interesse jurídico lesado, que serão analisados a seguir. 3.3) Valorização das circunstâncias do evento danoso (elementos objetivos e subjetivos de concreção) O arbitramento equitativo da indenização constitui uma operação de “concreção individualizadora” na expressão de Karl Engisch, recomendando que todas as circunstâncias especiais do caso sejam consideradas para a fixação das suas conseqüências jurídicas (ENGISCH, Karl. La idea de concrecion en el derecho y en la ciência jurídica atuales. Tradução de Juan José Gil Cremades. Pamplona: Ediciones Universidade de Navarra, 1968, p. 389). No arbitramento da indenização por danos extrapatrimoniais, as principais circunstâncias valoradas pelas decisões judiciais, nessa operação de RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 389 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA concreção individualizadora, têm sido a gravidade do fato em si, a intensidade do sofrimento da vítima, a culpabilidade do agente responsável, a eventual culpa concorrente da vítima, a condição econômica, social e política das partes envolvidas. No IX Encontro dos Tribunais de Alçada, realizado em 1997, foi aprovada proposição no sentido de que, no arbitramento da indenização por dano moral, “o juiz (...) deverá levar em conta critérios de proporcionalidade e razoabilidade na apuração do quantum, atendidas as condições do ofensor, do ofendido e do bem jurídico lesado”. Maria Celina Bodin de Moraes catalagou como “aceites os seguintes dados para a avaliação do dano moral”: o grau de culpa e a intensidade do dolo (grau de culpa); a situação econômica do ofensor; a natureza a gravidade e a repercussão da ofensa (a amplitude do dano); as condições pessoais da vítima (posição social, política, econômica); a intensidade do seu sofrimento (MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 29). Assim, as principais circunstâncias a serem consideradas como elementos objetivos e subjetivos de concreção são: a) a gravidade do fato em si e suas conseqüências para a vítima (dimensão do dano); b) a intensidade do dolo ou o grau de culpa do agente (culpabilidade do agente); c) a eventual participação culposa do ofendido (culpa concorrente da vítima); d) a condição econômica do ofensor; e) as condições pessoais da vítima (posição política, social e econômica). No exame da gravidade do fato em si (dimensão do dano) e de suas conseqüências para o ofendido (intensidade do sofrimento). O juiz deve avaliar a maior ou menor gravidade do fato em si e a intensidade do sofrimento padecido pela vítima em decorrência do evento danoso. Na análise da intensidade do dolo ou do grau de culpa, estampa-se a função punitiva da indenização do dano moral, pois a situação passa a ser analisada na perspectiva do ofensor, valorando-se o elemento subjetivo que norteou sua conduta para elevação (dolo intenso) ou atenuação (culpa leve) do seu valor, evidenciando-se claramente a sua natureza penal, em face da maior ou menor reprovação de sua conduta ilícita. 390 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Na situação econômica do ofensor, manifestam-se as funções preventiva e punitiva da indenização por dano moral, pois, ao mesmo tempo em que se busca desestimular o autor do dano para a prática de novos fatos semelhantes, punese o responsável com maior ou menor rigor, conforme sua condição financeira. Assim, se o agente ofensor é uma grande empresa que pratica reiteradamente o mesmo tipo de evento danoso, eleva-se o valor da indenização para que sejam tomadas providências no sentido de evitar a reiteração do fato. Em sentido oposto, se o ofensor é uma pequena empresa, a indenização deve ser reduzida para evitar a sua quebra. As condições pessoais da vítima constituem também circunstâncias relevantes, podendo o juiz valorar a sua posição social, política e econômica. A valoração da situação econômica do ofendido constitui matéria controvertida, pois parte da doutrina e da jurisprudência entende que se deve evitar que uma indenização elevada conduza a um enriquecimento injustificado, aparecendo como um prêmio ao ofendido. O juiz, ao valorar a posição social e política do ofendido, deve ter a mesma cautela para que não ocorra também uma discriminação, em função das condições pessoais da vítima, ensejando que pessoas atingidas pelo mesmo evento danoso recebam indenizações díspares por esse fundamento. Na culpa concorrente da vítima, tem-se a incidência do art. 945 do CC/2002, reduzindo-se o montante da indenização na medida em que a própria vítima colaborou para a ocorrência ou agravamento dos prejuízos extrapatrimoniais por ela sofridos. Discute-se, no dano-morte, a possibilidade de redução da indenização, em face da culpa concorrente do falecido. Yussef Cahali, após registrar jurisprudência no sentido da impossibilidade da redução, manifesta-se favoravelmente, entendendo que “seria injusto fazer com que responda por inteiro pelo valor dos danos morais causados por via reflexa aquele que apenas concorreu em parte para a verificação do evento lesivo”, e acrescentando: “quando menos, seria o caso de arbitrar-se mais moderadamente o valor indenizatório, ponderando essa circunstância”. (CAHALI, Yussef Said. Dano moral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 178-179). Na jurisprudência do STJ, em julgados das duas Turmas integrantes da Seção de Direito Privado, tem sido reconhecida a possibilidade de redução da indenização na hipótese de culpa concorrente da vítima falecida: RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 391 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA a) STJ, 4ª T., REsp n. 746.894-SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. DJ 18.9.2006. Valor total da indenização de 250 SM, sendo recurso parcialmente provido para reconhecer a indenização por dano moral, mitigada pela culpa concorrente; b) STJ, 3ª T., REsp n. 773.853-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 10.11.2005, DJ 22.5.2006. Valor total da indenização de R$ 120.000,00 (400 SM) para seis autores, sendo o recurso especial provido para julgar procedente o pedido indenizatório, mas reconhecendo a culpa concorrente; c) STJ, 4ª T., REsp n. 705.859-SP, rel.: Min. Jorge Scartezzini, j. 3.2.2005. Mostra-se correta essa orientação, pois, devendo o juiz proceder a um arbitramento equitativo da indenização, não pode deixar também de valorar essa circunstância relevante, que é a concorrência de culpa da vítima falecida. Essas circunstâncias judiciais, que constituem importantes instrumentos para auxiliar o juiz na fundamentação da indenização por dano extrapatrimonial, apresentam um problema de ordem prática, que dificulta a sua utilização. Ocorre que, na responsabilidade civil, diferentemente do Direito Penal, não existem parâmetros mínimos e máximos para balizar a quantificação da indenização. Desse modo, embora as circunstâncias judiciais moduladoras sejam importantes elementos de concreção na operação judicial de quantificação da indenização por danos. No futuro, na hipótese de adoção de um tarifamento legislativo, poder-seiam estabelecer parâmetros mínimos e máximos bem distanciados, à semelhança das penas mínima e máxima previstas no Direito Penal, para as indenizações relativas aos fatos mais comuns. Mesmo essa solução não se mostra alinhada com um dos consectários lógicos do princípio da reparação integral, que é a avaliação concreta dos prejuízos indenizáveis. De todo modo, no momento atual do Direito brasileiro, mostra-se impensável um tarifamento ou tabelamento da indenização para os prejuízos extrapatrimoniais, pois a consagração da sua reparabilidade é muito recente, havendo necessidade de maior amadurecimento dos critérios de quantificação pela comunidade jurídica. Deve-se ter o cuidado, inclusive, com o tarifamento judicial, que começa silenciosamente a ocorrer, embora não admitido expressamente por nenhum 392 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA julgado, na fixação das indenizações por danos extrapatrimoniais de acordo com precedentes jurisprudenciais, considerando apenas o bem jurídico atingido, conforme será analisado a seguir. 3.4) Interesse jurídico lesado A valorização do bem ou interesse jurídico lesado pelo evento danoso (vida, integridade física, liberdade, honra) constitui um critério bastante utilizado na prática judicial, consistindo em fixar as indenizações por danos extrapatrimoniais em conformidade com os precedentes que apreciaram casos semelhantes. Na doutrina, esse critério foi sugerido por Judith Martins-Costa, ao observar que o arbítrio do juiz na avaliação do dano deve ser realizado com observância ao “comando da cláusula geral do art. 944, regra central em tema de indenização” (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. 5, t.1-2, p. 351). A autora remete para a análise por ela desenvolvida acerca das funções e modos de operação das cláusulas gerais em sua obra A boa-fé no direito privado (São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 330). Salienta que os operadores do direito devem compreender a função das cláusulas gerais de molde a operá-las no sentido de viabilizar a ressistematização das decisões, que atomizadas e díspares em seus fundamentos, “provocam quebras no sistema e objetiva injustiça, ao tratar desigualmente casos similares”. Sugere que o ideal seria o estabelecimento de “grupos de casos típicos”, “conforme o interesse extrapatrimonial concretamente lesado e consoante a identidade ou a similitude da ratio decidendi, em torno destes construindo a jurisprudência certos tópicos ou parâmetros que possam atuar, pela pesquisa do precedente, como amarras à excessiva flutuação do entendimento jurisprudencial”. Ressalva que esses “tópicos reparatórios” dos danos extrapatrimoniais devem ser flexíveis de modo a permitir a incorporação de novas hipóteses e evitar a pontual intervenção do legislador. Esse critério, bastante utilizado na prática judicial brasileira, embora sem ser expressamente reconhecido pelos juízes e Tribunais, valoriza o bem ou interesse jurídico lesado (vida, integridade física, liberdade, honra) para fixar as indenizações por danos morais em conformidade com os precedentes que apreciaram casos semelhantes. A vantagem desse método é a preservação da igualdade e da coerência nos julgamentos pelo juiz ou Tribunal. Assegura igualdade, porque casos RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 393 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA semelhantes recebem decisões similares, e coerência, pois as decisões variam na medida em que os casos se diferenciam. Outra vantagem desse critério é permitir a valorização do interesse jurídico lesado (v.g. direito de personalidade atacado), ensejando que a reparação do dano extrapatrimonial guarde uma razoável relação de conformidade com o bem jurídico efetivamente ofendido. Esse método apresenta alguns problemas de ordem prática, sendo o primeiro deles o fato de ser utilizado individualmente por cada unidade jurisdicional (juiz, Câmara ou Turma julgadora), havendo pouca permeabilidade para as soluções adotadas pelo conjunto da jurisprudência. Outro problema reside no risco de sua utilização com excessiva rigidez, conduzindo a um indesejado tarifamento judicial das indenizações por prejuízos extrapatrimoniais, ensejando um engessamento da atividade jurisdicional e transformando o seu arbitramento em uma simples operação de subsunção, e não mais de concreção. O tarifamento judicial, tanto quanto o legal, não se mostra compatível com o princípio da reparação integral que tem, como uma de suas funções fundamentais, a exigência de avaliação concreta da indenização, inclusive por prejuízos extrapatrimoniais. Na França, a jurisprudência da Corte de Cassação entende sistematicamente que a avaliação dos danos é questão de fato, prestigiando o poder soberano dos juízes na sua apreciação e criticando as tentativas de tarifamento de indenizações (VINEY, Geneviève; MARKESINIS, Basil. La Reparation du dommage corporel: Essai de comparaison des droits anglais e français. Paris: Economica, 1985, p. 48). No Brasil, a jurisprudência do STJ tem respeitado as indenizações por danos extrapatrimoniais arbitradas pelas instâncias ordinárias desde que atendam a um parâmetro razoável, não podendo ser excessivamente elevadas ou ínfimas, consoante será analisado em seguida. Em suma, a valorização do bem ou interesse jurídico lesado é um critério importante, mas deve-se ter o cuidado para que não conduza a um engessamento excessivo das indenizações por prejuízos extrapatrimoniais, caracterizando um indesejado tarifamento judicial com rigidez semelhante ao tarifamento legal. 3.5) Método bifásico para o arbitramento equitativo da indenização O método mais adequado para um arbitramento razoável da indenização por dano extrapatrimonial resulta da reunião dos dois últimos critérios analisados (valorização sucessiva tanto das circunstâncias como do interesse jurídico lesado). 394 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Na primeira fase, arbitra-se o valor básico ou inicial da indenização, considerando-se o interesse jurídico lesado, em conformidade com os precedentes jurisprudenciais acerca da matéria (grupo de casos). Assegura-se, com isso, uma exigência da justiça comutativa que é uma razoável igualdade de tratamento para casos semelhantes, assim como que situações distintas sejam tratadas desigualmente na medida em que se diferenciam. Na segunda fase, procede-se à fixação definitiva da indenização, ajustandose o seu montante às peculiaridades do caso com base nas suas circunstâncias. Partindo-se, assim, da indenização básica, eleva-se ou reduz-se esse valor de acordo com as circunstâncias particulares do caso (gravidade do fato em si, culpabilidade do agente, culpa concorrente da vítima, condição econômica das partes) até se alcançar o montante definitivo. Procede-se, assim, a um arbitramento efetivamente eqüitativo, que respeita as peculiaridades do caso. Chega-se, com isso, a um ponto de equilíbrio em que as vantagens dos dois critérios estarão presentes. De um lado, será alcançada uma razoável correspondência entre o valor da indenização e o interesse jurídico lesado, enquanto, de outro lado, obter-se-á um montante que corresponda às peculiaridades do caso com um arbitramento equitativo e a devida fundamentação pela decisão judicial. O STJ, em acórdão da relatoria da Ministra Nancy Andrighi, fez utilização desse método bifásico para quantificação da indenização por danos morais derivados da morte de passageiro de transporte coletivo em demanda indenizatória proposta pelos pais e uma irmã da vítima, cuja ementa foi a seguinte: Direito Civil e Processual Civil. Ação de indenização por danos morais e materiais. Acidente rodoviário sofrido por passageiro de transporte coletivo. Resultado morte. Fundamentação deficiente. Prequestionamento. Danos materiais. Reexame de provas. Danos morais. Valor fixado. Revisão pelo STJ. Possibilidade. - Não se conhece do recurso especial na parte em que se encontra deficiente em sua fundamentação, tampouco quando a matéria jurídica versada no dispositivo legal tido por violado não tiver sido apreciada pelo Tribunal Estadual. - A improcedência do pedido referente à indenização por danos materiais em 1º e em 2º graus de Jurisdição foi gerada a partir da análise dos fatos e provas apresentados no processo, o que não pode ser modificado na via especial. - Ao STJ é dado revisar o arbitramento da compensação por danos morais quando o valor fixado destoa daqueles estipulados em outros julgados recentes deste Tribunal, observadas as peculiaridades de cada litígio. - A sentença fixou a título de danos morais o equivalente a quinhentos salários mínimos para RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 395 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA cada recorrente; o acórdão reduziu o valor para vinte mil reais para a mãe, vinte mil reais para o pai, e dez mil reais para a irmã. - Com base nos precedentes encontrados referentes à hipóteses semelhantes e consideradas as peculiaridades do processo, fixa-se em sessenta mil reais para cada um dos recorrentes, o valor da compensação por danos morais. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (STJ, 3ª T., REsp n. 710.879-MG, rel.: Ministra Nancy Andrighi, j. 1º.6.2006, DJ 19.6.2006, p. 135. 290). O Tribunal de Justiça de Minas Gerais havia fixado a indenização por danos morais em vinte mil reais para cada um dos pais e dez mil reais para a irmã, ensejando recurso especial. A ministra relatora, após anotar que, em hipóteses semelhantes, o STJ tem fixado as indenizações por danos morais em valores que variam entre 200 e 625 salários mínimos, fazendo referência a um grupo de sete precedentes, passou a analisar as peculiaridades do caso, arbitrando, então, a indenização em sessenta mil reais para cada um dos três demandantes. Esse método bifásico é o que melhor atende às exigências de um arbitramento eqüitativo da indenização por danos extrapatrimoniais. 3.6) Jurisprudência do STJ nos casos de morte da vítima Por ocasião da elaboração da minha Tese de Doutorado perante a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, orientado pela Professora Doutora Judith Martins-Costa, tive oportunidade de fazer um exame mais detido da jurisprudência do STJ em relação à indenização dos prejuízos extrapatrimoniais derivados do dano-morte, ao longo de dez anos, a partir de 1997, que foi o momento em que esta Corte decidiu efetuar um controle mais efetivo sobre o quantum indenizatório correspondente aos danos extrapatrimoniais em geral, permitindo vislumbrar a tentativa de fixação de valores que atendam às exigências do postulado normativo da razoabilidade. Na análise de mais de cento e cinqüenta acórdãos da Corte Especial relativos a julgamentos realizados ao longo de dez anos, em que houve a apreciação da indenização por prejuízos extrapatrimoniais ligados ao danomorte, ficou clara a existência de divergências entre as Turmas julgadoras do STJ acerca do que se pode considerar como um valor razoável para essas indenizações. Os valores das indenizações têm sofrido significativas variações, tendo sido mantida uma indenização por danos morais no valor correspondente a dois mil salários mínimos (STJ, 1ª T., REsp n. 331.279-CE, rel.: Min. Luiz 396 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Fux, j. 23.4.2002. Foi mantida a condenação estabelecida pelo Tribunal de Justiça do Ceará no valor correspondente a 2.000 salários mínimos - R$ 486.000,00, em face da gravidade do fato - quadrilha de policiais militares, que praticara estupros e assassinatos -, tendo votado vencido o Min. Garcia Vieira que reduzia a indenização para 500 salários mínimos); assim como já houve o arbitramento de indenizações na faixa entre nove mil reais (STJ, 3ª T., REsp n. 619.006-PR, rel.: Min. Castro Filho, j. 18.11.2004. O recurso especial foi provido, sendo fixada a indenização em apenas nove mil reais, em face do longo tempo decorrido desde a ocorrência do fato - morte por acidente de trabalho do marido da autora ocorrida há mais de dez anos) e quinze mil reais (STJ, 4ª T., REsp n. 705.859-SP, rel.: Min. Jorge Scartezzini, j. 3.2.2005. Tratava-se de atropelamento de pedestre em ferrovia, sendo a indenização arbitrada em quinze mil reais para cada uma das autoras - viúva e duas filhas -, em face das peculiaridades do fato - culpa concorrente da vítima por haver passarela nas proximidades). Esses valores, entretanto, situados em posições extremas, apresentam peculiaridades próprias, não podendo ser considerados como aquilo que o STJ entende por razoável para indenização de prejuízos extrapatrimoniais derivados do dano-morte, inclusive por versarem, em regra, acerca de casos especiais em que o arbitramento eqüitativo justificava a fixação da indenização em montante diferenciado. Pode-se tentar identificar a noção de razoabilidade desenvolvida pelos integrantes da Corte Especial na média dos julgamentos atinentes ao danomorte. Os julgados que, na sua maior parte, oscilam na faixa entre 200 salários mínimos e 600 salários mínimos, com um grande número de acórdãos na faixa de 300 salários mínimos e 500 salários mínimos, podem ser divididos em dois grandes grupos: recursos providos e recursos desprovidos. Nos recursos especiais desprovidos, chama a atenção o grande número de casos em que a indenização foi mantida em 200 salários mínimos. Os recursos especiais providos, para alteração do montante da indenização por dano extrapatrimonial, são aqueles que permitem observar, com maior precisão, o valor que o STJ entende como razoável para essa parcela indenizatória. Ainda assim, observa-se a existência de divergência entre as Turmas, pois a 4ª Turma tem arbitrado no valor correspondente a 500 salários mínimos, enquanto a 3ª Turma tem fixado em torno de 300 salários mínimos. