VOLUME II
Estudos sobre a histeria
Josef Breuer e Sigmund Freud
VOLUME II
(1893-1895)
SIGMUND FREUD EM 1891
NOTA DO EDITOR INGLÊS
(James Strachey)
(A) ÜBER DEN PSYCHISCHEN MECHANISMUS HYSTERISCHER
PHÄNOMENE (VORLÄUFIGE MITTEILUNG)
(a) EDIÇÕES ALEMÃES:
1893 Neurol. Centralbl., 12 (1), 4-10 (Seções I-II), e 12 (2), 43-7
(Seções III-V). (1º e 15 de janeiro.)
1893 Wien. med. Blätter, 16 (3), 33-5 (Seções I-II), e 16 (4), 49-51
(Seções III-V). (19 e 26 de janeiro.)
1895, etc. Em Studien über Hysterie. (Ver adiante.)
1906 S.K.S.N., I, 14-29. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
“The Psychic Mechanism of Hysterical Phenomena
(Preliminary Communication)”
1909 S.P.H., 1-13. (Trad. A. A. Brill.) (1912, 2ª. ed., 1920, 3ª ed.)
1936 Em Studies in Hysteria. (Ver adiante.)
“On the Psychical Mechanism of Hysterical Phenomena”
1924 C.P., 1, 24-41. (Trad. J. Rickman.)
(B) STUDIEN ÜBER HYSTERIE
(a)
EDIÇÕES ALEMÃS:
1895 Leipzig e Viena: Deuticke. Págs. v + 269.
1909 2ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações, mas com novo
prefácio.) Págs. vii + 269.
1916 3ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações.) Págs. vii + 269
1922 4ª ed. Mesmos editores. (Sem modificações.) Págs. vii + 269.
1925 G.S., 1, 3-238. (Com omissão das contribuições de Breuer; com
notasde rodapé adicionais de Freud.)
1952 G.W., 1, 77-312. (Reimpressão de 1925.)
(b) TRADUÇÕES INGLESAS:
Studies in Hysteria
1909 S.P.H., 1-120. (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.) (Trad. A.
A. Brill.) (Somente em parte: com omissão dos casos
clínicos
da Srta. Anna O., Sra. Emmy von N. e Katharina, bem como do
capítulo teórico de Breuer.)
1936 New York: Nervous and Mental Disease Publishing. Co.
(Monograph Series nº 61.) Págs. ix + 241. (Trad. A. A. Brill.)
(Completo, salvo quanto à omissão das notas de rodapé
adicionais de Freud, de 1925.)
A tradução inglesa, inteiramente nova e completa, de James e Alix
Strachey, inclui as contribuições de Breuer, mas quanto ao resto
baseia-se na edição alemã de 1925, contendo as notas de rodapé
adicionais de Freud. A omissão das contribuições de Breuer das duas
coletâneas alemãs (G.S. e G.W.) acarretou algumas modificações
necessárias e notas de rodapé adicionais, onde Freud tinha feito
referência, na edição original, às partes omitidas. Nessas edições
completas, também a numeração dos casos clínicos foi alterada, em
vista da ausência do caso clínico de Anna O. Todas essas alterações
foram abandonadas na presente tradução. — Os extratos da
“Comunicação Preliminar” e do volume principal tinham sido incluídos
por Freud em sua primeira coletânea de extratos de seus próprios
trabalhos (1897b, nºs XXIV e XXXI).
(1)
ALGUMAS NOTAS HISTÓRICAS SOBRE OS ESTUDOS
Conhecemos a história da redação deste livro com algum detalhe.
O tratamento da Srta. Anna O. por Breuer, no qual se baseou toda a
obra, ocorreu entre 1880 e 1882. Naquela ocasião, Josef Breuer
(1842-1925) já gozava de alta reputação em Viena, tanto como médico
com grande clínica, como por realizações científicas, enquanto
Sigmund Freud (1856-1939) apenas acabara de formar-se em
medicina. Os dois, contudo, já eram amigoshá vários anos. O
tratamento terminou no início de junho de 1882, e em novembro Breuer
relatou a notável história a Freud, que (embora, naquela época, tivesse
seus principais interesses concentrados na anatomia do sistema
nervoso) ficou muito impressionado com ela. Tanto assim que quando,
cerca de três anos depois, estava estudando em Paris sob a
orientação de Charcot, deu-lhe conhecimento do caso. “Mas o grande
homem não mostrou nenhum interesse por meu primeiro esboço do
assunto, de modo que jamais voltei ao tema e deixei que saísse de
minha mente.” (Um Estudo Autobiográfico — 1925d, Capítulo II.)
Os estudos de Freud sob a orientação de Charcot tinham-se
concentrado, em grande parte, na histeria, e quando Freud voltou a
Viena em 1886 e ali se fixou para estabelecer uma clínica de doenças
nervosas, a histeria forneceu uma grande proporção de sua clientela.
De início, ele se baseou nos métodos de tratamento então
correntemente recomendados, como a hidroterapia, a eletroterapia,
massagens e a cura pelo repouso, de Weir Mitchell. Mas quando esses
métodos se revelaram insatisfatórios, seus pensamentos se voltaram
para outra área. “Nessas últimas semanas”, escreve ele a seu amigo
Fliess em 28 de dezembro de 1887, “atirei-me à hipnose e logrei toda
espécie de sucessos pequeninos, mas dignos de nota” (Freud, 1950a,
Carta 2). E nos deu uma descrição pormenorizada de um desses
tratamentos bem-sucedidos (1892-3b). Mas o caso de Anna O. ainda
estava em sua mente, e “desde o início”, conta-nos ele (1925d),
“vali-me da hipnose de outra maneira, independentemente da sugestão
hipnótica”. Essa “outra maneira” foi o método catártico, que constitui o
tema do presente volume.
O caso da Sra. Emmy von N. foi o primeiro, como sabemos por Freud
(ver em. [1] e [2]), que ele tratou pelo método catártico. Numa nota de
rodapé acrescentada ao livro em 1925, ele explica melhor essa
observação e diz que esse foi o primeiro caso em que utilizou esse
método “extensivamente” (ver em [1]); e é verdade que, nessa fase
inicial, ele vinha constantemente empregando a hipnose na forma
convencional — para dar sugestões terapêuticas diretas. Mais ou
menos na mesma época, de fato, seu interesse pela sugestão
hipnótica era acentuado o bastante para levá-lo a traduzir um dos livros
de Bernheim em 1888 e outro em 1892, bem como a fazer uma visita
de algumas semanas às clínicas de Liébeault e Bernheim em Nancy,
no verão de 1889. A intensidade com que ele estava utilizando a
sugestão terapêutica no caso da Sra. Emmy é indicada de maneira
bem nítida no seu relato cotidiano dasduas ou três primeiras semanas
do tratamento, reproduzido por ele a partir das “anotações que fiz
todas as noites” (ver em [1]). Não podemos, infelizmente, ter certeza
de quando ele iniciou esse caso (ver Apêndice A, em [1]); foi em maio
de 1888 ou 1889 — isto é, cerca de quatro ou cerca de dezesseis
meses depois de ele haver pela primeira vez “adotado a hipnotismo”. O
tratamento terminou um ano depois, no verão de 1889 ou 1890. Numa
ou noutra alternativa, há um considerável hiato antes da data do caso
clínico seguinte (em ordem cronológica, embora não em ordem de
apresentação). Esse foi o caso da Srta. Elisabeth von R., que teve
início no outono de 1892 (ver em. [1]) e que Freud descreve como sua
“primeira análise integral de uma histeria” ( ver em [1]). Foi logo
seguido pelo de Miss Lucy R., que começou no fim do mesmo ano (ver
em [1]). Não se atribui nenhuma data ao caso restante, o de Katharina
(ver.em [1]). Mas, no intervalo entre 1889 e 1892, Freud por certo teve
experiência com outros casos. Em particular, houve o da Srta. Cäcilie
M., a quem ele “veio a conhecer de forma muito mais completa do que
qualquer das outras pacientes mencionadas nestes estudos” (ver em
[1]), mas cujo caso não pôde ser descrito em detalhes em virtude de
“considerações pessoais”. Contudo, ela é freqüentemente mencionada
por Freud, bem como por Breuer, no decorrer do volume, e sabemos
(ver em [1]) por Freud que “foi o estudo desse caso notável, feito em
conjunto com Breuer, que levou diretamente à publicação de nossa
‘Comunicação Preliminar’”. [1]
O rascunho daquele memorável artigo (que compõe a primeira seção
do presente volume) se iniciara em junho de 1892. Uma carta a Fliess,
de 28 de junho (Freud, 1950a, Carta 9), anuncia que “Breuer
concordou em que a teoria da ab-reação e os outros resultados sobre
a histeria a que chegamos em conjunto também sejam apresentados
conjuntamente numa publicação pormenorizada”. “Uma parte dela”,
prossegue, “que, a princípio, eu queria escrever sozinho, está
concluída”. Evidentemente, a essa parte “concluída” do artigo faz nova
referência numa carta a Breuer escrita no dia seguinte, 29 de junho de
1892 (Freud, 1941a): “A inocente satisfação que senti quando lhe
entreguei aquelas poucas páginas minhas deu margem a (…)
inquietação.” Essa carta prossegue fornecendo um resumo muito
condensado do conteúdo proposto do artigo. A seguir, temos uma nota
de rodapé acrescentada por Freud a sua tradução de um volume das
Leçons du Mardi, de Charcot (Freud, 1892-94, 107), que apresenta, em
três curtos parágrafos, um resumo da tese da “Comunicação
Preliminar” e se refere a ele como estando “começado”. Além disso,
dois rascunhos bem mais elaborados chegaram até nós. O primeiro
(Freud, 1940d) deles (escrito com a caligrafia de Freud, embora se
afirme ter sido escrito em conjunto com Breuer) está datado de “Final
de novembro de 1892”. Versa sobre ataques histéricos e a maior parte
de seu conteúdo foi incluída, embora com palavras diferentes, na
Seção IV da “Comunicação Preliminar” (ver em [1]). Entretanto, um
importante parágrafo relacionado com o “princípio da constância” foi
inexplicavelmente omitido, e nesse volume o tema é tratado apenas
por Breuer, na parte final da obra (ver em [1] e [2].). Por fim, há um
memorando (Freud, 1941b) com o título “III”, que não tem data.
Examina os “estados hipnóides” e a dissociação histérica, estando
estreitamente relacionado com a Seção III do artigo publicado (ver em
[1]).
Em 18 de dezembro de 1892, Freud escreveu a Fliess (1950a,
Carta11): “Apraz-me poder dizer-lhe que nossa teoria sobre a histeria
(reminiscência, ab-reação, etc.) vai aparecer no Neurologisches
Centralblatt no dia 1º de janeiro de 1893, sob a forma de uma
comunicação preliminar pormenorizada. Custou-me longa batalha com
meu colaborador.” O artigo, datado de “dezembro de 1892”, foi na
realidade publicado em dois números do periódico: as duas primeiras
seções em 1º de janeiro, e as três restantes em 15 de janeiro. O
Neurologisches Centralblatt (que saía quinzenalmente) era publicado
em Berlim; e a “Comunicação Preliminar” foi quase imediatamente
reimpressa na íntegra em Viena, nas Wiener medizinische Blätter (em
19 e 26 de janeiro). Em 11 de janeiro, quando apenas metade do artigo
fora publicada, Freud pronunciou uma conferência sobre o tema no
Wiener medizinischer Club. A transcrição taquigráfica completa da
conferência, “revista pelo conferencista”, apareceu no Wiener
medizinische Presse em 22 e 29 de janeiro (34, 122-6 e 165-7). A
conferência (Freud, 1893h) abrangia aproximadamente o mesmo tema
que o artigo, mas tratava o material de forma bem diferente e de
maneira muito menos formal.
A publicação do artigo parece ter surtido pouco efeito visível em Viena
ou na Alemanha. Na França, por outro lado, como relata Freud a Fliess
numa carta de 10 de julho de 1893 (1950a, Carta 13), o trabalho foi
favoravelmente notado por Janet, cuja resistência às idéias de Freud
só surgiria mais tarde. Janet incluiu uma nota longa e altamente
elogiosa sobre a “Comunicação Preliminar” num artigo sobre “Algumas
Definições Recentes da Histeria”, publicado nos Archives de
Neurologie em junho e julho de 1893. Utilizou esse artigo como
capítulo final de seu livro L’État Mental des Hystériques, publicado em
1894. Mais inesperado, talvez, é o fato de que em abril de 1893 —
apenas três meses após a publicação da “Comunicação Preliminar” —
um relato razoavelmente completo da mesma foi apresentado por F.
W. H. Myers numa reunião geral da Society for Psychical Research, em
Londres, tendo sido impresso em sua Ata (Proceedings) no mês de
junho seguinte. A “Comunicação Preliminar” também foi totalmente
resumida e examinada por Michell Clarke em Brain (1894, 125). A
reação mais surpreendente e inexplicável, porém, foi a publicação, em
fevereiro e março de 1893, de uma tradução completa da
“Comunicação Preliminar” para o espanhol, na Gazeta Médica de
Granada (11, 105-11 e 129-35).
A tarefa seguinte dos autores foi a preparação do material dos casos
clínicos e, já em 7 de fevereiro de 1894, Freud referiu-se ao livro
como“semi-acabado: o que resta a fazer é apenas uma pequena parte
dos casos clínicos e dois capítulos gerais”. Num trecho não publicado
da carta de 21 de maio, ele menciona que está justamente escrevendo
o último caso clínico, e em 22 de junho (1950a, Carta 19) apresenta
uma lista do que o “livro com Breuer” irá conter: “cinco casos clínicos,
um ensaio da autoria dele, com o qual não tenho absolutamente nada
a ver, sobre as teorias da histeria (resumo e crítica), e um meu sobre
terapia, que ainda não comecei”. Depois disso, é óbvio que houve uma
paralisação, pois só em 4 de março de 1895 (ibid., Carta 22) é que ele
escreve dizendo estar “trabalhando apressadamente no ensaio sobre a
terapia da histeria”, concluído em 13 de março (carta não publicada).
Em outra carta não publicada, de 10 de abril, Freud envia a Fliess a
segunda metade das provas tipográficas do livro, e no dia seguinte lhe
diz que este sairá em três semanas.
Os Estudos sobre a Histeria parecem ter sido publicados, como se
esperava, em maio de 1895, embora a data exata não seja indicada. O
livro foi recebido desfavoravelmente nos círculos médicos alemães;
recebeu, por exemplo, forte crítica de Adolf von Strümpell, o conhecido
neurologista (Deutsch. Z. Nervenheilk., 1896, 159). Por outro lado, um
escritor não-médico, Alfred von Berger, mais tarde diretor do
Burgtheater de Viena, sobre ele se expressou com apreço no Neue
Freie Presse (2 de fevereiro de 1896). Na Inglaterra, o livro foi alvo de
longa e favorável nota de Mitchell Clarke em Brain (1896, 401) e mais
uma vez Myers mostrou seu interesse pela obra numa palestra de
considerável extensão, originariamente proferida em março de 1897,
que acabou sendo incluída em seu Human Personality (1903).
Decorreram mais de dez anos antes que houvesse um pedido de
segunda edição do livro, e já nessa época os caminhos de seus dois
autores se haviam separado. Em maio de 1906 Breuer escreveu a
Freud concordando com uma reimpressão, mas houve certa discussão
para determinar se seria desejável um novo prefácio em conjunto.
Seguiram-se outras delongas e, no final, como se verá mais adiante,
foram escritos dois prefácios separados. Estes trazem a data de julho
de 1908, embora a segunda edição só fosse realmente publicada em
1909. O texto continuou inalterado nessa e nas edições posteriores do
livro. Mas, em 1924, Freud escreveu algumas notas de rodapé
adicionais para o volume de suas obras completas que continha sua
parte dos Estudos (publicado em 1925) e fez uma ou duas pequenas
modificações no texto.
(2)
A RELAÇÃO DOS ESTUDOS COM A PSICANÁLISE
Os Estudos sobre a Histeria costumam ser considerados como o ponto
de partida da psicanálise. Vale a pena considerar brevemente se essa
afirmação é verdadeira, e em que sentido. Para os objetivos dessa
discussão, a questão das parcelas do trabalho atribuíveis aos dois
autores será posta de lado, para consideração posterior, e o livro será
tratado como um todo. A investigação sobre a relação dos Estudos
com o desenvolvimento subseqüente da psicanálise pode ser dividida,
por conveniência, em duas partes, embora tal separação seja
necessariamente artificial. Até que ponto e de que maneira os
procedimentos técnicos descritos nos Estudos e as descobertas
clínicas a que conduziram prepararam o terreno para a prática da
psicanálise? Em que medida os pontos de vista teóricos aqui propostos
foram aceitos nas doutrinas posteriores de Freud?
Raras vezes se aprecia suficientemente o fato de que a mais
importante das realizações de Freud talvez tenha sido sua invenção do
primeiro instrumento para o exame científico da mente humana. Um
dos principais atrativos do presente volume é que ele nos permite
rastrear os primeiros passos do desenvolvimento desse instrumento. O
que ele nos relata não é simplesmente a história da superação de uma
série de obstáculos; é a história da descoberta de uma série de
obstáculos a serem superados. A própria paciente de Breuer, Anna O.,
demonstrou e superou o primeiro desses obstáculos — a amnésia
característica dos pacientes histéricos. Quando a existência dessa
amnésia foi trazida à luz, seguiu-se de imediato a compreensão de que
a mente manifesta do paciente não é a mente em sua totalidade,
havendo por trás uma mente inconsciente (ver em [1]). Tornou-se
assim patente, desde o início, que o problema não era meramente a
investigação dos processos mentais conscientes, para a qual
bastariam os métodos corriqueiros de indagação empregados na vida
cotidiana. Se havia também processos mentais inconscientes, era
claramente necessário algum instrumento especial. O instrumento
óbvio para esse fim era a sugestão hipnótica — a sugestão hipnótica
utilizada não para finalidades diretamente terapêuticas, mas para
persuadir o paciente a produzir material proveniente da região
inconsciente da mente. Com Anna O. apenas um ligeiro uso desse
instrumento se afigurou necessário. Ela produzia torrentes de material
vindo de seu “inconsciente”, e tudo o que Breuer tinha de fazer era
ficar sentado e ouvi-las sem interrompê-la. Mas isso não era tão fácil
como parece, e o caso clínico da Sra. Emmy revela em muitos pontos
como foi difícil para Freud adaptar-se a esse novo uso da sugestão
hipnótica e ouvir tudo o que a paciente tinha a dizer, sem qualquer
tentativa de interferir ou de levá-la a encurtar o relato (por exemplo em
[1] e [2]). Nem todos os pacientes histéricos além disso eram tão
dóceis quanto Anna O.; a hipnose profunda em que ela caía,
aparentemente por sua própria vontade, não era tão prontamente
alcançada com qualquer um. E aqui surgia outro obstáculo: conta-nos
Freud que ele estava longe de ser adepto do hipnotismo. Neste livro
(por exemplo em [1]), ele nos fornece vários relatos de como
contornava essa dificuldade, de como pouco a pouco foi abandonando
suas tentativas de provocar a hipnose e se contentava em levar os
pacientes a um estado de “concentração”, com o uso ocasional da
pressão na testa. Mas foi o abandono do hipnotismo que ampliou ainda
mais sua compreensão dos processos mentais. Esse abandono
revelou a presença de mais um obstáculo — a “resistência” dos
pacientes ao tratamento (ver em [1] e [2]), sua relutância em
cooperarem na própria cura. Como se deveria lidar com essa
relutância? Deveria ser suprimida com gritos ou afastada pela
sugestão? Ou deveria, como outros fenômenos mentais, ser
simplesmente investigada? A opção de Freud por esse segundo
caminho levou-o diretamente ao mundo desconhecido que iria passar a
vida inteira explorando.
Nos anos que se seguiram aos Estudos, Freud abandonou cada vez
mais a técnica da sugestão deliberada | ver em [1]| e passou cada vez
mais a confiar no fluxo de “associações livres” do paciente. Estava
aberto o caminho para a análise dos sonhos. Essa análise permitiu-lhe,
em primeiro lugar, obter uma compreensão do funcionamento do
“processo primário” na mente e das formas pelas quais ele influenciava
os produtos de nossos pensamentos mais acessíveis, e assim Freud
adquiriu um novo recurso técnico — o da “interpretação”. Mas a análise
dos sonhos possibilitou, em segundo lugar, sua própria auto-análise e
suas conseqüentes descobertas da sexualidade infantil e do complexo
de Édipo. Todas essas questões, porém, salvo por alguns leves
indícios, ainda estavam por surgir. No entanto, nas últimas páginas
deste volume, Freud já se havia defrontado com outro obstáculo no
caminho do pesquisador — a “transferência” (ver em [1]). Já tivera um
vislumbre de sua impressionante natureza, e talvez já tivesse
começando a reconhecer que ela iria revelar-se não só um obstáculo
como também mais um instrumento fundamental da técnica
psicanalítica.
À primeira vista, a principal posição teórica adotada pelos autores da
“Comunicação Preliminar” parece simples. Eles sustentam que, no
curso normal das coisas, se uma experiência for acompanhada de uma
grande dose de “afeto”, esse afeto é “descarregado” numa variedade
deatos reflexos conscientes, ou então vai-se desgastando
gradativamente pela associação com outros materiais mentais
conscientes. No caso dos pacientes histéricos, por outro lado (por
motivos que logo mencionaremos), nenhuma dessas coisas acontece.
O afeto permanece num estado “estrangulado”, e a lembrança da
experiência a que está ligado é isolada da consciência. A partir daí, a
lembrança afetiva se manifesta em sintomas histéricos, que podem ser
considerados como “símbolos mnêmicos” — vale dizer, como símbolos
da lembrança suprimida (ver em [1]-[2]). Sugerem-se duas razões
principais para explicar a ocorrência desse resultado patológico. Uma
delas é que a experiência original ocorreu enquanto o indivíduo se
encontrava num particular estado de dissociação mental, descrito
como “hipnóide”; a outra é que o “ego” do indivíduo considerou essa
experiência como sendo “incompatível” com ele próprio e, portanto, ela
teve de ser “rechaçada”. Em ambos os casos, a eficácia terapêutica do
método “catártico” é explicada com base nos mesmos fundamentos: se
a experiência original, juntamente com seu afeto, puder ser introduzida
na consciência, o afeto é por si mesmo descarregado ou “ab-reagido”,
a força que até então manteve o sintoma deixa de atuar, e o próprio
sintoma desaparece.
Tudo isso parece muito claro, mas uma pequena reflexão mostra que
restam ainda muitas coisas por explicar. Por que um afeto precisa ser
“descarregado”? E por que são tão terríveis as conseqüências de ele
não ser descarregado? Esses problemas subjacentes não são
considerados de modo algum na “Comunicação Preliminar”, embora a
eles se fizesse uma breve alusão em dois dos rascunhos
postumamente publicados (1941a e 1940d) e já existisse uma hipótese
para explicá-los. Curiosamente, na verdade essa hipótese foi
formulada por Freud em sua conferência de 11 de janeiro de 1893
(veja em [1]), apesar de ter sido omitida na própria “Comunicação
Preliminar”. Ele aludiu de novo a essa hipótese nos dois últimos
parágrafos do seu primeiro artigo sobre “As Neuropsicoses de Defesa”
(1894a), onde declara especificamente que ela fundamentava a teoria
da ab-reação na “Comunicação Preliminar” de um ano antes. Mas essa
hipótese básica foi formalmente enunciada e designada pela primeira
vez em 1895, na segunda parte da contribuição de Breuer ao presente
volume (ver em [1]). É curioso que esta, a mais fundamental das
teorias de Freud, tenha sido integralmente examinada, pela primeira
vez, por Breuer (se bem que, de fato, atribuída por ele a Freud), e que
o próprio Freud, embora retornasse vez por outra a seu tema (como
nas primeiras páginas de seu artigo sobre “As Pulsões e suas
Vicissitudes”, 1915c), não a mencionasse explicitamente até escrever
Além do Princípio do Prazer (1920g). Freud, como sabemos agora,
referiu-se a essa hipótese pelo nome numa comunicação de data
incerta a Fliess, possivelmente 1894 (Rascunho D, 1950a), e
examinou-a na íntegra, embora sob outro nome (veja adiante, ver em
[1]), no “Projeto para uma Psicologia Científica”, que escreveu alguns
meses após a publicação dos Estudos. Mas só cinqüenta e cinco anos
depois (1950a) é que o Rascunho D e o “Projeto” foram publicados.
O “princípio da constância” (pois esta foi a denominação dada à
hipótese) pode ser definido nos termos empregados pelo próprio Freud
em Além do Princípio do Prazer: “O aparelho mental esforça-se por
manter a quantidade de excitação nele presente em um nível tão baixo
quanto possível, ou pelo menos por mantê-la constante” (Edição
Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1], 1ª edição, Imago). Breuer o
enuncia mais adiante, neste livro (ver em [1]), em termos muito
semelhantes, mas com uma inclinação neurológica, como “uma
tendência a manter constante a excitação intracerebral”. Em sua
discussão em [1] e segs., argumenta ele que os afetos devem sua
importância na etiologia da histeria ao fato de serem acompanhados
pela produção de grandes quantidades de excitação, e de estas, por
sua vez, exigirem uma descarga, de acordo com o princípio da
constância. De modo semelhante, também as experiências traumáticas
devem sua força patogênica ao fato de produzirem quantidades de
excitação grandes demais para serem tratadas da maneira normal.
Assim, a posição teórica essencial subjacente aos Estudos é que a
necessidade clínica da ab-reação do afeto e os resultados patogênicos
que surgem quando ele fica estrangulado são explicados pela
tendência muito mais geral (expressa no princípio da constância) a
manter constante a quantidade de excitação.
Tem-se pensado com freqüência que os autores dos Estudos atribuíam
os fenômenos da histeria apenas aos traumas e às lembranças
inextirpáveis deles, e que só mais tarde é que Freud, depois de
deslocar a ênfase dos traumas infantis para as fantasias infantis,
chegou a sua momentosa concepção “dinâmica” dos processos da
mente. Ver-se-á, contudo, pelo que acaba de ser dito, que uma
hipótese dinâmica sob aforma do princípio da constância já estava
subjacente à teoria do trauma e da ab-reação. E quando chegou o
momento de ampliar os horizontes e atribuir uma importância muito
maior às pulsões, em contraste com a experiência, não houve
necessidade de modificar a hipótese básica. Na realidade, Breuer já
ressalta o papel desempenhado pelas “principais necessidades e
pulsões fisiológicas do organismo” na gênese dos aumentos de
excitação que exigem descarga (ver em [1]), e frisa a importância da
“pulsão sexual” como “a fonte mais poderosa dos acúmulos
sistemáticos de excitação (e, conseqüentemente, de neuroses)” (ver
em [1]). Além disso, toda a noção de conflito e do recalcamento das
idéias incompatíveis é explicitamente baseada no ocorrência dos
aumentos desagradáveis de excitação. Isso conduz à consideração
adicional de que, como salienta Freud em Além do Princípio do Prazer
(Edição Standard Brasileira, 1ª edição, Vol. XVIII, ver em [1]), o próprio
“princípio do prazer” está estreitamente vinculado ao princípio da
constância. Ele chega mesmo a ir mais adiante e declarar (ibid., 83)
que o princípio do prazer “é uma tendência que atua a serviço de uma
função cuja tarefa é libertar inteiramente da excitação o aparelho
mental, ou manter constância o nível de excitação dentro dele, ou
mantê-lo tão baixo quanto possível”. O caráter “conservador” que
Freud atribui às pulsões em seus trabalhos posteriores, assim como a
“compulsão à repetição”, também são vistos no mesmo trecho como
manifestações do princípio da constância; e fica claro que a hipótese
em que se basearam esses primeiros Estudos sobre a Histeria ainda
continuava a ser considerada fundamental por Freud em suas últimas
especulações.
(3)
AS DIVERGÊNCIAS ENTRE OS DOIS AUTORES
Não estamos interessados aqui nas relações pessoais entre Breuer e
Freud, descritas com detalhes no primeiro volume da biografia escrita
por Ernest Jones, mas é interessante examinarmos brevemente suas
divergências científicas. A existência de tais divergências foi
abertamente mencionada no prefácio à primeira edição e muitas vezes
falou-se nelas com exagero nas publicações posteriores de Freud. Mas
no próprio livro, por estranho que pareça, elas estão longe de ganhar
preeminência e, muito embora a “Comunicação Preliminar” seja a única
parte do livrode autoria explicitamente conjunta, não é fácil determinar
com certeza de quem é a responsabilidade pela origem dos vários
elementos componentes do trabalho como um todo.
Sem dúvida, podemos com segurança atribuir a Freud os
desenvolvimentos técnicos posteriores, bem como os conceitos
teóricos vitais de resistência, defesa e recalcamento que decorreram
deles. É fácil ver pelo relato apresentado em [1] como esses conceitos
decorreram da substituição da hipnose pela técnica da “pressão”. O
próprio Freud, em sua “História do Movimento Psicanalítico” (1914d),
declara que “a teoria do recalcamento é a pedra angular em que
repousa toda a estrutura da psicanálise”, e dá a mesma explicação
aqui apresentada sobre a maneira como se chegou a ela. Afirma
também sua crença de ter chegado de forma independente a essa
teoria, e a história da descoberta confirma amplamente essa crença.
No mesmo trecho, Freud observa que uma sugestão da idéia do
recalcamento encontra-se em Schopenhauer (1844), cujas obras,
contudo, ele só veio a ler em idade avançada; e há pouco tempo se
ressaltou que a palavra “Verdrängung” (“recalcamento”) ocorre nos
escritos do psicólogo Herbart (1824), do início do século XIX, cujas
idéias tiveram grande influência sobre numerosas pessoas que faziam
parte do círculo de Freud, em particular seu professor imediato de
psiquiatria, Meynert. Mas nenhuma dessas sugestões diminui de modo
significativo a originalidade da teoria de Freud, com sua base empírica,
que encontrou sua primeira expressão na “Comunicação Preliminar”
(ver em [1]-[2]).
Em contraposição a isso, não há nenhuma dúvida de que Breuer deu
origem à noção dos “estados hipnóides”, ponto a que voltaremos
dentro em breve, e parece possível que tenha sido responsável pelos
termos “catarse” e “ab-reação”.
Todavia, muitas das conclusões teóricas dos Estudos devem ter sido
produto de discussões entre os dois autores durante seus anos de
colaboração, e o próprio Breuer comenta (ver em [1]-[2]) sobre a
dificuldade de determinar a prioridade em tais casos. Afora a influência
de Charcot, sobre a qual Freud jamais deixou de insistir, deve-se
também recordar que tanto Breuer como Freud eram basicamente fiéis
à escola de Helmholz, da qual um professor deles, Ernst Brücke, foi
membro preeminente. Grande parte da teoria subjacente aos Estudos
sobre a Histeria deriva da doutrina daquela escola, teoria que diz
serem todos os fenômenos naturais, em última análise, explicáveis em
função de forças físicas e químicas.
Já vimos (em [1]) que, embora Breuer fosse o primeiro a mencionar o
“princípio da constância” pelo nome, ele atribuiu essa hipótese a Freud.
De modo semelhante, ele ligou o nome de Freud ao termo “conversão”,
mas (como será explicado mais adiante, em [1]), o próprio Freud
declarou que isso se aplicava apenas à palavra e que se chegou em
conjunto ao conceito.
Por outro lado, há um grande número de conceitos muito importantes
que parecem ser corretamente atribuíveis a Breuer: a idéia de a
alucinação ser uma “retrogressão” das imagens mentais para a
percepção (ver em [1]), a tese de que as funções da percepção e da
memória não podem ser realizadas pelo mesmo aparelho (ver em [1]),
e, finalmente, causando grande surpresa, a distinção entre a energia
psíquica ligada (tônica) e a não-ligada (móvel) e a distinção correlata
entre os processos psíquicos primário e secundário (ver em [1]).
O emprego do termo “Besetzung” (“catexia”), que aparece pela
primeira vez em [1]-[2] com o sentido que iria tornar-se tão familiar na
teoria psicanalítica, provavelmente deve ser atribuído a Freud. Como é
natural, a idéia de todo o aparelho mental, ou parte dele, transportar
uma carga de energia é pressuposta pelo princípio da constância. E
embora o termo real que iria transformar-se no padrão fosse
empregado pela primeira vez neste volume, a idéia fora antes expressa
por Freud sob outras formas. Assim, encontramo-lo utilizando
expressões tais como “mit Energie ausgestattet” (“suprido de energia”)
(1895b), “mit einer Erregungssumme behaftet (“carregado de uma
soma de excitação”) (1894a), “munie d’une valeur affective” (“provido
de uma cota de afeto”) (1893c), “Verschiebungen von Erregungs
summen” (“deslocamentos de somas de excitação”) (1941a |1892|) e,
já no prefácio a sua primeira tradução de Bernheim (1888-9)
“Verschiebungen von Erregbarkeit im Nervensystem” (deslocamentos
de excitabilidade no sistema nervoso”).
Esta última citação, porém, constitui um lembrete de algo de grande
importância que pode muito facilmente ser desprezado. Não há dúvida
alguma de que, na época da publicação dos Estudos, Freud
considerava o termo “catexia” como puramente fisiológico. Isso é
comprovado pela definição do termo dada por ele na Parte I, Seção 2,
de seu “Projeto para uma Psicologia Científica”, com o qual sua mente
já estava ocupada (como se verifica nas cartas a Fliess) e que foi
escrito apenas alguns meses depois. Ali, após fornecer uma explicação
sobre uma entidade neurológica recém-descoberta, o “neurônio”,
prossegue ele: “Se combinarmos esta descrição dos neurônios com
uma abordagem nos moldes da teoria da quantidade, chegaremos à
idéia de uma neurônio ‘catexizado’, cheio de certa quantidade, embora
em outras ocasiões possa estar vazio.” A propensão neurológica das
teorias de Freud nesse período é indicada ainda pela forma como o
princípio da constância é enunciado no mesmo trecho do “Projeto”.
Recebe a designação de “o princípio da inércia neuronal” e é definido
como indicativo de “que os neurônios tendem a desembaraçar-se da
quantidade”. Revela-se assim um notável paradoxo. Breuer, como
veremos adiante (ver em [1]), declara sua intenção de tratar o assunto
da histeria em moldes puramente psicológicos: “No que se segue,
pouca menção será feita ao cérebro e absolutamente nenhuma às
moléculas. Os processos psíquicos serão tratados na linguagem da
psicologia.” Na verdade, porém, seu capítulo teórico versa basicamente
sobre as “excitações intracerebrais” e sobre paralelos entre o sistema
nervoso e as instalações elétricas. Por outro lado, Freud dedicava
todas as suas energias a explicar os fenômenos mentais em termos
fisiológicos e químicos. Não obstante, como ele próprio confessa com
pesar (ver em [1]), seus casos clínicos têm a forma de contos e suas
análises são psicológicas.
A verdade é que, em 1895, Freud encontrava-se a meio caminho no
processo de passar das explicações fisiológicas dos estados
psicopatológicos para as explicações psicológicas. Por um lado,
propunha o que era, em linhas gerais, uma explicação química das
neuroses “atuais” — neurastenia e neurose de angústia — (em seus
dois artigos sobre neurose de angústia, 1895b e 1895f), e, por outro,
propunha uma explicação essencialmente psicológica — em termos de
“defesa” e “recalcamento” — para a histeria e as obsessões (em seus
dois artigos sobre “As Neuropsicoses de Defesa”, 1894a e 1896b). Sua
formação anterior e sua carreira como neurologista levavam-no a
resistir à aceitação das explicações psicológicas como definitivas; e ele
estava empenhado em elaborar uma estrutura complexa de hipóteses
destinadas a possibilitar a descrição dos eventos mentais em termos
puramente neurológicos. Essa tentativa culminou no “Projeto” e foi
abandonada não muito depois. Até o fim da vida, porém, Freud
continuou adepto da etiologia química das neuroses “atuais” e a
acreditar que se acabaria encontrando uma base física para todos os
fenômenos mentais. Entrementes, ele chegou pouco a pouco ao ponto
de vista expresso por Breuer de que os processos psíquicos só podem
ser tratados na linguagem da psicologia. Foi só em 1905 (em seu livro
sobre o chiste, Capítulo V) que ele pela primeira vez repudiou de forma
explícita qualquer intenção de empregar o termo “catexia” em algum
sentido que não fosse o psicológico e abandonou todas as tentativas
de relacionar os tratos nervosos ou os neurônios com as vias de
associação mental.
Quais eram, porém, as divergências científicas essenciais entre Breuer
e Freud? Em seu Estudo Autobiográfico (1925d) Freud afirma que a
primeira delas relacionava-se com a etiologia da histeria e poderia ser
descrita como “os estados hipnóides versus as neuroses de defesa”.
Mais uma vez, no entanto, aqui mesmo neste volume, o problema é
menos nítido. Na “Comunicação Preliminar” elaborada em conjunto,
ambas as etiologias são aceitas (ver em [1]). Breuer, em seu capítulo
teórico, evidentemente dá maior ênfase aos estados hipnóides (ver em
[1]), mas também acentua a importância da “defesa” (ver em [1] e [2]),
embora de modo pouco entusiástico. Freud parece aceitar a noção dos
“estados hipnóides” no caso clínico de “Katharina” (ver em [1]) e, de
modo menos definitivo, no da Sra. Elisabeth (ver em [1]). É só no
capítulo final que seu ceticismo começa a tornar-se evidente (ver em
[1]). Num artigo sobre “A Etiologia da Histeria”, publicado no ano
seguinte (1896c), esse ceticismo é expresso de forma ainda mais
franca e, numa nota de rodapé ao caso de “Dora” (1905e), Freud
declara que a expressão “estados hipnóides” é “desnecessária e
confusa” e que a hipótese “decorreu inteiramente da iniciativa de
Breuer” (Edição Standard Brasileira, 1ª edição, Vol. VII, pág. 25n).
Mas a principal diferença de opinião entre os dois autores, na qual
Freud posteriormente insistiu, dizia respeito ao papel desempenhado
pelos impulsos sexuais na causação da histeria. Também aqui,
contudo, verificaremos que a divergência expressa aparece de uma
forma menos clara do que seria de se esperar. A crença de Freud na
origem sexual da histeria pode ser inferida com bastante clareza a
partir da discussão em seu capítulo sobre a psicoterapia (ver em. [1]),
mas em nenhum ponto ele chega a afirmar, como faria mais tarde, que
uma etiologia sexual se mostra invariavelmente presente nos casos de
histeria. Por outro lado, Breuer fala em vários pontos, e usando os
termos mais incisivos, sobre a importância do papel desempenhado
pela sexualidade nas neuroses, e o faz em especial no longo trecho
em [1] e segs. Diz ele, por exemplo (como já se observou, em [1]), que
“a pulsão sexual é sem dúvida a fonte mais poderosa dos aumentos
persistentes de excitação (e, conseqüentemente, das neuroses)” (ver
em [1]), e declara (ver em [1]) que “a grande maioria das neuroses
graves nas mulheres tem sua origem no leito conjugal”.
Parece que, para encontrarmos uma explicação satisfatória para a
dissolução dessa parceria científica, deveríamos olhar o que está atrás
da palavra impressa. As cartas de Freud a Fliess mostram Breuer
como um homem cheio de dúvidas e reservas, sempre inseguro em
suas conclusões. Há um exemplo extremo disso numa carta de 8 de
novembro de 1895 (1950a, Carta 35), cerca de seis meses após a
publicação dos Estudos: “Não faz muito tempo, no Colégio de
Medicina, Breuer fez um longo discurso falando de mim, no qual
anunciou sua conversão à crença na etiologia sexual |das neuroses|.
Quando o chamei de lado para agradecer-lhe, ele estragou meu
prazer, dizendo: ‘Ainda assim não creio nisso.’ Você consegue
entender isso? Eu, não.” Algo dessa natureza pode ser lido nas
entrelinhas das contribuições de Breuer aos Estudos, onde temos o
quadro de um homem meio temeroso de suas próprias descobertas
notáveis. Era inevitável que ele ficasse ainda mais desconcertado pelo
pressentimento das descobertas ainda mais inquietantes que estavam
por vir; e era inevitável que Freud, por sua vez, se sentisse prejudicado
e irritado com as incômodas hesitações de seu companheiro de
trabalho.
Seria enfadonho enumerar os muitos trechos, nas obras posteriores de
Freud, nos quais ele se refere aos Estudos sobre a Histeria e a Breuer;
porém, algumas citações ilustrarão a variação da ênfase em sua
atitude para com eles.
Nos numerosos relatos abreviados de seus métodos terapêuticos e
das teorias psicológicas que publicou durante os anos logo após o
lançamento dos Estudos, Freud se esforçou por ressaltar as diferenças
entre a “psicanálise” e o método catártico — as inovações técnicas, a
extensão de seu processo quanto às outras neuroses que não a
histeria, o estabelecimento da motivação da “defesa”, a insistência
numa etiologia sexual e, como já vimos, a rejeição final dos “estados
hipnóides”. Ao chegarmos à primeira série das obras principais de
Freud — os volumes sobre sonhos (1900a), parapraxias (1901b),
chistes (1905c) e sexualidade (1905d) — naturalmente há pouco ou
nenhum material retrospectivo; e é somente nas cinco conferências
proferidas na Universidade de Clark (1910a) que vamos encontrar um
levantamento histórico extenso. Nessas conferências, Freud parecia
ansioso por estabelecer a continuidade entre sua obra e a de Breuer.
Toda a primeira conferência e grande parte da segunda são dedicadas
a um resumo dos Estudos, e a impressão dadaera a de que não Freud,
e sim Breuer era o verdadeiro fundador da psicanálise.
O longo levantamento retrospectivo seguinte, na “História do
Movimento Psicanalítico” (1914d), teve um tom muito diferente. Todo o
artigo, naturalmente, teve uma intenção polêmica, e não é de
surpreender que, ao esboçar a história inicial da psicanálise, Freud
frisasse mais suas divergências com Breuer do que sua dívida para
com ele, e que revogasse explicitamente sua visão de Breuer como o
fundador da psicanálise. Também nesse artigo Freud discorreu
largamente sobre a incapacidade de Breuer para enfrentar a
transferência sexual e revelou o “lastimável evento” que encerrou a
análise de Anna O (ver em [1]).
A seguir veio o que parece ser quase uma amende— já mencionada
na ver em [1]: a inesperada atribuição a Breuer da distinção entre a
energia psíquica ligada e a não-ligada e entre os processos primário e
secundário. Não tinha havido nenhuma sugestão dessa atribuição
quando essas hipóteses foram originalmente introduzidas por Freud
(em A Interpretação dos Sonhos); ela foi feita pela primeira vez numa
nota de rodapé à Seção V do artigo metapsicológico sobre “O
Inconsciente” (1915e) e repetida em Além do Princípio do Prazer
(1920g); (Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1] e [2]). Não
muito tempo depois houve algumas frases de louvor num artigo
preparado por Freud para o Handwörterbuch de Marcuse (1923a;
Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, em [1]): “Numa seção teórica
dos Estudos, Breuer propôs algumas idéias especulativas sobre os
processos de excitação da mente. Essas idéias determinaram a
direção das futuras linhas de pensamento…” Mais ou menos na
mesma orientação, Freud escreveu, um pouco depois, numa
contribuição para uma publicação norte-americana (1924f): “O método
catártico foi o precursor imediato da psicanálise e, apesar de toda
amplitude da experiência e de todas as modificações de teoria, ainda
se acha contido nela como seu núcleo.”
O longo levantamento histórico de Freud que se seguiu, Um Estudo
Autobiográfico (1925d), pareceu mais uma vez afastar-se da obra
conjunta: “Se o relato que fiz até agora”, escreveu, “levou o leitor a
esperar que os Estudos sobre a Histeria, em todos os pontos
essenciais de seu conteúdo, tenham sido um produto da mente de
Breuer, isso é precisamente o que eu mesmo sempre sustentei… No
tocante à teoria formulada no livro, fui parcialmente responsável, mas
numa medida que hoje não é mais possível determinar. Aquela teoria,
de qualquer modo, era despretensiosa e mal foialém da descrição
direta das observações.” E acrescentou que “teria sido difícil adivinhar,
pelos Estudos sobre a Histeria, a importância que tem a sexualidade
na etiologia das neuroses”, passando mais uma vez a descrever a
relutância de Breuer em reconhecer esse fator.
Logo depois disso Breuer faleceu, e talvez seja apropriado encerrar
esta introdução à obra conjunta com uma citação do necrológio feito
por Freud sobre seu colaborador (1925g). Depois de comentar a
relutância de Breuer em publicar os Estudos e de declarar que o
principal mérito dele próprio em relação a essa obra fora o de haver
persuadido Breuer a concordar com seu lançamento, prosseguiu: “Na
época em que ele aceitou minha influência e estava elaborando os
Estudos para publicação, seu julgamento do significado da obra
pareceu confirmar-se. ‘Creio’, disse-me ele, ‘que esta é a coisa mais
importante que nós dois temos a dar ao mundo’. Além do caso clínico
de sua primeira paciente, Breuer redigiu um artigo teórico para os
Estudos. Esse texto está muito longe de ser desatualizado; pelo
contrário, oculta pensamentos e sugestões que não foram
suficientemente levados em conta. Qualquer um que se aprofunde
nesse ensaio especulativo formará uma verdadeira impressão da
estatura mental desse homem cujos interesses científicos,
infelizmente, só foram orientados na direção de nossa psicopatologia
por um curto episódio de sua longa vida.”
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO
Em 1893 publicamos a “Comunicação Preliminar” sobre um novo
método de examinar e tratar os fenômenos histéricos. A ela
acrescentamos, de forma tão concisa quanto possível, as conclusões
teóricas a que havíamos chegado. Estamos aqui reimprimindo essa
“Comunicação Preliminar” para servir como a tese que temos por
finalidade ilustrar e provar.
Anexamos a ela uma série de casos clínicos cuja seleção, infelizmente,
não pôde ser determinada em bases puramente científicas. Nossa
experiência provém da clínica particular numa classe social culta e
letrada, e o assunto com que lidamos muitas vezes aborda a vida e a
história mais íntimas de nossos pacientes. Constituiria grave quebra de
confiança publicar material dessa espécie, com o risco de os pacientes
serem identificados e seus conhecidos ficarem a par de fatos confiados
apenas ao médico. Foi-nos portanto impossível fazer uso de algumas
das nossas observações mais instrutivas e convincentes. Isso
naturalmente se aplica de forma especial a todos os casos em que as
relações sexuais e maritais desempenham um importante papel
etiológico. Assim, ocorre que só conseguimos apresentar provas muito
incompletas em favor de nosso ponto de vista de que a sexualidade
parece desempenhar um papel fundamental na patogênese da histeria,
como fonte de traumas psíquicos e como motivação para a “defesa” —
isto é, para que as idéias sejam recalcadas da consciência. Foram
precisamente as observações de natureza marcadamente sexual que
nos vimos obrigados a não publicar.
Os casos clínicos são seguidos de diversas considerações teóricas e,
num capítulo final sobre terapia, propõe-se a técnica do “método
catártico” tal como se desenvolveu nas mãos do neurologista.
Se em algumas ocasiões se expressam opiniões divergentes e até
mesmo contraditórias, isso não deve ser considerado como prova de
qualquer vacilação em nossos pontos de vista. Decorre das
divergências naturais e justificáveis entre as opiniões dos dois
observadores que estão de acordo quanto aos fatos e à leitura básica
dos mesmos, mas que nem sempre concordam invariavelmente em
suas interpretações e conjeturas.
J. BREUER, S. FREUD
Abril de 1895
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
O interesse que, em grau sempre crescente, vem se voltando para a
psicanálise parece agora estar-se estendendo a estes Estudos sobre a
Histeria. O editor deseja publicar nova edição do livro, que no momento
se acha esgotado. Aparece ele agora numa reimpressão sem
quaisquer alterações, embora as opiniões e os métodos apresentados
na primeira edição tenham desde então passado por desenvolvimentos
de longo alcance e profundidade. No que me diz respeito,
pessoalmente, desde aquela época não lidei ativamente com o
assunto; não tive nenhuma participação em seu importante
desenvolvimento e nada poderia acrescentar de novo ao que foi escrito
em 1895. Assim, nada pude fazer além de expressar o desejo de que
minhas duas contribuições ao volume fossem reimpressas sem
alteração.
BREUER
Também quanto a minha participação no livro, a única decisão possível
é que o texto da primeira edição seja reimpresso sem alteração. Os
desenvolvimentos e mudanças ocorridos em meus pontos de vista no
decorrer de treze anos de trabalho foram extensos demais para que
seja possível vinculá-los a minha anterior exposição sem destruir
inteiramente seu caráter essencial. Tampouco tenho qualquer motivo
para desejar eliminar esta prova de meus conceitos iniciais. Ainda hoje
não os considero como erros, mas como valiosas primeiras
aproximações de um conhecimento que só poderia ser plenamente
adquirido após longos e continuados esforços. O leitor atento será
capaz de descobrir neste livro os germes de tudo aquilo que desde
então foi acrescentado à teoria da catarse; por exemplo, o papel
desempenhado pelos fatores psicossexuais e pelo infantilismo, e a
importância dos sonhos e do simbolismo inconsciente. E não posso dar
melhor conselho a qualquer interessado no desenvolvimento da
catarse até chegar à psicanálise do que começar pelos Estudos sobre
a Histeria e, desse modo, seguir o caminho que eu próprio trilhei.
FREUD
VIENA, julho de 1908
I - SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS
HISTÉRICOS: COMUNICAÇÃO PRELIMINAR (1893)
(BREUER E FREUD)
I
Uma observação casual levou-nos, durante vários anos, a pesquisar
uma grande variedade de diferentes formas e sintomas de histeria,
com vistas a descobrir sua causa precipitante — o fato que teria
provocado a primeira ocorrência, muitos anos antes com freqüência,
do fenômeno em questão. Na grande maioria dos casos não é possível
estabelecer o ponto de origem através da simples interrogação do
paciente, por mais minuciosamente que seja levada a efeito. Isso se
verifica, em parte, porque o que está em questão é, muitas vezes,
alguma experiência que o paciente não gosta de discutir; mas ocorre
principalmente porque ele é de fato incapaz de recordá-la e, muitas
vezes, não tem nenhuma suspeita da conexão causal entre o evento
desencadeador e o fenômeno patológico. Via de regra, é necessário
hipnotizar o paciente e provocar, sob hipnose, suas lembranças da
época em que o sintoma surgiu pela primeira vez; feito isso, torna-se
possível demonstrar a conexão causal da forma mais clara e
convincente.
Esse método de exame tem produzido, num grande número de casos,
resultados que se afiguram valiosos tanto do ponto de vista teórico
como do ponto de vista prático.
Eles são teoricamente valiosos porque nos ensinaram que os fatos
externos determinam a patologia da histeria numa medida muito maior
do que se sabe e reconhece. Naturalmente, é óbvio que, nos casos de
histeria “traumática”, o que provoca os sintomas é o acidente. A ligação
causal evidencia-se igualmente nos ataques histéricos quando é
possível deduzir dos enunciados do paciente que, em cada ataque, ele
está alucinando o mesmo evento que provocou o primeiro deles. A
situação é mais obscura no caso de outros fenômenos.
Nossas experiências, porém, têm demonstrado que os mais variados
sintomas, que são ostensivamente espontâneos e, como se poderia
dizer, produtos idiopáticos da histeria, estão tão estritamente
relacionados com o trauma desencadeador quanto os fenômenos a
que acabamos de aludir e que exibem a conexão causal de maneira
bem clara. Os sintomas cujo rastro pudemos seguir até os referidos
fatores desencadeadores deste tipo abrangem nevralgias e anestesias
de naturezas muito diversas, muitas das quais haviam persistido
durante anos, contraturas e paralisias, ataques histéricos e convulsões
epileptóides, que os observadores consideravam como epilepsia
verdadeira, petit mal e perturbações da ordem dos tiques, vômitos
crônicos e anorexia, levados até o extremo de rejeição de todos os
alimentos, várias formas de perturbação da visão, alucinações visuais
constantemente recorrentes, etc. A desproporção entre os muitos anos
de duração do sintoma histérico e a ocorrência isolada que o provocou
é o que estamos invariavelmente habituados a encontrar nas neuroses
traumáticas. Com grande freqüência, é algum fato da infância que
estabelece um sintoma mais ou menos grave, que persiste durante os
anos subseqüentes.
Muitas vezes, a ligação é tão nítida que se torna bem evidente como
foi que o fato desencadeante produziu um dado fenômeno específico,
de preferência a qualquer outro. Nesse caso, o sintoma foi de forma
bem óbvia determinado pela causa desencadeadora. Podemos tomar
como exemplo muito comum uma emoção penosa surgida durante
uma refeição, mas suprimida na época, e que produz então náuseas e
vômitos que persistem por meses sob a forma de vômitos histéricos.
Uma jovem que velava o leito de um enfermo, atormentada por uma
grande angústia, caiu num estado crepuscular e teve uma alucinação
aterrorizante, enquanto seu braço direito, que pendia sobre o dorso da
cadeira, ficou dormente; disso proveio uma paresia do mesmo braço,
acompanhada de contratura e anestesia. Ela tentou rezar, mas não
conseguiu encontrar as palavras; por fim, conseguiu repetir uma
oração para crianças em inglês. Posteriormente, ao surgir uma histeria
grave e altamente complicada, ela só conseguia falar, escrever e
compreender o inglês, enquanto sua língua materna permaneceu
ininteligível para ela por dezoito meses. — A mãe de uma criança
muito doente, que finalmente adormecera, concentrou toda a sua força
de vontade em manter-se imóvel a fim de não despertá-la.
Precisamente por causa da sua intenção, produziu um ruído de “estalo”
com a língua. (Um exemplo de “contravontade histérica”.) Esse ruído
se repetiu numa ocasião subseqüente em que ela desejava manter-se
perfeitamente imóvel, tendo dele surgido um tique que, sob a forma de
um estalido com a língua, ocorreu durante um período de muitos anos
sempre que ela se sentia excitada. — Um homem muito inteligente
estava presente quando uma articulação da coxa anquilosada de seu
irmão foi submetida a uma manobra de extensão sob a ação de um
anestésico. No momento em que a articulação cedeu com um estalido,
ele sentiu uma dor violenta em sua própria articulação, que persistiu
por quase um ano. — Outros exemplos poderiam ser citados.
Em outros casos a conexão causal não é tão simples. Consiste apenas
no que se poderia denominar uma relação “simbólica” entre a causa
precipitante e o fenômeno patológico — uma relação do tipo da que as
pessoas saudáveis formam nos sonhos. Por exemplo, uma nevralgia
pode sobrevir após um sofrimento mental, ou vômitos após um
sentimento de repulsa moral. Temos estudado pacientes que
costumavam fazer o mais abundante uso dessa espécie de
simbolização. Noutros casos ainda, não é possível compreender à
primeira vista como os sintomas podem ser determinados à maneira
como sugerimos. São precisamente os sintomas histéricos típicos que
se enquadram nessa classe, tais como a hemianestesia, a contração
do campo visual, as convulsões epileptiformes e assim por diante. Uma
explicação de nossos pontos de vista sobre esse grupo deve ser
reservada para um exame mais acurado do assunto.