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 397 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Atualmente os parâmetros têm-se revelado os mesmos, como adiante evidencio, iniciando com os mais recentes julgados da Terceira Turma e, após, exemplificando com os da Colenda Quarta Turma desta Corte: Agravo regimental. Recurso especial. Indenização. Morte de menor por eletroplessão. Danos morais. Majoração. Necessidade, in casu. Recurso improvido. (AgRg no AgRg no REsp n. 1.092.785-RJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 16.11.2010, DJe 2.2.2011). Excerto: “In casu, a condenação referente aos danos morais pela morte do filho dos recorrentes, à época do acidente com 10 anos de idade, perfaz a quantia de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) (fl. 186), valor este que, de acordo com a sobredita jurisprudência e com as peculiaridades do caso sub examine, é irrisória a ponto de admitir-se a intervenção excepcionalíssima deste Tribunal Superior, sendo, portanto, de rigor sua majoração para 300 (trezentos) salários-mínimos.” Direito Civil. Ação de indenização por danos materiais e morais. Acidente rodoviário. Resultado morte. Danos morais. Valor fixado considerado irrisório. Possibilidade de revisão pelo STJ. Dissídio jurisprudencial não comprovado. - Ao STJ é dado revisar o arbitramento da compensação por danos morais quando o valor fixado destoa daqueles estipulados em outros julgados recentes deste Tribunal, observadas as peculiaridades de cada litígio. - A sentença fixou, a título de danos morais, o equivalente a quinhentos salários mínimos, vigentes à época do evento danoso, e o acórdão recorrido reduziu o valor para cem salários mínimos. - Com base nas peculiaridades do processo e a impossibilidade de reformatio in pejus, fixa-se em cem mil reais o valor da compensação por danos morais. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (REsp n. 1.064.377-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5.11.2009, DJe 17.11.2009). Excerto: Assim, tenho que a quantia fixada pelo acórdão recorrido se mostrou irrisória e, considerando as peculiaridades da espécie e o fato de que a condenação por danos morais deve estar adstrita aos limites do pedido, sendo vedada a fixação dos valores em salários-mínimos e a reformatio in pejus, restabeleço a sentença proferida pelo Juízo de 1º grau de Jurisdição e fixo a reparação por danos morais no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais). 398 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Agravo regimental. Direito Civil. Morte de filho menor. Choque elétrico. Ação de indenização por danos materiais e morais. Pensionamento. Redução do quantum. Descabimento. Honorários advocatícios. Fixação sobre o valor da condenação. Correção monetária. Termo inicial. Falta de prequestionamento. I - Danos materiais devidos, na esteira de precedentes jurisprudenciais, em 2/3 do salário mínimo a partir da data em que o menor teria idade para o trabalho (14 anos) até a data em que ele completaria 25 anos, reduzida para 1/3 a partir de então, até os 65 anos. II - Dano moral devido como compensação pela dor da perda de filho menor de idade, no equivalente a 500 (quinhentos) salários mínimos, condizente com a gravidade do dano. Precedentes. III - Havendo condenação em importância certa, os honorários advocatícios devem ser fixados, em regra, sobre o valor da condenação (CPC, art. 20, § 3º). IV - Com relação ao termo inicial da correção monetária, o tema não foi tratado no Acórdão recorrido, nem sequer agitado nos Embargos Declaratórios interpostos contra a referida decisão, ressentindo-se o Especial, no ponto, do indispensável prequestionamento. Agravo Regimental improvido. (AgRg no REsp n. 734.987-CE, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 27.10.2009, DJe 29.10.2009). REsp n. 268.567, Terceira Turma, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS), Data da Publicação 29.3.2010: Decisão (omissis) Por tais fundamentos, dou provimento ao recurso especial, para arbitrar a indenização por danos morais em R$ 127.500,00 (cento e vinte e sete mil e quinhentos reais), a serem rateados entre os autores, e fixar a pensão aos recorrentes em 2/3 do salário mínimo até a data em que as vítimas completariam 25 anos de idade, a partir de então, fixo no patamar de 1/3 do salário mínimo até a data que as vítimas completariam 65 anos, ou em que ocorrer o falecimento dos autores. Constituição de capital, a fim de assegurar o pagamento da pensão mensal. Juros de mora nos percentuais retro referidos. Honorários advocatícios no percentual de 10% sobre o somatório dos valores da condenação por danos morais, das prestações vencidas e um ano das parcelas vincendas. Civil e Processual. Ação de indenização. Atropelamento em via férrea. Morte de ciclista. Passagem clandestina. Existência de passagem de nível próxima. Concorrência de culpas da vítima e da empresa concessionária de transporte. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 399 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Danos materiais e morais devidos. Pensão. Juros moratórios. Súmula n. 54-STJ. Constituição de capital ou caução fidejussória. I. Inobstante constitua ônus da empresa concessionária de transporte ferroviário a fiscalização de suas linhas em meios urbanos, a fim de evitar a irregular transposição da via por transeuntes, é de se reconhecer a concorrência de culpas quando a vítima, tendo a sua disposição passagem de nível construída nas proximidades para oferecer percurso seguro, age com descaso e imprudência, optando por trilhar caminho perigoso, levando-o ao acidente fatal. II. Precedentes. III. Ação julgada procedente em parte, devidos os danos materiais e morais pela metade, de logo fixados pela aplicação do direito à espécie, na forma preconizada no art. 257 do Regimento Interno do STJ. IV. Pensão fixada em um salário mínimo em favor da viúva, durante a longevidade estimada da vítima, com base em tabela expedida pela Previdência Social. V. Tratando-se de responsabilidade civil extracontratual, os juros moratórios são devidos desde a data do óbito (Súmula n. 54 do STJ). VI. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (REsp n. 622.715-SP, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 24.8.2010, DJe 23.9.2010). Excerto: Destarte, estou em que há culpa concorrente também aqui e, nesses termos, em face do preconizado no art. 257 do Regimento Interno do STJ, passo, de logo, a examinar o pedido exordial, pela aplicação do direito à espécie: a) É devida uma pensão mensal, no valor de um salário mínimo, desde a data do óbito, durante a sobrevida provável da vítima, a ser fixada, em liquidação, com base em tabela expedida pela Previdência Social; b) Indenização por danos morais, no valor de R$ 130.000,00 (cento e trinta mil reais); (...) Todas as verbas acima, salvo a honorária, ficam reduzidas à metade, em face da culpa concorrente aqui reconhecida. Hospital psiquiátrico. Paciente. Morte. Danos morais. Montante. Exagero. Redução. Possibilidade 1 - Nos termos do entendimento pacificado desta Corte, o montante indenizatório, fixado a título de danos morais, só se submete ao crivo deste Superior Tribunal de Justiça se for ínfimo ou exorbitante. 2 - No caso concreto, afigura-se exagerada a indenização em 1.600 salários mínimos para cada recorrido, marido e filho da vítima, morta por outro paciente psiquiátrico, enquanto encontrava-se internada no hospital. 400 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 3 - Redução para o valor global de R$ 255.000,00 (duzentos e cinquenta e cinco mil reais) com juros da data do evento e correção desta data. 4 - Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (REsp n. 825.275-SP, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 2.2.2010, DJe 8.3.2010). Civil e Processual. Ação de indenização. Atropelamento. Morte. Dano moral. Fixação em patamar excessivo. Redução. Possibilidade. Pensão alimentícia. Ausência de comprovação de dependência entre os recorridos. Súmula n. 7-STJ. 1. O critério que vem sendo utilizado por essa Corte Superior na fixação do valor da indenização por danos morais, considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido, bem como que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito. 2. A redução do “quantum” indenizatório a título de dano moral é medida excepcional e sujeita a casos específicos em que for constatado abuso, tal como verificado no caso. 3. In casu, tendo em vista o valor fixado no acórdão recorrido a título de indenização por dano moral em R$ 637.500,00 (seiscentos e trinta e sete mil, quinhentos reais), em razão das particularidades do caso e à luz dos precedentes citados desta Corte Superior, impõe-se o ajuste da indenização aos parâmetros adotados por este Tribunal (R$ 305.000,00), de modo a garantir aos lesados a justa reparação, contudo afastando-se, pois, a possibilidade de enriquecimento indevido, corrigido monetariamente a partir desta decisão e dos juros moratórios nos termos da Súmula n. 54 desta Corte. 4. Verificar a alegação de que a vítima não contribuía para o sustento da família, demandaria o revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos, o que atrai a incidência da Súmula n. 7-STJ. 5. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa extensão provido. (REsp n. 747.474-RJ, Rel. Ministro Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ-AP), Quarta Turma, julgado em 2.3.2010, DJe 22.3.2010). Responsabilidade civil. Descarga elétrica por rompimento de cabo condutor. Amputação de braço direito e diversas cicatrizes no corpo. Vítima que contava com dezessete anos de idade. Dano moral e estético. Cumulação devida. Valor das indenizações redimensionado. 1. O recorrente, que contava com 17 (dezessete) anos de idade quando do infortúnio, foi vítima de descarga elétrica, cujas conseqüências foram a amputação de seu braço direito na altura do ombro e cicatrizes por todo o corpo, estas decorrentes das queimaduras sofridas. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 401 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2. Notadamente em relação ao dano estético, a idade da vítima ressai de suma relevância para a fixação da indenização, tendo em vista que a aparência pessoal em idades juvenis, cujos laços afetivos e sociais ainda estão sendo formados, mostra-se mais determinante à elaboração da personalidade, se comparada à importância dada à estética por pessoas de idade mais avançada, cujos vínculos familiar, sentimental e social já se encontram estabilizados. 3. Por outro lado, mostra-se imprópria qualquer comparação no que concerne ao valor de indenização fixado por esta Corte em caso de morte. No presente caso, está-se a indenizar a própria vítima por um sofrimento que irá experimentar por toda a vida, ao passo que a indenização por morte é concedida aos familiares da vítima, em decorrência da dor experimentada pela perda do querido ente. 4. Indenização elevada ao valor global de R$ 250.000,00, já considerados os danos morais e estéticos. Quanto ao valor da indenização, ressalva pessoal do relator, que dava provimento ao recurso em maior extensão. 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, na extensão, provido. (REsp n. 689.088-MA, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 20.10.2009, DJe 2.2.2010). Direito Civil. Acidente de trânsito. Ação de indenização. Dano moral. Arbitramento adequado. Responsabilidade extracontratual. Juros moratórios e correção monetária. Termo inicial. Violação do art. 535 do CPC. Não-ocorrência. 1. Considerando que a quantia indenizatória arbitrada a título de danos morais guarda proporcionalidade com a gravidade da ofensa, o grau de culpa e o porte sócio-econômico do causador do dano, não deve o valor ser alterado ao argumento de que é excessivo. 2. Na seara da responsabilidade extracontratual, mesmo sendo objetiva a responsabilidade configurada nos autos, os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, e não a partir da citação. 3. Em casos de responsabilidade extracontratual, o termo inicial para a incidência da correção monetária é a data da prolação da decisão em que foi arbitrado o valor da indenização. 4. Não há por que falar em violação do art. 535 do CPC quando o acórdão recorrido, integrado pelo julgado proferido nos embargos de declaração, dirime, de forma expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões recursais. 5. Recurso especial parcialmente conhecido e provido. (REsp n. 780.548-MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 25.3.2008, DJe 14.4.2008). 402 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Agravo de Instrumento n. 1.325.208-SP (n. 2010/0119806-9), Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti, publicada em 8.9.2010: Decisão (...) A pretensão de ver reduzida a indenização a que fora condenada a parte recorrente, em acidente ferroviário que provocou a morte de jovem, através de queda por uma das portas de trem de sua propriedade, encontra óbice no Enunciado da Súmula n. 7 deste Superior Tribunal de Justiça. De fato, o propósito de que sejam revistas as conclusões a que chegaram as instâncias ordinárias - ao fixar em 250 (duzentos e cinqüenta) salários mínimos a reparação por danos morais - revela o intento inviável, nessa sede especial, de reexaminar o conjunto fático-probatório soberanamente delineado. Cumpre sublinhar, nesse sentido, que a excepcional intervenção desta Corte, a fim de rever o valor da indenização arbitrada pelo Tribunal local, a título de dano moral, pressupõe se tenha este, considerada a realidade do caso concreto, pautado de forma imoderada ou desproporcional, em situação de evidente exagero ou de manifesta insignificância. No caso em exame, no entanto, o valor fixado em 250 (duzentos e cinqüenta) salários mínimos não se afigura exagerado ou desproporcional; não se justificando, portanto, a excepcional intervenção desta Corte Superior de Justiça. Em verdade, em situações semelhantes, esta Quarta Turma tem admitido condenações em valor superior ao questionado pela agravante; não se afigurando, pois, legítima a alegação de ser excesso o valor da condenação. Confiram-se, dentre muitos, os seguintes julgados: (omissis) Em face do exposto, nego provimento ao agravo de instrumento. Nota-se também nas decisões que se pondera muito o montante total da indenização, quando existem vários demandantes no processo para se evitar um valor final exacerbado. Depreende-se desse leque de decisões que o STJ tem-se utilizado do princípio da razoabilidade para tentar alcançar um arbitramento eqüitativo das indenizações por prejuízos extrapatrimoniais ligados ao dano-morte. Pode-se estimar que um montante razoável para o STJ situa-se na faixa entre 300 e 500 salários mínimos, embora o arbitramento pela própria Corte no valor médio de 400 salários mínimos seja raro. Saliente-se, mais uma vez que, embora seja importante que se tenha um montante referencial em torno de quinhentos salários mínimos para a RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 403 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA indenização dos prejuízos extrapatrimoniais ligados ao dano-morte, isso não deve representar um tarifamento judicial rígido, o que entraria em rota de colisão com o próprio princípio da reparação integral. Cada caso apresenta particularidades próprias e variáveis importantes como a gravidade do fato em si, a culpabilidade do autor do dano, a intensidade do sofrimento das vítimas por ricochete, o número de autores, a situação sócioeconômica do responsável, que são elementos de concreção que devem ser sopesados no momento do arbitramento eqüitativo da indenização pelo juiz. 3.7) Caso concreto Passo, assim, ao arbitramento equitativo da indenização, atendendo as circunstâncias do caso. Na primeira fase, o valor básico ou inicial da indenização, considerando o interesse jurídico lesado (morte da vítima), em conformidade com os precedentes jurisprudenciais acerca da matéria (grupo de casos), acima aludidos, deve ser fixado em montante equivalente a 400 salários mínimos na data de hoje, que é a média do arbitramento feito pelas duas Turmas integrantes da Segunda Seção desta Corte. Na segunda fase, para a fixação definitiva da indenização, ajustando-se às circunstâncias particulares do caso, deve-se considerar, em primeiro lugar, a gravidade do fato em si, pois a vítima, nascida em 1992, faleceu com 14 anos de idade. A culpabilidade do motorista do ônibus foi reconhecida pelo acórdão recorrido, que afirmou a ocorrência de culpa leve no evento danoso. A ausência de prova de culpa concorrente da vítima é induvidosa, pois a vítima estava apenas sendo transportada para a escola. Finalmente, não há maiores informações acerca da condição econômica empresa de transporte demandada, enquanto que a da fundação demandada é boa, não se podendo apenas olvidar que estava realizando um trabalho filantrópico em favor de crianças carentes da Cidade de Manaus. Assim, torno definitiva a indenização no montante equivalente a 500 salários mínimos na data de hoje. Esse valor será acrescido de correção monetária pelo IPC desde a data da presente sessão de julgamento (Súmula n. 362 - A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento). 404 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 4) Juros legais moratórios (Taxa Selic) Os juros legais moratórios, na forma do art. 406 do Código Civil de 2002, serão devidos pela Taxa Selic na linha da jurisprudência traçada pela Corte Especial do STJ. Questão bastante controvertida situa-se em torno da taxa de juros legais moratórios estabelecida pelo CC/2002, que tive oportunidade de analisar no plano doutrinário (Princípio da Reparação Integral - Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 317). O enunciado normativo do art. 406 do CC/2002 regula os juros moratórios nos seguintes termos: Art. 406 - Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. Essa regra do art. 406 do CC/2002 foi alterada pelo Congresso Nacional. No Anteprojeto do Código Civil encaminhado à Câmara dos Deputados, constava como os juros “correntes no lugar do pagamento, segundo a taxa bancária para os empréstimos ordinários” (art. 400). Na Câmara dos Deputados, após longo debate, foi alterada para a sua redação final, que representou uma substancial mudança no sistema de controle de juros. No Senado Federal, a Emenda n. 41, de iniciativa do Senador Álvaro Dias, buscava fixar os juros moratórios em 18% ao ano, mas foi rejeitada. A emenda criticava, com pertinência, a infelicidade da adoção de um critério pouco claro para os juros, que constitui “matéria de uso cotidiano do homem do povo”, pois a estatuição de juros flutuantes gera insegurança. Finalmente, apontou a conveniência de o Código Civil indicar claramente as taxas de juros moratórios e remuneratórios, evitando a sua fixação por “vias indiretas”. Infelizmente, essas críticas formuladas no curso do processo legislativo não foram ouvidas e o texto final do art. 406 do CC/2002 manteve os juros legais moratórios de acordo com “a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”. A regulamentação procedida pelo legislador do CC/2002 alterou substancialmente o sistema de fixação de juros moratórios e remuneratórios no direito brasileiro. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 405 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA De um lado, regulamentou apenas os juros moratórios, nada dispondo acerca dos remuneratórios, como fazia o art. 1.063 do CC/1916, que passaram a ser regulados somente pelo art. 591 do CC/2002. De outro lado, deixou de ser estabelecida taxa, que antes era de 6% ao ano, para os juros moratórios legais ou não convencionados (art. 1.062 do CC/1916). Finalmente, nivelou no mesmo percentual as taxas dos juros legais moratórios e dos remuneratórios, estabelecendo como limite “a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional” (art. 406). Assim, remeteu a identificação do montante da taxa de juros moratórios para a legislação tributária referente aos impostos federais, que também passou a conter o limite dos juros remuneratórios. A dúvida reside em estabelecer em que ponto da legislação tributária federal está situada a regra que preenche o disposto no art. 406 do CC/2002. A impressão inicial é de que o legislador fez a remessa para a Taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), instituída pela Lei n. 9.065/1995, que tem sido utilizada para a atualização do valor dos tributos federais. Entretanto, a utilização pura e simples da Taxa Selic apresenta problemas delicados. Em primeiro lugar, trata-se de uma taxa com formação promíscua, que engloba juros e correção monetária. Em segundo lugar, a correção monetária nela embutida não reflete a inflação passada, mas a expectativa de inflação futura. Em terceiro lugar, a Taxa Selic apresenta grande volatilidade, eis que corresponde à média dos financiamentos com títulos públicos federais, variando excessivamente. Assim, além da insegurança jurídica acerca da taxa de juros moratórios incidente, surge nova polêmica em torno de qual é o percentual aplicável: se a taxa vigente no momento da contratação, ou na época do inadimplemento do devedor, ou se há variação mensal do seu percentual. Por esses e outros problemas, a própria aplicabilidade da Taxa Selic aos tributos federais foi objeto de longo debate pela jurisprudência do STJ, que culminou na 1ª Seção da Corte Especial. Uniformizou-se, em passado recente, a jurisprudência no sentido da incidência da Taxa Selic para os créditos tributários a partir da vigência da Lei n. 9.250/1995, mas vedando a sua cumulação com juros e correção monetária. 406 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Merece lembrança o seguinte julgado, que sintetizou bem a matéria, consoante pode ser colhido de sua ementa: Tributário. Repetição de indébito. Taxa Selic. Termo inicial de sua aplicação: trânsito em julgado da sentença ou edição da Lei n. 9.250/1995. 1. A orientação prevalente no âmbito da 1ª Seção firmou-se no sentido do paradigma, podendo ser sintetizada da seguinte forma: (a) antes do advento da Lei n. 9.250/1995, incidia a correção monetária desde o pagamento indevido até a restituição ou compensação (Súmula n. 162-STJ), acrescida de juros de mora a partir do trânsito em julgado (Súmula n. 188-STJ), nos termos do art. 167, parágrafo único, do CTN; (b) após a edição da Lei n. 9.250/1995, aplica-se a Taxa Selic desde o recolhimento indevido, ou, se for o caso, a partir de 1º.1.1996, não podendo ser cumulada, porém, com qualquer outro índice, seja de atualização monetária, seja de juros, porque a Selic inclui, a um só tempo, o índice de inflação do período e a taxa de juros real. 2. Embargos de divergência providos (STJ, 1ª Seção, EREsp n. 267.080-SC, rel. Min. Teori Zavascki, j. 22.10.2003, DJ 10.11.2003, p. 150). Em função disso, a melhor orientação seria no sentido da inaplicabilidade da Taxa Selic para complementar a regra do art. 406 do CC/2002. Nessa mesma linha, a correta a precisa análise desenvolvida por Judith Martins-Costa acerca da inconstitucionalidade da utilização da Taxa Selic (v. II, t. II, p. 403). Por isso, a complementação da regra do art. 406 do CC/2002 deveria ser buscada diretamente no Código Tributário Nacional, sendo que a regra que melhor concretiza essa complementação é a contida no art. 161, § 1º, do CTN, fixando em 12% ao ano a taxa de juros legais moratórios dos tributos em geral. A adoção desse montante representa uma significativa elevação para a taxa de juros legais moratórios, pois fica duplicado o percentual de 6% ao ano que era estipulado pelo CC/1916. Além disso, adota-se uma taxa fixa, ensejando maior segurança jurídica e facilitando o trabalho dos operadores do direito. Em relação aos juros remuneratórios, em face do disposto no art. 591 do Código Civil (limite máximo dos juros remuneratórios), o percentual de 12% ao ano mantém-se dentro da tradição de nosso direito, especialmente em consonância com o disposto no art. 1º da Lei da Usura. Nessa mesma linha, já na Jornada de Direito Civil realizada no STJ em setembro de 2002, foi aprovada proposição de autoria do Desembargador Francisco José Moesch (TJRS), com o seguinte teor: RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 407 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% (um por cento) ao mês. Merece também lembrança a justificativa apresentada pelo autor da proposição: A utilização da Taxa Selic como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do Código Civil de 2002, que permite apenas a capitalização anual dos juros (...). Nesse mesmo sentido, orienta-se Judith Martins-Costa (v. II, t. II, p. 406). Em sentido contrário, manifestam-se Teresa Ancona Lopez (p. 182) e Fábio Ulhoa Coelho (v. 3, p. 123). Portanto, a conclusão que se extrai da análise conjugada dos textos legais é de que o limite dos juros moratórios e remuneratórios no CC/2002 passou a ser de 12% ao ano por força do disposto no art. 161, § 1º, do CTN combinado com os arts. 406 e 591 do CC/2002. O STJ enfrentou essa questão na perspectiva dos juros legais moratórios, orientando-se no sentido de que, a partir da vigência do CC/2002, a taxa máxima passou a ser de 1% ao mês, servindo como exemplo o seguinte julgado: Embargos de declaração. Plano de saúde. Suspensão de atendimento. Consumidor. Dano moral. 1. Tratando-se, na hipótese, de responsabilidade contratual da empresa plano de saúde, os juros moratórios devem ser aplicados a partir da citação. Precedentes. 2. Os juros moratórios incidem à taxa de 0,5%, ao mês, até o dia 10.1.2003, nos termos do art. 1.062 do Código Civil de 1916, e à taxa de 1%, ao mês, a partir de 11.1.2003, nos termos do art. 406 do Código Civil de 2002. 3. Embargos de declaração acolhidos. (EDcl no REsp n. 285.618-SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17.12.2009, DJ 8.2.2010). Posteriormente, porém, a Corte Especial do STJ firmou o entendimento no sentido da aplicação da Taxa Selic, merecendo lembrança os seguintes precedentes, verbis: FGTS. Contas vinculadas. Correção monetária. Diferenças. Juros moratórios. Taxa de juros. Art. 406 do CC/2002. Selic. 1. O art. 22 da Lei n. 8.036/1990 diz respeito a correção monetária e juros de mora a que está sujeito o empregador quando não efetua os depósitos ao FGTS. 408 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Por sua especialidade, tal dispositivo não alcança outras situações de mora nele não contempladas expressamente. 2. Relativamente aos juros moratórios a que está sujeita a CEF - por não ter efetuado, no devido tempo e pelo índice correto, os créditos de correção monetária das contas vinculadas do FGTS -, seu cálculo deve observar, à falta de norma específica, a taxa legal, prevista art. 406 do Código Civil de 2002. 3. Conforme decidiu a Corte Especial, “atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo [art. 406 do CC/2002] é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - Selic, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei n. 9.065⁄1995, 84 da Lei n. 8.981⁄1995, 39, § 4º, da Lei n. 9.250/1995, 61, § 3º, da Lei n. 9.430/1996 e 30 da Lei n. 10.522/2002)” (EREsp n. 727.842, DJ de 20.11.2008). 4. A incidência de juros moratórios com base na variação da Taxa Selic não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária, cumulação que representaria bis in idem (REsp - EDcl n. 853.915, 1ª Turma, Min. Denise Arruda, DJ de 24.9.2008; REsp n. 926.140, Min. Luiz Fux, DJ de 15.5.2008; REsp n. 1.008.203, 2ª Turma, Min. Castro Meira, DJ 12.8.2008; REsp n. 875.093, 2ª Turma, Min. Eliana Calmon, DJ de 8.8.2008). 5. Recurso especial improvido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ n. 8/2008. (REsp n. 1.102.552-CE, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, julgado em 25.3.2009, DJe 6.4.2009). Embargos de divergência. Processo Civil. Acórdão embargado da 3ª Turma. Paradigmas das 2ª, 4ª e 5ª Turmas. Cisão do julgamento (Corte Especial, primeiro, e, depois, 2ª Seção). Art. 266 do RISTJ. Precedentes. Embargos do Banco Santander. Juros. Art. 406 do CC/2002. Taxa Selic. Precedentes da Corte Especial. Incidência da Súmula n. 168 do STJ. Embargos de divergência, referentes à competência da Corte Especial, liminarmente indeferidos. Decisão mantida em seus próprios termos. Agravo regimental desprovido. 1. “Não há violação à coisa julgada e à norma do art. 406 do novo Código Civil, quando o título judicial exequendo, exarado em momento anterior ao CC/2002, fixa os juros de mora em 0,5% ao mês e, na execução do julgado, determina-se a incidência de juros previstos nos termos da lei nova” (REsp n. 1.111.117-PR, Corte Especial, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Rel. p/ acórdão Ministro Mauro Campbell Marques, DJe de 2.9.2010). 2. “Atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo [art. 406 do CC/2002] é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - Selic, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei n. 9.065/1995, 84 da Lei n. 8.981/1995, 39, § 4º, da Lei n. 9.250/1995, RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 409 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 61, § 3º, da Lei n. 9.430/1996 e 30 da Lei n. 10.522/2002)’ (EREsp n. 727.842, DJ de 20.11.2008)” (REsp n. 1.102.552-CE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, sujeito ao regime do art. 543-C do CPC, pendente de publicação)” (Idem). 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg nos EREsp n. 953.460-MG, Rel. Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, julgado em 16.5.2012, DJe 25.5.2012). Execução de sentença. Taxa de juros. Novo Código Civil. Violação à coisa julgada. Inexistência. Art. 406 do novo Código Civil. Taxa Selic. 1. Não há violação à coisa julgada e à norma do art. 406 do novo Código Civil, quando o título judicial exequendo, exarado em momento anterior ao CC/2002, fixa os juros de mora em 0,5% ao mês e, na execução do julgado, determina-se a incidência de juros previstos nos termos da lei nova. 2. Atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo [art. 406 do CC/2002] é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - Selic, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei n. 9.065/1995, 84 da Lei n. 8.981/1995, 39, § 4º, da Lei n. 9.250/1995, 61, § 3º, da Lei n. 9.430/1996 e 30 da Lei n. 10.522/2002)” (EREsp n. 727.842, DJ de 20.11.2008)” (REsp 1.102.552⁄CE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, sujeito ao regime do art. 543-C do CPC, pendente de publicação). Todavia, não houve recurso da parte interessada para prevalecer tal entendimento. 3. Recurso Especial não provido. (REsp n. 1.111.117-PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão Ministro Mauro Campbell Marques, Corte Especial, julgado em 2.6.2010, DJe 2.9.2010). Assim, tratando-se de decisão da Corte Especial, deve ser respeitada por todos os integrantes deste Tribunal, com a ressalva de meu entendimento pessoal acima exposto. De todo modo, deve-se reconhecer que a Taxa Selic refere-se somente aos juros legais moratórios, devendo incidir também a correção monetária na forma prevista pelo acórdão recorrido. Assim, sobre as parcelas indenizatórias, incidirão correção monetária de acordo com o indexador previsto no acórdão recorrido e juros legais moratórios pela variação da Taxa Selic. 5) Conclusão Em síntese, voto no sentido do parcial provimento dos recursos especiais para: 410 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA a) reduzir o valor da pensão mensal para dois terços do salário mínimo até a data em que a vítima completaria 25 anos de idade, reduzindo-se para um terço do salário mínimo até o dia em que faria 65 anos; b) reduzir o valor da indenização por danos morais para o montante equivalente a 500 salários mínimos na data de hoje para cada um dos pais; c) estabelecer a Taxa Selic para a contagem dos juros legais moratórios. Não há alteração da sucumbência, devendo, ainda, o termo inicial dos juros e o índice de correção monetária seguir o disposto no acórdão recorrido. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.218.497-MT (2010/0184336-9) Relator: Ministro Sidnei Beneti Recorrente: Banco do Brasil S/A Advogado: Alessandro Zerbini R Barbosa e outro(s) Recorrido: Priscila Bitencourt Advogado: Priscilla Bitencourt (em causa própria) EMENTA Ação de indenização. Espera em fila de banco por mais de uma hora. Tempo superior ao fixado por legislação local. Insuficiência da só invocação legislativa aludida. Padecimento moral, contudo, expressamente assinalado pela sentença e pelo acórdão, constituindo fundamento fático inalterável por esta Corte (Súmula n. 7-STJ). Indenização de R$ 3.000,00, corrigida desde a data do ato danoso (Súmula n. 54-STJ). 1. - A espera por atendimento em fila de banco quando excessiva ou associada a outros constrangimentos, e reconhecida faticamente como provocadora de sofrimento moral, enseja condenação por dano moral. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 411 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2. - A só invocação de legislação municipal ou estadual que estabelece tempo máximo de espera em fila de banco não é suficiente para desejar o direito à indenização, pois dirige a sanções administrativas, que podem ser provocadas pelo usuário. 3. - Reconhecidas, pela sentença e pelo acórdão, as circunstâncias fáticas do padecimento moral, prevalece o julgamento da origem (Súmula n. 7-STJ). 4. - Mantém-se, por razoável, o valor de 3.000,00, para desestímulo à conduta, corrigido monetariamente desde a data do evento danoso (Súmula n. 54-STJ), ante as forças econômicas do banco responsável e, inclusive, para desestímulo à recorribilidade, de menor monta, ante aludidas forças econômicas. 5. - Recurso Especial improvido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Nancy Andrighi e Massami Uyeda votaram com o Sr. Ministro Relator. Impedido o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília (DF), 11 de setembro de 2012 (data do julgamento). Ministro Sidnei Beneti, Relator DJe 17.9.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Banco do Brasil S/A interpõe Recurso Especial com fundamento nas alíneas a e c do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, Relator o Desembargador Carlos Alberto Alves da Rocha, acórdão esse que negou provimento à apelação interposta contra sentença que condenou o banco ora Recorrente ao pagamento de indenização de R$ 412 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 3.000,00 por danos morais à ora Recorrida, pelo fato de haver esta permanecido aguardando, após a retirada da senha, o início de atendimento por pouco mais de uma hora em agência bancária, em descumprimento à Lei Municipal n. 4.069/2001, Decreto-Lei n. 4.334/2006 e Lei Estadual n. 7.872/2002, desrespeitando o limite legal de quinze minutos e causando-lhe o padecimento moral de permanecer de pé em fila de espera, inclusive sem possibilidade de uso de sanitário. O acórdão recorrido vem assim ementado (fls. 73): Indenização. Dano moral. Fila em agência bancária. Permanência superior à estabelecida em lei municipal. Dano configurado. Quantum adequado. Recurso não provido. O fato de o usuário ter permanecido mais de uma hora em fila de agência bancária, implica no descumprimento da lei municipal, ofendendo a dignidade, implicando na condenação por dano moral. O quantum arbitrado em patamar condizente com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade se mostra correto. 2. - O Recorrente alega que a espera em fila de banco por pouco mais de uma hora, ainda que configure ofensa à lei municipal que estabeleceu limite temporal para atendimento em prazo inferior, não é suficiente para configurar dano moral. Sustenta que se trata de mero aborrecimento e não ofensa à honra ou dignidade do consumidor. O Tribunal de origem, assim não entendendo, teria violado os artigos 186 e 187 do Código Civil. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 3. - Em muitos casos, sem dúvida, há abuso na judicialização de situações de transtornos comuns do dia a dia, visando à indenização por dano moral (cf., por todos, LUIZ FELIPE SIEGERT SCHUCH, “Dano Moral Imoral”, Florianópolis, ed. Conceito, 2012). Nesse sentido, julgados desta Corte têm assinalado que os aborrecimentos comuns do dia a dia, os contratempos normais e próprios do convívio social não são suficientes a causar danos morais indenizáveis. Nesse sentido, vários julgados: AgRg no Ag n. 1.331.848-SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe 13.9.2011; e REsp n. 1.234.549-SP, Rel. Ministro Massami Uyeda, RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 413 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Terceira Turma, DJe 10.2.2012; REsp n. 1.232.661-MA, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe 15.5.2012 e AgRg nos EDcl no REsp n. 401.636-PR, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Terceira Turma, DJ 16.10.2006. 4. - Mas, o direito à indenização por dano moral, como ofensa a direito de personalidade em casos como o presente pode decorrer de situações fáticas em que se evidencie que o mau atendimento do banco criou sofrimento moral ao consumidor usuário dos serviços bancários. A só espera por atendimento bancário por tempo superior ao previsto na legislação municipal ou estadual como, no caso, Lei Municipal n. 4.069/2001, Decreto-Lei n. 4.334/2006 e Lei Estadual n. 7.872/2002, não dá direito a acionar em Juízo para a obtenção de indenização por dano moral, porque essa espécie de legislação, conquanto declarada constitucional (STJ - REsp n. 598.183, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, 1ª Seção, unânime, 8.11.2006, com remessa a vários precedentes, tanto do STJ como do STF), é de natureza administrativa, isto é, dirige-se à responsabilidade do estabelecimento bancário perante a Administração Pública, que, diante da reclamação do usuário dos serviços ou ex-officio, deve aplicar-lhe as sanções administrativas pertinentes – não surgindo, do só fato da normação dessa ordem, direito do usuário à indenização. O direito à indenização por dano moral origina-se de situações fáticas em que realmente haja a criação, pelo estabelecimento bancário, de sofrimento além do normal ao consumidor dos serviços bancários, circunstância que é apurável faticamente, à luz das alegações do autor e da contrariedade oferecida pelo acionado. Nesse contexto, é possível afirmar, com segurança, que a espera por atendimento durante tempo desarrazoado constitui um dos elementos a serem considerados para aferição do constrangimento moral, mas não o único. Não será o mero desrespeito ao prazo objetivamente estabelecido pela norma municipal que autorizará uma conclusão afirmativa a respeito da existência de dano moral indenizável. Também há de se levar em conta outros elementos fáticos. 5. - No caso dos autos, a sentença e o acórdão do Tribunal de origem analisaram e afastaram, expressamente a alegação do banco, de que a autora teria realizado procedimento diverso do desejável, não indo ao caixa eletrônico e, sim, permanecendo na fila de atendimento pessoal no caixa, assinalando, o 414 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA acórdão: “Não é isso que se constata ao folhear os autos. É preciso ressaltar que o documento juntado a fl. 31, prova justamente o contrário. Nele constata-se que a apelada ficou na fila de espera do banco, no dia 4.7.2008, muito além do tempo estipulado (15 minutos)” e concluindo: “Percutindo o fundo da perlenga, verifica-se que não se trata de mero aborrecimento, pois a apelada ficou muito tempo além do previsto na legislação (fl. 31) e se encontrava com a saúde debilitada (fls. 32-;35), caracterizando total desleixo no atendimento por parte do apelante” (e-STJ fls. 256-157). Por sua vez, a sentença, incisivamente, destacou: “No caso, além do tempo de espera, a autora argumenta que esta se deu em condições desumanas, em pé, sem sequer haver um sanitário disponível para os clientes. Tal alegação constitui fato notório, pois é inegável que a cogitada agência não dispõe de sanitários e que não há lugares para todos os clientes aguardarem a longa espera sentados” (sentença, e-STJ, fls. 108). Como se vê, circunstâncias fáticas, expressamente consignadas pela sentença e pelo acórdão, levam à conclusão em prol do sofrimento moral, mais do que simples aborrecimento tolerável, desencadeando-se, portanto, o dever da indenização por dano moral. Incide, a respeito dessas circunstâncias fáticas, a Súmula n. 7-STJ, que veda o reexame da prova subjacente, por esta Corte. 