Observações como essas nos parecem estabelecer uma analogia
entre a patogênese da histeria comum e a das neuroses traumáticas e
justificar uma extensão do conceito de histeria traumática. Nas
neuroses traumáticas, a causa atuante da doença não é o dano físico
insignificante, mas o afeto do susto — o trauma psíquico. De maneira
análoga, nossas pesquisas revelam para muitos, se não para a maioria
dos sintomas histéricos, causas desencadeadoras que só podem ser
descritas como traumas psíquicos. Qualquer experiência que possa
evocar afetos aflitivos — tais como os de susto, angústia, vergonha ou
dor física — pode atuar como um trauma dessa natureza; e o fato de
isso acontecer de verdade depende, naturalmente, da suscetibilidade
da pessoa afetada (bem como de outra condição que será mencionada
adiante). No caso da histeria comum não é rara a ocorrência, em vez
de um trauma principal isolado, de vários traumas parciais que formam
um grupo de causas desencadeadoras. Essas causas só puderam
exercer um efeito traumático por adição e constituem um conjunto por
serem, em parte, componentes de uma mesma história de sofrimento.
Existem outros casos em que uma circunstância aparentemente trivial
se combina com o fato realmente atuante ou ocorre numa ocasião de
peculiar suscetibilidade ao estímulo e, dessa forma, atinge a categoria
de um trauma, que de outra forma não teria tido, mas que daí por
diante persiste.
Mas a relação causal entre o trauma psíquico determinante e o
fenômeno histérico não é de natureza a implicar que o trauma atue
como mero agent provocateur na liberação do sintoma, que passa
então a levar uma existência independente. Devemos antes presumir
que o trauma psíquico — ou, mais precisamente, a lembrança do
trauma — age como um corpo estranho que, muito depois de sua
entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda
está em ação; encontramos a prova disso num fenômeno invulgar que,
ao mesmo tempo, traz um importante interesse prático para nossas
descobertas.
É que verificamos, a princípio com grande surpresa, que cada sintoma
histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente,
quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato
que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhara, e
quando o paciente havia descrito esse fato com o maior número de
detalhes possível e traduzido o afeto em palavras. A lembrança sem
afeto quase invariavelmente não produz nenhum resultado. O processo
psíquico originalmente ocorrido deve ser repetido o mais nitidamente
possível; deve ser levado de volta a seu status nascendi e então
receber expressão verbal. Quando aquilo com que estamos lidando
são fenômenos que envolvem estímulos (espasmos, nevralgias e
alucinações), estes reaparecem mais uma vez com intensidade
máxima e a seguir desaparecem para sempre. As deficiências
funcionais, tais como paralisias e anestesias, desaparecem da mesma
maneira, embora, é claro, sem que a intensificação temporária seja
discernível.
É plausível supor que se trata aqui de sugestão inconsciente: o
paciente espera ser aliviado de seus sofrimentos por esse
procedimento, e é essa expectativa, e não a expressão verbal, o fator
operativo. Mas não é isso que ocorre. O primeiro caso dessa natureza
a ser objeto de observação remonta ao ano de 1881, isto é, à era da
“pré-sugestão”. Um caso muito complicado de histeria foi analisado
dessa maneira, e os sintomas que decorriam de causas distintas foram
distintamente eliminados. Essa observação foi possibilitada por
auto-hipnoses espontâneas por parte do paciente, e surgiu com uma
grande surpresa para o observador.
Podemos inverter a máxima “cessante causa cessat effectus”
|“cessando a causa cessa o efeito”| e concluir dessas observações que
o processo determinante continua a atuar, de uma forma ou de outra,
durante anos — não indiretamente, através de uma corrente de elos
causais intermediários, mas como uma causa diretamente liberadora
— da mesma forma que um sofrimento psíquico que é recordado no
estado consciente de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal
muito tempo depois de ocorrido o fato. Os histéricos sofrem
principalmente de reminiscências.
II
À primeira vista parece extraordinário que fatos experimentados há
tanto tempo possam continuar a agir de forma tão intensa — que sua
lembrança não esteja sujeita ao processo de desgaste a que, afinal de
contas, vemos sucumbirem todas as nossas recordações. Talvez as
considerações que se seguem possam tornar isso um pouco mais
inteligível.
O esmaecimento de uma lembrança ou a perda de seu afeto
dependem de vários fatores. O mais importante destes é se houve uma
reação energética ao fato capaz de provocar um afeto. Pelo termo
“reação” compreendemos aqui toda a classe de reflexos voluntários e
involuntários — das lágrimas aos atos de vingança — nos quais, como
a experiência nos mostra, os afetos são descarregados. Quando essa
reação ocorre em grau suficiente, grande parte do afeto desaparece
como resultado. O uso da linguagem comprova esse fato de
observação cotidiana com expressões como “desabafar pelo pranto”
|“sich ausweinen”| e “desabafar através de um acesso de cólera” |“sich
austoben”, literalmente “esvair-se em cólera”|. Quando a reação é
reprimida, o afeto permanece vinculado à lembrança. Uma ofensa
revidada, mesmo que apenas com palavras, é recordada de modo bem
diferente de outra que teve que ser aceita. A linguagem também
reconhece essa distinção, em suas conseqüências mentais e físicas;
de maneira bem característica, ela descreve uma ofensa sofrida em
silêncio como “uma mortificação” |“Kränkung”, literalmente, um “fazer
adoecer”|. — A reação da pessoa insultada em relação ao trauma só
exerce um efeito inteiramente “catártico” se for uma reação adequada
— como, por exemplo, a vingança. Mas a linguagem serve de
substituta para a ação; com sua ajuda, um afeto pode ser “ab-reagido”
quase com a mesma eficácia. Em outros casos, o próprio falar é o
reflexo adequado: quando, por exemplo, essa fala corresponde a um
lamento ou é a enunciação de um segredo torturante, por exemplo,
uma confissão. Quando não há uma reação desse tipo, seja em ações
ou palavras, ou, nos casos mais benignos, por meio de lágrimas,
qualquer lembrança do fato preserva sua tonalidade afetiva do início.
A “ab-reação”, contudo, não é o único método de lidar com a situação
para uma pessoa normal que tenha experimentado um trauma
psíquico. Uma lembrança desse trauma, mesmo que não tenha sido
ab-reagida, penetra no grande complexo de associações, entra em
confronto com outras experiências que possam contradizê-la, e está
sujeita à retificação por outras representações. Depois de um acidente,
por exemplo, a lembrança do perigo e a repetição (mitigada) do medo é
associada à lembrança do que ocorreu depois — o socorro e a
situação consciente da segurança atual. Da mesma forma, a
lembrança de uma humilhação é corrigida quando a pessoa situa os
fatos no devidos lugares, considerando seu próprio valor, etc. Desse
modo, uma pessoa normal é capaz de provocar o desaparecimento do
afeto concomitante por meio do processo de associação.
A isso devemos acrescentar a obliteração geral das impressões, o
evanescimento das lembranças a que chamamos “esquecimento” e
que desgasta as representações não mais afetivamente atuantes.
Nossas observações demonstraram, por outro lado, que as lembranças
que se tornaram os determinantes de fenômenos histéricos persistem
por longo tempo com surpreendente vigor e com todo o seu colorido
afetivo. Devemos, contudo, mencionar outro fato notável do qual
posteriormente poderemos tirar proveito, a saber, que essas
lembranças, em contraste com outras de sua vida passada, não se
acham à disposição do paciente. Pelo contrário, essas experiências
estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes quando em
estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma bastante
sumária. Apenas quando o paciente é inquirido sob hipnose é que
essas lembranças emergem com a nitidez inalterada de um fato
recente.
Assim, durante nada menos de seis meses, uma de nossas pacientes
reproduziu sob hipnose, com uma nitidez alucinatória, tudo o que a
havia excitado no mesmo dia no ano anterior (durante um ataque de
histeria aguda). Um diário mantido por sua mãe sem o conhecimento
da paciente provou a inteireza da reprodução |ver em [1]|. Outra
paciente, em parte sob hipnose e em parte durante ataques
espontâneos, reviveu com clareza alucinatória todos os fatos de uma
psicose histérica que experimentara dez anos antes e que havia
esquecido, em sua maior parte, até o momento em que ela ressurgiu.
Além disso, verificou-se que certas lembranças de importância
etiológica que datavam dos quinze aos vinte e cinco anos estavam
surpreendentemente intactas e possuíam uma intensidade sensorial
notável, e que, ao retornarem, atuaram com toda a força afetiva das
experiências novas |ver em [1]-[2]|.
Isso só pode ser explicado pelo fato de que essas lembranças
constituem uma exceção em sua relação com todos os processos de
desgaste que examinamos atrás. Em outras palavras: parece que
essas lembranças correspondem a traumas que não foram
suficientemente ab-reagidos; e se penetrarmos mais a fundo nos
motivos que impediram isso, encontraremos pelo menos dois grupos
de condições sob as quais a reação ao trauma deixa de ocorrer.
No primeiro grupo acham-se os casos em que os pacientes não
reagiram a um trauma psíquico porque a natureza do trauma não
comportava reação, como no caso da perda obviamente irreparável de
um ente querido, ou porque as circunstâncias sociais impossibilitavam
uma reação, ou porque se tratava de coisas que o paciente desejava
esquecer, e portanto, recalcara intencionalmente do pensamento
consciente, inibindo-as e suprimindo-as. São precisamente as coisas
aflitivas dessa natureza que, sob hipnose, constatamos serem a base
dos fenômenos histéricos (por exemplo, os delírios histéricos de santos
e freiras, de mulheres que guardam a castidade e de crianças
bem-educadas).
O segundo grupo de condições é determinado, não pelo conteúdo das
lembranças, mas pelos estados psíquicos em que o paciente recebeu
as experiências em questão, pois encontramos sob hipnose, dentre as
causas dos sintomas histéricos, representações que em si mesmas
não são importantes, mas cuja persistência se deve ao fato de que se
originaram durante a prevalência de afetos gravemente paralisantes,
tais como o susto, ou durante estados psíquicos positivamente
anormais, como o estado crepuscular semi-hipnótico dos devaneios, a
auto-hipnose, etc. Em tais casos, é a natureza dos estados que torna
impossível uma reação ao acontecimento.
É claro que ambas as espécies de condições podem estar presentes
ao mesmo tempo, e isso de fato ocorre com freqüência. É o que
acontece quando um trauma que é atuante por si mesmo ocorre
enquanto predomina um afeto gravemente paralisante, ou durante um
estado de alteração da consciência. Mas também parece ser verdade
que em muitas pessoas um trauma psíquico produz um desses
estados anormais, o que, por sua vez, torna a reação impossível.
Ambos os grupos de condições, porém, possuem em comum o fato de
que os traumas psíquicos que não foram eliminados pela reação
também não podem sê-lo pela elaboração por meio da associação. No
primeiro grupo, o paciente está decidido a esquecer as experiências
aflitivas e, por conseguinte, as exclui tanto quanto possível da
associação; já no segundo grupo, a elaboração associativa deixa de
ocorrer porque não existe nenhuma vinculação associativa abrangente
entre o estado normal da consciência e os estados patológicos em que
as representações surgiram. Logo teremos ocasião de nos
aprofundarmos nesse assunto.
Assim, pode-se dizer que as representações que se tornaram
patológicas persistiram com tal nitidez e intensidade afetiva porque
lhes foram negados os processos normais de desgaste por meio da
ab-reação e da reprodução em estados de associação não inibida.
III
Mencionamos as condições que, como demonstra nossa experiência,
são responsáveis pelo desenvolvimento de fenômenos histéricos
provenientes de traumas psíquicos. Ao fazê-lo, já fomos obrigados a
falar nos estados anormais de consciência em que surgem essas
representações patogênicas e a ressaltar o fato de que a lembrança do
trauma psíquico atuante não se encontra na memória normal do
paciente, mas em sua memória ao ser hipnotizado. Quanto mais nos
ocupamos desses fenômenos, mais nos convencemos de que a
divisão da consciência, que é tão marcante nos casos clássicos
conhecidos sob a forma de “double conscience”, acha-se presente em
grau rudimentar em toda histeria, e que a tendência a tal dissociação, e
com ela ao surgimento dos estados anormais da consciência que
(reuniremos sob a designação de “hipnóides”), constitui o fenômeno
básico dessa neurose. Quanto a esses concordamos com Binet e com
os dois Janets, embora não tenhamos tido nenhuma experiência das
notáveis descobertas que eles fizeram com pacientes anestésicos.
Gostaríamos de contrabalançar a conhecida tese de que a hipnose é
uma histeria artificial com uma outra — a de que a base e condição
sine qua non da histeria é a existência de estados hipnóides. Esses
estados hipnóides partilham uns com os outros e com a hipnose, por
mais que difiram sob outros aspectos, uma característica comum: as
representações que neles surgem são muito intensas, mas estão
isoladas da comunicação associativa com o restante do conteúdo da
consciência. Podem ocorrer associações entre esses estados
hipnóides, e seu conteúdo representativo pode, dessa forma, atingir
um grau mais ou menos elevado de organização psíquica. Além disso,
deve-se supor que a natureza desses estados e a extensão em que
ficam isolados dos demais processos da consciência variam do mesmo
modo que ocorre na hipnose, que vai desde uma leve sonolência até o
sonambulismo, de uma lembrança completa até a amnésia total.
Quando os estados hipnóides dessa natureza já se acham presentes
antes da instalação da doença manifesta, eles fornecem o terreno em
que o afeto planta a lembrança patogênica com suas conseqüentes
manifestações somáticas. Isso corresponde à histeria disposicional.
Verificamos, todavia, que um trauma grave (tal como ocorre numa
neurose traumática) ou uma supressão trabalhosa (como a de um
afeto sexual, por exemplo) podem ocasionar uma divisão expulsiva de
grupos de representações mesmo em pessoas que, sob outros
aspectos, não estão afetadas; e esse seria o mecanismo da histeria
psiquicamente adquirida. Entre os extremos dessas duas formas
devemos presumir a existência de uma série de casos dentro dos quais
a tendência à dissociação do indivíduo e a magnitude afetiva do trauma
variam numa proporção inversa.
Nada temos de novo a dizer sobre a questão da origem desses
estados hipnóides disposicionais. Ao que parece, eles freqüentemente
emergem dos devaneios que são tão comuns até mesmo nas pessoas
sadias e aos quais os trabalhos de costura e ocupações semelhantes
tornam as mulheres particularmente propensas. Por que é que as
“associações patológicas” surgidas nesses estados são tão estáveis, e
por que é que exercem uma influência tão maior sobre os processos
somáticos do que costumam fazer as representações, são perguntas
que coincidem com o problema geral da eficácia das sugestões
hipnóticas. Nossas observações não trazem nenhuma nova
contribuição para esse assunto, mas lançam luz sobre a contradição
entre a máxima “a histeria é uma psicose” e o fato de que, entre os
histéricos, podem-se encontrar pessoas da mais lúcida inteligência, da
maior força de vontade, do melhor caráter e da mais alta capacidade
crítica. Essa caracterização é válida em relação a seus pensamentos
em estado de vigília, mas, em seus estados hipnóides, elas são
insanas, como somos todos nos sonhos. Todavia, enquanto nossas
psicoses oníricas não exercem nenhum efeito sobre nosso estado de
vigília, os produtos dos estados hipnóides intrometem-se na vigília sob
a forma de sintomas histéricos.
IV
O que afirmamos sobre os sintomas histéricos crônicos pode ser
aplicado quase que integralmente aos ataques histéricos. Charcot,
como se sabe, deu-nos uma descrição esquemática do “grande”
ataque histérico, segundo a qual se podem distinguir quatro fases num
ataque completo: (1) a fase epileptóide, (2) a fase dos movimentos
amplos, (3) a fase das “atittudes passionnelles” (fase alucinatória) e (4)
a fase de delírio terminal. Charcot deduz todas as formas de ataque
histérico que, na prática, são encontradas com maior freqüência do
que o “grande attaque” completo, a partir da abreviação ou do
prolongamento, da ausência ou do isolamento dessas quatro fases
distintas.
Nossa tentativa de explicação tem como ponto de partida a terceira
dessas fases, a das “atittudes passionnelles”. Quando esta se acha
presente numa forma bem acentuada, ela apresenta a reprodução
alucinatória de uma lembrança que foi importante no
desencadeamento da histeria — a lembrança de um grande trauma
isolado (que encontramos par excellence no que é denominado histeria
traumática) ou de uma série de traumas parciais interligados (como os
subjacentes à histeria comum). Ou, finalmente, o ataque pode reviver
os fatos que se tornaram relevantes em virtude de sua coincidência
com um momento de predisposição especial ao trauma.
Entretanto, há também ataques que parecem consistir exclusivamente
em fenômenos motores e nos quais a fase de atittudes passionnelles
se acha ausente. Quando se consegue entrar em rapport com o
paciente durante um ataque como esse, de espasmos clônicos
generalizados ou rigidez cataléptica, ou durante um attaque de
sommeil |acesso de sono| — ou quando, melhor ainda, se consegue
provocar o acesso sob hipnose — verifica-se que também aqui há uma
lembrança subjacente do trauma psíquico ou da série de traumas, que,
de modo geral, chama nossa atenção numa fase alucinatória.
Dessa forma, durante anos, uma menina sofreu ataques de convulsões
generalizadas que poderiam ser, e realmente foram, considerados
como epilépticos. Ela foi hipnotizada com vistas a um diagnóstico
diferencial, e de imediato teve um de seus acessos. Perguntaram-lhe o
que estava vendo e ela respondeu: “O cachorro! O cachorro está
vindo!”; e de fato verificou-se que tivera o primeiro de seus ataques
após ter sido perseguida por um cão feroz. O êxito do tratamento
confirmou o diagnóstico.
Por sua vez, um funcionário que ficara histérico em decorrência de ser
maltratado por seu superior sofria de ataques em que caía no chão e
tinha acessos de raiva, mas sem dizer uma só palavra ou demonstrar
qualquer sinal de alucinação. Foi possível provocar um ataque sob
hipnose, e o paciente então revelou estar revivendo a cena em que seu
patrão o insultara na rua e batera nele com a bengala. Dias depois o
paciente voltou e queixou-se de ter tido outro ataque da mesma
natureza. Nessa ocasião, verificou-se sob hipnose que ele estivera
revivendo a cena com que estava relacionada a instalação real da
doença: a cena no tribunal em que ele não conseguira obter reparação
pelas injúrias sofridas.
Também em todos os demais aspectos as lembranças que emergem
ou podem ser provocadas nos ataques histéricos correspondem às
causas desencadeadoras que temos encontrado na raiz dos sintomas
histéricos crônicos. Tais como estas últimas causas, as lembranças
subjacentes aos ataques histéricos relacionam-se com traumas
psíquicos que não foram eliminados pela ab-reação ou pela atividade
associativa do pensamento. À semelhança delas, estas estão, quer
inteiramente, quer em seus elementos essenciais, fora do alcance da
lembrança da consciência normal, e mostram pertencer ao conteúdo
representativo dos estados hipnóides de consciência, com associação
restrita. Por fim, também o teste terapêutico pode ser aplicado a elas.
Nossas observações nos têm com freqüência ensinado que uma
recordação dessa espécie, que até então havia provocado ataques,
deixa de ser capaz de fazê-lo depois que os processos de reação e de
correção associativa são a ela aplicados sob hipnose.
Os fenômenos motores dos ataques histéricos podem ser parcialmente
interpretados como formas universais de reação apropriadas ao afeto
que acompanha a lembrança (tais como espernear e agitar os braços e
pernas, o que até mesmo os bebês de tenra idade fazem), e em parte
como uma expressão direta dessas lembranças; mas em parte, como
no caso dos estigmas histéricos verificados entre os sintomas crônicos,
não podem ser explicadas dessa maneira.
Os ataques histéricos, além disso, são especialmente interessantes se
tivermos em mente uma teoria que mencionamos atrás, a saber, que
na histeria certos grupos de representações que se originam nos
estados hipnóides estão presentes e são isolados da ligação
associativa com as outras representações, mas podem associar-se
entre si, formando assim o rudimento mais ou menos altamente
organizado de uma segunda consciência, uma condition seconde. Se
assim for, um sintoma histérico crônico corresponderá à intrusão desse
segundo estado na inervação somática, que, em geral, se acha sob o
controle da consciência normal. O ataque histérico, por outro lado, é
prova de uma organização mais elevada desse segundo estado.
Quando o ataque surge pela primeira vez, indica um momento em que
essa consciência hipnóide adquiriu controle sobre toda a existência do
indivíduo — indica, em outras palavras, uma histeria aguda; quando
ocorre em ocasiões subseqüentes e contém uma lembrança, indica um
retorno daquele momento. Charcot já sugeriu que os ataques histéricos
constituem uma forma rudimentar de uma condition seconde. Durante
o ataque, o controle sobre toda a inervação somática passa para a
consciência hipnóide. A consciência normal, como o demonstram
observações bem conhecidas, nem sempre é inteiramente recalcada.
Ela pode até mesmo perceber os fenômenos motores do ataque,
enquanto os fatos psíquicos concomitantes ficam fora de seu
conhecimento.
O curso característico de um caso grave de histeria é, como sabemos,
o seguinte: de início, forma-se um conteúdo representativo durante os
estados hipnóides; quando esse conteúdo aumenta de forma
suficiente, ele assume o controle, durante um período de “histeria
aguda”, da inervação somática e de toda a existência do paciente,
criando sintomas crônicos e ataques; depois disso, desaparece, a não
ser por certos resíduos. Quando a personalidade normal consegue
recuperar o controle, o que resta do conteúdo representativo hipnóide
reaparece em ataques histéricos e, de tempos em tempos, leva o
sujeito de volta a estados semelhantes, eles próprios novamente
influenciáveis a traumas. Um estado de equilíbrio, por assim dizer,
pode então ser estabelecido entre os dois grupos psíquicos que se
combinam na mesma pessoa: os ataques histéricos e a vida normal
prosseguem lado a lado sem que um interfira no outro. O ataque
ocorre de modo espontâneo, como fazem as lembranças nas pessoas
normais; contudo, é possível provocá-lo, do mesmo modo que qualquer
lembrança pode ser suscitada de acordo com as leis da associação.
Pode-se provocá-lo, quer pela estimulação de uma zona histerogênica,
quer por uma nova experiência que o desencadeia graças a uma
semelhança com a experiência patogênica. Esperamos poder
demonstrar que essas duas espécies de determinantes, embora
pareçam tão diferentes, não diferem quanto aos pontos essenciais,
mas que em ambas uma lembrança hiperestésica é evocada.
Em outros casos esse equilíbrio é muito instável. O ataque surge como
manifestação do resíduo da consciência hipnóide sempre que a
personalidade está esgotada e incapacitada. Não se pode afastar a
possibilidade de que, nessa situação, o ataque tenha sido despojado
de seu significado original e esteja recorrendo como uma reação
motora sem qualquer conteúdo.
Cabe a uma pesquisa ulterior descobrir o que é que determina se uma
personalidade histérica se manifestará em ataques, em sintomas
crônicos ou numa mistura de ambos.
V
Agora poderá ficar claro por que o método psicoterápico que
descrevemos nestas páginas tem um efeito curativo. Ele põe termo à
força atuante da representação que não fora ab-reagida no primeiro
momento, ao permitir que seu afeto estrangulado encontre uma saída
através da fala; e submete essa representação à correção associativa,
ao introduzi-la na consciência normal (sob hipnose leve) ou eliminá-la
por sugestão do médico, como se faz no sonambulismo acompanhado
de amnésia.
Em nossa opinião, as vantagens terapêuticas desse método são
consideráveis. Naturalmente, é verdade que não curamos a histeria na
medida em que ela dependa de fatores disposicionais. Nada podemos
fazer contra a recorrência dos estados hipnóides. Além disso, durante
a fase produtiva de uma histeria aguda, nosso método não pode
impedir que os fenômenos tão laboriosamente eliminados sejam
imediatamente substituídos por outros. Tão logo passa essa fase
aguda, porém, quaisquer resíduos que possam ter ficado sob a forma
de sintomas crônicos ou ataques costumam ser removidos de forma
permanente por nosso método, porque ele é radical; e nesse sentido
ele nos parece muito superior em sua eficácia à remoção através da
sugestão direta, tal como é hoje praticada pelos psicoterapeutas.
Se, ao descobrirmos o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos,
demos um passo à frente na trilha inicialmente aberta com tanto êxito
por Charcot, com sua explicação e sua imitação artificial das paralisias
hístero-traumáticas, não podemos ocultar de nós mesmos que isso só
nos aproximou um pouco mais da compreensão do mecanismo dos
sintomas histéricos, e não das causas internas da histeria. Não fizemos
mais do que tocar de leve na etiologia da histeria e, a rigor, só
conseguimos lançar luz sobre suas formas adquiridas — sobre a
importância dos fatores acidentais nessa neurose.
VIENA, dezembro de 1892
II - CASOS CLÍNICOS
(BREUER E FREUD)
CASO 1 - SRTA. ANNA O. (BREUER)
Na ocasião em que adoeceu (em 1880), a Srta. Anna O. contava vinte
e um anos de idade. Pode-se considerar que era portadora de uma
hereditariedade neuropática moderadamente grave, visto que algumas
psicoses haviam ocorrido entre seus parentes mais distantes. Seus
pais eram normais nesse aspecto. A própria paciente fora sempre
saudável até então e não havia mostrado nenhum sinal de neurose
durante seu período de crescimento. Era dotada de grande inteligência
e aprendia as coisas com impressionante rapidez e intuição aguçada.
Possuía um intelecto poderoso, que teria sido capaz de assimilar um
sólido acervo mental e que dele necessitava — embora não o
recebesse desde que saíra da escola. Anna tinha grandes dotes
poéticos e imaginativos, que estavam sob o controle de um agudo e
crítico bom senso. Graças a esta última qualidade, ela era inteiramente
não sugestionável, sendo influenciada apenas por argumentos e nunca
por meras asserções. Sua força de vontade era vigorosa, tenaz e
persistente; algumas vezes, chegava ao extremo da obstinação, que só
cedia pela bondade e consideração para com as outras pessoas.
Um de seus traços de caráter essenciais era a generosa solidariedade.
Mesmo durante a doença, pôde ajudar muito a si mesma por ter
conseguido cuidar de grande número de pessoas pobres e enfermas,
pois assim satisfazia a um poderoso instinto. Seus estados de espírito
sempre tenderam para um leve exagero, tanto na alegria como na
tristeza; por conseguinte, era às vezes sujeita a oscilações de humor.
A noção da sexualidade era surpreendentemente não desenvolvida
nela. A paciente, cuja vida se tornou conhecida pormim num grau em
que raras vezes a vida de uma pessoa é conhecida de outra, nunca se
apaixonara; e em todo o imenso número de alucinações que ocorreram
durante sua doença a noção da sexualidade nunca emergiu.
Essa moça, cheia de vitalidade intelectual, levava uma vida
extremamente monótona no ambiente de sua família de mentalidade
puritana. Embelezava sua vida de um modo que provavelmente a
influenciou de maneira decisiva em direção à doença, entregando-se a
devaneios sistemáticos que descrevia como seu “teatro particular”.