6. - O valor da indenização foi razoavelmente fixado em R$ 3.000,00, com expressa menção de correção a partir da data do ilícito (Súmula n. 54-STJ, e-STJ fls. 109). A quantia é adequada, inclusive ante o caráter pedagógico da condenação, como é típico das indenizações atinentes a infringência de direitos dos consumidores, isto é, para que se tenha em mira a correção de distorções visando ao melhor atendimento. Impossível, ademais, deixar de assinalar que a manutenção do valor fixado atua como desincentivo ao recorrismo de risco perante esta Corte Superior, cuja destinação constitucional consiste no deslinde de teses de interesse para todo o país não se destinando a revisão de questões individuais, de valor de menor monta diante das forças econômicas do Recorrente, que, de qualquer forma, com o recurso, propicia o prestigiamento de tese nacional que não se concretizaria houvesse o caso restado sob o julgamento regional do Tribunal de origem. 7. - Pelo exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 415 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL N. 1.278.940-MG (2011/0158276-8) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: Jam Engenharia Ltda. Advogado: Bernardo Menicucci Grossi Recorrido: Autodesk Inc e Microsoft Corporation Advogado: Eduardo Dinelli Costa S. Cecília e outro(s) EMENTA Direito Autoral e Processual Civil. Programa de computador (software). Contrafação. Fiscalização. Meio. Defesa do usuário. Limites. Medida cautelar de vistoria. Repetição. Condições. 1. Para que seja razoável o deferimento do pedido de repetição da prova pericial realizada no âmbito de medida cautelar de vistoria que aponta para a existência de contrafação, cabe ao usuário trazer indícios físicos de compra dos programas, ou seja, prova documental de que os softwares foram regularmente adquiridos, como contratos de licença ou notas fiscais. 2. Ausente qualquer indício de irregularidade na vistoria realizada na medida cautelar de vistoria – que apontou para a existência de contrafação – e não tendo a parte trazido nenhuma evidência documental de suas alegações quanto à licitude dos programas instalados em seus computadores, correta a decisão que indeferiu a repetição dessa prova. O indeferimento situou-se na esfera de discricionariedade e convencimento do julgador enquanto destinatário da prova, não podendo ser reputado de cerceamento de defesa, nem de violação do contraditório ou da ampla defesa. 3. O pleno exercício da faculdade contida no art. 13 da Lei n. 9.609/1998 pressupõe a existência de um meio efetivo e eficaz de fiscalização, tendo a norma eleito como medida adequada para esse fim a vistoria prévia, cuja natureza é claramente preparatória e preventiva, de modo a viabilizar a confirmação de suspeitas de violação de direito autoral. 4. Não se pode impor como requisito para utilização dessa medida a prova pré-constituída do dano, ou seja, certeza quanto à 416 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA contrafação, sob pena de subverter o escopo fiscalizador da regra, tornando-a absolutamente inócua. 5. Em contrapartida, deve-se deferir ao usuário ampla oportunidade de prova, para que possa se defender dessas vistorias fiscalizatórias e demonstrar que os programas por ele utilizados são originais e registrados. 6. Assim como o vistoriando, o vistoriado deve exercer essa prerrogativa com boa-fé, sempre amparado na existência de indícios do bom direito e abstendo-se de pleitear a produção de provas inúteis, que possuam nítido caráter protelatório. 7. Como decorrência do princípio geral segundo o qual o Juiz conhece o direito (iura novit curia) – que, a rigor, não depende de prova – não há imprescindibilidade de juntada da legislação local ou estrangeira pelas partes, tampouco de realização de perícia tendente à interpretação da norma alienígena, função compreendida na própria atividade jurisdicional. Recurso especial a que se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 4 de setembro de 2012 (data do julgamento). Ministra Nancy Andrighi, Relatora DJe 13.9.2012 RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto por Jam Engenharia Ltda., com fundamento no art. 105, III, a e c, da CF, contra acórdão proferido pelo TJ-MG. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 417 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Ação: de indenização, ajuizada por Autodesk Inc. e Microsoft Corporation em desfavor da recorrente, tendo em vista a prática de contrafação de softwares, constatada em prévia medida cautelar de vistoria, busca e apreensão. Decisão interlocutória: indeferiu pedido de repetição da prova pericial, pois já realizada no âmbito da medida cautelar (fl. 395, e-STJ). A recorrente insurgiu-se via agravo de instrumento, sob a alegação de que a perícia seria indispensável à demonstração da regularidade dos programas instalados em seus computadores. Acórdão: o TJ-MG negou provimento ao agravo de instrumento, nos termos do acórdão (fls. 1.235-1.242) assim ementado: Agravo de instrumento. Prova pericial. Vistoria ad perpetuam rei memoriam. Ausência de documentos. Inocuidade de nova perícia. Princípio da reciprocidade. Análise da equivalência de direitos. Existência controversa de direito estrangeiro. Função própria do magistrado. Impossibilidade. Recurso não provido. - É inócua nova vistoria de objetos voláteis examinados em perícia antecipada realizada regularmente. - Não apresentados os documentos a serem periciados, incabível deferimento de prova pericial. - A equivalência de direitos (princípio da reciprocidade) depende de duas análises sobre a lei estrangeira: uma no campo da existência (direito estrangeiro tratado como fato) e outra no campo da aplicabilidade (direito estrangeiro aplicado como lei). - Quando a análise da equivalência de direitos implicar na apreciação do próprio mérito da ação, não há que se falar em deferimento da prova pericial. Embargos de declaração: interpostos pela recorrente, foram rejeitados pelo TJ-MG (fls. 1.250-1.254, e-STJ). Recurso especial: alega violação dos arts. 131, 145, 332, 335, 438 e 535 do CPC; e 2º, § 4º, da Lei n. 9.609/1998, bem como dissídio jurisprudencial (fls. 1.257-1.278, e-STJ). Juízo prévio de admissibilidade: o TJ-MG negou seguimento ao recurso especial (fls. 1.343-1.344, e-STJ), dando azo à interposição do Ag n. 1.339.233MG, provido para determinar a subida dos autos (fls. 1.356, e-STJ). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a lide a determinar se, no particular, era cabível a repetição de prova pericial realizada anteriormente em medida cautelar de vistoria, busca e apreensão. 418 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA I. Da negativa de prestação jurisdicional. Violação do art. 535 do CPC. Da análise do acórdão recorrido, constata-se que a prestação jurisdicional dada corresponde àquela efetivamente objetivada pelas partes, sem vício a ser sanado. O TJ-MG se pronunciou sobre todos os aspectos fundamentais do julgado, dentro dos limites que lhe são impostos por lei, tanto que integram o objeto do próprio recurso especial e serão enfrentados adiante. O não acolhimento das teses contidas no recurso não implica obscuridade, contradição ou omissão, pois ao julgador cabe apreciar a questão conforme o que ele entender relevante à lide. Não está o Tribunal obrigado a julgar a questão posta a seu exame nos termos pleiteados pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento, consoante dispõe o art. 131 do CPC. Acrescente-se, por oportuno, que no julgamento dos aclaratórios, o TJMG se manifestou expressamente sobre o único ponto suscitado pela recorrente, qual seja, o teor do documento de fl. 666 (fl. 684, e-STJ). Verifica-se, pois, a mera irresignação da recorrente com o resultado do julgamento e a tentativa de emprestar aos embargos de declaração efeitos infringentes, o que não se mostra viável no contexto do art. 535 do CPC. II. Do cabimento da prova pericial. Violação dos arts. 131, 145, 332, 335 e 438 do CPC; e 2º, § 4º, da Lei n. 9.609/1998. (i) Do prequestionamento. Da análise do acórdão recorrido, verifica-se a falta de prequestionamento dos arts. 145, 332 e 335 do CPC, apesar da interposição de embargos de declaração, circunstância que inviabiliza o conhecimento do recurso especial à luz dos referidos dispositivos legais, nos termos do Enunciado n. 211 da Súmula-STJ. Por outro lado, no que tange aos arts. 131 e 438 do CPC, embora não tenham sido expressamente mencionados no acórdão recorrido, é possível considera-los implicitamente prequestionados, visto que seu conteúdo foi abordado pelo TJ-MG. (ii) Da perícia sobre os computadores. O TJ-MG manteve a decisão que indeferiu a repetição da prova pericial sobre os computadores da recorrente, por entender que a vistoria levada a RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 419 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA efeito na medida cautelar previamente ajuizada pelas recorridas foi “realizada regularmente (Lei n. 9.609/1998, art. 13) por dois peritos nomeados pelo juízo, acompanhados de dois oficiais de justiça” (fl. 1.237, e-STJ). Acrescentou, ainda, que a recorrente “não apresentou um documento sequer no sentido de demonstrar a regularidade dos programas, isto é, não consta dos autos da ação indenizatória qualquer contrato de licença, nota fiscal ou contrato de locação de computadores” (fl. 1.238, e-STJ). A recorrente, por sua vez, sustenta que a vistoria realizada na medida cautelar “não constitui elemento suficiente para o indeferimento da realização da perícia nos autos da ação de indenização”, ressalvando que na vistoria não houve “participação em contraditório da recorrente” (fl. 1.273, e-STJ). No julgamento do REsp n. 1.114.889-DF, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 15.5.2012, tive a oportunidade de tecer considerações acerca do alcance do comando contido no art. 13 da Lei n. 9.609/1998, tendo frisado a necessidade de se realizar uma interpretação sistemática daquela norma, à luz de toda a proteção conferida não apenas aos programas de computador, pela Lei n. 9.609/1998, mas às obras intelectuais em geral, pela Lei n. 9.610/1998, à propriedade industrial, pela Lei n. 9.279/1996, e, sobretudo, da garantia ofertada pelo art. 5º, XXVII e XXVIII, da CF, a partir do que se infere claramente a intenção do legislador de assegurar ao titular de softwares, entre outras coisas, a prerrogativa de velar por seu direito de autor. Naquela ocasião, salientei que “o pleno exercício dessa faculdade pressupõe a existência de um meio efetivo e eficaz de fiscalização, tendo a norma eleito como medida adequada para esse fim a vistoria prévia, cuja natureza é claramente preparatória e preventiva, de modo a viabilizar a confirmação de suspeitas de violação de direito autoral”. Com efeito, não se pode impor como requisito para utilização da medida a prova pré-constituída do dano, ou seja, certeza quanto à reprodução ilegal do software, sob pena de subverter o escopo fiscalizador da regra, tornando-a absolutamente inócua. Em outras palavras, exigir do titular, como condição para exercício do direito de constatar a suspeita de violação dos seus programas, a prévia demonstração da própria ofensa à propriedade imaterial, significa impor uma barreira intransponível ao uso da vistoria como instrumento fiscalizatório, fazendo da norma letra morta. Agora, ao julgar o presente processo, deparo-me com situação inversa, ou seja, a análise do campo de ação que deve ser deferido ao usuário de softwares 420 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA para, em contrapartida, defender-se dessas vistorias fiscalizatórias e demonstrar que os programas por ele utilizados são originais e registrados. Nesse contexto, a oportunidade de prova deve ser ampla, se não no estreito âmbito de cognição da medida cautelar de vistoria – cuja efetividade pressupõe, inclusive, seja realizada inaudita altera pars – ao menos em sede da respectiva ação principal, conferindo-se ao vistoriado todos os meios de demonstrar a legalidade da sua conduta. Porém, assim como o vistoriando, o vistoriado deve exercer essa prerrogativa com boa-fé, sempre amparado na existência de indícios do bom direito e abstendo-se de pleitear a produção de provas inúteis, que possuam nítido caráter protelatório. Somente assim, contrabalançando os direitos de criadores e usuários de softwares e cuidando para que sejam exercidos de boa-fé, é que se estará, de fato, cumprindo os anseios da Lei e preservando a propriedade imaterial. Na hipótese específica dos autos, o TJ-MG deixa claro que a recorrente não trouxe nenhum elemento capaz de demonstrar a necessidade de realização de uma nova pericia sobre os computadores. Considerando as particularidades do caso, caberia á recorrente trazer qualquer indício físico de compra dos programas, ou seja, uma prova documental de que os softwares foram regularmente adquiridos, a partir do que seria razoável repetir a prova técnica para confirmação das constatações dos peritos vistoriadores. Todavia, da análise do acórdão recorrido, verifica-se que a recorrente se furtou em apresentar essa prova documental. Não obstante reconheça que o prazo de 10 dias conferido à recorrente na medida cautelar pudesse ter sido insuficiente para tanto, o TJ-MG frisa que, também no âmbito da ação indenizatória nenhum documento foi juntado, concluindo que “não apresentado o objeto a ser periciado, incabível o deferimento da perícia” (fl. 1.238, e-STJ). Note-se, por oportuno, que o contrário do que sugere a recorrente, não houve error in procedendo do TJ-MG, por supor que se “estaria a requerer a realização de perícia documental, ao passo em que fora requerida nova vistoria para confrontação dos computadores com os selos neles afixados” (fl. 1.261, e-STJ). Na realidade, o raciocínio desenvolvido pelo Tribunal Estadual foi de que somente teria sentido realizar uma nova vistoria – para afastar as conclusões da RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 421 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA perícia anterior, de que os programas eram “piratas” – caso a recorrente tivesse trazido aos autos “qualquer contrato de licença, nota fiscal ou contrato de locação de computadores” (fl. 1.238, e-STJ), ou seja, indícios de regularidade dos softwares por ela utilizados. O TJ-MG melhor esclarece esta questão ao julgar os embargos de declaração, consignando que o único documento trazido pela recorrente foi uma “tabela sem autoria (decerto confeccionada unilateralmente), que lista nomes de máquinas, locais onde estão localizadas e programas nelas contidos”. Diante disso, afirma que “essa suposta ‘relação de licenças’ não supre os objetos a serem periciados, os quais – consoante requerimento realizado pela própria embargante – consistem em contratos de licença, notas fiscais ou contratos de locação de computadores” (fl. 1.253, e-STJ). Mantendo-se coerente com seus argumentos, o TJ-MG funda sua decisão no art. 420, parágrafo único, do CPC, aduzindo estar o Juiz autorizado a indeferir pedido de prova pericial quando esta “for desnecessária em vista de outras provas produzidas ou a verificação for impraticável” (fl. 1.237, e-STJ). Aliás, o referido dispositivo legal sequer foi impugnado pela recorrente, caracterizando deficiência nos fundamentos do recurso especial, a atrair a incidência do Enunciado n. 283 da Súmula-STF. Também não procede a alegação de que os selos afixados nos computadores, por si só, demonstrariam a legalidade dos programas, visto que não substituem a apresentação de documentos que comprovem a regular aquisição dos softwares, notadamente das notas fiscais respectivas. Com relação aos precedentes alçados a paradigma, além de não ter sido realizado o indispensável cotejo analítico frente ao acórdão recorrido, não houve a comprovação da similitude fática entre os julgados, requisitos indispensáveis à demonstração da divergência, nos termos dos arts. 541, parágrafo único, do CPC e 255, §§ 1º e 2º do RISTJ. Para além disso, o acolhimento das teses da recorrente exigiria o revolvimento do substrato fático-probatório dos autos, procedimento que encontra óbice no Enunciado n. 7 da Súmula-STJ. Em síntese, pois, ausente qualquer indício de irregularidade na vistoria realizada na medida cautelar – que apontou para a existência de contrafação – e não tendo a recorrente trazido nenhuma evidência documental de suas alegações quanto à licitude dos programas instalados em seus computadores, 422 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA correta a decisão do Juiz de primeiro grau de jurisdição, mantida pelo TJ-MG, de indeferir a repetição dessa prova. O indeferimento situou-se na esfera de discricionariedade e convencimento do Juiz enquanto destinatário da prova, não podendo ser reputado de cerceamento de defesa, nem de violação do contraditório ou da ampla defesa. Inexiste, portanto, violação dos arts. 131 e 438 do CPC. (iii) Da perícia para averiguação da equivalência de direitos. Nesse tópico do recurso, a recorrente se limita a repisar as alegações feitas no item anterior, afirmando que “tais argumentos são igualmente aptos a ensejar o provimento do recurso especial para se determinar a realização de perícia em matéria de direito autoral, a fim de estabelecer a questionada equivalência de direitos entre a lei brasileira e a estrangeira” (fl. 1.277, e-STJ). Ocorre que, nesse ponto, as alegações da recorrente não se mostram suficientes à perfeita compreensão das bases do seu recurso, tampouco aptas a contrapor os fundamentos do acórdão recorrido, no sentido de que “a pretensão da agravante implica apreciação do próprio mérito da ação, porquanto o objeto da perícia é exatamente a análise de normas de direito material, função própria do magistrado” (fl. 1.242, e-STJ). Incidem à espécie os Enunciados n. 283 e n. 284 da Súmula-STF. Não bastasse isso, é evidente que o trabalho que a recorrente deseja imputar ao perito se confunde com a própria atividade jurisdicional do Juiz, de interpretação das normas de direito material. O fato dessa análise envolver direito estrangeiro não descredencia o Juiz nem desnatura a sua função, independentemente das partes trazerem o inteiro teor da legislação que pretendem ver aplicada. Nesse sentido, o STJ já decidiu que “como decorrência do princípio geral segundo o qual o juiz conhece o direito (iura novit curia) – o qual não depende, portanto, em princípio, de prova –, não há imprescindibilidade de juntada da legislação local ou alienígena quando da propositura da ação” (REsp n. 857.614SP, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 30.4.2008). Seja como for, o indeferimento da prova em questão não implica ofensa direta do art. 2º, § 4º, da Lei n. 9.609/1998, único dispositivo legal prequestionados nesse tópico do recurso especial. Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 423 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL N. 1.280.171-SP (2011/0144286-3) Relator: Ministro Massami Uyeda Recorrente: A C de A Advogado: Anna Cristina Bortolotto Soares e outro(s) Recorrido: B L C de A e outro Advogado: Cleber Speri EMENTA Recurso especial. Ação de exoneração de alimentos. Sentença. Apelação. Cabimento. Efeito devolutivo. Redação expressa do art. 14, da Lei n. 5.478/1973. Escólio jurisprudencial. Recurso especial provido. I - A apelação interposta contra sentença que julgar pedido de alimentos ou pedido de exoneração do encargo deve ser recebida apenas no efeito devolutivo. II - Recurso especial provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 2 de agosto de 2012 (data do julgamento). Ministro Massami Uyeda, Relator DJe 15.8.