Enquanto todos pensavam que ela estava prestando atenção, ela se
imaginava vivendo contos de fada; mas estava sempre alerta quando
lhe dirigiam a palavra, de modo que ninguém se dava conta de seu
estado. Exercia essa atividade de modo quase ininterrupto enquanto se
ocupava de seus afazeres domésticos, dos quais se desincumbia de
forma irrepreensível. Terei a seguir que descrever a maneira pela qual
esses devaneios habituais, no período em que ela estava com saúde,
foram-se convertendo gradativamente em doença.
O curso da doença enquadrou-se em várias fases nitidamente
separáveis:
(A)Incubação latente. De meados de julho até cerca de 10 de
dezembro de 1880. Essa fase da doença costuma ficar omissa para
nós; mas, nesse caso, graças a seu caráter peculiar, foi-nos
completamente acessível; esse fato, por si só, traz um apreciável
interesse patológico para o caso. Descreverei esta fase em seguida.
(B)A doença manifesta. Uma psicose de natureza peculiar, com
parafasia, estrabismo convergente, graves perturbações da visão,
paralisias (sob a forma de contraturas) completa na extremidade
superior direita e em ambas as extremidades inferiores, e parcial na
extremidade superior esquerda, e paresia dos músculos do pescoço.
Redução gradual da contratura nas extremidades da mão direita.
Alguma melhora, interrompida por um grave trauma psíquico (a morte
do pai da paciente) em abril, depois do que se seguiram:
(C)Um período de sonambulismo persistente, alternando-se
subseqüentemente com estados mais normais. Grande número de
sintomas crônicos perduraram até dezembro de 1881.
(D)Cessação gradual dos estados e sintomas patológicos até junho de
1882.
Em julho de 1880, o pai da paciente, a quem ela era extremamente
afeiçoada, adoeceu de um abscesso peripleurítico que não sarou e do
qual veio a morrer em abril de 1881. Durante os primeiros meses da
doença, Anna dedicou todas as suas energias a cuidar do pai, e
ninguém ficou muito surpreso quando, pouco a pouco, sua própria
saúde foi-se deteriorando de forma acentuada. Ninguém, talvez nem
mesmo a própria paciente, sabia oque lhe estava acontecendo; mas
afinal, o estado de debilidade, anemia e aversão pelos alimentos se
agravou a tal ponto que, para seu grande pesar, não lhe permitiram
mais que continuasse a cuidar do paciente. A causa imediata dessa
proibição foi uma tosse muito intensa, razão pela qual a examinei pela
primeira vez. Era uma tussis nervosa típica. Anna logo começou a
mostrar uma pronunciada necessidade de repouso durante a tarde,
continuada, ao anoitecer, por um estado semelhante a sono e, a
seguir, por uma condição de intensa excitação.
No início de dezembro apareceu um estrabismo convergente. Um
oftalmologista o explicou (erroneamente) como decorrente da paresia
de um dos abdutores. Em 11 de dezembro a paciente caiu de cama e
assim permaneceu até 1º de abril.
Surgiu em rápida sucessão uma série de perturbações graves que
eram aparentemente novas: dor de cabeça occipital esquerda;
estrabismo convergente (diplopia), acentuadamente aumentado pela
excitação; queixas de que as paredes do quarto pareciam estar vindo
abaixo (afecção do nervo oblíquo); perturbações da visão difíceis de
ser analisadas; paresia dos músculos anteriores do pescoço, de modo
que, afinal, a paciente só conseguia mover a cabeça pressionando-a
para trás entre os ombros erguidos e movendo as costas inteiramente;
contratura e anestesia da extremidade superior direita e, depois de
certo tempo, da extremidade inferior direita. Esta última sofreu total
extensão, adução e rotação para dentro. Posteriormente, surgiu o
mesmo sintoma na extremidade inferior esquerda e, por fim, no braço
esquerdo, cujos dedos, contudo conservaram até certo ponto a
capacidade de movimento. De igual modo, também não havia uma
rigidez completa nas articulações do ombro. A contratura atingiu seu
ponto máximo nos músculos dos braços. Da mesma forma, a região
dos cotovelos revelou-se a mais atingida pela anestesia quando, num
estágio posterior, tornou-se possível fazer um exame mais cuidadoso
da sensibilidade. No início da doença a anestesia não pôde ser testada
de modo eficiente em virtude da resistência da paciente em
decorrência de sentimentos de angústia.
Foi enquanto a paciente se achava nesse estado que comecei a
tratá-la, havendo logo reconhecido a gravidade da perturbação
psíquica com que teria de lidar. Havia dois estados de consciência
inteiramente distintos, que se alternavam, de modo freqüente e súbito
e que se tornaram cada vez mais diferenciados no curso da doença.
Num desses estados ela reconhecia seu ambiente; ficava melancólica
e angustiada, mas relativamente normal. No outro, tinha alucinações e
ficava “travessa” — isto é, agressiva, e jogava almofadas nas pessoas,
tanto quanto o permitiam as contraturas, arrancavabotões da roupa de
cama e de suas roupas com os dedos que conseguia movimentar, e
assim por diante. Nesse estágio da doença, se alguma coisa tivesse
sido tirada do lugar no quarto ou alguém tivesse entrado ou saído dele
|durante seu outro estado de consciência|, ela se queixava de haver
“perdido” tempo e tecia comentários sobre as lacunas na seqüência de
seus pensamentos conscientes. Visto que as pessoas que a cercavam
tentavam negar isso e confortá-la quando ela se queixava de estar
ficando louca, Anna, depois de jogar os travesseiros, acusava as
pessoas de fazerem coisas contra ela e de a deixarem num estado de
confusão, etc.
Essas “absences” já tinham sido observadas antes de ela cair de
cama; costumava parar no meio de uma frase, repetir as últimas
palavras e, depois de uma breve pausa, continuar a falar. Essas
interrupções aumentaram de forma gradual até atingirem as dimensões
que acabam de ser descritas; e no auge da doença, quando as
contraturas se haviam estendido até o lado esquerdo do corpo, só
durante um curto período do dia é que ela apresentava certo grau de
normalidade. Mas as perturbações invadiram até mesmo seus
momentos de consciência relativamente clara. Haveria modificações
muitíssimo rápidas de humor, que levavam a uma fase de animação
intensa, mas bastante passageira, e em outras ocasiões havia uma
angústia acentuada, uma oposição tenaz a qualquer esforço
terapêutico e alucinações assustadoras com cobras negras, que eram
a maneira como Anna via seus cabelos, fitas e coisas semelhantes. Ao
mesmo tempo, ficava dizendo a si mesma para deixar de ser tão tola: o
que na verdade via eram apenas seus cabelos, etc. Em certos
momentos, quando sua mente estava inteiramente lúcida, queixava-se
da profunda escuridão na cabeça, de não conseguir pensar, de ficar
cega e surda, de ter dois eus, um real e um mau, que a forçava a
comportar-se mal, e assim por diante.
Às tardes caía num estado de sonolência que durava até cerca de uma
hora depois do pôr-do-sol. Então despertava e se queixava de que algo
a estava atormentando — ou melhor, ficava a repetir na forma
impessoal: “atormentando, atormentando”, e isso porque,
paralelamente ao desenvolvimento das contraturas, surgiu uma
profunda desorganização funcional da fala. A princípio, ficou claro que
ela sentia dificuldade de encontrar as palavras, e essa dificuldade foi
aumentando de maneira gradativa. Posteriormente, ela perdeu o
domínio da gramática e da sintaxe; não mais conjugava verbos e
acabou por empregar apenas os infinitivos, em sua maioria formados
incorretamente a partir dos particípios passados, e omitia tanto o
artigodefinido quanto o indefinido. Com o passar do tempo, ficou quase
totalmente desprovida de palavras. Juntava-as penosamente a partir
de quatro ou cinco idiomas e tornou-se quase ininteligível. Quando
tentava escrever (até que as contraturas a impediram totalmente de
fazê-lo), empregava o mesmo jargão. Durante duas semanas
emudeceu por completo e, apesar de envidar grandes e contínuos
esforços, foi incapaz de emitir uma única sílaba. E então, pela primeira
vez, o mecanismo psíquico do distúrbio ficou claro. Como eu sabia, ela
se sentira extremamente ofendida com alguma coisa e tomara a
deliberação de não falar a esse respeito. Quando adivinhei isso e a
obriguei a falar sobre o assunto, a inibição, que também tornara
impossível qualquer outra forma de expressão, desapareceu.
Essa mudança coincidiu com a volta da capacidade de movimento das
extremidades do lado esquerdo do corpo, em março de 1881. A
parafasia regrediu, mas daí por diante ela passou a falar apenas inglês
— só que, aparentemente, sem saber que o estava fazendo. Tinha
discussões com a enfermeira, que, como é lógico, não conseguia
entendê-la. Só alguns meses depois é que pude convencê-la de que
estava falando inglês. Não obstante, ela própria ainda compreendia as
pessoas a seu redor que falavam alemão. Só em momentos de
extrema ansiedade é que sua capacidade de falar a abandonava por
completo, ou então ela utilizava uma mistura de toda sorte de línguas.
Às vezes, quando se encontrava em seu melhor estado e com a
máxima liberdade, falava francês e italiano. Havia uma amnésia total
entre essas ocasiões e aquelas em que falava inglês. Também nessa
época seu estrabismo começou a diminuir e passou a se apresentar
apenas nos momentos de grande excitação. Ela voltou a conseguir
sustentar a cabeça. No dia 1º de abril, levantou-se pela primeira vez.
No dia 5 de abril morreu seu adorado pai. Durante a doença da
paciente ela o vira muito raramente e por períodos curtos. Esse foi
talvez o trauma psíquico mais grave que ela poderia ter experimentado.
Uma violenta explosão de excitação foi acompanhada de um profundo
estupor, que durou cerca de dois dias e do qual ela emergiu num
estado acentuadamente modificado. No começo, ficou muito mais
tranqüila e seus sentimentos de angústia tiveram uma redução
considerável. A contratura do braço e perna direitos persistiu, bem
como a anestesia de ambos, embora esta não fosse profunda. Houve
um alto grau de restrição do campo visual: num buquê de flores que
lhe proporcionou muito prazer, só pôde ver uma flor de cada vez.
Queixava-se de não conseguir reconhecer as pessoas. Normalmente,
dizia, fora capaz de reconhecer os rostos sem ter de fazer nenhum
esforço deliberado; agora era obrigada a fazer um
laborioso“recognizing work” e tinha que dizer a si mesma: “o nariz
dessa pessoa é assim e assim e o cabelo é assim ou assado, de modo
que deve ser fulano”. Todas as pessoas que via pareciam figuras de
cera, sem qualquer ligação com ela. Achava muito aflitiva a presença
de alguns de seus parentes próximos, e essa atitude negativa foi-se
acentuando cada vez mais. Quando alguém a quem comumente via
com prazer entrava no quarto, ela o reconhecia e ficava consciente das
coisas por um curto espaço de tempo, mas logo mergulhava de novo
em suas elucubrações, e o visitante se apagava. Eu era a única
pessoa que ela sempre reconhecia quando entrava; enquanto eu
conversava com ela, a paciente permanecia animada e em contato
com as coisas exceto pelas súbitas interrupções causadas por uma de
suas “absences” alucinatórias.
Nesses momentos, só falava inglês e não conseguia compreender o
que lhe diziam em alemão. Os que a cercavam eram obrigados a
dirigir-lhe a palavra em inglês, e até a enfermeira aprendeu, até certo
ponto, a se fazer entender dessa maneira. Anna, porém, conseguia ler
em francês e italiano. Se tivesse que ler uma dessas línguas em voz
alta, o que produzia, com extraordinária fluência, era uma admirável
tradução improvisada do inglês.
Ela recomeçou a escrever, mas de maneira peculiar. Escrevia com a
mão esquerda, a menos rígida, e empregava letras de forma romanas,
copiando o alfabeto da sua edição de Shakespeare.
Anteriormente, ela costumava comer muito pouco, mas agora recusava
qualquer alimento. Entretanto, permitiu-me que a alimentasse, de modo
que logo começou a se alimentar mais. Mas nunca consentia em
comer pão. Após a refeição, lavava invariavelmente a boca, e o fazia
até mesmo quando, por qualquer motivo, nada era comido — o que
indica como era distraída a respeito dessas coisas.
Seus estados de sonolência à tarde e seu sono profundo depois do
crepúsculo persistiram. Quando, depois disso, ela se havia esgotado
de tanto falar (terei que explicar depois o que quero dizer com isso),
ficava com a mente clara, calma e alegre.
Esse estado relativamente tolerável não durou muito. Cerca de dez
dias após a morte do pai, chamou-se um médico para opinar sobre o
caso, a quem, como fazia com todos os estranhos, ela ignorou
inteiramente enquanto eu demonstrava a ele todas as peculiaridades
da paciente. “That’s like an examination”, disse ela a rir quando fiz com
que lesse em inglês, em voz alta, um texto escrito em francês. O outro
médico interveio na conversa etentou atrair-lhe a atenção, mas foi
inútil. Era uma autêntica “alucinação negativa” do tipo que, desde
então, vem sendo produzida com freqüência em caráter experimental.
No fim, ele conseguiu romper a alucinação ao soprar fumaça no rosto
da paciente. De súbito, ela viu diante de si um estranho, precipitou-se
para a porta a fim de retirar a chave e caiu no chão, inconsciente.
Seguiu-se um breve acesso de raiva e depois uma grave crise de
angústia, que tive grande dificuldade em acalmar. Infelizmente, tive que
sair de Viena naquela noite e, ao retornar, passados vários dias,
encontrei a paciente muito pior. Ela ficara sem qualquer alimentação
durante todo aquele tempo, estava extremamente angustiada e, em
suas absences alucinatórias, via figuras aterradoras, caveiras e
esqueletos. Dado que se comportava diante dessas coisas como se as
estivesse vivenciando e em parte as traduzia em palavras, as pessoas
em torno dela ficaram amplamente cientes do conteúdo dessas
alucinações.
A ordem habitual das coisas era: o estado sonolento à tarde, seguido,
após o pôr-do-sol, pela hipnose profunda, para a qual ela inventou o
nome técnico de “clouds”. Quando, durante a hipnose, ela conseguia
narrar as alucinações que tivera no decorrer do dia, despertava com a
mente desanuviada, calma e alegre. Sentava-se para trabalhar e
escrever ou desenhar até altas horas da noite, de maneira bem
racional. Por volta das quatro horas ia deitar-se. No dia seguinte, toda
a série de fatos se repetia. Era um contraste realmente notável:
durante o dia, a paciente irresponsável, perseguida por alucinações, e
à noite a moça com a mente inteiramente lúcida.
Apesar de sua euforia noturna, seu estado psíquico continuava a se
deteriorar. Surgiram fortes impulsos suicidas, que tornaram
desaconselhável que ela permanecesse morando no terceiro andar.
Contra sua vontade, portanto, foi transferida para uma casa de campo
nas imediações de Viena (em 7 de junho de 1881). Eu nunca a havia
ameaçado com essa mudança de seu lar, que ela encarava com
horror, mas ela, sem o dizer, havia esperado e temido tal medida. Esse
fato deixou claro, mais uma vez, até que ponto o afeto de angústia
dominava seu distúrbio psíquico. Assim como se havia instalado um
estado de maior tranqüilidade logo após a morte do pai da paciente,
também agora, quando o que ela temia de fato ocorreu, de novo ela
ficou mais calma. Não obstante, a mudança foi imediatamente seguida
por três dias e três noites sem qualquer sono e sem alimento, por
numerosas tentativas de suicídio (embora, como Anna ficasse num
jardim, tais tentativas não fossem perigosas), pela quebra de janelas e
assim por diante, e poralucinações não acompanhadas de absences —
que ela era capaz de distinguir facilmente de suas outras alucinações.
Depois disso, ficou mais calma, passou a deixar que a enfermeira a
alimentasse e chegou até a tomar cloral à noite.
Antes de prosseguir em meu relato do caso, preciso voltar mais uma
vez para descrever uma de suas peculiaridades, que até agora só
mencionei de passagem. Já disse que ao longo de toda a doença, até
esse ponto, a paciente caía num estado de sonolência todas as tardes,
e que, após o pôr-do-sol, esse período passava para um sono mais
profundo — “clouds”. (Parece plausível atribuir essa seqüência regular
dos acontecimentos apenas à experiência dela enquanto cuidava do
pai, o que teve de fazer por vários meses. Durante as noites, ela velava
à cabeceira do paciente ou ficava acordada, escutando ansiosamente
até amanhecer; às tardes, deitava-se para um ligeiro repouso, como é
o costume habitual das enfermeiras. Esse padrão de ficar acordada à
noite e dormir à tarde parece ter sido transposto para sua própria
doença e persistido muito depois de o sono ter sido substituído por um
estado hipnótico.) Após cerca de uma hora de sono profundo, ela
ficava irrequieta, virava de um lado para outro e repetia “atormentando,
atormentando”, com os olhos fechados o tempo todo. Também se
observou como, durante suas absences diuturnas, ela obviamente
criava alguma situação ou episódio para o qual dava uma pista
murmurando algumas palavras. Acontecia então — de início por acaso,
mas depois a propósito — que alguém perto dela repetia uma dessas
suas frases enquanto ela se queixava do “atormentando”. Ela
imediatamente fazia coro e começava a retratar alguma situação ou a
narrar alguma história, a princípio com hesitação e no seu jargão
parafásico; mas, quanto mais se estendia, mais fluente se tornava, até
que por fim falava um alemão bem fluente. (Isso se aplica ao período
inicial, antes que começasse a falar somente em inglês |ver em [1]|.)
As histórias eram sempre tristes, e algumas delas, encantadoras, no
estilo do Álbum de Figuras sem Figuras, de Hans Andersen, e de fato é
provável que se estruturassem sobre aquele modelo. Via de regra, seu
ponto de partida ou situação central era o de uma moça ansiosamente
sentada à cabeceira de um doente. Mas ela também construía suas
histórias com outros temas bem diversos. — Alguns momentos depois
de haver concluído a narrativa, ela despertava, obviamente acalmada,
ou, como dizia, “gehaeglich”. Durante a noite, tornava a ficar irrequieta,
e pela manhã, após algumas horas de sono, estava visivelmente
envolvida emalgum outro grupo de representações. — Quando, por
qualquer motivo, não podia narrar-me a história durante a hipnose do
anoitecer, não conseguia acalmar-se depois, e no dia seguinte tinha
que me contar duas histórias para que isso acontecesse.
As características essenciais desse fenômeno — o aumento e a
intensificação de suas absences até sua auto-hipnose do anoitecer, o
efeito dos produtos de sua imaginação como estímulos psíquicos e o
afrouxamento e a remoção de seu estado de estimulação quando os
expressava verbalmente em sua hipnose — permaneceram constantes
durante todos os dezoito meses em que a paciente ficou em
observação.
As histórias naturalmente se tornaram ainda mais trágicas após a
morte do pai. Contudo, foi só depois da deterioração do estado mental
da paciente, o que se seguiu quando seu estado de sonambulismo
sofreu uma interrupção abrupta, da maneira já descrita, que suas
narrativas do anoitecer deixaram de ter o caráter de composições
poéticas, criadas de forma mais ou menos livre, e se transformaram
numa cadeia de alucinações medonhas e apavorantes. (Já era
possível chegar a elas a partir do comportamento da paciente durante
o dia). Já descrevi | [1]-[2]| como sua mente ficava inteiramente aliviada
depois que, trêmula de medo e horror, havia reproduzido essas
imagens assustadoras e dado expressão verbal a elas.
Enquanto Anna ficou no campo, ocasião em que não pude fazer-lhe as
visitas diárias, a situação processou-se da seguinte maneira. Visitava-a
à tardinha, quando sabia que a encontraria em hipnose, e então a
aliviava de toda a carga de produtos imaginativos que ela havia
acumulado desde minha última visita. Era essencial que isso fosse
feito de forma completa se se quisesse alcançar bons resultados.
Quando isso era levado a efeito, ela ficava perfeitamente calma e, no
dia seguinte, mostrava-se agradável, fácil de lidar, diligente e até
mesmo alegre; no segundo dia, porém, tornava-se cada vez mais
mal-humorada, voluntariosa e desagradável, o que se acentuava ainda
mais no terceiro dia. Quando ficava assim, nem sempre era fácil
fazê-la falar, mesmo em seu estado hipnótico. Ela descrevia de modo
apropriado esse método, falando a sério, como uma “talking cure, ao
mesmo tempo em que se referia a ele, em tom de brincadeira, como
“chimney-sweeping”. A paciente sabia que, depois que houvesse dado
expressão a suas alucinações, perderia toda a sua obstinação e aquilo
que descrevia como sua “energia”; equando, após um intervalo
relativamente longo, ficava de mau humor, recusava-se a falar, sendo
eu obrigado a superar sua falta de disposição encarecendo e
suplicando, e até usando recursos como repetir uma fórmula com a
qual ela estava habituada a iniciar suas histórias. Mas ela jamais
começava a falar antes de haver confirmado plenamente minha
identidade, apalpando-me as mãos com cuidado. Nas noites em que
não se acalmava pela enunciação verbal, era necessário recorrer
novamente ao cloral. Eu já o havia experimentado em algumas
ocasiões anteriores, mas vi-me obrigado a aplicar-lhe 5 gramas, sendo
o sono precedido por um estado de intoxicação que durava algumas
horas. Quando me achava presente, esse estado era de euforia, mas
em minha ausência era altamente desagradável e caracterizado por
angústia e excitação. (Pode-se observar, a propósito, que esse estado
de intoxicação aguda não fazia nenhuma diferença quanto a suas
contraturas.) Eu havia conseguido evitar o uso de narcóticos, visto que
a expressão verbal de suas alucinações a tranqüilizava, ainda que não
induzisse ao sono; entretanto, quando ela estava no campo, as noites
em que não conseguia alívio hipnótico eram tão insuportáveis que,
apesar de tudo, era necessário recorrer ao cloral. Mas foi possível
reduzir a dose, de forma gradual.
O sonambulismo persistente não reapareceu, mas, por outro lado, a
alternância entre os dois estados de consciência perdurou. Ela
costumava ter alucinações no meio de uma conversa, sair correndo,
subir numa árvore, etc. Quando alguém a agarrava, com grande
rapidez retomava a frase interrompida, sem tomar nenhum
conhecimento do que acontecera no intervalo. Todas essas
alucinações, contudo, sobrevinham e eram relatadas em sua hipnose.
Seu estado, de modo geral, experimentou melhoras. Ela ingeria
alimentos sem dificuldades e permitia que a enfermeira a alimentasse
com exceção do pão, que pedia mas rejeitava no momento em que lhe
tocava os lábios. A paralisia espástica da perna teve uma diminuição
acentuada. Verificaram-se também melhoras em sua capacidade de
julgamento, e ela ficou muito apegada a um amigo meu, o Dr. B.,
médico que a visitava. Beneficiou-se muito da presença de um cão
terra-nova que lhe tinha sido presenteado e pelo qual tinha uma
afeição apaixonada. Em certa ocasião, porém, seu animal de
estimação atacou um gato, e foi extraordinário ver a forma como a
frágil moça tomou de um chicote na mão esquerda e afastou a
chicotadas o enorme animal para salvar sua vítima. Mais tarde, cuidou
de algumas pessoas pobres e doentes, e isto a ajudou.
Foi após minha volta de uma viagem de férias, que durou várias
semanas, que tive a prova mais convincente do efeito patogênico e
excitante ocasionado pelos complexos de representações produzidos
durante suas absences, ou condition seconde, e do fato de que esses
complexos eram eliminados ao receberem expressão verbal durante a
hipnose. Nesse intervalo não fora efetuada nenhuma “cura pela fala”,
porque foi impossível persuadi-la a confiar o que tinha a dizer a
qualquer pessoa senão eu — nem mesmo ao Dr. B., a quem, sob
outros aspectos, ela se havia afeiçoado. Encontrei-a num estado moral
deplorável, inerte, intratável, mal-humorada e até mesmo malévola.
Tornou-se claro por suas histórias noturnas que sua veia imaginativa e
poética se estava esgotando. O que ela relatava dizia respeito, cada
vez mais, a suas alucinações e, por exemplo, às coisas que a haviam
aborrecido nos últimos dias. Estas eram revestidas de uma forma
imaginativa, mas apenas formuladas em imagens estereotipadas, e
não elaboradas em produções poéticas. Mas a situação só ficou
tolerável depois de eu haver providenciado o retorno da paciente a
Viena por uma semana e de, noite após noite, fazer com que ela me
contasse três a cinco histórias. Quando levei isso a termo, tudo o que
se acumulara durante as semanas de minha ausência fora
descarregado. Foi só então que se restabeleceu o ritmo anterior: no dia
seguinte àquele em que dava expressão verbal a suas fantasias, ela
ficava amável e alegre; no segundo dia, mais irritadiça e menos
agradável e, no terceiro, verdadeiramente “detestável”. Seu estado
moral era uma função do tempo decorrido desde a última expressão
oral. Isso ocorria porque cada um dos produtos espontâneos de sua
imaginação e todos os fatos que tinham sido assimilados pela parte
patológica de sua mente persistiam como um estímulo psíquico até
serem narrados em sua hipnose, após o que deixavam inteiramente de
atuar.
Quando, no outono, a paciente retornou a Viena (embora para uma
casa diferente daquela em que adoecera), sua condição era
suportável, tanto física como mentalmente, pois pouquíssimas de suas
experiências — de fato, apenas as mais marcantes — eram
transformadas em estímulos psíquicos de maneira patológica. Eu tinha
esperança de uma melhora contínua e progressiva, desde que o
permanente carregamento de sua mente com novos estímulos
pudesse ser evitado através da expressão verbal dada a eles. Mas, de
início, fiquei decepcionado. Em dezembro houve um agravamento
acentuado de seu estado psíquico. Ela voltou a ficar excitada, taciturna
e irritável. Não tinha mais nenhum “dia realmente bom”, mesmo
quando era impossível detectar alguma coisa que estivesse
permanecendo “presa” dentro dela. Em fins de dezembro, na época do
Natal, a paciente ficou particularmente inquieta e por uma semana
inteira, nos fins de tarde, nada me disse de novo além dos produtos
imaginativos que havia elaborado dia a dia sob pressão deuma
angústia e emoção intensas durante o Natal de 1880 |um ano antes|.
Quando as séries eram concluídas, ela sentia um enorme alívio.
Já havia transcorrido um ano desde que Anna se separara do pai e
caíra de cama, e a partir dessa época seu estado tornou-se mais claro
e foi sistematizado de maneira muito peculiar. Seus estados de
consciência alternados, que se caracterizavam pelo fato de que, a
partir da manhã, suas absences (isto é, o surgimento de sua condition
seconde) sempre se tornavam mais freqüentes à medida que o dia
avançava e exerciam seu domínio absoluto até o anoitecer — esses
estados alternados tinham diferido um do outro, no passado, pelo fato
de o primeiro ser normal, e o segundo, alienado; agora, porém, eles
diferiam ainda mais pelo fato de que, no primeiro, ela estava vivendo,
como o restante de nós, no inverno de 1881-2, ao passo que, no
segundo, vivia no inverno de 1880-1 e se esquecera por completo de
todos os eventos subseqüentes. A única coisa que, não obstante,
parecia permanecer consciente a maior parte do tempo era o fato de
que o pai morrera. Ela se via transportada ao ano anterior com tal
intensidade que, na casa nova, tinha alucinações com seu antigo
quarto, de modo que quando queria ir até a porta, tropeçava na estufa,
que ficava situada em relação à janela do mesmo modo que a porta em
seu antigo quarto. A transição de um estado para outro ocorria de
forma espontânea, mas também podia ser facilmente promovida por
qualquer impressão sensorial que lembrasse o ano anterior com
nitidez. Bastava segurar uma laranja diante dos olhos dela (essa fruta
tinha constituído seu principal alimento durante a primeira parte da
doença) para que ela se visse transportada para o ano de 1881. Mas
essa transferência ao passado não ocorria de modo geral ou
indefinido; ela revivia o inverno anterior dia a dia. Eu só teria podido
suspeitar de que isso estava acontecendo, não fosse pelo fato de que
todas as noites, durante a hipnose, ela falava sobre o que a havia
excitado no mesmo dia em 1881, e não fosse pelo fato de um diário
particular mantido pela mãe dela em 1881 ter confirmado, sem sombra
de dúvida, a ocorrência dos fatos subjacentes. Essa revivescência do
ano anterior continuou até que a doença chegasse a seu final, em
junho de 1882.
Também foi interessante observar, nesse aspecto, a forma pela qual
esses estímulos psíquicos revividos, pertencentes a seu estado
secundário, insinuavam-se em seu primeiro estado, mais normal.
Aconteceu, por exemplo, que certa manhã a paciente me disse rindo
que não tinha nenhuma idéia de qual era o problema, mas estava com
raiva de mim. Graças ao diário eu sabia o que estava ocorrendo, e dito
e feito, a situação foi revivida na hipnose do anoitecer; eu tinha
aborrecido muito a paciente na mesma noite, em 1881. Houve outra
ocasião em que ela me disse que havia algo errado com seus olhos:
estava vendo as cores erradas. Sabia estar usando um vestido
marrom, mas o via como se fosse azul. Logo verificamos que ela sabia
distinguir todas as cores das folhas de teste visual de forma correta e
clara, e que a perturbação só se relacionava com o material do vestido.
O motivo foi que, durante o mesmo período em 1881, ela estivera
muito atarefada com a confecção de um roupão para o pai, que era
feito do mesmo material de seu atual vestido, porém era azul em vez
de marrom. A propósito, constatava-se com freqüência que essas
lembranças emergentes revelavam de antemão seu efeito; a
perturbação do estado normal ocorria mais cedo, e a lembrança era
despertada de forma gradativa apenas em sua condition seconde.
Sua hipnose da noite ficava assim intensamente sobrecarregada, pois
tínhamos que escoar pela fala não só seus produtos imaginários
contemporâneos, como também os eventos e “vexations” de 1881.
(Felizmente, nessa época eu já a havia aliviado dos produtos
imaginários daquele ano.) Mas, além de tudo isso, o trabalho a ser
executado pela paciente e por seu médico era imensamente
aumentado por um terceiro grupo de perturbações isoladas, que
tinham de ser eliminadas da mesma maneira. Tratava-se dos eventos
psíquicos em jogo no período de incubação da moléstia, entre julho e
dezembro de 1880; eles é que haviam produzido todos os fenômenos
histéricos e, quando receberam expressão verbal, os sintomas
desapareceram.
Quando isso aconteceu pela primeira vez — quando, em decorrência
de um enunciado acidental e espontâneo dessa natureza, durante a
hipnose da noite, uma perturbação que havia persistido por um tempo
considerável veio a desaparecer — fiquei extremamente surpreso. Era
verão, numa época de calor intenso, e a paciente sofria de uma sede
horrível, pois, sem que pudesse explicar a causa, viu-se de repente
impossibilitada de beber. Apanhava o copo de água desejado, mas,
assim que o tocava com os lábios, repelia-o como alguém que sofresse
de hidrofobia. Ao fazê-lo, ficava obviamente numa absence por alguns
segundos. Para mitigar a sede que a martirizava, vivia somente de
frutas, como melões, etc. Quando isso já durava perto de seis
semanas, um dia, durante a hipnose, ela resmungou qualquer coisa a
respeito de sua dama de companhia inglesa, de quem não gostava, e
começou então a descrever, com demonstrações da maior
repugnância, como fora certa vez ao quarto dessa senhora e como lá
pudera ver o cãozinho dela — criatura nojenta! — bebendo num copo.
A paciente não tinha dito nada, pois quisera ser gentil. Depois de
exteriorizar energicamente a cólera que havia contido,pediu para beber
alguma coisa, bebeu sem qualquer dificuldade uma grande quantidade
de água e despertou da hipnose com o copo nos lábios. A partir daí, a
perturbação desapareceu de uma vez por todas. Vários outros
caprichos extremamente obstinados foram eliminados de forma
semelhante, depois de ela haver descrito as experiências que os
tinham ocasionado. A paciente deu um grande passo à frente quando o
primeiro de seus sintomas crônicos desapareceu da mesma maneira
— a contratura da perna direita, que, é verdade, já havia diminuído
muito. Esses achados — de que, no caso dessa paciente, os
fenômenos histéricos desapareciam tão logo o fato que os havia
provocado era reproduzido em sua hipnose — tornaram possível
chegar-se a uma técnica terapêutica que nada deixava a desejar em
sua coerência lógica e sua aplicação sistemática. Cada sintoma
individual nesse caso complicado era considerado de forma isolada;
todas as ocasiões em que tinha surgido eram descritas na ordem
inversa, começando pela época em que a paciente ficara acamada e
retrocedendo até o fato que levara à sua primeira aparição. Quando
este era descrito, o sintoma era eliminado de maneira permanente.
Dessa forma, suas paralisias espásticas e anestesias, os diferentes
distúrbios da visão e da audição, as nevralgias, tosses, tremores, etc.,
e por fim seus distúrbios da fala foram “removidos pela fala”. Entre
suas perturbações da visão, os seguintes, por exemplo, foram
eliminados um de cada vez: o estrabismo convergente com diplopia; o
desvio de ambos os olhos para a direita, de modo que quando a mão
se estendia para apanhar algo, sempre se dirigia para a esquerda do
objeto; a restrição do campo visual; a ambliopia central; a macropsia; a
visão de uma caveira em vez do pai; e a incapacidade para a leitura.
Apenas alguns fenômenos dispersos (como, por exemplo, a extensão
das paralisias espásticas para o lado esquerdo do corpo), que surgiram
enquanto ela estava confinada ao leito, permaneceram intocados por
esse processo de análise, sendo provável, na realidade, que de fato
não tivessem nenhuma causa psíquica imediata | ver em [1]-[2]|.
Revelou-se inteiramente impraticável abreviar o trabalho pela tentativa
de evocar de imediato em sua memória a primeira causa provocadora
de seus sintomas. Ela era incapaz de descobri-la, ficava confusa e as
coisas se processavam ainda com maior lentidão do que se lhe fosse
permitido, de modo tranqüilo e firme, retomar o fio retrospectivo das
recordações em que se havia envolvido. Dado que este último método,
porém, levava muito tempo na hipnose noturna, em vista de ela estar
muito tensa e profundamente perturbada por “eliminar pela fala” os
dois outros grupos de experiências —e também em virtude do fato de
que as reminiscências precisavam de tempo antes para poderem
atingir uma nitidez suficiente — elaboramos o seguinte método. Eu
costumava visitá-la pela manhã e hipnotizá-la. (Alguns métodos muito
simples para isso foram obtidos de forma empírica.) A seguir, pedia-lhe
que concentrasse os pensamentos no sintoma que estávamos tratando
no momento e me dissesse as ocasiões em que ele surgira. A paciente
passava a descrever em rápida sucessão e em frases sucintas os fatos
externos em causa, os quais eu anotava. Durante sua subseqüente
hipnose noturna, ela então me fazia, com a ajuda de minhas
anotações, um relato razoavelmente minucioso dessas circunstâncias.
Um exemplo revelará a forma completa pela qual ela realizava isso.
Nossa experiência comum era que a paciente não ouvisse quando lhe
era dirigida a palavra. Foi possível diferenciar da seguinte forma esse
hábito passageiro de não ouvir:
(a) Não ouvir quando alguém entrava, enquanto se abstraía em seus
pensamentos. 108 exemplos detalhados e isolados desses casos, com
menção das pessoas e circunstâncias, muitas vezes com datas.
Primeiro exemplo: não ouvir o pai entrar.
(b) Não compreender quando várias pessoas conversavam. 27
exemplos. Primeiro exemplo: o pai, mais uma vez, e um conhecido.
(c) Não ouvir quando estava sozinha e lhe dirigiam a palavra
diretamente. 50 exemplos. Origem: o pai tendo em vão lhe pedido
vinho.
(d) Surdez ocasionada por ter sido sacudida (numa carruagem, etc.).
15 exemplos. Origem: por ter sido sacudida com raiva pelo irmão mais
novo quando este a surpreendeu, certa noite, com o ouvido colado ao
quarto do doente.
(e) Surdez provocada ao assustar-se com um ruído. 37 exemplos.
Origem: um acesso de sufocação do pai, causado por ter engolido mal.
(f) Surdez durante absence profunda. 12 exemplos.
(g) Surdez ocasionada por ouvir mal durante muito tempo, de modo
que, quando lhe dirigiam a palavra, deixava de ouvir. 54 exemplos.
É claro que todos esse episódios eram, numa ampla medida, idênticos,
no sentido de que era possível relacioná-los com estados de
alheamento, absences ou susto. Mas, na memória da paciente, eram
diferenciados de modo tão claro que, se acontecia ela cometer algum
erro em sua seqüência, era obrigada a corrigir-se e pô-los na ordem
certa; se isso não fosse feito, seu relato ficava paralisado. Os fatos que
ela descrevia eram tão sem interesse e significação, e narrados com
tanta riqueza de detalhes, que não se poderia suspeitar de que
tivessem sido inventados. Muitos desses incidentes consistiam em
experiências puramente internas e, assim, não podiam ser verificados;
outros (ou as circunstâncias que os cercavam) estavam na lembrança
das pessoas do ambiente de Anna.
Também esse exemplo apresentava uma característica que era
sempre observável quando um sintoma estava sendo “eliminado pela
fala”: o sintoma específico surgia com maior intensidade enquanto ela
o abordava. Assim, durante a análise de sua incapacidade de ouvir, ela
ficou tão surda que numa parte do tempo fui obrigado a comunicar-me
com ela por escrito. A primeira causa provocadora costumava ser um
susto de alguma espécie, experimentado enquanto ela cuidava do pai
— alguma negligência da parte dela, por exemplo.
O trabalho de recordação nem sempre era fácil e, algumas vezes, a
paciente tinha que fazer grandes esforços. Certa ocasião, todo o nosso
progresso ficou obstruído por algum tempo porque uma lembrança
recusava-se a emergir. Tratava-se de uma alucinação particularmente
pavorosa. Quando cuidava do pai, vira seu rosto como se fosse uma
caveira. Ela e as pessoas a seu redor lembravam que, certa vez,
enquanto parecia ainda gozar de boa saúde, ela fizera uma visita a um
de seus parentes. Abrira a porta e imediatamente caíra no chão,
inconsciente. Para superar a obstrução a nosso progresso, ela tornou a
visitar o mesmo lugar e, ao entrar no quarto, mais uma vez caiu no
chão, inconsciente. Durante a hipnose noturna seguinte, o obstáculo foi
superado. Ao entrar no quarto, ela vira seu rosto pálido refletido num
espelho que pendia defronte à porta, mas não fora a si mesma que
tinha visto, e sim o pai com um rosto de caveira. — Muitas vezes
observamos que seu pavor de uma lembrança, como no presente
exemplo, inibia o surgimento da mesma, e esta precisava ser
provocada à força pela paciente ou pelo médico.
O seguinte incidente, entre outros, ilustra o alto grau de coerência
lógica de seus estados. Durante esse período, como já se teve ocasião
de explicar, a paciente estava sempre em sua condition seconde —
isto é, no ano de 1881 — à noite. Certa ocasião, despertou durante a
noite, declarando ter sido levada para longe de casa mais uma vez, e
ficou de tal forma excitada que todas as pessoas da casa se
alarmaram. A razão foi simples. Na noite anterior, a cura pela fala
havia dissipado o distúrbio da visão, e isso também se aplicava a sua
condition seconde. Assim, ao acordar durante a noite, ela se viu num
quarto estranho, pois a família se mudara na primavera de 1881.
Acontecimentos desagradáveis dessa espécie eram evitados por mim
pelo fato de (a pedido da paciente) eu sempre fechar seus olhos à
noite e dar-lhe a sugestão de que ela não poderia abri-los até que eu
próprio o fizesse na manhã seguinte. Essa perturbação só se repetiu
uma vez, quando a paciente gritou num sonho e abriu os olhos ao
despertar dele.
Visto que essa trabalhosa análise de seus sintomas versou sobre os
meses do verão de 1880, o período preparatório de sua doença,
consegui uma compreensão completa da incubação e patogênese
desse caso de histeria, que agora passarei a descrever de forma
sucinta.
Em julho de 1880, quando se encontrava no campo, o pai de Anna
adoeceu gravemente em decorrência de um abscesso subpleural. Ela
dividia com a mãe as tarefas de cuidar do enfermo. Certa vez, acordou
de madrugada, muito ansiosa pelo doente, que estava com febre alta;
e ela estava sob a tensão de aguardar a chegada de um cirurgião de
Viena que iria operá-lo. Sua mãe se ausentara por algum tempo, e
Anna, sentada à cabeceira do doente, pôs o braço direito sobre o
espaldar da cadeira. Entrou num estado de devaneio e viu, como se
viesse da parede, uma cobra negra que se aproximava do enfermo
para mordê-lo. (É muito provável que, no terreno situado atrás da casa,
algumas cobras tivessem de fato aparecido anteriormente, assustando
a moça e fornecendo agora o material para a alucinação.) Ela tentou
manter a cobra a distância, mas estava como que paralisada. O braço
direito, que pendia sobre o espaldar da cadeira, ficara dormente,
insensível e parético; e quando ela o contemplou seus dedos se
transformaram em cobrinhas cujas cabeças eram caveiras (as unhas).
(É provável que ela tenha tentado afugentar a cobra com o braço
direito paralisado e por isso a anestesia e a paralisia do braço se
associaram com a alucinação da cobra.) Quando a cobra desapareceu,
Anna, aterrorizada, tentou rezar. Mas não achou palavras em idioma
algum, até que, lembrando-se de um poema infantil em inglês, pôde
pensar e rezar nessa língua. O apito do trem que trazia o médico por
ela esperado desfez o encanto.
No dia seguinte, durante um jogo, Anna atirou uma argola em alguns
arbustos e, quando foi buscá-la, um galho recurvado fez com que ela
revivesse a alucinação da cobra, e ao mesmo tempo seu braço direito
ficou distendido com rigidez. A partir de então, ocorria invariavelmente
a mesma coisa sempre que a alucinação era recordada por algum
objeto com aparência mais ou menos semelhante à de uma cobra.
Essa alucinação, contudo, bem como a contratura, só apareciam
durante as curtas absences, que se tornaram cada vez mais
freqüentes a partir daquela noite. (A contratura só veio a se estabilizar
em dezembro, quando a paciente ficou inteiramente prostrada e
acamada de forma permanente.) Como resultado de algum fato
particular cujo registro não consigo encontrar em minhas anotações e
do qual não me recordo mais, a contratura da perna direita foi
acrescida à do braço direito.
Sua tendência às absences auto-hipnóticas fixou-se a partir daquele
momento. Na manhã seguinte à noite que descrevi, enquanto esperava
a chegada do cirurgião, Anna caiu num tal estado de alheamento que
ele por fim chegou ao quarto sem que ela o ouvisse aproximar-se. Sua
angústia persistente interferia com a ingestão de alimentos e conduziu
aos poucos a intensas sensações de náusea. Afora isso, a rigor, cada
um de seus sintomas histéricos surgiu sob a ação de um afeto. Não é
bem certo se em cada um dos casos houve um estado momentâneo de
absence, mas isso parece provável em vista do fato de que, em seu
estado de vigília, a paciente ficava totalmente alheia ao que havia
acontecido.
Alguns de seus sintomas, contudo, parecem não haver surgido em
suas absences, mas apenas quando de algum afeto durante sua vida
de vigília; se foi esse o caso, porém, eles reapareciam da mesma
forma. Assim pudemos rastrear todas as suas diversas perturbações
da visão até diferentes causas determinantes mais ou menos claras.
Por exemplo, certa ocasião, quando, com lágrimas nos olhos, se
achava sentada à cabeceira do pai, ele de repente lhe perguntou que
horas eram. Ela não conseguia enxergar com nitidez; fez um grande
esforço e aproximou o relógio dos olhos. O mostrador pareceu-lhe
então muito grande, explicando assim sua macropsia e seu estrabismo
convergente. Ou então ela se esforçou para reprimir as lágrimas para
que o doente não as visse.
Uma discussão, durante a qual Anna reprimiu uma resposta à altura,
provocou um espasmo de glote, e isso se repetia em todas as ocasiões
semelhantes.
Perdeu a capacidade de falar (a) como resultado do medo, depois de
sua primeira alucinação à noite, (b) após haver reprimido uma
observação noutra ocasião (por inibição ativa), (c) depois de ter sido
injustamente culpada de algo e (d) em todas as ocasiões análogas
(quando se sentia mortificada). Começou a tossir pela primeira vez
quando, certa feita, sentada à cabeceira do pai, ouviu o som de música
para dançar que vinha de uma casa vizinha sentiu um súbito desejo de
estar lá e foi dominada por auto-recriminações. Apartir de então,
durante toda a sua doença, reagia a qualquer música acentuadamente
ritmada com uma tussis nervosa.
Não lamento muito que o fato de minhas anotações serem incompletas
torne impossível para mim enumerar todas as ocasiões em que seus
vários sintomas histéricos apareciam. Ela própria os relatava a mim em
cada caso isolado, com uma única exceção por mim mencionada |em
[1] e também mais adiante, em [1]-[2]|; e, como já disse, todos os
sintomas desapareciam depois de ela descrever sua primeira
ocorrência.
Também dessa maneira toda a doença desapareceu. A própria
paciente formara o firme propósito de que todo o tratamento deveria
terminar no dia em que fizesse um ano da data em que foi levada para
o campo |7 de junho (ver em [1])|. Por conseguinte, no começo de
junho, ela iniciou a “cura pela fala” com a maior energia. No último dia
— recorrendo, como ajuda, a uma nova arrumação do quarto, a fim de
assemelhá-lo ao quarto de doente do pai — ela reproduziu a
aterrorizante alucinação já descrita acima e que constitui a raiz de toda
a sua doença. Durante a cena original, Anna só havia conseguido
pensar e rezar em inglês; mas, logo após sua reprodução, pôde falar
alemão. Além disso, libertou-se das inúmeras perturbações que exibira
antes. Depois, saiu de Viena e viajou por algum tempo, mas passou-se
um período considerável antes que recuperasse inteiramente seu
equilíbrio mental. Desde então tem gozado de perfeita saúde.
Embora eu tenha suprimido um grande número de detalhes bem
interessantes, este caso clínico de Anna O. tornou-se mais volumoso
do que pareceria necessário para uma doença histérica que, em si
mesma, não foi de caráter inusitado. Entretanto, foi impossível
descrever o caso sem entrar em pormenores, e suas características
me parecem suficientemente importantes para justificar esta exposição
extensa. Da mesma maneira, os ovos dos equinodermos são
importantes na embriologia, não porque o ouriço-do-mar seja um
animal interessante, mas porque o protoplasma de seus ovos é
transparente e porque o que neles observamos lança luz, desse modo,
sobre o provável curso dos acontecimentos nos ovos cujo protoplasma
é opaco. O interesse do presente caso me parece residir, acima de
tudo, na extrema clareza e inteligibilidade de sua patogênese.
Havia nessa moça, enquanto ainda gozava de perfeita saúde, duas
características psíquicas que atuaram como causas de predisposição
para sua subseqüente doença histérica:
(1)Sua vida familiar monótona e a ausência de ocupação intelectual
adequada deixavam-na com um excedente não utilizado de vivacidade
e energia mentais, tendo esse excedente encontrado uma saída na
atividade constante de sua imaginação.
(2)Isso a levou ao hábito dos devaneios (seu “teatro particular”), que
lançou as bases para uma dissociação de sua personalidade mental.
Não obstante, uma dissociação desse grau ainda se acha nos limites
da normalidade. Os devaneios e as reflexões durante ocupações mais
ou menos mecânicas não implicam, em si mesmos, uma divisão
patológica da consciência visto que, ao serem interrompidos —
quando, por exemplo, alguém dirige a palavra à pessoa — a unidade
normal da consciência é restaurada; não implicam tampouco a
existência de amnésia. No caso de Anna O., porém, esse hábito
preparou o terreno em que o afeto de angústia e pavor pôde
estabelecer-se na forma que descrevi, tão logo esse afeto transformou
os devaneios habituais da paciente numa absence alucinatória. É
notável que a primeira manifestação da doença em seus primórdios já
exibisse de modo tão completo suas principais características, que
depois permaneceram inalteradas por quase dois anos. Estas
compreendiam a existência de um segundo estado de consciência, que
surgiu primeiro como uma absence temporária e depois se organizou
sob a forma de uma “double conscience”; uma inibição da fala,
determinada pelo afeto de angústia, que encontrou uma descarga
fortuita nos versos em língua inglesa; posteriormente, a parafasia e a
perda da língua materna, que foi substituída por um inglês excelente;
e, por fim, a paralisia acidental do braço direito, em virtude da pressão,
que depois evoluiu para uma paresia espástica e anestesia do lado
direito. O mecanismo pelo qual esta segunda afecção veio a existir
mostrou-se em inteira consonância com a teoria da histeria traumática
de Charcot — um ligeiro trauma ocorrido durante um estado de
hipnose.
Mas, enquanto a paralisia experimentalmente provocada por Charcot
em seus pacientes se estabilizava de imediato, e enquanto a paralisia
causada em vítimas de neuroses traumáticas devidas a grave choque
traumático logo se estabelece, o sistema nervoso dessa moça
ofereceu uma resistência bem-sucedida durante quatro meses. Sua
contratura, bem como as outras perturbações que se acompanharam,
só se estabeleceu durante as curtas absences e em sua condition
seconde, deixando-a, durante seu estado normal, com pleno controle
do corpo, e em posse de seus sentidos, de modo que nada foi
observado nem por ela própria nem por aqueles que a cercavam, se
bem que a atenção deles estivesse enfocada no pai enfermo da
paciente e, por conseguinte, desviada dela.
Entretanto, uma vez que suas absences, com sua amnésia total, e
fenômenos histéricos concomitantes, tornaram-se cada vez mais
freqüentes a partir da época de sua primeira auto-hipnose alucinatória,
as oportunidades se multiplicaram para a formação de novos sintomas
da mesma espécie, e os que já se haviam formado tornaram-se mais
fortemente entrincheirados pela freqüente repetição. Além disso,
qualquer afeto angustiante súbito passou gradativamente a ter o
mesmo resultado de uma absence (embora, a rigor, seja possível que
esses afetos causassem de fato uma absence temporária em todos os
casos); algumas coincidências fortuitas formaram associações
patológicas e perturbações sensoriais ou motoras, que daí por diante
passaram a surgir junto com o afeto. Mas até então isso só havia
ocorrido durante momentos passageiros. Antes de ficar
permanentemente acamada, a paciente já havia desenvolvido todo o
conjunto de fenômenos histéricos, sem que ninguém o soubesse. Só
depois de ela ter entrado em colapso completo, graças ao
esgotamento acarretado pela falta de alimentos, insônia e angústia
constante, e só depois de ter começado a passar mais tempo em sua
condition seconde do que em seu estado normal, foi que os fenômenos
histéricos se estenderam a este último e passaram da condição de
sintomas agudos intermitentes à de sintomas crônicos.
Surge agora a questão de determinar até que ponto se pode confiar
nas declarações da paciente e de saber se as ocasiões e o modo de
origem dos fenômenos foram realmente tais como ela os representou.
Quanto aos fatos mais importantes e fundamentais, o grau de
confiabilidade de seu relato me parece estar fora de dúvida. Quanto ao
fato de os sintomas desaparecerem depois de “verbalizados”, não
posso empregar isso como prova; é bem possível que isso se explique
pela sugestão. Mas sempre achei que a paciente era inteiramente fiel à
verdade e digna de toda confiança. As coisas que me relatou estavam
intimamente vinculadas com o que lhe era mais sagrado. O que quer
que pudesse ser verificado através de outras pessoas era plenamente
confirmado. Até mesmo a moça mais bem-dotada seria incapaz de
engendrar uma trama de dados com tal grau de coerência interna
como o exibido na história deste caso. Não se pode duvidar, contudo,
de que precisamente sua coerência talvez a tenha levado (em absoluta
boa-fé) a atribuir a alguns dos seus sintomas uma causa
desencadeadora que na verdade não possuíam. Mas também a essa
suspeita considero injustificada. A própria insignificância de tantas
dessas causas e o caráter irracional de tantas das conexões
envolvidas depõem a favor de sua realidade. A paciente não conseguia
entender como é que a música para dançar a fazia tossir; uma
construção dessa natureza é por demais destituída de sentido para ter
sido deliberada. (Pareceu-me muito provável, aliás, que cada um de
seus dramas de consciência acarretasse um de seus habituais
espasmos da glote e que os impulsos motores que sentia — pois ela
gostava muito de dançar — transformassem o espasmo numa tussis
nervosa.) Por conseguinte, em minha opinião, as declarações da
paciente mereciam toda a confiança e correspondiam aos fatos.
E agora devemos considerar até que ponto é justificável supor que a
histeria se produza de maneira análoga em outros pacientes e que o
processo seja semelhante quando nenhuma condition seconde tão
claramente distinta tenha-se organizado. Para sustentar esse ponto de
vista, posso assinalar o fato de que, também no presente caso, a
história da evolução da doença teria permanecido inteiramente
desconhecida, tanto da paciente quanto do médico, se não fosse a
peculiaridade de a paciente se recordar de coisas na hipnose, como
descrevi, e de conseguir relacioná-las. Enquanto estava em seu estado
de vigília, ela não tinha nenhum conhecimento de tudo isso. Portanto, é
impossível, nos outros casos, chegar-se ao que está acontecendo
através de um exame dos pacientes em estado de vigília, pois, com a
melhor boa vontade do mundo, eles não podem dar informação alguma
a ninguém. E já ressaltei como as pessoas que cercavam a paciente
eram pouco capazes de observar aquilo que estava acontecendo. Por
conseguinte, só seria possível descobrir o estado de coisas em outros
pacientes por meio de um método semelhante ao que foi
proporcionado, no caso de Anna O., por suas auto-hipnoses. Por
enquanto, podemos apenas externar o ponto de vista de que
seqüências de fatos semelhantes aos aqui descritos ocorrem com
maior freqüência do que nos levou a supor nossa ignorância do
mecanismo patogênico em causa.
Quando a paciente ficou de cama e sua consciência passou a oscilar
de forma constante entre o estado normal e o “secundário”, toda a
série de sintomas histéricos, que haviam surgido isoladamente e até
então se achavam latentes, tornou-se manifesta, como já vimos, como
sintomas crônicos. Acrescentou-se então a estes um novo grupo de
fenômenos que pareciam ter tido uma origem diferente: as paralisias
espásticas das extremidades esquerdas e a paresia dos músculos
elevadores da cabeça. Eu os distingo dos outros fenômenos porque,
uma vez que tivessem desaparecido, nunca mais retornavam, mesmo
na forma mais breve ou branda, ou durante a fase conclusiva e de
recuperação, quando todos os outros sintomas se tornaram de novo
ativos após terem ficado inativos por algum tempo. Da mesma forma,
jamais vieram à tona nas análises hipnóticas e não foram rastreados
até as fontes emocionais ou imaginativas. Inclino-me a pensar,
portanto, que seu surgimento não se deveu ao mesmo processo
psíquico dos outros sintomas, mas que cabe atribuí-lo a uma extensão
secundária daquela condição desconhecida que constitui o fundamento
somático dos fenômenos histéricos.