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Massami Uyeda: Cuida-se de recurso especial interposto por A. C. de A., fundamentado no artigo 105, inciso III, alíneas a e c, do 424 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA permissivo constitucional, em que se alega violação do artigo 14 da Lei n. 5.478/1973, bem como divergência jurisprudencial. Os elementos existentes nos presentes autos noticiam que, em resumo, o ora recorrente, A. C. de A., ajuizou, em face das recorridas, B. L. C. de A. e outros, ação de exoneração de alimentos, ao fundamento de que, diante da idade de suas filhas, uma contava, à época, com 26 (vinte e seis) anos, e a outra com 24 (vinte e quatro) anos, já não lhe era devida a obrigação alimentar. Alegou, também, que as alimentadas possuem plena capacidade laborativa para que possam prover seu sustento. Pleiteou, assim, a exoneração da obrigação alimentar (fls. 12-25 e-STJ). Devidamente citadas, as recorridas, B. L. C. de A. e outros, apresentaram contestação. Em linhas gerais, apontaram a necessidade de manutenção da obrigação alimentar, tendo em conta, principalmente, a circunstância de que são estudantes. O r. Juízo a quo julgou parcialmente procedente o pedido apenas para afastar a obrigação alimentar em relação a B. L. C. de A., mantendo-se, portanto, em relação a J. G. de A., filha que contava com 24 (vinte e quatro) anos de idade. (fls. 39-47 e-STJ) Irresignadas, ambas as partes apresentaram recurso de apelação. De sua parte, o ora recorrente, A. C. de A., sustentou a total procedência da demanda enquanto que, as ora recorridas, pleitearam a manutenção da obrigação alimentar (fls. 55-61 e-STJ). Todavia, consta dos autos que o recurso de apelação interposto pelas ora recorridas, B. L. C. de A. e outros, foi recebido apenas no efeito devolutivo, nos termos do artigo 14 da Lei n. 5.478/1973 (fl. 62 e-STJ). Inconformadas, as recorridas, B. L. C. de A. e outros, apresentaram recurso de Agravo de Instrumento, ao fundamento de que a apelação contra sentença que exonera a prestação alimentícia deve ser recebida em ambos os efeitos, ou seja, devolutivo e suspensivo. O egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio da Quarta Câmara de Direito Privado, deu-lhe provimento para que o recurso de apelação interposto pelas ora recorridas, B. L. C. de e outros, seja recebida no duplo efeito. A ementa está assim redigida: Agravo de Instrumento. Ação de exoneração de alimentos. Agravo regimental apresentado contra decisão que deferiu o pedido liminar. Parcial procedência para exonerar a agravante. Porém, com redução do valor da pensão alimentícia em RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 425 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA relação à irmã da agravante. Interposição de recurso de apelação. Recebimento no duplo efeito. Art. 520, CPC. Interpretação restritiva. Precedentes do STJ. Agravo Regimental julgado inadmissível e recurso provido. Os embargos de declaração de fls. 506-511 e-STJ, foram rejeitados às fls. 520-524 e-STJ. Nas razões do especial, o recorrente, A. C. de A., sustenta, em resumo, a redação do art. 14 da Lei n. 5.478/1973 é clara ao dispor que, in verbis: “(...) Da sentença caberá apelação no efeito devolutivo.” Além disso, aponta que a sua situação econômica modificou-se, substancialmente, tendo em conta o nascimento de outro filho, bem como a prestação de auxílio a seu genitor. Alega, finalmente, divergência jurisprudencial acerca do tema. (fls. 527-540 e-STJ) Devidamente intimadas, as recorridas, B. L. C. de A. e outros, não apresentaram contrarrazões (fls. 62 e-STJ). À fl. 563 e-STJ, sobreveio juízo positivo de admissibilidade recursal, oportunidade em que os presentes autos ascenderam ao Superior Tribunal de Justiça. O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do SubprocuradorGeral da República, Dr. Maurício de Paula Cardoso, opinou pelo conhecimento e provimento do presente recurso especial. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Massami Uyeda (Relator): A irresignação merece prosperar. Com efeito. Resumidamente, o recorrente, A. C. de A., moveu moveu ação de exoneração de alimentos em face de suas filhas buscando exonerar-se da obrigação alimentar, em razão da possibilidade de subsistência própria das alimentadas, bem como pela modificação de sua condição econômica, tendo em conta o nascimento de novo filho e a prestação de auxílio a seu genitor. A sentença julgou parcialmente procedente a demanda, determinando-se, por conseguinte, a exoneração dos alimentos em relação a uma de suas filhas. Interposto recurso de apelação, por ambas as partes, o eg. Tribunal de origem entendeu por bem conferir duplo efeito ao recurso de apelação interposto pelas ora recorridas, B. L. C. de A. e outros. Opostos embargos de declaração, foram rejeitados. Daí a interposição do presente recurso especial. 426 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA É cediço que, como regra geral, por um lado, o recurso de apelação deve ser recebido no efeito suspensivo e devolutivo, conforme norma prevista no artigo 520 do Código de Processo Civil. Entretanto, há casos em que será recebido apenas no efeito devolutivo, observadas as hipóteses previstas nos incisos de referido dispositivo legal. De outro lado, o artigo 14 da Lei de Alimentos, com redação dada pela Lei n. 6.014/1973, dispõe que “Da sentença caberá apelação no efeito devolutivo.” Tais dispositivos, vistos em conjunto, demandam uma exegese teleológica, considerando-se, portanto, suas características e finalidades pelas quais tem sua razão de existir. Nesse contexto, observa-se que a sentença cria uma presunção, ora em favor do alimentado, quando estabelece a obrigação, ora em favor do alimentante, quando reduz seu valor ou mesmo lhe exonera da obrigação alimentar. Dessa forma, data venia do entendimento adotado pelo egrégio Tribunal de origem, deve prevalecer o comando do art. 14 da Lei de Alimentos que, seja para exonerar, reduzir ou aumentar, seja para determinar o adimplemento da obrigação alimentar, determina que eventual recurso de apelação interposto contra a sentença, seja recebido apenas no efeito devolutivo. Em resumo: a apelação interposta contra sentença que julgar pedido de alimentos ou pedido de exoneração do encargo deve ser recebida apenas no efeito devolutivo. Com essa orientação, registra-se a seguinte ementa: Agravo regimental. Recurso especial. Alimentos. Exoneração. Apelação. Efeito devolutivo. Decisão agravada mantida. Improvimento. I - A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que a apelação deve ser recebida apenas no efeito devolutivo, quer tenha sido interposta contra sentença que determinou a majoração, redução ou exoneração de obrigação alimentícia. Precedentes. (...) (REsp n. 1.138.898-PR, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 25.11.2009). E ainda: RMS n. 25.837-SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe de 5.11.2008. Além disso, registra-se que, a sentença que determinou a exoneração alimentar de uma das filhas do ora recorrente, levou em conta a prova do aumento das despesas do alimentante, o que demonstra de forma concreta a possibilidade de dano irreparável, bem como a circunstância de que a ora recorrida possa exercer atividade laborativa, complementando, assim, o que é necessário ao seu sustento. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 427 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Assim sendo, dá-se provimento ao recurso especial para conferir ao recurso de Apelação interposto pelas ora recorridas apenas o efeito devolutivo, mantendo-se os ônus sucumbenciais fixados pelas Instâncias ordinárias. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.280.949-SP (2011/0186725-7) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: TVSBT Canal 4 de São Paulo S/A Advogado: Marcelo Migliori e outro(s) Recorrido: Ana Carolina Nerath Segia Advogado: Maurício Felberg e outro(s) EMENTA Processo Civil. Liquidação de sentença. Prova de parte do dano. Inexistência. Perda sem culpa das partes. Liquidação igual a zero. Extinção do processo, quanto a esta parcela, sem resolução de mérito. Possibilidade de repropositura. 1. Na hipótese em que a sentença fixa a obrigatoriedade de indenização de determinado dano, mas nenhuma das partes está em condições de demonstrar a existência e extensão desse dano, não é possível ao juízo promover a liquidação da sentença valendo-se, de maneira arbitrária, de meras estimativas. 2. Impossibilitada a demonstração do dano sem culpa de parte a parte, deve-se, por analogia, aplicar a norma do art. 915 do CPC/1939, extinguindo-se a liquidação sem resolução de mérito quanto ao dano cuja extensão não foi comprovada, facultando-se à parte interessada o reinício dessa fase processual, caso reúna, no futuro, as provas cuja inexistência se constatou. 3. Recurso especial conhecido e provido. 428 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Massami Uyeda, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Sidnei Beneti. Brasília (DF), 25 de setembro de 2012 (data do julgamento). Ministra Nancy Andrighi, Relatora DJe 3.10.2012 RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Trata-se de recurso especial interposto pela TVSBT Canal 4 de São Paulo S/A objetivando impugnar acórdão exarado pelo TJ-SP no julgamento de Agravo de Instrumento. Ação: de indenização por danos materiais e morais, ajuizada por Ana Carolina Nerath Segia em face da recorrente. Alega a autora, na inicial, que sua imagem foi indevidamente utilizada pela ré, por uma semana, em no programa televisivo “Aqui Agora”, do SBT. Na arquibancada de um Estádio de futebol, ela foi flagrada por câmeras quando, ao trocar de camisetas, teve seu seio exposto involuntariamente por alguns instantes. A autora tinha apenas quinze anos de idade na época dos fatos e sua imagem teria sido repetida inúmeras vezes pela emissora, em tom jocoso, levando-a a profundo constrangimento. Sentença: julgou procedente o pedido formulado, condenando a emissora a pagar indenização por dano moral em valor equivalente a cem salários mínimos, mais danos materiais a serem fixados em liquidação de sentença. A sentença não foi modificada em recurso e, portanto, transitou em julgado. Liquidação: depois de paga a parcela líquida da indenização, relativa aos danos morais, deu-se início à liquidação do montante equivalente aos danos materiais. Muita dificuldade foi encontrada nesse momento, tendo em vista que a ré, aqui recorrente, alegou não ter mais em seu poder as fitas do programa, que fora ao ar mais de 20 anos atrás, em 1991. Inicialmente, portanto, ela afirmou, RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 429 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA em petição de fls. 578 a 582 (e-STJ), que na semana dos fatos foram veiculados seis programas “Aqui Agora”, nos em cada um dos quais ocorreram uma inserção de oito segundos. Assim, ela depositou o valor de R$ 115.776,70 em juízo. Essa pretensão foi impugnada pela autora, aqui recorrida, por dois motivos: em primeiro lugar, porque levava em conta apenas os oito segundos em que a autora aparece na reportagem, e não o tempo total de sua duração, de 55 segundos, à medida que toda a reportagem foi dedicada a exposição pública da menor; segundo, porque o cálculo apenas levou em consideração a própria veiculação da reportagem, no programa televisivo, desconsiderando as inúmeras vezes em que a imagem da recorrente foi ilicitamente utilizada durante as chamadas comerciais desse programa, ao longo de toda a programação da emissora. Seria, assim, necessária a apresentação de toda a grade de programação do período, que a ré alegava não mais possuir (fls. 602 a 609, e-STJ). O impasse prosseguiu, com a constante afirmação, pela ré, de que a Autora não a notificou, à época dos fatos, para que conservasse as imagens do programa, de modo que, em procedimento de praxe, os respectivos rolos de filme foram reutilizados. Não haveria, na emissora, nem a reportagem reclamada, e muito menos as chamadas comerciais a ela relativas, que são destruídas em prazo muito mais curto. O atendimento à pretensão da autora seria, assim, impossível. A ré também ponderou que a praxe televisiva é a de não promover chamadas de programas jornalísticos, mas apenas “flashes” de 15 segundos, uma vez por dia, apresentados pouco tempo antes do início do jornal, nos quais todas as reportagens que serão apresentadas são sumarizadas. Decisão: fixou em R$ 1.095,25 o valor do segundo televisivo à época. Multiplicou esse valor por oito segundos, que é o tempo de aparição da autora em cada programa, e por seis vezes, equivalentes a seis programas televisivos. No que diz respeito às chamadas, ou “flashes” do programa, o juízo calculou o tempo total de exposição da imagem da autora em todo o programa “Aqui Agora” e, aplicando-o proporcionalmente, calculou que sua exposição fora de 0,594 segundos, em cada flash de 15 segundos, sempre por estimativa. O número de flashes veiculado em cada dia foi estabelecido com base na quantidade de flashes que o programa SBT Reporter tem, atualmente. Determinou-se que a ré preste essa informação. Tal decisão foi impugnada por agravos de instrumento interposto por ambas as partes. Acórdão: deu parcial provimento ao recurso da autora e negou provimento ao recurso da ré, nos termos da seguinte ementa: 430 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Liquidação de sentença. Interposição de agravos por ambas as partes. Adotada a interpretação mais favorável ao consumidor, com base nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Recursos conhecidos. Parcialmente provido o da autora. Negado provimento ao da requerida. No corpo do acórdão, o TJ-SP ponderou que somente a TVSBT teria como demonstrar que a estimativa de exposição feita na decisão recorrida é incorreta. Não tendo, a emissora, produzido prova nesse sentido, o método de arbitramento da indenização estaria correto. Fez-se apenas uma correção, aumentando a indenização a ser paga, a ser calculada pelo total dos 15 segundos de cada flash do programa “Aqui Agora”, na época. Afastou-se, assim, a estimativa de 0,594 segundos de exposição. Embargos de declaração: interpostos por pela TVSBT, foram rejeitados, com aplicação de multa. Recurso especial: interposto pela TVSBT com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional. Alega-se violação dos arts. 333, I, 473, 475-B, 475-G, 526, 535, I e II e 538, todos do CPC, além do art. 4º da LICC. Admissibilidade: o recurso não admitido na origem, dando ensejo à interposição do Ag. n. 1.341.827-SP, a que dei provimento, determinando a subida do recurso especial para melhor apreciação da controvérsia. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a lide a definir, para além da interpretação correta do art. 526 do CPC, se é possível, em liquidação de sentença, estabelecer por estimativa o valor de uma condenação, na hipótese de inexistência de prova efetiva de parte dos danos reconhecidos na sentença. I – A multa do art. 538 do CPC. Conquanto seja patente a litigiosidade estabelecida durante a liquidação da sentença discutida neste recurso especial, não se pode acusar a recorrente de protelar o julgamento do processo. Em todos os momentos em que se fixou, de maneira clara, o valor da condenação, ela o depositou prontamente, tendo-se autorizado à recorrida o respectivo levantamento. Além disso, em dado momento durante a liquidação, a recorrente havia interposto agravo RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 431 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de instrumento para discutir uma das decisões proferidas mas, depois, de maneira razoável, desistiu do recurso, colaborando, na medida do possível, para o melhor andamento do processo. Sua postura, portanto, tem sido positiva. A mera interposição de embargos de declaração, por uma única vez, como ato preparatório à interposição deste recurso especial, diante da colaboração apresentada pela recorrente em outros momentos do processo, não pode dar lugar à interposição da multa do art. 538 do CPC, que fica, portanto, afastada. II – O cumprimento do prazo do art. 526 do CPC. Em que pese a irresignação da recorrente, a interpretação da regra do art. 526 do CPC está pacificada, no âmbito do STJ, em torno do precedente exarado no julgamento do Recurso Especial em Controvérsia Repetitiva n. 1.008.667SP (Rel. Min. Luiz Fux, Corte Especial, DJ de 18.11.2009), assim ementado, na parte que interessa para este julgamento: Processual Civil. Recurso especial representativo da controvérsia. Art. 543C do CPC. Agravo de instrumento. Art. 526 e § único do CPC. Necessidade de manifestação do agravado. Impossibilidade de conhecimento “ex officio”, ainda que não citado o agravado. (...) 2. Destarte, o descumprimento das providências enumeradas no “caput” do art. 536 do CPC, adotáveis no prazo de três dias, somente enseja as consequências dispostas em seu parágrafo único se o agravado suscitar a questão formal no momento processual oportuno, sob pena de preclusão. 3. Doutrina clássica sobre o tema leciona que (...) Na falta de arguição e prova por parte do agravado, o Tribunal não poderá negar-se a conhecer do agravo – salvo, é claro, com fundamento diverso – ainda que lhe chegue por outro meio a informação de que o agravante se omitiu. A disposição expressa do parágrafo afasta a incidência do princípio geral segundo o qual o órgão “ad quem” controla “ex officio” a admissibilidade do recurso”. (...) A recorrente sustenta que esse entendimento deve sofrer mitigação, à medida que há “petição informando sobre o desrespeito ao preceito legal” (...) “encartada aos autos (fls. 192 do agravo apensado) antes da conclusão para o voto condutor” (fl. 807, e-STJ). Contudo, se o precedente aponta a existência de um dever de arguir o descumprimento do art. 526 nas contrarrazões de agravo, sob pena de preclusão, não há espaço para aplicar o temperamento pretendido pelo recorrente. 432 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Não conheço, portanto, da violação do art. 526 do CPC por força do Enunciado n. 286 da Súmula-STF. III – A prova, a liquidação e a impossibilidade de resgate de dados sobre veiculação do programa. Violação dos arts. 333, I, 475-B, 475-E e 475-F, todos do CPC, bem como art. 6º, VIII do CDC. A recorrente afirma que foi obrigada a produzir prova negativa nos autos. Diz que o Juízo de Primeiro Grau constatou, durante o processo de liquidação, que os rolos originais nos quais estavam registradas as chamadas (ou “flashes”) do programa “Aqui Agora” – bem como os rolos com a gravação do próprio programa – perderam-se e que, destarte, seria impossível resgatar, com segurança, o número exato de exibições da imagem da autora, aqui recorrida. Não obstante, teria obrigado a recorrente a provar dados que ele mesmo reputou irrecuperáveis. Para a recorrente, “a prova incumbe a quem afirma e não a quem nega”, de modo que haveria, nesse procedimento, ofensa ao art. 333, I, do CPC. Também haveria um procedimento anômalo de liquidação de sentença, ao arrepio das normas dos arts. 475-B e seguintes, do CPC. Para dirimir a questão, é necessário ressaltar, em primeiro lugar, que a perda das fitas, de fato, se deu sem culpa de nenhuma das partes. Com efeito, à época dos fatos, no ano de 1991, ainda se encontrava vigente (ao menos do ponto de vista formal) a antiga Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/1967), que em seu art. 58 determinava que “as empresas permissionárias ou concessionárias de serviços de radiodifusão deverão conservar em seus arquivos, pelo prazo de 60 dias, e devidamente autenticados, os textos dos seus programas, inclusive noticiosos”. Para conservação do material por mais tempo, seria necessário que o Ministério Público ou a pessoa interessada tivesse notificado a emissora, dentro desse prazo (art. 58, § 3º). Independentemente da posterior declaração de não-recepção dessa Lei, promovida pelo STF no ano de 2009, é inegável que à época dos fatos todos os veículos de telecomunicação atendiam a seus pressupostos, o que não poderia ser considerado um ato de máfé. Os registros da reportagem, portanto, foram legitimamente destruídos pela emissora, tornando-se irrecuperáveis. Por outro lado, a exigência de que a recorrida notificasse o SBT para manter os rolos no exíguo prazo de 60 dias fixado pelo art. 58, § 3º da Lei de Imprensa também não poderia justificar a imposição, a ela, da culpa pela RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 433 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA perda do material. Como sobejamente apontado neste processo, a recorrida, à época dos fatos, contava com apenas 15 anos de idade. Ainda que pudesse ser representada por seus pais nos atos da vida civil, como facultava o art. 84 do CC/1916 (vigente à época), não se poderia impor a ela a obrigação de notificar a emissora no curto prazo da Lei de Imprensa, por força da regra do art. 169, I, do CC/1916, que expressamente afastava o curso da prescrição contra incapazes, a exemplo do que faz, hoje, o art. 198, I, do CC/2002. Dizer, por outro lado, que esse prazo deveria ser contado a partir do momento em que a recorrida atingiu a maioridade, em 1997, seria inútil, uma vez que segundo as informações prestadas durante o processo pela TVSBT os rolos de fita já estavam destruídos nessa data. Não há, portanto, culpados pela perda do material. A primeira consequência que se extrai dessa constatação é a de que não estamos, aqui, no âmbito do art. 475-B, §§ 1º e 2º, do CPC. Referidas norma estabelecem que “quando a elaboração da memória de cálculos [de liquidação] depender de dados existentes em poder do devedor ou de terceiro, o juiz, a requerimento do credor, poderá requisitá-los” e que “se os dados não forem, injustificadamente, apresentados pelo devedor, reputar-se-ão corretos os cálculos apresentados pelo credor”. Se a destruição dos rolos de filme era facultada pela lei, não se pode dizer que a não apresentação do material seja um ato injustificado. Resta, portanto, estabelecer como deve se dar a liquidação da sentença nessas condições. Não se está, aqui, discutindo os valores já pagos pela TVSBT. Os cem salários mínimos depositados a título de dano moral, e os R$ 115.776,70 pagos pelas 6 exibições de 8 segundos da imagem da autora no programa “Aqui Agora” já são certos, não havendo, quanto a eles, qualquer impugnação. São, portanto, já mais de duzentos mil reais pagos à recorrida em função deste processo. A partir desses pagamentos, contudo, encerrou-se qualquer possibilidade de manter a indenização aqui discutida num campo de certeza. Seu montante, a partir daí, passou a ser estabelecido por meio de meras estimativas do juízo. Com efeito, o juízo de primeiro grau, considerando que não seria factível a afirmação da TVSBT de que veiculou a imagem da autora apenas por seis vezes, já que isso “afronta a inteligência de quem um dia já assistiu televisão, notadamente o SBT”, ordenou que a emissora, em 15 dias, apresentasse “a grade atual indicando quantas ‘chamadas’ são feitas durante o dia para os programas que são exibidos no SBT a partir das 18:00 hrs, e o valor pago pelos anunciantes 434 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA por segundo nos respectivos horários destas inserções” (fl. 654, e-STJ). Após algumas impugnações de ambas as partes, apontando a inconveniência desse critério, por parte emissora, ou a sua insuficiência, por parte da recorrida, S.Exa. deixou estabelecido que: (...) não há, de fato, como determinar por quanto tempo a autora apareceu em cada uma das chamadas ou “flashes” vinculados para anunciar os seis programas “Aqui Agora” em que veiculadas as reportagens de 55 segundos, pois o executado afirma não ter mais as “fitas” com tais gravações em seus arquivos. Como já dito, tal circunstância não pode inviabilizar a execução da sentença, pois a condenação é certa, e engloba também este aspecto. (...) O Total do “flash” (15s) representa 27,27% do total da reportagem (55s). Esta a dimensão, então, que deve ser dada à chamada destinada à reportagem dentro do “flash”, quando então obteremos que dentro de cada “flash” o tempo destinado à dita matéria (de 55 s) foi de aproximadamente 4,09 segundos. Presumivelmente, então, o tempo de exposição da imagem da autora dentro destes “flashes”, utilizando-se o raciocínio até aqui engendrado, seria 14,54% dos 4,09 segundos, que representam 0,594 segundos. (...) Resta, então, sabermos quantos “flashes” foram veiculados nos seis dias. Também aqui não há resposta exata em virtude da inexistência alegada e absolutamente provável das gravações, de longínquo período. Tomarei por base, então, a quantidade de “flashes” diários, desde que efetivamente existentes, do programa “SBT Brasil”, que deverão ser indicadas pelo requerido. Chama a atenção nesse trecho da decisão proferida o enorme esforço intelectual empreendido para chegar-se a uma ideia aproximada de quanto tempo a imagem da autora apareceu nos reclames comerciais. No critério estabelecido, contudo, pode-se dizer que há muitas dúvidas e só uma certeza: a de que, por melhor que seja a intenção do juízo, o critério por ele adotado não reflete a realidade, à medida que nada, na televisão, acontece em apenas 0,5 segundos. Navega-se, claramente, num mar de presunções e estimativas. O TJ-SP, por sua vez, ao julgar o agravo de instrumento, corporificou a indenização pelo mesmo processo de presunções, mas foi além: estabeleceu o tempo de exposição da imagem da autora em 15 segundos por “flash”, como se em todas as chamadas do programa “Aqui Agora”, em toda a programação do SBT, a figura da autora com os seios de fora fosse exposta durante todo o tempo, ininterruptamente. Aliás, por esse raciocínio, a exposição da autora durante RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 435 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA os “flashes” do programa, de 15 segundos, seria maior que sua exposição na própria reportagem, que tem apenas 8 segundos. Também é uma estimativa que claramente se afasta da realidade. Todo o procedimento adotado, portanto, deve ser reputado inválido. O CPC não autoriza, fora das hipóteses do art. 475-B, §§ 1º e 2º, o recurso a presunções para estabelecer o montante da indenização devida. Se não é possível avaliar qual o montante total do dano causado, a única solução possível é a de se proceder a liquidação até o limite em que é possível aferir o valor devido em um grau aceitável de certeza. O valor remanescente, contudo, se não pode ser apurado com base nesse critério, não deve ser indenizado. Situações como a dos autos não contam com previsão expressa no CPC. Quando ainda vigorava o CPC/1939, o respectivo art. 915 permitia o estabelecimento de non liquet, com extinção da liquidação sem resolução de mérito e eventual repetição do procedimento, no futuro, caso se tornasse possível apresentar a prova necessária para a condenação. Dispunha referida norma legal: Art. 915. Si (sic) as provas não oferecerem elementos suficientes para que o juiz determine o valor da condenação, o liquidante será condenado nas custas, procedendo-se a nova liquidação. Conquanto essa regra não tenha sido repetida no código vigente, a ideia que ela encerra deve ser aproveitada para a solução deste processo. Sendo impossível apurar, na liquidação, o montante devido pela parte da condenação relativa aos “flashes” comerciais, o processo deve ser extinto sem resolução do mérito facultando-se à autora, aqui recorrida, reiniciar a liquidação no futuro, caso reúna, com novos elementos, provas suficientes para revestir de certeza seu direito à reparação. Nesse sentido é a opinião de DINAMARCO (Instituições de Direito Processual Civil, IV, 3ª edição: São Paulo, PC Editorial Ltda., p. 730): Questão associada a esta, mas com maior ocorrência na prática, é a do juiz que, em liquidação, não se sente suficientemente instruído para concluir afirmando qual será o valor da obrigação e pronuncia em sentença um “non liquet”; aqui não nega a existência de um valor positivo, mas declara o juiz não saber, à luz dos autos e da instrução, quanto é devido. O Código de Processo Civil de 1939 dava solução satisfatória a essa dificuldade (...). Mesmo não havendo o vigente Código de Processo Civil reproduzido um dispositivo como aquele, é mais do que razoável o entendimento de que a mesma regra continua se impondo, a saber: a regra de que, à falta de provas, o juiz extinguiria o processo de liquidação sem julgamento do mérito, sendo as partes autorizadas a propor nova liquidação, 436 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA mediante nova iniciativa, até porque uma sentença terminativa não obtém a autoridade da coisa julgada e portanto não impede a reiteração da demanda. É terminativa e não de mérito a sentença que declara nada decidir no processo de liquidação porque faltam elementos de convicção para tanto. Forte nessas razões, conheço do recurso especial e lhe dou provimento para o fim de (i) afastar a multa imposta pela apresentação de embargos de declaração, perante a Corte de origem; (ii) reformar o acórdão recorrido, extinguindo a liquidação sem resolução do mérito quanto à parcela relativa aos “flashes” do programa “Aqui Agora”, distribuídos na programação da semana dos fatos. Faculta-se à recorrida reiniciar a liquidação quanto a esta parcela, caso reúna provas da veiculação dos “flashes”, bem como da extensão da exposição de sua imagem nos mesmos. RECURSO ESPECIAL N. 1.325.487-MT (2011/0312081-5) Relator: Ministro Sidnei Beneti Recorrente: Fiat Automóveis S/A Advogados: Marcos Joaquim Goncalves Alves e outro(s) Bruno Batista Lobo Guimaraes e outro(s) Recorrido: Sandro Queiroz Goncalves Advogado: Kezia Alves de Paula Braga EMENTA Direito Processual Civil. Direito do Consumidor. Danos materiais e morais pelo fato do produto. Inversão do ônus da prova. Hipossuficiência. Ampla defesa. 1. - Para garantia do exercício do direito de ampla defesa do consumidor, estabelece-se a possibilidade a inversão do ônus da prova em seu benefício quando a alegação por ele apresentada seja verossímil ou, alternativamente, quando for constatada a sua hipossuficiência. 2. - A hipossuficiência a referida pela Lei n. 8.078/1990 na parte em que trata da possibilidade de inversão do ônus da prova está RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 437 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA relacionada, precisamente, com o exercício dessa atividade probatória, devendo ser compreendida como a dificuldade, seja de ordem técnica seja de ordem econômica, para se demonstrar em juízo a causa ou a extensão do dano. 3. - Há de se atentar, porém, para que não seja imputado ao réu o ônus de uma prova que foi inviabilizada pelo próprio autor, o que não sucede na hipótese dos autos. 4. - Não é possível, em sede de recurso especial, examinar se os documentos que instruem a petição inicial constituem lastro probatório suficiente ou se a prova pericial (indireta) podia ser validamente dispensada, tendo em vista a Súmula n. 7-STJ. 5. - Recurso Especial a que se nega provimento, com observação de que todo o manancial probatório deverá ser ulteriormente ponderado, afastando-se similitude entre inversão de ônus da prova com confissão ficta de matéria fática. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Massami Uyeda votaram com o Sr. Ministro Relator. Dr(a). Rodrigo Ruf Martins, pela parte recorrente: Fiat Automóveis S/A. Brasília (DF), 28 de agosto de 2012 (data do julgamento). Ministro Sidnei Beneti, Relator DJe 14.9.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1. - Fiat Automóveis S/A interpõe recurso especial com fundamento nas alíneas a e c do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do 438 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Estado do Mato Grosso, Relator o Desembargador Guiomar Teodor Borges, assim ementado (fls. 173): Agravo de instrumento. Ação de indenização. Acidente automobilístico. Veículo com defeito de fabricação. Relação de consumo. Hipossuficiência técnica. Reconhecida. Inversão do ônus da prova. Possibilidade. Decisão mantida. Recurso desprovido. Presentes um dos requisitos previstos no art. 6º, VIII, do CDC, quais sejam, a verossimilhança da alegação do consumidor ou a hipossuficiência deste, de rigor o deferimento da inversão do ônus da prova. 2. - Os embargos de declaração opostos (fls. 76-79) foram rejeitados (fls. 82-85). 3. - Trata-se, na origem, de uma ação ordinária (fls. 21-35) proposta por Sandro Queiroz Goncalves contra Fiat Automóveis S/A, visando à condenação desta ao pagamento de danos morais e materiais decorrentes de fato do produto. Narrou que no dia 30.8.2008, por volta das 04h30, conduzia regularmente o seu veículo, um Fiat/Palio 1.8R de cor vermelha, recém adquirido, quando a roda traseira esquerda se desprendeu em razão de um defeito no “cubo”, fazendo o carro capotar. Relatou, ainda, que, após o acidente, o veículo foi guinchado para uma concessionária da Fiat em Barra do Garças, onde funcionário da empresa retirou a peça supostamente defeituosa para perícia de cuja resultado ou mesmo realização não chegou a ter notícia. 4. - Em contestação, a Ré alegou que não foi apresentada nenhuma prova de que o acidente se deu pelo desprendimento da roda. Segundo sustenta isso ocorreu como resultado do grave acidente a que deu causa o autor por negligência na direção do veículo e não como causa desse mesmo acidente. Além disso, a versão dos fatos apresentada na inicial não seria verossímil, pois se a roda tivesse se soltado com o carro em movimento, o conjunto de freio teria sofrido graves avarias já que entraria em contato direto com o asfalto, suportando todo o peso do carro. Acrescentou que prontificou a periciar a peça supostamente defeituosa, mas que o Autor não autorizou a realização dessa perícia e que não há prova de que a peça tenha sido retirada, não sendo possível localizar o seu paradeiro, porque o autor, após consertar o veículo, alienou o bem a terceiro sob a escusa de que necessitava do dinheiro para suportar o valor pago na restauração deste, inviabilizando, assim, a produção de perícia direta. 5. - No curso desse feito, o Juiz da causa deferiu o pedido de inversão do ônus da prova e indeferiu o pedido de produção de prova pericial indireta formulado pela Ré, em decisão assim exarada (fls. 126-127): RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 439 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (...) Inicialmente, destaco que se mostra presente ao menos um dos requisitos para a inversão do ônus da prova, posto que diante de evidente conflito consumerista e latente hipossuficiência econômica e técnica do requerente em relação a requerida, empresa automobilística multinacional italiana com atuação em diversas partes do Globo. Assim sendo, inverto, com fulcro no art. 6º, inciso VIII, da Lei n. 9.078/1990 e na fundamentação retro, inverto o ônus da prova em favor do consumidor/ requerente. (...) Quanto às provas, desde já, defiro a produção da prova oral consubstanciada no depoimento das partes e das testemunhas, (...) No que pertine a prova pericial indireta pleiteada, entendo ser a mesma prescindível, uma vez que os fatos a serem provados pela requerida neste ponto podem o ser por intermédio de oitiva de testemunha, para tanto bastando ser arrolado um técnico com conhecimento em mecânica de automóveis. 6. - O Tribunal de origem negou provimento ao Agravo de Instrumento interposto contra essa decisão, consoante se extrai da ementa antes reproduzida. 7. - A Fiat Automóveis S/A interpôs, assim, o presente Recurso Especial, alegando, em síntese, que, no caso presente, não poderia ter sido invertido o ônus da prova com fundamento no artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, porque: a) A versão dos fatos narrada na petição inicial, de que a roda do veículo teria se desprendido espontaneamente, às 4h30min da madrugada de um sábado, em plena rodovia, não é verossímil. Segundo afirma, o mais provável é que o malsinado acidente tenha ocorrido porque o autor, um motorista jovem, trafegava em alta velocidade quando passou por um buraco da pista mal iluminada. b) Não estaria presente o requisito da hipossuficiência exigido pela norma consumerista. Em primeiro lugar, porque seria necessário, inicialmente, submeter o veículo a uma perícia que apontasse as possíveis causas do acidente, para só então avaliar se o consumidor estava ou não estava em posição mais desfavorável para realizar esta ou aquela prova. Em segundo lugar, porque hipossuficência, se houvesse, seria da própria Fiat, que não teve acesso ao veículo para periciá-lo, que não teve esclarecimentos quanto ao local do acidente nem quanto ao estado de conservação do automóvel. 440 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Paralelamente, destaca que o consumidor deveria ter instruído a inicial com um lastro probatório mínimo, sob pena de ofensa ao artigo 333, I, do Código de Processo Civil. Acrescenta que o veículo sinistrado foi alienado a terceiros, de modo que não era mais possível a perícia direta, mas apenas a indireta, a realizar-se sobre documentos (fotografias do acidente). Nessa medida, não se poderia indeferir o pedido de perícia técnica indireta, nem afirmar que ela poderia ser substituída pela oitiva de um técnico com conhecimento em mecânica de automóveis. O Tribunal de origem assim não entendendo, teria violado os artigos 130 e 400, II, do Código de Processo Civil. 8. - Não admitido na origem, o Recurso Especial teve seguimento por força de Agravo a que se deu provimento (fls. 260-261). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 9. - Na linha dos precedentes desta Corte, para que se dê a inversão do ônus da prova previsto no artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor, é necessário a presença alternativa e não cumulativa dos requisitos previstos na referida norma: verossimilhança e hipossuficência. Assim, estando presente um deles é o que basta para que o juiz decida pela inversão do ônus probatório. Nesse sentido: Consumidor. Recurso especial. Ação de reparação por danos materiais e de compensação por danos morais. Ocorrência de saques indevidos de numerário Depositado em conta poupança. Inversão do ônus da prova. Art. 6º, VIII, do CDC. Possibilidade. Hipossuficiência técnica reconhecida. Responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços. Art. 14 do CDC. 1. Trata-se de debate referente ao ônus de provar a autoria de saque em conta bancária, efetuado mediante cartão magnético, quando o correntista, apesar de deter a guarda do cartão, nega a autoria dos saques. 2. O art. 6º, VIII, do CDC, com vistas a garantir o pleno exercício do direito de defesa do consumidor, estabelece que a inversão do ônus da prova será deferida quando a alegação por ele apresentada seja verossímil ou quando for constatada a sua hipossuficiência. 3. Reconhecida a hipossuficiência técnica do consumidor, em ação que versa sobre a realização de saques não autorizados em contas bancárias, mostra-se imperiosa a inversão do ônus probatório. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 441 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (REsp n. 1.155.770-PB, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 9.3.2012); Agravo regimental no agravo de instrumento. Inversão do ônus da prova. Art. 6º, VIII, do CDC. Requisitos. Hipossuficiência do consumidor ou verossimilhança das alegações. Análise em sede de recurso especial. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. 1. A inversão do ônus da prova depende da aferição, pelo julgador, da presença da verossimilhança das alegações ou da hipossuficiência do consumidor, a teor do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. (AgRg no Ag n. 1.247.651-SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 20.10.2010). 10. - No caso dos autos, o Tribunal de origem não se manifestou de forma clara quanto à verossimilhança das alegações trazidas na petição inicial, afirmando que a inversão do ônus da prova era cabível, porque presente a hipossuficiência econômica e técnica do consumidor. A propósito manifestou-se nos seguintes termos (fls. 176-177): Na espécie, não se pode negar a hipossuficiência econômica e técnica do autor agravado em relação à agravante. Como bem lembrou o magistrado, trata-se de empresa automobilística multinacional de origem italiana, com atuação em diversos países do globo, possui, portanto, aprimorado conhecimento técnico para apurar a causa do desprendimento da roda traseira esquerda do veículo, que, ao que tudo indica, a época do acidente estava na garantia de fabrica. Assim, em razão de o consumidor não dispor dos mesmos conhecimentos técnicos que possui a empresa fabricante do veículo, impõe-se o reconhecimento da hipossuficiência, a fim de incidir na espécie a inversão do ônus da prova, com fundamento no art. 6º, VIII, do CDC, a efeito de facilitar os meios de sua defesa. 11. - Malgrado os argumentos trazidos pela Recorrente, relativos à necessidade de submeter o veículo a uma perícia para apontar as possíveis causas do acidente sem o que não seria possível afirmar se as provas necessárias eram ou não de difícil produção, o fato é que não há como negar a hipossuficiência do consumidor no caso em análise. Como se sabe, a hipossuficiência a referida pela Lei n. 8.078/1990 na parte em que trata da possibilidade de inversão do ônus da prova é a dificuldade, seja de ordem técnica seja de ordem econômica, para se demonstrar em juízo a causa ou a extensão do dano. De fato não há como pretender que o consumidor, na hipótese descrita, tivesse condições de comprovar a ocorrência do defeito de fabricação que, segundo alega, levou ao resultado danoso. 