Durante toda a doença seus dois estados de consciência persistiram
lado a lado: o primário, em que ela era bastante normal psiquicamente,
e o secundário, que bem pode ser assemelhado a um sonho, em vista
de sua abundância de produções imaginárias e alucinações, suas
grandes lacunas de memória e a falta de inibição e controle em suas
associações. Nesse estado secundário, a paciente ficava numa
situação de alienação. O fato de que toda a condição mental da
paciente estava na dependência da intrusão desse estado secundário
no normal parece lançar uma considerável luz sobre pelo menos um
tipo de psicose histérica. Cada uma de suas hipnoses à noite oferecia
provas de que a paciente estava inteiramente lúcida e bem ordenada
em sua mente e normal no tocante a seus sentimentos e a sua volição,
desde que nenhum dos produtos de seu estado secundário atuasse
como um estímulo “no inconsciente”. A psicose extremamente
acentuada que surgia sempre que havia um intervalo considerável
nesse processo de desabafo revelou o grau em que esses produtos
influenciavam os fatos psíquicos de seu estadolatentes, tornou-se
manifesta, como já vimos, como sintomas crônicos. Acrescentou-se
então a estes um novo grupo de fenômenos que pareciam ter tido uma
origem diferente: as paralisias espásticas das extremidades esquerdas
e a paresia dos músculos elevadores da cabeça. Eu os distingo dos
outros fenômenos porque, uma vez que tivessem desaparecido, nunca
mais retornavam, mesmo na forma mais breve ou branda, ou durante a
fase conclusiva e de recuperação, quando todos os outros sintomas se
tornaram de novo ativos após terem ficado inativos por algum tempo.
Da mesma forma, jamais vieram à tona nas análises hipnóticas e não
foram rastreados até as fontes emocionais ou imaginativas. Inclino-me
a pensar, portanto, que seu surgimento não se deveu ao mesmo
processo psíquico dos outros sintomas, mas que cabe atribuí-lo a uma
extensão secundária daquela condição desconhecida que constitui o
fundamento somático dos fenômenos histéricos.
Durante toda a doença seus dois estados de consciência persistiram
lado a lado: o primário, em que ela era bastante normal psiquicamente,
e o secundário, que bem pode ser assemelhado a um sonho, em vista
de sua abundância de produções imaginárias e alucinações, suas
grandes lacunas de memória e a falta de inibição e controle em suas
associações. Nesse estado secundário, a paciente ficava numa
situação de alienação. O fato de que toda a condição mental da
paciente estava na dependência da intrusão desse estado secundário
no normal parece lançar uma considerável luz sobre pelo menos um
tipo de psicose histérica. Cada uma de suas hipnoses à noite oferecia
provas de que a paciente estava inteiramente lúcida e bem ordenada
em sua mente e normal no tocante a seus sentimentos e a sua volição,
desde que nenhum dos produtos de seu estado secundário atuasse
como um estímulo “no inconsciente”. A psicose extremamente
acentuada que surgia sempre que havia um intervalo considerável
nesse processo de desabafo revelou o grau em que esses produtos
influenciavam os fatos psíquicos de seu estado “normal”. É difícil evitar
expressar a situação afirmando que a paciente estava dividida em duas
personalidades, das quais uma era mentalmente normal, e a outra,
insana. Em minha opinião, a nítida divisão entre os dois estados nessa
paciente só vem revelar com maior clareza aquilo que ocasionou um
grande número de problemas inexplicados em muitos outros pacientes
histéricos. Foi especialmente observável, em Anna O., o grau em que
os produtos de seu “mau eu”, conforme ela própria o denominava,
afetavam seu senso ético mental. Se esses produtos não tivessem sido
continuamente eliminados, ter-nos-íamos confrontado com uma
histérica do tipo malévolo — teimosa, indolente, desagradável e
rabugenta; mas o que se passava era que, após a remoção desses
estímulos, seu verdadeiro caráter, que era o oposto de tudo isso,
sempre ressurgia de imediato.
Não obstante, embora seus dois estados fossem assim nitidamente
separados, não só o estado secundário invadia o primeiro, como
também — e isso se dava com freqüência em todas as ocasiões,
mesmo quando ela se encontrava numa condição muito ruim — um
observador lúcido e calmo ficava sentado, conforme ela dizia, num
canto de seu cérebro, contemplando toda aquela loucura a seu redor.
Essa persistência do pensamento claro enquanto a psicose estava em
pleno processo encontrava expressão numa forma muito curiosa.
Numa ocasião em que, depois de terem cessado os fenômenos
histéricos, a paciente estava atravessando uma depressão temporária,
ela apresentou grande número de temores e auto-recriminações
infantis, entre eles a idéia de que de modo algum estivera doente e
tudo aquilo fora simulado. Observações semelhantes, como sabemos,
têm sido feitas com freqüência. Depois que um distúrbio dessa
natureza desapareceu e os dois estados de consciência voltaram a se
fundir num só, os pacientes, lançando um olhar retrospectivo para o
passado, se vêem como a personalidade única e indivisa que se dava
conta de todo aquele absurdo; acham que poderiam tê-lo impedido se
assim tivessem desejado e se sentem como se tivessem praticado
todo o mal de forma deliberada. — Deve-se acrescentar que esse
raciocínio normal que persistia durante o estado secundário deve ter
variado enormemente de intensidade e, muitas vezes, até deve ter
estado ausente de todo.
Já descrevi o surpreendente fato de que, do começo ao fim da doença,
todos os estímulos decorrentes do estado secundário, junto com suas
conseqüências, eram eliminados de maneira permanente ao
receberem expressão verbal na hipnose, e resta-me apenas
acrescentar a certeza de que isso não foi uma invenção minha imposta
à paciente por sugestão. Fui apanhado inteiramente de surpresa, e só
depois de todos os sintomas serem assim eliminados em toda uma
série de situações é que desenvolvi uma técnica terapêutica a partir
dessa experiência.
A cura final da histeria merece mais algumas palavras. Ela foi
acompanhada, como já tive oportunidade de dizer, por perturbações
consideráveis e uma deterioração do estado mental da paciente. Tive
impressão muito forte de que os numerosos produtos do seu estado
secundário que ficaram latentes forçavam agora sua entrada na
consciência; e embora de início fossem recordados apenas em seu
estado secundário, estavam ainda assim sobrecarregando e
perturbando seu estado normal. Resta verificar se não deveríamos
procurar a mesma origem nos outros casos em que a histeria crônica
termina numa psicose.
CASO 2 - SRA EMMY VON N., IDADE 40 ANOS, DA LIVÔNIA
(FREUD)
Em 1º de maio de 1889, comecei o tratamento de uma senhora de
cerca de quarenta anos, cujos sintomas e personalidade me
interessaram de tal forma que lhe dediquei grande parte de meu tempo
e decidi fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para recuperá-la.
Era histérica e podia ser posta com a maior facilidade num estado de
sonambulismo; ao tomar ciência disso, resolvi fazer uso da técnica de
investigação sob hipnose, de Breuer, que eu viera a conhecer pelo
relato que ele me fizera do bem-sucedido tratamento de sua primeira
paciente. Essa foi minha primeira tentativa de lidar com aquele método
terapêutico | ver em [1] e [2]|. Estava ainda longe de tê-lo dominado; de
fato, não fui bastante à frente na análise dos sintomas, nem o segui de
maneira suficientemente sistemática. Talvez possa apresentar melhor
um quadro da condição da paciente e de minha conduta clínica
reproduzindo as anotações que fiz todas as noites durante as três
primeiras semanas do tratamento. Onde quer que a experiência
posterior me haja proporcionado melhor compreensão, eu a
incorporarei em notas de rodapé e comentários intercalados.
1º de maio de 1889. — Essa senhora, quando a vi pela primeira vez,
estava deitava num sofá com a cabeça repousando numa almofada de
couro. Parecia ainda jovem e as feições eram delicadas e marcantes.
O rosto tinha uma expressão tensa e penosa, as pálpebras estavam
cerradas e os olhos, baixos; a testa apresentava profundas rugas e as
dobras nasolabiais eram acentuadas. Falava em voz baixa, como se
tivesse dificuldade, e a fala ficava de tempos em tempos sujeita a
interrupções espásticas, a ponto de ela gaguejar. Conservava os
dedos firmemente entrelaçados, e eles exibiam uma agitação
incessante, parecida com a que ocorre na atetose. Havia
freqüentesmovimentos convulsivos semelhantes a tiques, no rosto e
nos músculos do pescoço, durante os quais alguns destes,
especialmente o esternoclidomastóideo direito, se tornavam muito
salientes. Além disso, ela interrompia com freqüência suas
observações emitindo um curioso “estalido” com a boca, um som
impossível de imitar.
O que a paciente me dizia era perfeitamente coerente e revelava um
grau inusitado de instrução e inteligência. Isso fazia com que
parecesse ainda mais estranho que, a cada dois ou três minutos, ela
de súbito se calasse, contorcesse o rosto numa expressão de horror e
nojo, estendesse a mão em minha direção, abrindo e entortando os
dedos, e exclamasse numa voz alterada, carregada de angústia: “Fique
quieto! — Não diga nada! — Não me toque!” É provável que estivesse
sob a influência de alguma alucinação recorrente de natureza
apavorante e que, com essa fórmula, estivesse mantendo afastado o
material intromissivo. Essas interpolações chegavam ao fim tão de
súbito quanto começavam, e a paciente retomava seu relato anterior,
sem dar continuidade a sua excitação momentânea e sem explicar ou
pedir desculpas por seu comportamento — provavelmente, portanto,
sem que ela própria notasse a interpolação.
Tomei conhecimento do seguinte sobre as circunstâncias de sua vida:
Sua família era originária da Alemanha Central, mas duas de suas
gerações haviam fixado residência nas províncias bálticas da Rússia,
onde possuía grandes propriedades. Ela era a décima terceira de
quatorze filhos. Apenas quatro dentre eles sobreviveram. A paciente
recebeu uma educação cuidadosa, mas sob a disciplina rígida de uma
mãe excessivamente enérgica e severa. Quando contava vinte e três
anos, casou-se com um homem muito bem-dotado e capaz, que
alcançara uma posição elevada como grande industrial, mas que era
muito mais velho do que ela. Depois de um casamento de curta
duração, ele morreu de derrame cerebral. A esse fato, bem como à
tarefa de educar as duas filhas, então com dezesseis e quatorze anos,
muitasvezes enfermas e que sofriam de distúrbios nervosos, ela
atribuía sua própria doença. Desde a morte do marido, quatorze anos
antes, vivera constantemente doente, com variados graus de
gravidade. Há quatro anos, seu estado sofrera uma melhora temporária
com uma série de massagens combinadas com banhos elétricos. Afora
isso, todos os seus esforços para melhorar de saúde têm sido
infrutíferos. Ela viajou muito e tem um vivo interesse por muitas coisas.
Atualmente, mora numa casa de campo num ponto do Báltico, perto de
uma grande cidade. Há vários meses tem estado outra vez muito
doente, sofrendo de depressão e insônia e atormentada por dores; foi
até Abbazia na vã esperança de obter melhoras, e nas últimas seis
semanas está em Viena, até agora sob os cuidados de um médico de
excelente reputação.
Sugeri que ela se separasse das duas filhas, que têm governanta, e se
internasse numa casa de saúde, onde eu poderia vê-la todos os dias.
Concordou com isso sem levantar a menor objeção.
Na noite de 2 de maio visitei-a na casa de saúde. Notei que se
assustava muito sempre que a porta se abria de modo inesperado.
Assim, providenciei para que, ao visitá-la, as enfermeiras e os médicos
internos batessem com força na porta e só entrassem depois de ela
dizer que podiam fazê-lo. Mesmo assim, ela ainda fazia trejeitos faciais
e dava um pulo toda vez que alguém entrava.
Sua principal queixa hoje foi sobre sensações de frio e dor na perna
esquerda, que se originavam nas costas, acima da crista do ilíaco.
Ordenei que lhe dessem banhos quentes e lhe aplicarei massagens
por todo o corpo duas vezes ao dia.
Ela é uma excelente paciente para o hipnotismo. Bastou eu levantar
um dedo diante dela e ordenar-lhe que dormisse para que se
reclinasse com uma expressão atordoada e confusa. Sugeri que ela
dormiria bem, que todos os seus sintomas melhorariam, e assim por
diante. Ela ouviu tudo isso com os olhos fechados, mas sem dúvida
com uma atenção inconfundivelmente concentrada, e suas feições aos
poucos se relaxaram e assumiram uma aparência pacífica. Depois
dessa primeira hipnose, conservou uma tênue lembrança de minhas
palavras, mas, já na segunda, houve completo sonambulismo (com
amnésia). Tinha-a avisado de que pretendia hipnotizá-la, ao que ela
não opusera nenhuma dificuldade. Ela nunca fora hipnotizada antes,
mas pode-se supor que já leu sobre o hipnotismo, embora eu não
saiba dizer quais são suas idéias sobre o estado hipnótico.
Esse tratamento à base de banhos quentes, massagens duas vezes ao
dia e sugestão hipnótica prosseguiu por mais alguns dias. Ela dormia
bem, melhorava a olhos vistos e passava a maior parte do dia
tranqüilamente deitada. Não lhe foi proibido ver as filhas, ler, ou cuidar
da correspondência.
8 de maio, manhã. — Ela me entreteve, num estado que parecia
normal, com histórias aterradoras sobre animais. Lera no Frankfurter
Zeitung, que estava na mesa em frente a ela, uma história de como um
aprendiz amarrara um menino e lhe pusera na boca um rato branco. O
menino morrera de susto. O Dr. K. lhe dissera ter mandado uma caixa
cheia de ratos brancos para Tiflis. Ao narrar-me isso, ela demonstrava
todos os sinais de horror. Torcia e retorcia as mãos várias vezes.
“Fique quieto! — Não diga nada! — Não me toque! — Imagine só se
houvesse uma criatura dessas na cama!” (Estremeceu.) “Pense só,
quando for aberta! Há um rato morto entre eles — um que foi ro-o-í-do!”
Durante a hipnose tentei eliminar essas alucinações com animais.
Enquanto ela dormia, apanhei o Frankfurter Zeitung. Achei a história do
menino que fora maltratado, mas sem nenhuma referência a
camundongos ou ratos. Logo, ela os havia introduzido a partir de seu
delírio enquanto lia. (À noite, falei-lhe de nossa conversa sobre os
ratos brancos. Ela não sabia de nada daquilo, ficou muito surpresa e
deu boas risadas.)
À tarde teve o que chamou de uma “cãibra no pescoço”, que no
entanto, como disse, “só durou pouco tempo — umas poucas horas”.
Noite. — Pedi-lhe que, sob hipnose, falasse, o que, depois de certo
esforço, ela conseguiu fazer. Falava baixo e refletia por um momento,
cada vez, antes de responder. Sua expressão se alterava de acordo
com o tema de suas observações e se acalmava tão logo minha
sugestão punha termo à impressão nela causada pelo que dizia.
Perguntei-lhe por que se assustava com tanta facilidade e ela
respondeu: “Está relacionado com as lembranças de minha meninice.”
“Quando?” “Primeiro, quando eu tinha cinco anos e meus irmãos e
irmãs costumavam atirar animais mortos em mim. Foi aí que tive meu
primeiro desmaio e espasmos. Mas minha tia disse que aquilo era uma
vergonha e que eu não devia ter daqueles ataques, de modo que eles
pararam. Depois me assustei de novo quando tinha sete anos, e
inesperadamente, vi minha irmã no caixão; e outra vez quando contava
oito anos e meu irmão me aterrorizou uma porção de vezes,
enrolando-se em lençóis como um fantasma; e também quando tinha
nove anos e vi minha tia no caixão e de repente o queixo dela caiu.”
É claro que essa série de causas desencadeadoras traumáticas que
ela citou em resposta a minha pergunta sobre a razão de ser tão
propensa a se assustar já estava pronta em sua memória. Ela não
poderia ter reunido tão depressa esses episódios de diferentes
períodos de sua infância no curto intervalo transcorrido entre minha
pergunta e sua resposta. No fim de cada uma das histórias ela se
crispava toda e assumia uma expressão de medo e horror. Ao final da
última, escancarou a boca e ficou ofegante. As palavras com que
descreveu o tema pavoroso de sua experiência foram pronunciadas
com dificuldade e entremeadas de estertores. Depois, suas feições se
tranqüilizaram.
Em resposta a uma pergunta, disse-me que enquanto descrevia essas
cenas via-as diante de si, numa forma plástica e em suas cores
naturais. Contou que, em geral, pensava nessas experiências com
muita freqüência e o fizera nos últimos dias. Sempre que isso
acontecia, via essas cenas com toda a nitidez da realidade.
Compreendo agora por que tantas vezes ela me entretém com cenas
de animais e quadros de cadáveres. Minha terapia consiste em
eliminar esses quadros, de modo que ela não possa mais vê-los diante
de si. Para reforçar minha sugestão, passei suavemente a mão por
seus olhos várias vezes.
9 de maio, |manhã.| — Sem que lhe tivesse dado nenhuma
outrasugestão, ela dormiu bem. Mas sentiu dores gástricas pela
manhã. Estas surgiram ontem, no jardim, onde ela permaneceu muito
tempo com as filhas. Concordou em que eu limitasse as visitas das
moças a duas horas e meia. Alguns dias atrás recriminara a si própria
por deixar as filhas sozinhas. Encontrei-a um tanto agitada hoje; a testa
estava enrugada, a fala era hesitante e ela produzia aqueles estalidos
característicos. Enquanto era massageada, disse-me apenas que a
governanta das filhas lhe levara um atlas etnológico e que algumas
fotografias de índios norte-americanos vestidos como animais lhe
produziram um grande choque. “Pense só se eles ganhassem vida!”
(Estremeceu.)
Sob hipnose perguntei-lhe por que se assustara tanto com essas
fotografias, visto já não ter mais medo de animais. Respondeu que a
tinham feito recordar as visões que tivera (aos dezenove anos) na
época da morte do irmão. (Deixarei para depois as indagações sobre
essa lembrança.) A seguir, perguntei-lhe se sempre gaguejara e há
quanto tempo tinha o tique (o estalido peculiar): A gagueira, disse,
surgira quando estava doente; tinha o tique há cinco anos, desde o
tempo em que estivera sentada à cabeceira da filha mais nova, quando
esta esteve muito doente, e desejara ficar absolutamente quieta. Tentei
reduzir a importância dessa lembrança, ressaltando que, afinal de
contas, nada acontecera à filha, e assim por diante. A coisa surgia,
disse-me ela, sempre que ficava apreensiva ou assustada. Dei-lhe
instruções para que não se assustasse com os retratos dos
peles-vermelhas, mas que risse à vontade deles e até chamasse para
eles minha atenção. E isso de fato aconteceu depois de ela despertar:
olhou para o livro, perguntou-me se o tinha visto, abriu-o na página e
riu alto das figuras grotescas, sem o menor indício de medo e sem que
suas feições denotassem a menor tensão. O Dr. Breuer entrou
subitamente com o médico interno para visitá-la. Ela se assustou e
começou a produzir o estalido característico, de modo que eles logo se
retiraram. A paciente me explicou que ficara agitada daquela maneira
por ser desagradavelmente afetada pelo fato de o médico interno
também entrar a todo instante.
Eu também havia eliminado suas dores gástricas durante a hipnose,
tocando-a levemente no abdome, e lhe disse que, embora ela
esperasse pelo retorno da dor depois do almoço, isso não aconteceria.
Noite. — Pela primeira vez ela se mostrou alegre e falante e deu
mostras de um senso de humor que eu não teria esperado numa
mulher tão séria; e entre outras coisas, com a acentuada sensação de
estar melhor, zombou do tratamento feito por meu antecessor. De há
muito pretendia, segundo me disse, desistir daquele tratamento, mas
não conseguia encontrar o método certo de fazê-lo, até que uma
observação fortuita feita pelo Dr. Breuer, numa ocasião em que a
visitou, indicou-lhe a solução. Quando pareci surpreso com isso,
assustou-se e começou a recriminar-se asperamente por ter sido
indiscreta. Ao que parece, porém, consegui reassegurá-la. — Ela não
tinha sentido as dores gástricas, embora as houvesse esperado.
Sob hipnose pedi-lhe que me contasse outras experiências que
tivessem dado margem a um medo duradouro. Ela forneceu uma
segunda seqüência dessa espécie, que datava do final de sua
juventude, com a mesma rapidez da primeira seqüência, e me
assegurou mais uma vez que todas essas cenas surgiram diante dela
muitas vezes, nitidamente e em cores. Uma delas era de como viu uma
prima ser levada para um asilo de loucos (quando ela estava com
quinze anos). Ela havia tentado pedir socorro, mas não conseguira e
perdera a capacidade de falar até a noite do mesmo dia. Visto que ela
falava em hospícios com muita freqüência em seu estado de vigília,
interrompi-a e perguntei em que outras ocasiões ela se preocupara
com a loucura. Ela me contou que sua própria mãe tinha passado
algum tempo num hospício. Em certa época, tiveram uma empregada
cuja antiga patroa estivera muito tempo internada numa dessas
instituições e que costumava contar-lhes histórias aterradoras de como
os pacientes eram amarrados a cadeiras, espancados, etc. Ao
narrar-me isso, retorceu as mãos, horrorizada; estava vendo tudo
diante dos olhos. Esforcei-me por corrigir-lhe as idéias sobre os
manicômios e lhe assegurei que ela conseguiria ouvir falar de
instituições dessa natureza sem referi-las a si mesma. Com isso, suas
feições se relaxaram.
Prosseguiu com sua relação de lembranças aterradoras. Uma, aos
quinze anos, de como encontrara a mãe, que tivera um derrame
cerebral, estendida no chão (a mãe viveu mais quatro anos); de novo,
aos dezenove, de como chegou a casa certo dia e encontrou a mãe
morta, com o rosto contorcido. Naturalmente, tive uma dificuldade
considerável em atenuar-lhe essas lembranças. Após uma explicação
bastante longa, assegurei-lhe que também esse quadro só lhe surgiria
outra vez de forma indistinta e sem intensidade. — Outra lembrança
era a da maneira como, aos dezenove anos, ela levantou uma pedra e
encontrou debaixo dela um sapo, o que a fez perder a fala durante
horas.
Durante essa hipnose convenci-me de que ela sabia de tudo o
queacontecera na última hipnose, enquanto na vida de vigília não tem
nenhum conhecimento disso.
10 de maio, manhã. — Pela primeira vez, deram-lhe hoje um banho de
farelo, em vez de seu habitual banho morno. Achei-a com uma
expressão de aborrecimento e angústia, com as mãos envoltas num
xale. Queixava-se de frio e dores. Quando lhe perguntei o que se
passava, disse-me que o banho fora incomodamente curto e provocara
dores. Durante a massagem, começou por dizer que ainda se sentia
mal por ter atraiçoado o Dr. Breuer ontem. Acalmei-a com uma
pequena mentira e disse que eu já sabia daquilo o tempo todo, ao que
sua agitação (estalidos, trejeitos faciais) cessou. Todas as vezes,
portanto, mesmo enquanto a massageio, minha influência já começa a
afetá-la; a paciente fica mais tranqüila e mais lúcida, e mesmo sem que
haja perguntas sob hipnose consegue descobrir a causa de seu mau
humor daquele dia. Tampouco sua conversa durante a massagem é
tão sem objetivo como poderia parecer. Pelo contrário, encerra uma
reprodução razoavelmente completa das lembranças e das novas
impressões que a afetaram desde nossa última conversa e, muitas
vezes, de maneira bem inesperada, progride até as reminiscências
patogênicas, que ela vai desabafando sem ser solicitada. É como se
tivesse adotado meu método e se valesse de nossa conversa,
aparentemente sem constrangimento e guiada pelo acaso, como um
complemento de sua hipnose. Por exemplo, hoje começou a falar
sobre sua família e, com muitos rodeios, passou ao assunto de um
primo. Este não era muito bom da cabeça e os pais mandaram
arrancar-lhe todos os dentes de uma só vez. Ela acompanhou a
história com expressões de horror e ficou repetindo sua fórmula
protetora (“Fique quieto! — Não diga nada! — Não me toque!”). Depois
disso, seu rosto se descontraiu e ela ficou alegre. Assim, seu
comportamento na vida de vigília é dirigido pelas experiências que teve
durante o sonambulismo, embora acredite, enquanto está acordada,
nada saber a respeito delas.
Sob hipnose repeti minha pergunta quanto àquilo que a perturbara e
recebi as mesmas respostas, mas na ordem inversa: (1) sua conversa
indiscreta de ontem, e (2) suas dores provocadas por ter sentido muito
desconforto no banho. — Perguntei-lhe hoje o significado de sua frase
“Fique quieto!”, etc. Explicou que, quando tinha pensamentos
assustadores, temia que eles fossem interrompidos em seu curso,
porque então tudo ficaria confuso e ascoisas ficariam ainda piores. O
“Fique quieto!” relacionava-se com o fato de que as formas animais
que lhe apareciam quando ela se achava em mau estado começavam
a mover-se e a atacá-la se alguém fizesse um movimento em sua
presença. A exortação final “Não me toque!” provinha das seguintes
experiências: contou-me como, quando o irmão estivera muito doente
por ter ingerido muita morfina — ela estava com dezenove anos na
ocasião — costumava muitas vezes agarrá-la, e como, de outra feita,
um conhecido enlouquecera de súbito em sua casa e a tinha segurado
pelo braço (houve um terceiro exemplo semelhante, do qual não se
recordava com exatidão); e por último, como, quando tinha vinte e oito
anos e a filha estava muito doente, a criança se agarrara nela com
tanta força em seu delírio que ela quase fora sufocada. Embora esses
quatro exemplos fossem tão separados no tempo, ela os relatou numa
única frase e numa sucessão tão rápida que poderiam ter constituído
um único episódio em quatro atos. A propósito, todos os relatos que
me fazia de traumas como esses, dispostos em grupos, começavam
por um “como”, sendo os traumas componentes separados por um “e”.
Uma vez que percebi que a fórmula protetora se destinava a
salvaguardá-la contra uma repetição dessas experiências, eliminei
esse medo por meio da sugestão e, de fato, jamais a ouvi dizer a
fórmula de novo.
Noite. — Encontrei-a muito animada. Contou-me, sorridente, que se
assustara com um cãozinho que havia latido para ela no jardim. Seu
rosto, porém, estava um pouco contraído, e havia certa agitação
interna, que só desapareceu quando ela me perguntou se eu estava
aborrecido com alguma coisa que ela dissera durante a massagem
nessa manhã e respondi “não”. Sua menstruação recomeçou hoje,
após um intervalo que mal chegou a uma quinzena. Prometi-lhe
regulá-la por sugestão hipnótica e, sob hipnose, fixei o intervalo em 28
dias.
Em hipnose, também lhe perguntei se se recordava da última coisa que
me contara; ao perguntar-lhe isso, o que eu tinha em mente era uma
tarefa que restara da noite passada, mas ela começou, muito
corretamente, pelo “não me toque” da hipnose de hoje de manhã.