442 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Nesses termos não haveria obstáculo ao deferimento do pedido de inversão do ônus probatório, imputando-se à Ré o ônus processual de demonstrar que o acidente não ocorreu por defeito do produto fabricado por ela. 12. - É preciso atentar, porém, para que a referida inversão, diante das peculiaridade do caso concreto, não atente contra o princípio constitucional da ampla defesa. Perceba-se que a preocupação com o princípio da ampla defesa não se coloca em função da mesma dificuldade que semeou, durante muitos anos, divergência de posicionamentos entre a 3ª e e 4ª Turma a respeito do momento processual em que a inversão do ônus probatório deve ser determinada pelo juiz. Sobre esse tema, a propósito, a 2ª Seção desta Corte em data recente já assinalou que: Recurso especial. Consumidor. Responsabilidade por vício no produto (art. 18 do CDC). Ônus da prova. Inversão “ope judicis” (Art. 6º, VIII, do CDC). Momento da inversão. Preferencialmente na fase de saneamento do processo. A inversão do ônus da prova pode decorrer da lei (“ope legis”), como na responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço (arts. 12 e 14 do CDC), ou por determinação judicial (“ope judicis”), como no caso dos autos, versando acerca da responsabilidade por vício no produto (art. 18 do CDC). Inteligência das regras dos arts. 12, § 3º, II, e 14, § 3º, I, e 6º, VIII, do CDC. A distribuição do ônus da prova, além de constituir regra de julgamento dirigida ao juiz (aspecto objetivo), apresenta-se também como norma de conduta para as partes, pautando, conforme o ônus atribuído a cada uma delas, o seu comportamento processual (aspecto subjetivo). Doutrina. Se o modo como distribuído o ônus da prova influi no comportamento processual das partes (aspecto subjetivo), não pode a a inversão “ope judicis” ocorrer quando do julgamento da causa pelo juiz (sentença) ou pelo Tribunal (acórdão). Previsão nesse sentido do art. 262, § 1º, do Projeto de Código de Processo Civil. A inversão “ope judicis” do ônus probatório deve ocorrer preferencialmente na fase de saneamento do processo ou, pelo menos, assegurando-se à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo, a reabertura de oportunidade para apresentação de provas. Divergência jurisprudencial entre a Terceira e a Quarta Turma desta Corte. Recurso especial desprovido. (REsp n. 802.832-MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Segunda Seção, DJe 21.9.2011). RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 443 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A preocupação com o princípio da ampla defesa se justifica, porque consta dos autos a notícia de que o veículo foi vendido pelo Autor após o acidente o que tornaria tornaria impossível a realização de perícia sobre a peça supostamente defeituosa. Em linha de princípio não soa razoável afirmar que o ônus da prova deve ser deslocado do autor para o réu, imputando-se a este a “obrigação” de provar determinado fato, sendo que a produção da prova, essencial à defesa, teria sido inviabilizada pelo próprio autor. Se, de fato, não há como periciar a roda porque o carro foi alienado a terceiro, a inversão do ônus da prova colocaria o réu diante da chamada prova diabólica, porque de impossível produção. Por outro lado, quando se considera que o carro foi alienado pelo Autor, a conclusão que sobressai é a de que este Autor está pretendendo imputar ao Réu o ônus de realizar um prova inviabilizada por ele próprio. 13. - Essas considerações, de capital importância para a compreensão e aplicação da regra jurídica em pauta apresentam-se, aqui, todavia, apenas para melhor situar a controvérsia. Isso, porque, na hipótese dos autos, não está claro se a peça alegadamente defeituosa estava ainda no veículo que foi alienado, como afirma a Recorrente, ou se ela foi retirada pela Concessionária de Barra do Garças onde se encontraria até hoje, como sustenta o Autor. Essa questão fática, que poderia determinar o rumo do julgamento, não foi esclarecida pelo Tribunal de origem e tampouco pode ser definida nesta sede de recurso especial, sob pena de afronta à Súmula n. 7-STJ. É preciso, portanto, que a matéria poderá seja objeto de aprofundamento na instrução para ulterior disposição na sentença. Além disso, a perícia direta sobre a peça pode não ser prova essencial à tese da defesa. Vale lembrar que a Ré requereu apenas a produção de prova indireta, isto é, o exame pelo perito quanto às fotografias constantes do autos. Assim não será possível afirmar, de forma categórica, que a atividade probatória imputada ao réu por conta da aplicação do artigo 6º, VII, do Código de Defesa do Consumidor, foi inviabilizada pelo próprio autor, já que viabilizada a perícia indireta. 14. - O acórdão recorrido, na parte relativa à determinação da inversão do ônus probatório não merece reforma, portanto. Isso porque, repita-se, não é possível afirmar que a produção da prova necessária ao adequado julgamento da causa tenha sido inviabilizada pelo próprio consumidor. 444 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 15. - No que concerne à necessidade de instrução da inicial com um lastro probatório mínimo e, bem assim, com relação à dispensa da prova pericial (indireta), observa-se que a questão está circunscrita à matéria fático probatória. Nesse sentido, a interpretação analógica que se extrai dos seguintes precedentes: Agravo regimental. Sistema Financeiro da Habitação. Capitalização de juros na aplicação da Tabela Price. Revisão dos valores do Seguro Susep. Oportunidade para produção de prova oral. Incidência da TR na atualização do saldo devedor. Critério de amortização do saldo devedor. Repetição em dobro do indébito. (...) III - Não configura cerceamento de defesa o julgamento da causa, sem a produção de prova pericial, quando o Tribunal de origem entender substancialmente instruído o feito, declarando a existência de provas suficientes para seu convencimento. Incidência da Súmula n. 7 deste Superior Tribunal de Justiça. (AgRg no REsp n. 913.093-RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 22.8.2008). Processual Civil. Mútuo. SFH. União. Litisconsorte passiva. Afastamento. Produção de prova. Perícia. Cerceamento de defesa. Reexame fático. Súmula n. 7-STJ. Juros remuneratórios. Capitalização. Impossibilidade. (...) 2 - Se as instâncias ordinárias entenderam suficientes para julgamento da causa as provas constantes dos autos, não cabe a esta Corte afirmar a ocorrência de cerceamento de defesa. Precedentes. (REsp n. 662.145-CE, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, DJ 23.5.2005). 16. - Observa-se, contudo, que o fato da inversão do ônus da prova não significa impedimento de produzir prova por parte do acionado, nem exonera o Juízo de, na instrução, aprofundar as fontes de prova, inclusive eventualmente determinado a conversão do julgamento em diligência para o deslinde de pontos que não tenham sido bem esclarecidos e sejam necessários ao julgamento, na liberdade jurisdicional de apreciação da prova e de seus ônus, inclusive os decorrentes da inversão - de modo que, a rigor, todo o manancial probatório, inclusive, repita-se, o resultante da inversão, deverá ser ponderado e analisado na sentença, afastada qualquer similitude da inversão do ônus da prova com a confissão ficta de matéria fática. 17. - Ante o exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial com observação (item 16). RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 445 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Srs. Ministros, acompanho integralmente o eminente Relator. E penso que a inversão do ônus da prova decorre da própria Lei (no art. 12, § 3º, I, CDC). É a inversão automática do ônus da prova, não por ato do Juiz, mas por ato do próprio legislador. Então, nem precisaria o Tribunal fazer a inversão. No entanto, em relação especificamente à questão da perícia indireta penso que, se determinássemos agora, estaríamos ferindo os poderes instrutórios do Juiz. Uma Corte Superior se transformaria em um Tribunal de instrução. Na verdade, não houve propriamente o indeferimento da prova, mas a possibilidade de uma prova testemunhal para a comprovação desses fatos, sem necessidade da perícia indireta. Com essas breves observações, acompanho integralmente o voto do eminente Relator, negando provimento ao recurso especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.342.754-RJ (2011/0115294-9) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Recorrente: ABCDW 2000 Empreendimento Imobiliário S/A Advogados: Patricia Vasques de Lyra Pessoa Roza e outro(s) João Felipe Ribeiro e outro(s) Rodrigo Fux e outro(s) Recorrido: Fundação Getúlio Vargas Advogada: Maria Rita de Cassia Figueiredo Pinto e outro(s) Advogados: Cristiane Medeiros Brito C Frota e outro(s) Spencer Daltro de Miranda Filho e outro(s) Eduardo Antonio Lucho Ferrão e outro(s) Rodrigo Magalhães e outro(s) EMENTA Recurso especial. Ação de reintegração de posse ajuizada pela promitente-vendedora com alegação de inadimplemento de contrato 446 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA de compromisso de compra e venda. Deferimento de liminar sem prévia manifestação judicial acerca da resolução do contrato. Eficácia da cláusula resolutiva expressa. Precedentes. Construção de prédio no imóvel litigioso em estágio avançado. Acessão inversa. Aplicação da regra do parágrafo único do art. 1.255 do Código Civil. Recurso especial desprovido. 1 - Contrato de promessa de compra e venda de imóvel celebrado no ano 2000 entre as partes para a construção de um edifício comercial de 19 andares, incluindo Centro Cultural, projetado por Oscar Niemeyer, na Praia do Botafogo, na Cidade do Rio de Janeiro, permutando-se por área construída. 2 - Demora de vários anos no início da execução da obra ensejada pela propositura de ação civil pública, cuja decisão final apenas transitou em julgado em 2008. 3 - Desentendimento posterior entre as partes, ensejando a propositura de duas ações judiciais contrapostas (ação ordinária pela promitente compradora e ação de reintegração de posse pela promitente vendedora), no final de 2009, com pedidos de liminar. 4 - Concessão de liminar de reintegração de posse em favor da promitente-vendedora (FGV), confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 5 - Polêmica em torno da possibilidade de resolução automática do contrato de promessa de compra e venda, mediante simples notificação extrajudicial, em face da existência de cláusula resolutiva expressa. 6 - Ausência de formulação de pedido de resolução judicial do contrato na petição inicial da ação de resolução do contrato. 7 - Fato superveniente consistente no início da execução da obra, tendo sido concluído entre 40% e 65% do cronograma previsto no projeto inicial. 8 - Aplicação da regra do parágrafo único do art. 1.255 do Código Civil de 2002, que introduziu a hipótese de acessão invertida no Direito brasileiro. 9 - Reconhecimento da boa-fé da promitente-vendedora, que deu início às obras, com base em liminar de reintegração de posse, confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 447 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 10 - Manutenção da promitente-vendedora na posse do imóvel, relegando-se a fixação de eventual indenização para as instâncias ordinárias nos processos em andamento. 11 - Doutrina e jurisprudência acerca dos temas debatidos. 12 - Recurso especial desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Massami Uyeda. Dr(a). Eduardo Antonio Lucho Ferrão, pela parte recorrida: Fundação Getúlio Vargas. Dr(a). Sérgio Bermudes, pela parte recorrente: ABCDW 2000 Empreendimento Imobiliário S/A. Brasília (DF), 23 de outubro de 2012 (data do julgamento). Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator DJe 5.11.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial interposto por ABCDW 2000 Empreendimento Imobiliário S/A em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que negou provimento a agravo de instrumento por ela apresentado contra decisão que concedera liminar em ação de reintegração de posse movida pela Fundação Getúlio Vargas. Na origem, foram propostas demandas recíprocas pelas duas partes (ação ordinária pela promitente compradora e ação de reintegração de posse pela promitente vendedora), com pedidos de liminar, relacionadas ao mesmo contrato de promessa de compra e venda de um terreno na Praia do Botafogo, na Cidade do Rio de Janeiro. 448 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA O contrato de promessa de compra e venda foi celebrado, mediante escritura pública, no dia 8 de fevereiro de 2000, entre a fundação recorrida (FGV) e a empresa Wrobel Construtora S. A. para a construção de um prédio de 19 andares, projetado pelo Arquiteto Oscar Niemeyer, contendo um centro cultural, uma cobertura e dois subsolos de garagem. O preço foi ajustado em R$ 9.300.000,00. Estabeleceu-se que seis andares do prédio e 268 vagas de garagem, além do centro cultural, ficariam para a fundação recorrida, enquanto as demais vagas de garagem e os andares restantes seriam da empresa recorrente. A empresa Wrobel ficou responsável pela demolição das construções existentes no terreno e a execução da obra nos termos do projeto aprovada pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. Em 6 de setembro de 2001, foram celebradas escrituras públicas de ratificação do contrato celebrado em fevereiro de 2000, bem como de cessão de direitos pela qual a Wrobel Construtora cedeu à empresa ora recorrente os direitos e obrigações assumidos na escritura anterior (e-STJ, fls. 84 e segs.). Em 24 de março de 2002, a obra foi suspensa por força de liminar concedida em ação civil pública proposta pelo Ministério Público, interrompendo a execução do contrato por mais de seis anos, até 10 de dezembro de 2008, quando transitou em julgado a sentença proferida nessa demanda (e-STJ, fls. 104 e segs.) Após o término da ação civil pública, porém, a empresa recorrente não deu início à obra por cerca por um ano, alegando pendências que inviabilizariam a sua execução, como o fato de o imóvel continuar irregular na SPU, ausência de garantias relativas ao pagamento do IPTU atrasado (sessenta milhões de reais), atraso na remição do foro do Mosteiro de São Bento, recusa na aceitação da apólice de seguro oferecida pela agravante). A fundação recorrida foi notificada pela empresa recorrente dessas pendências em 10 de agosto de 2009, que afetariam a viabilidade do empreendimento. Houve, então, em 30 de setembro de 2009, o ajuizamento de ação ordinária para o cumprimento do contrato contra a fundação recorrida para que fossem sanadas as irregularidades relativas ao terreno. Nessa demanda, pediu subsidiariamente a rescisão do contrato com a condenação da ré ao pagamento de perdas e danos (e-STJ, fls. 127 e segs.). A fundação recorrida, por sua vez, após notificar a ré para dar início às obras e, diante da demora, ajuizou, em 12 de novembro de 2009, ação RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 449 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de reintegração de posse do imóvel, alegando a implementação da cláusula resolutiva expressa existente no contrato, pedindo a concessão de liminar. Alegou ter recebido correspondência da empresa recorrente, confessando a sua incapacidade financeira para o cumprimento de suas obrigações e solicitando a anuência da fundação para a transferência de seu controle acionário para terceiro, com dilação do prazo para construção, a supressão da cláusula de multa e de obrigatoriedade para contratação dos seguros e a substituição da empresa responsável pela construção. Afirmou que, diante da negativa da fundação, propôs o processo conexo, tentando obter vantagens financeiras com seu inadimplemento. Alegou, ainda, que as escrituras foram rescindidas em 11 de novembro de 2009, quando transcorreu o prazo fixado na notificação extrajudicial para a emenda da mora ou desocupação do imóvel, na forma fixada na cláusula 10.2 da escritura pública de promessa de compra e venda (e-STJ, fls. 220 e segs). O juízo de primeiro grau apreciou os pedidos formulados nas duas demandas, tendo-os indeferido em 27 de novembro de 2009 (e-STJ, fl. 77). Posteriormente, em 18 de dezembro de 2009, novo Magistrado acolheu pedido de reconsideração formulado pela fundação recorrida, deferindo a liminar de reintegração de posse postulada pela fundação recorrida (e-STJ, fl. 82). Houve a interposição de agravo de instrumento, tendo o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por maioria, vencido a relatora, confirmado a decisão de primeiro grau, mantendo a liminar de reintegração de posse e indeferindo os pleitos da empresa recorrente. O acórdão recorrido, ao negar provimento ao agravo de instrumento interposto contra decisão que concedera a liminar na ação de ação de reintegração de posse, decidiu, no que importa ao presente recurso, que (a) não há como prosperar a alegada exceção do contrato não cumprido, por não restar configurada a apontada inadimplência da empresa autora; (b) a possibilidade de resolução do contrato, sem intervenção judicial, mas apenas com a incidência da cláusula resolutiva expressa e prévia notificação, vem sendo prestigiada pela jurisprudência do TJRJ; (c) configurado o esbulho, a fundação ré deve, de imediato, ser reintegrada na posse do imóvel, a teor do que dispõe os arts. 926 e 928 do CPC. Opostos embargos de declaração, foram rejeitados (fls. 1.291-1.299). No recurso especial, a parte recorrente apontou violação dos seguintes dispositivos legais: (a) art. 535 do CPC, alegando que, mesmo com a oposição 450 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA de embargos de declaração, não foram sanados os vícios apontados; (b) arts. 267, IV, 927, I e II, e 928 do CPC, 128, 474 e 475 do CC e 1º do Decreto-Lei n. 745/1969, argumentando, em suma, que é imprescindível a prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel, para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa; (c) art. 273, § 2º, do CPC, aduzindo que não há falar em antecipação de tutela reintegratória de posse antes de resolvido o contrato de compromisso de compra e venda. Aponta, também, dissídio jurisprudencial (fls. 1.304-1.329). Em suas contra-razões, a recorrida postulou a retenção do recurso especial, nos termos do art. 542, parágrafo único, do CPC (fls. 1.399-1.447). O Tribunal de origem negou seguimento ao recurso especial, ensejando a interposição de agravo pela parte recorrente. Antes da chegada do recurso de agravo a esta Corte, a empresa recorrente interpôs a Medida Cautelar n. 17.335-RJ, buscando a agregação de efeito suspensivo ativo, o que foi indeferido por esta relator, sendo a decisão confirmada por esta Turma em sede de agravo regimental, sendo a seguinte a ementa do acórdão então proferido, verbis: Processual Civil. Medida cautelar para agregar efeito suspensivo a recurso especial. Pedido de antecipação dos efeitos da tutela. Ausência dos requisitos autorizadores para o deferimento do pedido. Agravo regimental a que se nega provimento. Após a chegada do agravo em recurso especial, proferi nova decisão moncrática, conhecendo do agravo e dando, desde logo, provimento ao recurso especial, com base nos precedentes desta Corte, nos seguintes termos: Conheço do agravo para apreciar, desde logo, o recurso especial, que merece provimento. Quanto ao processamento do recurso especial, esta Corte vem decidindo no sentido de admiti-lo de imediato, sem a retenção na origem prevista no § 3º, do art. 542, do CPC, quando isso for indispensável para evitar que o julgamento postergado acarrete irremediável prejuízo do próprio recurso ou a ineficácia do futuro julgamento do apelo, como, por exemplo, na hipótese em que se discute antecipação de tutela ou liminar. Nessa linha de entendimento, citam-se: AgRg no Ag n. 1.288.195-PE, 5ª T., Min. Jorge Mussi, DJe de 21.6.2010; AgRg no REsp n. 1.162.579-DF, 2ª T., Min. Herman Benjamin, DJe de 6.4.2010; AgRg no Ag n. 1.118.900-MT, 3ª T., Min. Massami Uyeda, DJe de 3.9.2009. No caso dos autos, a RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 451 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA decisão que determina liminarmente a reintegração de posse da recorrida se enquadra nas hipóteses excepcionais capazes de afastar a regra da retenção, razão pela passa-se a sua análise. Inicialmente, não há nulidade por omissão, tampouco negativa de prestação jurisdicional, no acórdão que decide de modo integral e com fundamentação suficiente a controvérsia posta. O Tribunal de origem, no caso, julgou com fundamentação suficiente a matéria devolvida à sua apreciação. Ademais, o juízo não está obrigado a se manifestar a respeito de todas as alegações e dispositivos legais suscitados pelas partes. Quanto à apontada violação ao art. 267, IV, do CPC, o recurso especial não pode ser conhecido, pois, sobre a matéria de que trata essa norma, não houve emissão de juízo pelo acórdão recorrido, mesmo com a oposição dos embargos de declaração, fazendo incidir a orientação disposta na Súmula n. 211-STJ. Com efeito, esta Corte tem entendimento assente no sentido de que é imprescindível a resolução judicial do contrato de promessa de compra e venda de imóvel para que possa ser deferido o pedido de antecipação dos efeitos da tutela em ação reintegratória de posse, ainda que haja cláusula resolutória expressa. Nesse sentido: Civil e Processual Civil. Recurso especial. Violação ao artigo 535 do CPC. Não-ocorrência. Ação de reintegração de posse ajuizada em virtude de inadimplemento de contrato de compromisso de compra e venda. Impossibilidade de deferimento de antecipação de tutela sem que tenha havido manifestação judicial acerca da resolução do contrato, ainda que este conte com cláusula resolutória expressa. Princípio da boa-fé objetiva. 1. Não há violação ao artigo 535 do CPC quando a Corte de origem aprecia a questão de maneira fundamentada, apenas não adotando a tese do recorrente. 2. É imprescindível a prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de observância do princípio da boa-fé objetiva a nortear os contratos. 3. Por conseguinte, não há falar-se em antecipação de tutela reintegratória de posse antes de resolvido o contrato de compromisso de compra e venda, pois somente após a resolução é que poderá haver posse injusta e será avaliado o alegado esbulho possessório. 4. Recurso provido em parte, para afastar a antecipação de tutela. (REsp n. 620.787-SP, 4ª Turma, Min. Luis Felipe Salomão, DJe 27.4.2009). 452 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Na mesma linha: Civil e Processual Civil. Contrato de compra e venda de imóvel. Antecipação da tutela. Reintegração de posse. Violação art. 535, II, do CPC. Não-ocorrência. Resolução do contrato por inadimplemento. Cláusula resolutória expressa. Necessidade de manifestação judicial para a resolução do contrato. Precedentes. 1. (...) 2. Diante da necessidade de observância do princípio da boa-fé objetiva norteador dos contratos, na antecipação de tutela reintegratória de posse, é imprescindível prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa. 3. (...) 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 969.596-MG, 4ª Turma, Min. João Otávio de Noronha, DJe 27.5.2010). Civil e Processual. Agravo regimental no agravo de instrumento. Ação de reintegração de posse. Necessidade de prévia rescisão contratual. Interpelação judicial e extrajudicial. Insuficiente. I. Permanecendo o promissário na posse do imóvel, cabe ao promitente promover a ação de resolução do contrato, não bastando para tanto as interpelações judicial em extrajudicial. II. Agravo improvido” (AgRg no Ag n. 1.004.405-RS, 4ª Turma, Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 15.9.2008.) No caso concreto, infere-se da petição inicial da ação de reintegração de posse ajuizada pela Fundação Getúlio Vargas que não houve pedido de rescisão contratual, tão-somente de reintegração. É o que se verifica da leitura do seguinte excerto: 34. Pelo exposto, requer-se à V. Exa: a. o deferimento do pedido de liminar de reintegração de posse inaudita altera parte, até o julgamento final de mérito; b. a consolidação e confirmação da reintegração de posse em favor da autora, com o julgamento de procedência do pedido e a condenação da ré nas penas de sucumbência, custas e honorários, esses na base de 20% sobre o valor atribuído à causa; RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 453 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA c. citação, por oficial de justiça, do réu, no endereço constante do preâmbulo para, desejando, contestar a presente demanda; (fls. 241-242). Assim, não merece prosperar o acórdão recorrido, uma vez que não há se falar em antecipação de tutela reintegratória de posse antes de resolvido o contrato de compromisso de compra e venda, pois somente após a resolução é que poderá haver posse injusta e será avaliado o alegado esbulho possessório. Ante o exposto, conheço do agravo para, desde logo, dar provimento ao recurso especial para indeferir o pedido de liminar de reintegração de posse. Houve a interposição de agravo regimental pela fundação agravada, relatando novamente as circunstâncias da relação contratual mantida entre as partes e alegando, especialmente, que a obra encontra-se em estágio avançado. Em função disso, determinei a suspensão da execução da decisão agravada e, em seguida, a conversão do agravo em recurso especial para apreciação de toda a questão por este colegiado. As duas partes apresentaram sucessivas manifestações, especialmente acerca do estágio da execução da obra, postulando a fundação recorrida a aplicação da regra do art. 1.255, parágrafo único, do Código Civil. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): A polêmica central do presente recurso especial devolvida ao conhecimento desta Corte situa-se em torno da possibilidade de concessão de liminar em ação de reintegração de posse sem que tenha sido formulado pedido de resolução do contrato, tão-somente de reintegração de posse. A matéria é complexa e os precedentes desta Corte, transcritos na decisão da minha relatoria, proferida no agravo em recurso especial aludida no relatório, orientam-se no sentido da necessidade de prévia resolução do contrato de promessa de compra e venda, mediante o qual a posse do imóvel foi transferida à outra parte. Relembrem-se as ementas dos acórdãos mencionados: Civil e Processual. Agravo regimental no agravo de instrumento. Ação de reintegração de posse. Necessidade de prévia rescisão contratual. Interpelação judicial e extrajudicial. Insuficiente. 454 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA I. Permanecendo o promissário na posse do imóvel, cabe ao promitente promover a ação de resolução do contrato, não bastando para tanto as interpelações judicial em extrajudicial. II. Agravo improvido” (AgRg no Ag n. 1.004.405-RS, 4ª Turma, Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 15.9.2008.) Civil e Processual Civil. Recurso especial. Violação ao artigo 535 do CPC. Nãoocorrência. Ação de reintegração de posse ajuizada em virtude de inadimplemento de contrato de compromisso de compra e venda. Impossibilidade de deferimento de antecipação de tutela sem que tenha havido manifestação judicial acerca da resolução do contrato, ainda que este conte com cláusula resolutória expressa. Princípio da boa-fé objetiva. 1. Não há violação ao artigo 535 do CPC quando a Corte de origem aprecia a questão de maneira fundamentada, apenas não adotando a tese do recorrente. 2. É imprescindível a prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de observância do princípio da boa-fé objetiva a nortear os contratos. 3. Por conseguinte, não há falar-se em antecipação de tutela reintegratória de posse antes de resolvido o contrato de compromisso de compra e venda, pois somente após a resolução é que poderá haver posse injusta e será avaliado o alegado esbulho possessório. 4. Recurso provido em parte, para afastar a antecipação de tutela. (REsp n. 620.787-SP, 4ª Turma, Min. Luis Felipe Salomão, DJe 27.4.2009). Civil e Processual Civil. Contrato de compra e venda de imóvel. Antecipação da tutela. Reintegração de posse. Violação art. 535, II, do CPC. Não-ocorrência. Resolução do contrato por inadimplemento. Cláusula resolutória expressa. Necessidade de manifestação judicial para a resolução do contrato. Precedentes. 1. (...) 2. Diante da necessidade de observância do princípio da boa-fé objetiva norteador dos contratos, na antecipação de tutela reintegratória de posse, é imprescindível prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa. 3. (...) 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 969.596-MG, 4ª Turma, Min. João Otávio de Noronha, DJe 27.5.2010). Na doutrina, destaca-se a posição de Ruy Rosado de Aguiar Júnior, que, aliás, elaborou minucioso parecer acerca do tema ora em debate que está colacionado nos autos da medida cautelar aludida no relatório (MC n. 17.335RJ). RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 455 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Em sua obra Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor Resolução (Rio de Janeiro: Aide Editora, 2004), o eminente ministro aposentado desta Corte, após analisar a distinção entre os efeitos da cláusula resolutiva tácita e da cláusula resolutiva expressa, nos termos dos artigos 474 e 475 do CC/2002 (p. 182 e segs.), relembra dois precedentes desta Corte acerca do tema, um deles da sua relatoria, apreciados, aliás, na época da elaboração do contrato ora em discussão, verbis: Promessa de compra e venda. “Termo de ocupação com opção de compra”. Inadimplemento. Ação de reintegração de posse. A ação de reintegração de posse de imóvel integrante de conjunto habitacional destinado a pessoas de baixa renda, objeto de termo de ocupação com opção de compra, deve ser precedida de prévia notificação para desocupação. Pressuposto não atendido. Permanecendo o promissário na posse do apartamento, cabe ao promitente promover ação de resolução do contrato, com pedido de reintegração ou restituição. A cláusula de resolução expressa não dispensa, em princípio, a ação judicial. Recurso não conhecido. (REsp n. 237.539-SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 16.12.1999, DJ 8.3.2000, p. 127). Reintegração de posse. Cohab. Termo de ocupação com opção de compra. Necessidade de prévia resolução judicial da avença. Nulidade do processo que deixa de ser pronunciada, nos termos do art. 249, § 2º, do CPC. - Falecido o réu varão, impunha-se a substituição processual por seus sucessores. Providência não adotada. Aplicação da norma constante do art. 249, § 2º, do CPC. - A despeito de estipulada a cláusula resolutiva expressa no “Termo de Ocupação com Opção de Compra”, era imprescindível promovesse a empresa a prévia resolução judicial do ajuste. Precedente da Quarta Turma. - Recurso especial não conhecido. (REsp n. 88.712-SP, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 5.6.2001, DJ 24.9.2001, p. 307). A peculiaridade do presente processo, porém, é que, ao longo do tempo decorrido entre a concessão de liminar de reintegração de posse no final de 2009 e o julgamento do presente recurso especial, a fundação recorrida deu início à execução da obra, que está em estágio bastante avançado, conforme os documentos e fotografias colacionadas ao processo pelas duas partes. Nesse ponto, a controvérsia entre as partes situa-se apenas em torno do percentual de execução da obra. A empresa recorrente alega que a perita do juízo constatou que o percentual executado da obra foi de 40% do cronograma previsto no contrato (e-STJ, 456 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA fls. 1.997 e segs.), enquanto que a fundação recorrida afirma que já foram executados 64,09% das obras, com base em documento expedido pela Caixa Econômica Federal em 14 de setembro de 2012 (e-STJ, fls. 2.076 e segs.). Independente do exato percentual de execução do cronograma da obra, a verdade é que a obra está em pleno andamento e em estágio avançado, tendo sido realizado em torno da metade do cronograma previsto, o que deve ser considerado. Ressalto a relevância do fato superveniente, pois o início da execução da obra deu-se licitamente e de boa-fé, fundamentado em decisão liminar proferida pelo juízo de primeiro grau e confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que, inclusive, negou seguimento ao recurso especial interposto. Tem plena incidência, assim, a regra do parágrafo único do art. 1.255 do Código Civil de 2002, introduzindo hipótese da chamada acessão invertida no Direito brasileiro, estabelecendo o seguinte, verbis: Parágrafo único. Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo. Essas regras do art. 1.255 e seu parágrafo único do Código Civil de 2002 inserem-se no capítulo referente à aquisição da propriedade imóvel por acessão, que se inicia pelo enunciado normativo do art. 1.248, verbis: Art. 1.248. A acessão pode dar-se: I - por formação de ilhas; II - por aluvião; III - por avulsão; IV - por abandono de álveo; V - por plantações ou construções. Na subseção relativa às construções e plantações, constam as seguintes regras: Art. 1.253. Toda construção ou plantação existente em um terreno presume-se feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o contrário. Art. 1.254. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno próprio com sementes, plantas ou materiais alheios, adquire a propriedade destes; mas fica RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 457 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA obrigado a pagar-lhes o valor, além de responder por perdas e danos, se agiu de má-fé. Art. 1.255. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boafé, terá direito a indenização. Parágrafo único. Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo. Especificamente a regra do parágrafo único do art. 1.255 constitui novidade do Código Civil de 2002, sendo uma antiga reivindicação da doutrina para aqueles casos em que o valor da acessão (construção ou plantação) ultrapassa, em muito, o montante do terreno alheio sobre o qual foi feita a construção ou a semeadura. Na doutrina, Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes oferecem a seguinte explicação para a nova regra (Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República - Direito de Empresa e Direito das Coisas. Volume III. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 550551), verbis: Nestes termos, entretanto, a aplicação irrestrita da disciplina da acessão poderá constrastar, diversas vezes, com os interesses econômicos ou sociais de manutenção da plantação ou construção, a exemplo do interesse dos adquirentes (terceiros de boa-fé) de unidades autônomas da construção superveniente. Por este motivo, a doutrina antecipou-se ao CC para sustentar que, em algumas hipóteses, o solo se caracteriza como bem acessório, diante da importância econômica dos seus melhoramentos (Orlando Gomes, Direito Reais, p. 184; Serpa Lopes, Curso, p. 500; Marco Aurélio S. Viana, Comentários, p. 156). A situação encontra-se prevista no par. ún., segundo o qual se o valor da obra ou plantação exceder o do solo, o construtor ou plantador de boa-fé adquirirá a propriedade deste, pagando indenização ao seu proprietário. Inverte-se, assim, o princípio superfecies solo cedit. A solução homenageia a utilidade social e econômica da obra ou construção e, assim, contempla o princípio constitucional da função social da propriedade. Na mesma linha, Paulo Nader oferece a seguinte contribuição para a compreensão desse dispositivo legal (Curso de Direito Civil - Direito das Coisas. Volume 04. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 179), verbis: Importante inovação foi trazida pelo parágrafo único do art. 1.255 do Código Civil, ao admitir a principalidade da plantação e construção, desde que “exceder 458 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA consideravelmente o valor do terreno”, estando de boa-fé quem plantou ou edificou, garantido ao proprietário do imóvel o direito à indenização. \ Na hipótese, quem adquire a propriedade plena é quem plantou ou construiu com recursos próprios. Observe-se que o dispositivo legal não abriu exceção ao princípio “acessorium cedit principalli”, apenas interpretou o que, na espécie, deve ser considerado principal. Na jurisprudência, esta Terceira Turma, na sessão de 9 de outubro de 2012, teve oportunidade analisar a aplicação dessa regra no julgamento do Recurso Especial n. 1.283.908-SC, relatoria do Ministro Sidnei Beneti, relativo ao cumprimento de sentença prolatada em ação reivindicatória referente a imóvel rural sobre o qual fora feito um reflorestamento de valor bastante superior ao próprio terreno. A discussão, porém, ficou centrada no Direito Intertemporal e a conclusão foi no sentido de afastar a incidência da regra aplicada pelo Tribunal de origem, pois os fatos ocorreram antes da vigência do Código Civil de 2002, que introduziu essa norma em nosso sistema jurídico. A ementa do acórdão foi a seguinte: Direito Civil. Aplicação da lei no tempo. Ação reivindicatória. Implemento, na área usurpada, de reflorestamento de valor superior ao da terra nua. Aquisição da propriedade do solo mediante indenização. Impossibilidade. Irretroatividade da lei superveniente. Princípio da eticidade. 1. - Nos termos do artigo 6º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e 2.035 do Código Civil de 2002 (retroatividade mínima), veda-se a aplicação retroativa de normas em prejuízo de fatos pretéritos e pendentes. 2. - No momento em que se deu a usurpação ou o esbulho do imóvel, nasceu para o proprietário o direito de reavê-lo, sem possibilidade de aquisição da propriedade pelo esbulhador em virtude de construção ou plantação realizada. Trata-se de consequência perfeitamente delimitada pela própria lei e ligada à causa originária (ato ilícito) como um corolário necessário e direto. 3. - Nesses termos, a efetiva restituição do bem deve ser considerada consequência pendente, e não efeito futuro do ato ilícito praticado. 4. - Se, na época dos fatos, não havia a possibilidade de o construtor ou agricultor que ocupou indevidamente o imóvel, adquirir-lhe a propriedade em virtude do elevado valor da acessão ou plantação, mediante pagamento de indenização ao proprietário esbulhado, não será possível, em sede de execução, autorizar a aplicação superveniente do artigo 1.255, parágrafo único, do Código RSTJ, a. 24, (228): 343-460, outubro/dezembro 2012 459 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Civil de 2002 que traz justamente essa regra, sob pena de ofensa ao princípio da irretroatividade da lei. 5. - Tal conclusão ainda mais se reforça diante da existência de sentença judicial, prolatada anteriormente ao início da vigência do novo Código Civil (embora somente transitada em julgado em momento posterior), julgando procedente o pedido formulado na ação reivindicatória, para determinar a restituição do imóvel. 6. - Princípio da eticidade, informativo do Código Civil de 2002, incidente no caso, dada a procrastinação da execução do julgado da origem à custa de interposição de sucessivos recursos. 7. - Recurso Especial provido. (REsp n. 1.283.980-SC, relatoria do Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado na sessão de 9.10.2012). No presente caso, porém, não há esse óbice, pois, embora o contrato tenha sido celebrado anteriormente, os fatos relevantes da causa ocorreram inteiramente na vigência do Código Civil de 2002 (desentendimento entre as partes contratantes, a notificação extrajudicial da promitente compradora, a propositura das duas demandas judiciais, a liminar concedida e as decisões judiciais proferidas em todas as instâncias). Conforme já aludido, deve-se reconhecer a boa-fé da fundação recorrida, pois o início da execução da obra deu-se licitamente, com base na liminar de reintegração de posse concedida pelo juízo de primeiro grau e confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Assim, considerando que a pretensão da empresa recorrente no presente recurso especial é recuperar a posse do imóvel e considerando esse fato superveniente relevante, deve-se manter a fundação recorrida na posse do imóvel litigioso. No mais, as questões relativas à responsabilidade pelo inadimplemento do contrato, a correta qualificação jurídica do contrato, a eficácia da cláusula resolutiva expressa, a validade da resolução mediante notificação extrajudicial e, especialmente, o valor de eventual indenização são questões que deverão ser apreciadas e dirimidas nos dois processos de conhecimento em tramitação na Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Destarte, encaminho o voto no sentido de negar provimento ao recurso especial, confirmando o acórdão recorrido e mantendo a fundação recorrida na posse do imóvel litigioso. É o voto. 460