Assim, levei-a de volta ao assunto de ontem. Eu lhe havia perguntado
qual a origem de sua gagueira e ela respondera “não sei”. Pedira-lhe,
portanto, que se lembrasse disso na horada hipnose de hoje. Em
conseqüência, me respondeu hoje, sem nenhuma reflexão adicional,
mas com grande agitação e com dificuldades espásticas na fala:
“Como os cavalos certa vez saíram em disparada com as crianças na
carruagem; e como outra vez eu estava passando de carruagem pela
floresta com as meninas, durante uma tempestade, e uma árvore bem
à frente dos cavalos foi atingida por um raio e os cavalos se
assustaram e eu pensei: ‘Agora você precisa ficar bem quietinha,
senão seus gritos vão assustar os cavalos ainda mais e o cocheiro não
conseguirá contê-los de jeito nenhum.’ Surgiu a partir daquele
momento.” A paciente ficou extraordinariamente agitada ao contar-me
essa história. Soube também por ela que a gagueira tinha começado
logo após a primeira dessas duas ocasiões, mas havia desaparecido
pouco depois e então se estabelecera de uma vez por todas após a
segunda ocasião semelhante. Apaguei sua lembrança plástica dessas
cenas, mas pedi-lhe que as imaginasse mais uma vez. Ela pareceu
tentar fazê-lo e permaneceu quieta enquanto atendia a meu pedido; a
partir de então, falou durante a hipnose sem qualquer impedimento
espástico.
Verificando que ela estava disposta a ser comunicativa, perguntei-lhe
que outros fatos em sua vida a haviam assustado tanto a ponto de a
terem deixado com lembranças plásticas. Ela respondeu
fornecendo-me uma coleção de tais experiências: — |1| Como um ano
após a morte da mãe, estava visitando uma francesa que era sua
amiga, quando lhe disseram que fosse ao quarto contíguo com outra
moça para buscar um dicionário e ela viu, sentado na cama, alguém
que tinha a aparência idêntica à da mulher que ela acabara de deixar
no outro aposento. Ficou toda rígida e pregada no chão. Depois, ficara
sabendo que se tratava de um manequim especialmente preparado.
Asseverei que o que a paciente tinha visto fora uma alucinação e
apelei para seu bom senso, e então seu rosto se relaxou. |2| Como
cuidara do irmão enfermo e este tivera acessos terríveis por causa da
morfina, aterrorizando-a e agarrando-a. Lembrei que ela já havia
mencionado essa experiência hoje de manhã e, a título de
experimentação, perguntei-lhe em que outras ocasiões esse
“agarramento” havia ocorrido. Para minha agradável surpresa, ela fez
uma longa pausa dessa vez antes de responder e então perguntou,
num tom de dúvida: “Minha filhinha?” Ficou inteiramente incapaz de
recordar-se das outras duas ocasiões (ver atrás |em [1]|). Minha
proibição — o apagamento de suas lembranças — tinha sido, portanto,
eficaz. — E mais: |3| como, enquanto cuidava do irmão, o rosto pálido
da tia havia aparecido de súbito por cima do biombo. Ela acabara de
convertê-lo ao catolicismo.
Vi que havia chegado à raiz de seu constante temor das surpresas e
pedi-lhe outros exemplos. Prosseguiu: como tinha na casa dela um
amigo que gostava de entrar furtivamente no quarto, de modo que de
repente estava lá; como ela ficara muito doente após a morte da mãe e
fora para uma casa de saúde, e um lunático havia entrado por engano
em seu quarto várias vezes, à noite, chegando bem perto de sua
cama; e por fim, como, na vinda de Abbazia para cá, um estranho
abrira quatro vezes a porta de sua cabine e cada vez fixara nela um
olhar demorado. A Sra. Emmy tinha ficado tão apavorada que chegou
a chamar o condutor.
Apaguei todas essas lembranças, despertei-a e lhe garanti que ela
dormiria bem à noite, tendo deixado de fazer-lhe essa sugestão na
hipnose. A melhora de seu estado geral foi revelada por sua
observação de que não lera nada hoje, pois estava vivendo num sonho
muito feliz — ela, que sempre tinha que estar fazendo alguma coisa
em virtude de sua inquietude interior.
11 de maio, manhã. — Hoje teve uma entrevista com o Dr. N., o
ginecologista, que deve examinar sua filha mais velha por causa das
complicações menstruais. Encontrei a Sra. Emmy bastante agitada,
embora isso se traduzisse em sinais físicos mais leves que antes. De
vez em quando, exclamava: “Estou com medo, estou com tanto medo
que acho que vou morrer.” Perguntei-lhe de que estava com medo. Era
o Dr. N.? Não sabia, respondeu; simplesmente estava com medo. Sob
a hipnose, que induzi antes da chegada de meu colega, declarou ter
medo de que me tivesse ofendido por alguma coisa que dissera
durante a massagem, ontem, que lhe parecera indelicada. Também
tinha medo de tudo o que era novo e, por conseguinte, do novo
médico. Consegui acalmá-la e, embora se assustasse uma ou duas
vezes na presença do Dr. N., ela se comportou muito bem e não
produziu nenhum de seus estalidos nem houve qualquer inibição da
fala. Depois que ele se foi, tornei a colocá-la sob hipnose para eliminar
qualquer possível resíduo da excitação provocada pela visita. Ela
própria ficou muito contente com seu comportamento e depositou
grandes esperanças no tratamento; tentei convencê-la, a partir desse
exemplo, de que não é preciso ter medo do que é novo, já que o que é
novo também contém o que é bom.
Noite. — Estava muito animada e desabafou um grande número de
dúvidas e escrúpulos em nossa conversa antes da hipnose. Durante a
hipnose, perguntei-lhe que acontecimento de sua vida havia produzido
efeito mais duradouro sobre ela e que mais surgia em sua memória. A
morte do marido, respondeu. Fiz com que me descrevesse esse fato
com todos os pormenores e ela o fez, com todos os sinais da mais
profunda emoção, mas sem nenhum estalido e sem gaguejar: —
Como, começou a dizer, tinham ido a um lugar de que ambos
gostavam muito na Riviera e, ao atravessarem uma ponte, ele caíra de
repente no chão e lá ficara inerte por alguns minutos, mas depois se
levantara, parecendo estar muito bem; como, pouco tempo depois,
quando ela estava de cama após seu segundo parto, o marido, que
estivera tomando o café da manhã numa mesinha ao lado de sua cama
e lendo o jornal, levantara-se de súbito, olhando-a de modo muito
estranho, dera alguns passos à frente e, em seguida, caíra morto; ela
havia se levantado da cama, e os médicos que foram chamados se
esforçaram para reanimá-lo, o que ela ouviu do quarto contíguo, mas
em vão. E, prosseguiu a Sra. Emmy, como o bebê, que contava então
algumas semanas de idade, fora tomado de grave moléstia, que durou
seis meses, durante a qual ela própria ficara de cama com muita febre.
— E vieram então, em ordem cronológica, suas reclamações contra
essa criança, que ela externou rapidamente, com uma expressão
zangada no rosto, da maneira como alguém falaria de uma pessoa que
se houvesse tornado um incômodo. Essa criança, disse, se comportara
de forma muito estranha por longo tempo; gritava o tempo todo e não
dormia, e desenvolvera uma paralisia da perna esquerda cuja
recuperação parecera apresentar muito poucas esperanças. Aos
quatro anos, a criança tivera visões; aprendera a andar e a falar,
tardiamente, de modo que por muito tempo fora julgada idiota. De
acordo com os médicos, tivera encefalite e mielite e ela não sabia mais
o quê. Interrompi-a nesse ponto e a fiz ver que essa mesma criança
era hoje uma menina normal, que gozava de perfeita saúde, e
impossibilitei-a de voltar a ver qualquer dessas coisas melancólicas,
não apenas apagando suas lembranças das mesmas na forma
plástica, mas também removendo toda a sua recordação dessas
coisas, como se nunca tivessem existido em sua mente. Prometi-lhe
que isso a levaria a libertar-se da expectativa de infortúnios que não
cessava de atormentá-la e também das dores por todo o corpo, das
quais se queixara precisamente durante sua narrativa, depois de
passarmos vários dias sem ouvir falar nelas.
Para minha surpresa, depois dessa minha sugestão, ela começou a
falar, sem qualquer transição, sobre o Príncipe L., cuja fuga de um
hospício era objeto de muitos comentários nessa época. Externou
novos temores sobre os hospícios — de que as pessoas que lá se
encontravam recebiam duchas de água gelada na cabeça e eram
postas num aparelho que as fazia girar ininterruptamente até se
acalmarem. Quando, há três dias, ela se queixara pela primeira vez do
seu medo dos hospícios, eu a havia interrompido após sua primeira
história, a de que os pacientes eram amarrados a cadeiras. Vi então
que nada tinha ganho com essa interrupção e que não posso me furtar
a escutar suas histórias com todos os detalhes até a última palavra.
Depois de reparar essas falhas, livrei-a também dessa nova safra de
temores. Apelei para seu bom senso e lhe disse que ela realmente
deveria acreditar mais em mim do que na moça tola de quem ouvira
aquelas histórias horripilantes sobre a maneira como se trabalha nos
hospícios. Como notei que ela às vezes ainda gaguejava ao narrar-me
essas outras coisas, perguntei-lhe mais uma vez de onde provinha a
gagueira. Nenhuma resposta. — “A senhora não sabe?” — “Não.” —
“Por que não?” — “Por que não?” — “Porque não posso saber!”
(Pronunciou estas últimas palavras com violência e raiva). Essa
declaração me parece ser a prova do êxito de minha sugestão, mas ela
me expressou o desejo de que a despertasse da hipnose, e assim fiz.
12 de maio, |manhã|. — Contrariamente a minha expectativa, ela
dormira mal e por pouco tempo. Encontrei-a num estado de grande
angústia, embora, incidentalmente, sem demonstrar seus costumeiros
sinais físicos desta. Não disse o que estava acontecendo, mas apenas
que tivera sonhosruins e ficava vendo as mesmas coisas. “Como seria
horrível”, disse, “se eles se tornassem realidade”. Durante a
massagem, ela abordou alguns pontos em resposta a minhas
perguntas. Ficou alegre então; falou-me de sua vida social na casa do
Báltico que lhe coubera por morte do marido, das pessoas importantes
que recebe da cidade vizinha, etc.
Hipnose. — Ela tivera alguns sonhos de horror. Os pés e braços das
cadeiras se haviam transformado todos em cobras; um monstro com
bico de abutre estraçalhava e comia todo o seu corpo; outros animais
selvagens saltavam sobre ela, etc. Passou então a outros delírios com
animais, que, contudo, qualificou acrescentando: “Isso foi real” (não um
sonho): como (numa ocasião anterior) ela fora apanhar um novelo de lã
e era um rato que saíra correndo; como estivera fazendo uma
caminhada e um grande sapo saltara de repente sobre ela, e assim por
diante. Compreendi que minha proibição geral fora ineficaz e que teria
de afastar dela suas impressões assustadoras uma a uma. Aproveitei
também a oportunidade para lhe perguntar por que ela sofria de dores
gástricas e de onde provinham. (Creio que todos os seus acessos de
zoopsia |alucinações com animais| são acompanhados de dores
gástricas.) Sua resposta, dada a contragosto, foi que não sabia.
Pedi-lhe que se lembrasse até amanhã. Disse-me então, num claro
tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde
provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a
dizer. Concordei com isso e ela prosseguiu, sem nenhum preâmbulo:
“Quando o levaram embora, não pude acreditar que ele estivesse
morto.” (Estava, portanto, falando sobre o marido mais uma vez, e
compreendi então que a causa de seu mau humor era que ela estivera
sofrendo em virtude dos resíduos não revelados dessa história.)
Depois disso, contou-me, odiara a filha por três anos, pois sempre
disse a si mesma que talvez tivesse podido restaurar a saúde do
marido se não estivesse de cama por causa da criança. Além disso,
após a morte do marido, não tinha havido nada senão insultos e
agitações. Os parentes dele, que sempre foram contra o casamento e
que tinham ficado com raiva por eles serem tão felizes juntos,
espalharam o boato de que ela o havia envenenado, de modo que ela
desejara abrir um inquérito. Os parentes tinham-na envolvido em toda
espécie de processoslegais, com a ajuda de um jornalista suspeito. O
miserável espalhara agentes a fim de incitar as pessoas contra ela.
Fazia com que os jornais locais publicassem artigos difamantes a seu
respeito e depois lhe mandava recortes. Essa fora a origem de sua
insociabilidade e de seu ódio por todos os estranhos. Após eu dizer
algumas palavras tranqüilizadoras sobre o que me contara, ela disse
que se sentia melhor.
13 de maio, |manhã|. — Mais uma vez ela dormira mal, por causa de
dores gástricas. Não tinha jantado. Também não se queixou de dores
no braço direito. Mas estava de bom humor; mostrou-se alegre e,
desde ontem, tem-me tratado com especial distinção. Pediu minha
opinião sobre toda espécie de coisas que lhe pareciam importantes e
ficou excessivamente agitada, por exemplo, quando tive de procurar as
toalhas necessárias à massagem, e assim por diante. Seu estalido e
seu tique facial eram freqüentes.
Hipnose. — Ontem à noite, súbito lhe ocorrera por que os animaizinhos
que ela via se tornavam tão grandes. Isso lhe acontecera pela primeira
vez em D —, durante um espetáculo teatral em que um enorme lagarto
aparecia em cena. Essa lembrança a havia atormentado muito ontem
também.
O motivo do reaparecimento dos estalidos foi que ontem ela teve dores
abdominais e tentou não gemer para não demonstrá-las. Não tinha
nenhuma idéia da verdadeira causa desencadeadora do estalido (ver
em |[1]|.) Também se recordou de que eu lhe dera instruções para
descobrir a origem de suas dores gástricas. Não o sabia, contudo, e
me pediu que a ajudasse. Perguntei-lhe se, talvez, em alguma ocasião
após uma grande excitação, ela se haveria forçado a comer. Ela
confirmou isso. Após a morte do marido, perdera inteiramente o apetite
por muito tempo e havia comido apenas por um sentimento de
obrigação, e as dores gástricas haviam de fato começado naquela
época. Eliminei então essas dores passando a mão algumas vezes
sobre seu epigástrio. A seguir, por conta própria, ela começou a falar
sobre as coisas que mais a haviam afetado. “Já lhe contei”, disse, “que
não gostava da criança. Mas devo acrescentar que ninguém poderia
adivinhar isso pormeu comportamento. Fiz tudo o que era necessário.
Até hoje me recrimino por ter gostado mais da primogênita”.
14 de maio, |manhã.| — Estava bem e alegre e dormira até 7h30min da
manhã. Queixou-se apenas de ligeiras dores na região radial da mão e
na cabeça e rosto. O que ela me diz antes da hipnose vai adquirindo
um significado cada vez maior. Hoje não teve quase nada de horrível
para apresentar. Queixou-se de dores e perda de sensibilidade na
perna direita. Disse-me que teve um surto de inflamação abdominal em
1871; mal se havia recuperado, ficou tratando do irmão doente, e foi
então que as dores apareceram pela primeira vez, chegando até a
levar a uma paralisia temporária da perna direita.
Durante a hipnose, perguntei-lhe se agora lhe seria possível participar
da vida social, ou se ainda estava muito temerosa. Respondeu-me que
ainda lhe era desagradável ter alguém de pé atrás dela ou mesmo a
seu lado. A esse respeito, falou-me de outras ocasiões em que fora
desagradavelmente surpreendida pelo súbito aparecimento de alguém.
Certa feita, por exemplo, quando passeava com as filhas na ilha de
Rügen, dois indivíduos de aparência suspeita haviam saído de uns
arbustos e lhes dirigido insultos. Em Abbazia, quando estava
passeando certa noite, um mendigo saíra de repente de detrás de uma
pedra e se ajoelhara diante dela. Parece que era um louco inofensivo.
Por último, contou-me como sua isolada casa de campo fora
arrombada à noite, o que muito a havia alarmado. É fácil ver,
entretanto, que a origem essencial desse medo das pessoas foi a
perseguição a que ela se viu sujeita após a morte do marido.
Noite. — Embora parecesse muito animada, saudou-me com a
exclamação: “Estou morta de medo; oh, mal posso lhe dizer, eu me
odeio!” Afinal fui informado de que ela havia recebido a visita do Dr.
Breuer e levara um susto ao vê-lo aparecer. Como ele percebeu isso,
ela lhe assegurou que fora “só aquela vez”. Ficou profundamente
penalizada por minha causa, por ter traído esse vestígio de seu antigo
nervosismo. Em mais de uma ocasião tive oportunidade de notar,
nestes últimos dias, o quanto ela é severa consigo mesma, como tende
a se culpar com severidade pelos ínfimos sinais de negligência —
quando as toalhas para a massagem não estão em seu lugar habitual
ou quando o jornal para eu ler enquanto ela adormece não se
encontraprontamente à mão. Após a eliminação da primeira e mais
superficial camada de lembranças torturantes, sua personalidade
moralmente supersensível, com tendência à autodepreciação, veio à
tona. Tanto em seu estado de vigília como sob a hipnose, eu lhe disse
(o que correspondeu ao velho preceito legal “de minimis non curat lex”
que existe uma multidão de coisinhas insignificantes entre o que é bom
e o que é mau — coisas sobre as quais ninguém precisa censurar-se.
Ela não aceitou minha lição, suponho, tal como não o faria um monge
medieval, que vê o dedo de Deus ou a tentação do Demônio em cada
fato trivial de sua vida e que é incapaz de imaginar o mundo, sequer
por um momento fugaz ou em seu menor recanto, como destituído de
uma referência a ele próprio.
Em sua hipnose, ela trouxe à baila algumas outras imagens
apavorantes (em Abbazia, por exemplo, via cabeças ensangüentadas
em cada onda do mar). Fi-la repetir as instruções que lhe dera
enquanto estava acordada.
15 de maio, |manhã.| — Ela dormira até as 8h30min da manhã, mas
depois ficara inquieta, tendo-me recebido com ligeiros sinais de seu
tique, dos estalidos e da inibição da fala. “Estou morta de medo”, disse
mais uma vez. Em resposta a uma pergunta, falou-me que a pensão
onde se encontravam suas filhas ficava no quarto andar de um prédio e
lá se chegava de elevador. Ontem havia insistido em que as filhas
usassem o elevador tanto para descer como para subir, e agora se
recriminava por isso, porque não se devia confiar inteiramente no
ascensor. O próprio dono da pensão tinha dito isso. Teria eu ouvido,
perguntou, a história da Condessa Sch., que encontrara a morte em
Roma num acidente dessa natureza? Por coincidência, conheço essa
pensão e sei que o elevador é propriedade particular do dono da
mesma; não me parece provável que esse homem, que chama uma
atenção especial para o elevador num anúncio, fosse ele próprio
advertir alguém contra sua utilização. Pareceu-me que teríamos aí uma
das paramnésias acarretadas pela angústia. Dei a minha opinião à Sra.
Emmy e consegui, sem nenhuma dificuldade, fazê-la rir da
improbabilidade de seus temores. Exatamente por essa razão, não
pude acreditar que esta fosse a causa da sua angústia e decidi
formular a pergunta a sua consciência hipnótica. Durante a massagem,
que hoje reiniciei após um intervalo de alguns dias, ela me contou uma
série de histórias sem ligação umas com as outras, que talvez tenham
sido reais — sobre um sapo que foi encontrado num porão, uma mãe
excêntrica quecuidava do filho idiota de maneira estranha, uma mulher
que foi trancada num hospício porque sofria de melancolia — e que
revelavam o tipo de recordações que lhe passavam pela cabeça
quando ela estava intranqüila. Depois de se livrar dessas histórias,
ficou muito animada. Descreveu a vida em sua propriedade e seus
contatos com homens preeminentes da Rússia teutônica e da
Alemanha setentrional e, na verdade, achei extremamente difícil
conciliar atividades desse tipo com o quadro de uma mulher tão
gravemente neurótica.
Assim, perguntei-lhe em sua hipnose por que ela estava tão
desassossegada esta manhã. Em vez de suas dúvidas sobre o
elevador, informou-me ter sentido medo de que sua menstruação
recomeçasse e tornasse a interferir na massagem.
Fiz então com que ela me contasse a história das dores na perna.
Começou da mesma forma que ontem |falando sobre haver cuidado do
irmão| e prosseguiu com uma longa série de exemplos de experiências,
alternadamenteaflitivas e irritantes, que tivera ao mesmo tempo que as
dores na perna e cujo efeito fora o de torná-las cada vez piores, até
mesmo a ponto de ela ficar com paralisia bilateral e perda de
sensibilidade nas pernas. O mesmo se aplicava às dores do braço.
Elas também surgiram enquanto a paciente cuidava de algum doente,
ao mesmo tempo que as cãibras no pescoço.”Quanto a estas, fiquei
sabendo apenas que se seguiram a alguns curiosos estados de
inquietude acompanhados de depressão, que já existiam antes.
Consistem num “aperto gelado” na nuca, juntamente com o surgimento
da rigidez e um frio doloroso em todas as extremidades da paciente,
incapacidade de falar e completa prostração. Duram de seis a doze
horas. Falharam minhas tentativas de demonstrar que esse complexo
de sintomas representava uma lembrança. Fiz-lhe algumas perguntas
com a finalidade de descobrir se seu irmão, enquanto a paciente o
assistia durante o delírio dele, alguma vez a agarrara pelo pescoço;
mas ela negou e disse não saber de onde provinham esses acessos.
Noite. — Ela estava muito animada e demonstrava grande senso de
humor. Contou-me, aliás, que o caso do elevador não era como me
havia relatado. O proprietário só dissera aquilo para dar uma desculpa
pelo fato de o elevador não ser utilizado para descer. Ela me fez um
grande número de perguntas que nada tinham de patológicas. Tem
sofrido de lancinantes dores no rosto, na mão junto ao polegar e na
perna. Fica rígida e sente dores no rosto se ficar sentada sem se
mexer ou se olhar fixamente para algum ponto por um período
considerável de tempo. Quando levanta qualquer coisa pesada, isso
lhe causa dores no braço. — O exame da perna direita revelou
sensibilidade relativamente boa na coxa, alto grau de insensibilidade
na parte inferior da perna e no pé e menor na região das nádegas e do
quadril.
Sob hipnose, ela me informou que ocasionalmente ainda tem idéias
assustadoras, como a de que algo pode acontecer com suas filhas,
que elas poderiam adoecer ou morrer, ou que o irmão dela, que está
agora em lua-de-mel, poderia sofrer um acidente, ou que a esposa
dele poderia morrer (porque os casamentos de todos os seus irmãos e
irmãs tinham sido muito curtos). Não consegui arrancar da paciente
quaisquer outros temores. Proibi-a de sentir qualquer necessidade de
se assustar quando não houvesse nenhum motivo para isso.
Prometeu-me desistir disso “porque o senhor está pedindo”. Dei-lhe
outras sugestões quanto às dores, à perna, etc.
16 de maio, |manhã|. — Ela havia dormindo bem. Queixava-se ainda
de dores no rosto, braços e pernas. Estava muito alegre. Sua hipnose
não rendeu nada. Apliquei um pincel farádico em sua perna
insensibilizada.
Noite. — Sobressaltou-se assim que entrei: “Estou muito contente com
sua vinda”, disse, “estou muito assustada”. Ao mesmo tempo, dava
todos os sinais de terror, juntamente com a gagueira e o tique. Primeiro
fiz com queme contasse, em estado de vigília, o que tinha acontecido.
Retorcendo os dedos e estendendo as mãos para a frente, pintou um
quadro nítido de seu terror ao dizer: “Um camundongo enorme passou
de repente sobre minha mão no jardim e desapareceu num segundo;
as coisas ficaram deslizando para trás e para a frente.” (Uma ilusão do
jogo de sombras?) “Um bando inteiro de ratinhos estava sentado nas
árvores. — O senhor não está ouvindo os cavalos batendo com as
patas no circo? — Há um homem gemendo no quarto ao lado; deve
estar sentindo dores depois de sua operação. — Será que estou em
Rügen? Eu tinha uma estufa como essa lá?” Ela estava confusa com a
multidão de pensamentos que se entrecruzavam em seu cérebro e
com o esforço que fazia para separá-los do ambiente que a cercava de
fato. Quando lhe formulei perguntas sobre coisas atuais, tais como se
as filhas estavam aqui, não soube dar nenhuma resposta.
Tentei desembaraçar por meio da hipnose a confusão que lhe ia pela
mente. Perguntei-lhe o que era que a assustava. Repetiu a história do
camundongo, com todos os sinais de terror, e acrescentou que,
quando descia os degraus, viu um animal horrível deitado, que
desapareceu imediatamente. Disse-lhe que isso eram alucinações e
lhe instruí para que não se assustasse com os camundongos; só os
bêbados é que os viam (ela detestava bêbados). Contei-lhe a história
do Bispo Hatto. Ela também a conhecia, e ouviu-a horrorizada. —
“Como foi que a senhora veio a pensar no circo?” perguntei-lhe então.
Disse-me que tinha ouvido claramente os cavalos batendo com as
patas nos estábulos ali perto e acabando presos nos arreios, o que
poderia machucá-los. Quando isso acontecia, Johann costumava sair
para desamarrá-los. Neguei que houvesse estábulos por perto ou que
alguém no quarto contíguo tivesse gemido. Ela sabia onde estava?
Respondeu que agora sabia, mas antes pensara estar em Rügen.
Perguntei-lhe como tinha chegado a essa lembrança. Tinham estado
conversando no jardim, disse, sobre como fazia calor numa parte dele,
e imediatamente lhe viera a idéia do terraço sem sombra em Rügen.
Muito bem, perguntei-lhe, quais eram as recordações tristes que
guardava de sua estada em Rügen? Ela citou uma série delas. Lá
sentira as dores mais terríveis nas pernas e nos braços; quando saía
em excursões, fora várias vezes apanhada por um nevoeiro e se
perdera; duas vezes, quando passeava, um touro tinha corrido atrás
dela, e assim por diante. Como é quando tinha tido essa crise hoje? —
Como (respondeu)? Escrevera grande número de cartas; tinha levado
três horas e isso lhe deixara a cabeça confusa. — Pude presumir, por
conseguinte, que seu surto delirante foraprovocado pelo cansaço e que
seu conteúdo fora determinado por associações tais como a do lugar
sem sombra do jardim, etc. Repeti todos os conselhos que tinha o
hábito de lhe dar e deixei-a recomposta para dormir.
17 de maio, |manhã|. — Ela passou a noite muito bem. No banho de
farelo que tomou hoje, deu alguns gritos, por ter confundido o farelo
com vermes. Fui informado disso pela enfermeira. A própria paciente
relutou em falar-me a respeito. Estava quase exageradamente alegre,
mas interrompia-se com exclamações de horror e asco e fazia caretas
que expressavam terror. Também gaguejou mais do que nos últimos
dias. Contou-me haver sonhado, na noite passada, que estava
caminhando sobre uma porção de sanguessugas. Na noite anterior
tinha tido sonhos horríveis. Tivera que amortalhar um grande número
de defuntos e colocá-los em caixões, mas não os tampava.
(Obviamente, uma lembrança do marido.) Disse-me ainda que, no
decurso de sua vida, tivera inúmeros incidentes com animais. O pior
tinha sido com um morcego que ficara preso em seu guarda-roupa, de
modo que ela se precipitara para fora do quarto sem nenhuma roupa.
Para curá-la desse medo, o irmão lhe dera um belo broche com a
forma de um morcego, mas ela nunca pudera usá-lo.
Sob hipnose, explicou-me que seu medo de vermes provinha de ter
recebido como presente, certa vez, uma linda almofada para alfinetes;
na manhã seguinte, porém, quando quis usá-la, uma porção de
vermezinhos saíram da almofada, que tinha sido enchida com farelo
que não estava bem seco. (Uma alucinação? Talvez um fato real.)
Pedi-lhe que me contasse outras histórias de animais. Certa feita,
disse ela, quando passeava com o marido num parque de São
Petersburgo, todo o caminho que levava a um pequeno lago estava
recoberto de sapos, de modo que foram obrigados a voltar. Houve
épocas em que ela ficara impossibilitada de estender a mão para
qualquer pessoa, temendo que a mão se transformasse num animal
terrível, como tantas vezes tinha acontecido. Tentei libertá-la de seu
medo de animais designando-os um por um e perguntando-lhe se tinha
medo deles. Em alguns casos, respondeu “não”; em outros, “não devo
ter medo deles”. Perguntei-lhe por que havia gaguejado e se mexido
tanto ontem. Respondeu que sempre fazia isso quando estava muito
assustada. — Mas por que tinha estado tãoassustada ontem? —
Porque todas as espécies de pensamentos opressivos lhe haviam
passado pela cabeça no jardim: em particular, a idéia de como poderia
impedir que algo se acumulasse de novo dentro dela depois que seu
tratamento terminasse. Repeti as três razões que eu já lhe tinha dado
para sentir-se reassegurada: (1) que ela se tornara mais sadia e mais
capaz de ter resistência, (2) que adquiriria o hábito de contar seus
pensamentos a alguém com quem mantivesse estreitas relações, e (3)
que, daí por diante, consideraria indiferente um grande número de
coisas que até então a haviam oprimido. Ela prosseguiu dizendo que
também estivera preocupada porque não me havia agradecido pela
visita que eu lhe fizera ao fim do dia, e temia que eu perdesse a
paciência com ela em vista de sua recente recaída. Ficara muito
perturbada e alarmada porque o médico interno perguntara a um
senhor no jardim se ele agora se sentia capaz de enfrentar sua
operação. A esposa estava sentada ao lado dele, e ela (a paciente)
não pôde deixar de pensar que talvez aquela fosse a última noite do
pobre homem. Após esta última explicação, sua depressão pareceu
dissipar-se.
Noite. — Ela estava muito animada e satisfeita. A hipnose não
produziu absolutamente nada. Dediquei-me a cuidar de suas dores
musculares e restaurar-lhe a sensibilidade da perna direita. Isso foi
conseguido com muita facilidade na hipnose, mas sua sensibilidade
restaurada tornou a perder-se parcialmente quando ela despertou.
Antes de eu deixá-la, externou seu espanto de que há tanto tempo não
tivesse cãibras no pescoço, já que elas costumavam sobrevir antes de
cada tempestade.
18 de maio. — Há anos não dormia tão bem como na noite passada.
Depois do banho, porém, queixou-se de frio na nuca, contrações e
dores no rosto, nas mãos e nos pés. Suas feições estavam tensas, e
os punhos, cerrados. A hipnose não revelou qualquer conteúdo
psíquico subjacente às cãibras no pescoço. Melhorei-as através de
massagens, depois que ela havia despertado.
Espero que este resumo do histórico das três primeiras semanas do
tratamento seja suficiente para fornecer um quadro nítido do estado da
paciente, da natureza de meus esforços terapêuticos e da medida de
seu êxito. Passarei agora a ampliar o relato do caso.
O delírio que acabo de descrever foi também a última perturbação
importante no estado da Sra. Emmy von N. Visto que eu não tomava a
iniciativa de procurar os sintomas e sua base, mas esperava que algo
surgisse na paciente ou que ela me revelasse algum pensamento que
lhe estivesse causando angústia, suas hipnoses logo deixaram de
produzir material. Assim, passei a usá-las principalmente com a
finalidade de proporcionar-lhe máximas que ficassem sempre em sua
mente e que a protegessem contra recaídas em estados semelhantes
quando voltasse para casa. Naquela época, eu estava sob total
influência do livro de Bernheim sobre sugestão e previa mais
resultados dessas medidas didáticas do que o faria hoje. O estado de
minha paciente melhorou tão depressa que ela logo me assegurou que
não se sentia tão bem desde a morte do marido. Após um tratamento
que durou ao todo sete semanas, permiti-lhe que voltasse para sua
casa no Báltico.
Não fui eu, mas o Dr. Breuer, quem recebeu notícias dela cerca de
setemeses depois. Seu estado de saúde continuara bom durante
vários meses, mas depois havia voltado a piorar como resultado de um
novo choque psíquico. Sua filha mais velha, durante a primeira estada
de ambas em Viena, já havia tido, como a mãe, cãibras no pescoço e
ligeiros estados histéricos; em particular, porém, sofrera de dores ao
andar, em virtude de uma retroversão do útero. A conselho meu,
procurara para tratamento o Dr. N., um de nossos mais famosos
ginecologistas, que recolocara o útero em sua posição por meio de
massagens, havendo ela ficado livre de problemas durante vários
meses. Seus problemas reapareceram, contudo, enquanto as duas
estavam em casa, e a mãe chamou um ginecologista da cidade
universitária vizinha. Ele receitou para a moça um tratamento local e
geral que, todavia, acarretou uma grave doença nervosa (ela estava,
na época, com dezessete anos). É provável que isso já fosse um
indício da sua predisposição patológica que iria manifestar-se um ano
depois numa alteração do caráter. |Ver em [1].| A mãe, que havia
entregue a moça às mãos dos médicos com sua habitual mistura de
docilidade e desconfiança, foi dominada pelas mais violentas
auto-recriminações após o infeliz resultado do tratamento. Uma
associação de idéias que eu não tinha investigado levou-a à conclusão
de que eu e o Dr. N. éramos os responsáveis pela doença da filha,
porque havíamos feito pouco caso da gravidade de seu estado. Por um
ato de vontade, por assim dizer, ela desfez os efeitos do meu
tratamento e de imediato recaiu nos estados dos quais eu a havia
libertado. Um ilustre médico de suas redondezas, a quem procurou
para obter orientação, juntamente com o Dr. Breuer, que se
correspondia com ela, conseguiram convencê-la da inocência dos dois
alvos de suas acusações; mas, mesmo depois que isso se dissipou, a
aversão formada contra mim nessa época permaneceu como um
resíduo histérico, e ela declarou que lhe era impossível reiniciar o
tratamento comigo. A conselho da mesma autoridade médica, recorreu
à ajuda de um sanatório na Alemanha setentrional. Por desejo de
Breuer, expliquei ao médico encarregado as modificações da terapia
hipnótica que eu julgara eficazes no caso dessa paciente.
Essa tentativa de transferência falhou completamente. Desde o início
ela parece ter mostrado uma disposição contrária ao médico.
Esgotava-se na resistência ao que quer que fosse feito por ela. Ficou
deprimida, perdeu o sono e o apetite e só se recuperou depois que
uma amiga sua, que foi visitá-la no sanatório, na verdade a seqüestrou
às escondidas e tratou-a em sua casa. Pouco tempo depois,
exatamente um ano após seu primeiro encontro comigo, ela estava de
novo em Viena e mais uma vez se entregou a meus cuidados.
Achei-a muito melhor do que esperava pelos relatos que recebera por
carta. Podia movimentar-se e estava livre da angústia, e grande parte
do que eu conseguira um ano antes ainda se mantinha. Sua principal
queixa era com relação a freqüentes estados de confusão —
“tempestades na cabeça”, como as denominava. Além disso, sofria de
insônia e muitas vezes ficava em prantos por horas a fio. Sentia-se
triste numa determinada hora do dia (cinco horas). Esse era o horário
habitual em que, no inverno, pudera visitar a filha na casa de saúde.
Gaguejava e emitia o estalido com grande freqüência e esfregava as
mãos como se estivesse enfurecida, e quando lhe perguntei se estava
vendo muitos animais, apenas respondeu: “Oh, fique quieto!”
À minha primeira tentativa de induzir a hipnose, cerrou os punhos e
exclamou: “Não deixarei que me apliquem nenhuma injeção
antipirética; prefiro ter minhas dores! Não gosto do Dr. R.; ele me é
antipático.” Compreendi que ela estava presa à lembrança de ser
hipnotizada no sanatório, e acalmou-se tão logo eu a trouxe de volta à
situação atual.
Logo no início do tratamento |reiniciado| tive uma experiência instrutiva.
Eu lhe havia perguntado há quanto tempo a gagueira voltara, e ela
respondera de forma hesitante (sob hipnose) que tinha sido desde um
choque que experimentara em D — durante o inverno. Um garçom do
hotel em que estava hospedada havia se escondido em seu quarto de
dormir. Na escuridão, disse ela, confundira o objeto com um sobretudo
e estendera a mão para apanhá-lo, tendo o homem de repente “dado
um pulo para o alto”. Eliminei essa imagem mental e, de fato, a partir
daquele momento, ela deixou de gaguejar visivelmente, quer na
hipnose, quer na vida de vigília. Não me recordo do que foi que me
levou a testar o êxito da minha sugestão, mas quando voltei na mesma
noite, perguntei-lhe, num tom aparentemente inocente, como eu
poderia trancar a porta quando fosse embora (quando ela estivesse
deitada dormindo), de modo que ninguém pudesse entrar furtivamente
no quarto. Para meu assombro, ela levou um susto horrível e começou
a rilhar os dentes e esfregar as mãos. Revelou que tivera um choque
violento desse tipo em D —, mas não consegui persuadi-la a me contar
a história. Percebi que tinha em mente a mesma história que me narrar
aquela manhã, durante a hipnose, e que eu julgara haver apagado. Em
sua hipnose seguinte, contou-me a história com maior riqueza de
detalhes e maior verossimilhança. Agitada, estivera andando pelo
corredor de um lado para o outro e encontrara aberta a porta do quarto
da empregada. Tentou entrar e sentar-se. A empregada lhe bloqueou o
caminho, mas a paciente não se deixou deter e entrou, e foi então que
viucontra a parede o objeto escuro que veio a se revelar como sendo
um homem. Evidentemente, o fator erótico dessa pequena aventura é
que a levara a fazer um relato falso da mesma. Isso me ensinou que
uma história incompleta sob hipnose não produz nenhum efeito
terapêutico. Acostumei-me a considerar incompleta qualquer história
que não trouxesse nenhuma melhora, e aos poucos tornei-me capaz
de ler nos rostos dos pacientes se eles não estariam ocultando uma
parte essencial de suas confissões.
O trabalho que tive de levar a efeito com ela nessa ocasião consistiu
em lidar, por meio da hipnose, com as impressões desagradáveis que
ela recebera durante o tratamento da filha e quando de sua própria
estada no sanatório. Ela estava cheia de raiva, reprimida, pelo médico
que a tinha obrigado, sob hipnose, a soletrar a palavra “s…a…p…o” e
me fez prometer que jamais a faria dizer isso. A esse respeito,
aventurei-me a fazer uma brincadeira prática numa de minhas
sugestões a ela. Este foi o único abuso da hipnose — aliás um abuso
muito inocente — cuja culpa para com essa paciente tenho de
confessar. Assegurei-lhe que sua estada no sanatório em “-tal” |“vale”|
se tornaria tão remota para ela que nem sequer conseguiria lembrar-se
do nome, e sempre que quisesse referir-se a ele hesitaria entre “-berg”
|“colina”|, “-tal”, “-wald” |“bosque”|, e assim por diante. Isso
efetivamente aconteceu, e logo o único sinal remanescente de sua
inibição da fala foi sua incerteza sobre esse nome. Por fim, após uma
observação do Dr. Breuer, aliviei-a dessa paramnésia compulsiva.
Travei com o que ela descrevia como “as tempestades na cabeça” uma
luta mais longa do que com os resíduos dessas experiências. Quando
a vi pela primeira vez num desses estados, estava deitada no sofá com
as feições transtornadas e todo o corpo em permanente agitação.
Ficava a pressionar a testa com as mãos e a chamar, em tons de
súplica e desânimo, o nome “Emmy”, que era o de sua filha mais velha
e também o seu. Sob hipnose, confessou-me que esse estado era uma
repetição dos numerosos acessos de desespero pelos quais se vira
dominada durante o tratamento da filha, quando, depois de passar
horas tentando descobrir algum meio de corrigir seus efeitos negativos,
não se lhe apresentava nenhuma saída. Quando, em tais ocasiões,
sentia que seus pensamentos ficavam confusos, adotava o hábito de
chamar pelo nome da filha, de modo que pudesse ajudá-la a
desanuviar a cabeça; e isso porque, durante o período em que a
doença da filha lhe estava impondo novos deveres e ela sentia que seu
próprio estado nervoso mais uma vez começava a dominá-la, ela
determinou que o que quer que tivesse a ver com a moça devia ficar
isento de confusão, por mais caótico que tudo o mais pudesse estar
em sua cabeça.
No decurso de algumas semanas conseguimos eliminar também essas
lembranças, e a Sra. Emmy permaneceu sob minha observação por
mais algum tempo, sentindo-se perfeitamente bem. Ao final da sua
estada aconteceu algo que passarei a descrever com pormenores,
visto que lança a mais intensa luz sobre o caráter da paciente e a
maneira pela qual seus estados se produziam.
Visitei-a um belo dia na hora do almoço e surpreendi-a no ato de atirar
no jardim algo embrulhado em papel, que foi apanhado pelos filhos do
porteiro. Em resposta à minha pergunta, ela admitiu que era o seu
pudim (seco) e que a mesma coisa acontecia todos os dias. Isso me
levou a investigar o que sobrava dos outros pratos e verifiquei que
restava mais da metade da comida. Quando lhe perguntei por que
comia tão pouco, respondeu que não tinha o hábito de comer mais e
que passava mal se o fizesse; a Sra. Emmy tinha a mesma
constituição do pai, que também tinha o hábito de comer pouco.
Quando lhe perguntei o que bebia, disse-me que só podia tolerar
líquidos espessos, como leite, café ou chocolate; beber água, comum
ou mineral, lhe perturbava a digestão. Isso tinha todos os sinais de
uma escolha neurótica. Tirei uma amostra de sua urina e verifiquei que
estava altamente concentrada e sobrecarregada de uratos.
Julguei portanto aconselhável recomendar-lhe que bebesse mais e
resolvi também aumentar a quantidade de seus alimentos. É verdade
que ela de modo algum parecia magra a ponto de chamar atenção,
mas mesmo assim achei que valeria a pena fazê-la comer mais um
pouco. Quando, em minha visita seguinte, ordenei-lhe que ingerisse
água alcalina e proibi-a de lidar com o pudim da maneira como fazia,
demonstrou agitação considerável. “Farei isso porque o senhor está
pedindo”, disse “mas posso dizer-lhe de antemão que dará mau
resultado, porque é contrário à minha natureza, e o mesmo aconteceu
com meu pai”. Quando lhe perguntei sob hipnose por que não podia
comer mais nem beber água, respondeu num tom mal-humorado: “Não
sei.” No dia seguinte, a enfermeira informou que ela havia comido tudo
o que lhe fora servido e bebera um copo de água alcalina. Mas
encontrei a própria Sra. Emmy numa profunda depressão e num
estado de humor muito irritado. Queixou-se de sentir dores gástricas
muito violentas. “Eu lhe disse o que aconteceria”, falou. “Sacrificamos
todos os bons resultados pelos quais vimos lutando há tanto tempo.
Estraguei minha digestão, como sempre acontece quando como mais
ou bebo água, e agora terei de morrer de fome por cinco dias a uma
semana antes que possa tolerar qualquer coisa.” Assegurei-lhe que
não havia nenhuma necessidade de ela morrer de fome e que era
impossível estragar a digestão dessa forma: suas dores se
deviamsomente à angústia em relação a comer e beber. Ficou claro
que essa explicação minha não causou nela a mais leve impressão,
pois quando, logo depois, tentei fazê-la dormir, pela primeira vez não
consegui provocar a hipnose; e o olhar furioso que ela me dirigiu
convenceu-me de que estava em franca rebelião e de que a situação
era muito grave. Desisti de tentar hipnotizá-la e anunciei que lhe daria
vinte e quatro horas para pensar bem e aceitar a opinião de que suas
dores gástricas provinham apenas de seu medo. No fim desse período,
eu lhe perguntaria se ainda era de opinião que sua digestão podia ser
estragada por uma semana pela ingestão de um copo de água mineral
e de uma modesta refeição; se ela dissesse que sim, eu lhe pediria
que fosse embora. Essa pequena cena apresentava um acentuado
contraste com nossas relações normais, que eram as mais amistosas.
Encontrei-a vinte e quatro horas depois, dócil e submissa. Quando lhe
perguntei o que pensava sobre a origem de suas dores gástricas, ela
respondeu, porque era incapaz de subterfúgios: “Penso que provêm da
minha angústia, mas só porque o senhor é dessa opinião.” Em
seguida, coloquei-a em hipnose e perguntei mais uma vez: “Por que a
senhora não consegue comer mais?”
A resposta veio prontamente e consistiu, mais uma vez, numa série de
razões dispostas em ordem cronológica a partir de seu acervo de
lembranças: “Estou pensando em como, quando eu era criança, muitas
vezes acontecia que, por malcriação, recusava-me a comer carne ao
jantar. Minha mãe era muito severa a esse respeito e, sob a ameaça
de um castigo exemplar, eu era obrigada, duas horas depois, a comer
a carne, que era deixada no mesmo prato. A essa altura a carne já
estava muito fria e a gordura, muito dura” (ela demonstrou sua repulsa)
“…Ainda posso ver o garfo na minha frente… um de seus dentes era
meio torto. Sempre que me sento à mesa vejo os pratos diante de mim,
com a carne e a gordura frias. E me lembro como, muitos anos depois,
morei com meu irmão, que era oficial e teve aquela doença horrível. Eu
sabia que era contagiosa e tinha um medo terrível de apanhar sua faca
e seu garfo por engano” (estremeceu) “…e apesar disso, fazia minhas
refeições com ele, para que ninguém soubesse que ele estava doente.
E como, logo depois disso, cuidei de meu outro irmão quando esteve
muito doente de tuberculose. Sentávamos ao lado de sua cama, e a
escarradeira ficava sempre sobre a mesa, aberta” (estremeceu de
novo) “…ele tinha o hábito de escarrar por sobre os pratos na
escarradeira. Isso sempre me provocava muita náusea, mas eu não
podia demonstrá-la, temendo magoar os sentimentos dele. E essas
escarradeiras ainda estão na mesa sempre que faço uma refeição, e
ainda me causam náuseas.” Naturalmente, removi com cuidado todo
esse conjunto defomentadores da repulsa e então lhe perguntei por
que ela não conseguia beber água. Quando tinha dezessete anos,
respondeu, a família havia passado alguns meses em Munique e
quase todos os membros haviam contraído catarro gástrico, graças à
água potável de má qualidade. No caso dos outros, o distúrbio foi logo
aliviado pelos cuidados médicos, mas com ela havia persistido.
Tampouco melhorara com a água mineral que lhe fora recomendada.
Quando o médico a receitou, ela logo pensou: “isso não vai adiantar
nada”. A partir daquela ocasião, essa intolerância pela água comum e
pela água mineral repetiu-se inúmeras vezes.
O efeito terapêutico dessas descobertas sob hipnose foi imediato e
duradouro. Ela não passou fome durante uma semana, mas logo no
dia seguinte comeu e bebeu sem nenhuma dificuldade. Dois meses
depois, informou-me numa carta: “Estou comendo muitíssimo bem e
ganhei bastante peso. Já bebi quarenta garrafas de água. O senhor
acha que devo continuar?”
Revi a Sra. von N. na primavera do ano seguinte em sua propriedade
rural perto de D—. Nessa ocasião, sua filha mais velha, por cujo nome
ela havia chamado durante suas “tempestades na cabeça”, entrou
numa fase de desenvolvimento anormal. Exibia ambições
desenfreadas, inteiramente desproporcionais a seus escassos dons, e
tornou-se desobediente e até violenta para com a mãe. Eu ainda
gozava da confiança da Sra. Emmy e fui chamado para dar minha
opinião sobre o estado da moça. Tive uma impressão desfavorável da
alteração psicológica que se processara na jovem e, para chegar a um
prognóstico, também tive que levar em conta o fato de que todos os
seus meio-irmãos e irmãs (os filhos do primeiro matrimônio do Sr. von
N.) tinham sucumbido à paranóia. Também na família de sua mãe não
faltava uma hereditariedade neuropática, embora nenhum de seus
parentes mais próximos houvesse desenvolvido psicose crônica.
Comuniquei à Sra. von N., sem qualquer reserva, a opinião que me
havia pedido, e ela a recebeu com calma e compreensão. Ela havia
engordado, e sua saúde era florescente. Tinha-se sentido
relativamente bem durante os nove meses decorridos desde o término
de seu último tratamento. Fora perturbada apenas por ligeiras cãibras
no pescoço e outros males de pequena monta. Nos vários dias que
passei em sua casa vim a compreender, pela primeira vez, toda a
extensão de seus deveres, ocupações e interesses intelectuais.
Conheci também o médico da família, que não tinha muitas queixas da
paciente: logo, até certo ponto, ela fizera as pazes com a profissão
médica.
Em inúmeros aspectos, portanto, ela estava mais saudável e mais
apta; porém, apesar de todas as minhas sugestões de melhora,
verificara-se pouca alteração em seu caráter fundamental. Ela não
parecia ter aceito a existênciade uma categoria de “coisas sem
importância”. Sua inclinação para atormentar-se era muito pouco
menor do que na época do tratamento, e tampouco sua disposição
histérica estivera estagnada durante esse bom período. Ela se
queixava, por exemplo, de uma impossibilidade de fazer viagens de
trem, de qualquer duração. Isso aparecera nos últimos meses. Uma
tentativa necessariamente apressada de aliviá-la dessa dificuldade
resultou apenas na produção de diversas impressões desagradáveis e
insignificantes deixadas por algumas viagens recentes que ela fizera a
D— e suas imediações. Entretanto, ela parecia relutar em ser
comunicativa sob hipnose, e comecei mesmo a suspeitar de que
estava a ponto de se afastar mais uma vez da minha influência e de
que a finalidade secreta de sua inibição em relação aos trens era
impedir que fizesse uma nova viagem a Viena.
Foi também durante esses dias que ela formulou suas queixas a
respeito de lacunas na memória, “em especial quanto aos fatos mais
importantes” |ver em [1]|, donde concluí que o trabalho que eu
executara dois anos antes tinha sido inteiramente eficaz e duradouro.
— Um dia, ela passeava comigo por uma avenida que se estendia da
casa até uma enseada no mar e me arrisquei a perguntar se o caminho
costumava ficar infestado de sapos. Como resposta, ela me lançou um
olhar de censura, embora não acompanhado de sinais de horror;
ampliou isso um momento depois, com as palavras “mas os daqui são
reais”. Durante a hipnose, que induzi para lidar com sua inibição a
respeito dos trens, ela própria pareceu insatisfeita com as respostas
que me deu e externou o temor de que, no futuro, era provável que
fosse menos obediente sob hipnose do que antes. Decidi-me a
convencê-la do contrário. Escrevi algumas palavras num pedaço de
papel, entreguei-o a ela e disse: “No almoço de hoje a senhora me
servirá um copo de vinho tinto, da mesma forma que ontem. Quando
eu levar o copo aos lábios, a senhora dirá: ‘Oh, por favor, sirva-me
também um copo de vinho’, e quando eu estender a mão para apanhar
a garrafa, dirá: ‘Não, obrigada; afinal, acho que não vou querer’. A
senhora então porá a mão em sua bolsa, retirará dela um pedaço de
papel e encontrará essas mesmas palavras escritas nele”. Isso foi pela
manhã. Algumas horas depois, o pequeno episódio ocorreu
exatamente como eu o havia predisposto, e de maneira tão natural que
nenhuma das muitas pessoas presentes notou qualquer coisa. Quando
me pediu o vinho, ela revelou visíveis sinais de uma luta interna — pois
nunca bebia vinho — e depois de haver recusado a bebida com
evidente alívio, pôs a mão na bolsa e retirou o pedaço de papel em que
figuravam as últimas palavras que havia pronunciado. Balançou a
cabeça e olhou-me com assombro.
Após minha visita em maio de 1890, minhas notícias da Sra. von
N.foram ficando cada vez mais escassas. Soube indiretamente que o
estado deplorável da filha, que lhe causava todas as espécies de
aflições e agitações, acabou por minar-lhe a saúde. Por fim, no verão
de 1893, recebi dela um bilhete pedindo-me permissão para ser
hipnotizada por outro médico, visto que voltara a ficar doente e não
podia vir a Viena. A princípio, não compreendi por que minha
permissão era necessária, até me recordar que, em 1890, por sua
própria solicitação, eu a havia protegido de ser hipnotizada por
qualquer outra pessoa, para que não houvesse nenhum risco de ela
ficar aflita ao se colocar sob o controle de algum médico que lhe fosse
antipático, tal como acontecera em -berg (-tal, -wald). Por conseguinte,
renunciei por escrito a minha prerrogativa exclusiva.
DISCUSSÃO
A menos que tenhamos em primeiro lugar chegado a um acordo
completo sobre a terminologia em jogo, não é fácil resolver se um caso
particular deve ser considerado como sendo de histeria ou de alguma
outra neurose (refiro-me aqui às neuroses que não são de tipo
puramente neurastênico); e ainda temos de aguardar a mão
orientadora que fixará os marcos fronteiriços na região das neuroses
mistas, que ocorrem comumente, e que trará à tona os aspectos
essenciais para a caracterização destas. Por conseguinte, se ainda
estivermos acostumados a diagnosticar uma histeria, no sentido mais
estrito do termo, por sua semelhança com casos típicos já conhecidos,
dificilmente poderemos questionar o fato de que o caso da Sra. Emmy
von N. era de histeria. O caráter brando de seus delírios e alucinações
(enquanto suas outras atividades mentais permaneciam intactas), a
modificação de sua personalidade e de seu acervo de lembranças
quando se encontrava num estado de sonambulismo artificial, a
anestesia em sua perna dolorida, certos dados revelados em sua
anamnese, sua nevralgia ovariana, etc. não admitem dúvida quanto à
natureza histérica da doença, ou, pelo menos, da paciente. Se alguma
questão pode ser levantada, é apenas graças a um aspecto particular
do caso, que também dá oportunidade para um comentário de validade
geral. Como explicamos na “Comunicação Preliminar” que aparece no
início deste volume, consideramos os sintomas histéricos como efeitos
e resíduos de excitações que atuaram sobre o sistema nervoso como
traumas. Não há permanência de resíduos dessa natureza quando a
excitação original é descarregada por ab-reação ou pela atividade do
pensamento. Não é mais possível, a esta altura, evitar a introdução da
idéia de quantidades (ainda quenão mensuráveis). Devemos
considerar o processo como se uma soma de excitação, atuando sobre
o sistema nervoso, se transformasse em sintomas crônicos, na medida
em que não fosse empregada em ações externas na proporção de sua
quantidade. Ora, estamos habituados a verificar que, na histeria, uma
parte considerável dessa “soma de excitação” do trauma é
transformada em sintomas puramente somáticos. Foi essa
característica da histeria que por tanto tempo atrapalhou seu
reconhecimento como um distúrbio psíquico.
Se, para sermos breves, adotarmos o termo “conversão” para designar
a transformação da excitação psíquica em sintomas somáticos
crônicos, que é tão característica da histeria, podemos então dizer que
o caso da Sra. Emmy von N. apresentava apenas uma pequena
quantidade de conversão. A excitação, que era originariamente
psíquica, permaneceu em sua maior parte nessa esfera, e é fácil
compreender que isso lhe confere uma semelhança com as outras
neuroses, não histéricas. Existem casos de histeria em que todo o
excedente da estimulação sofre conversão, de modo que os sintomas
somáticos da histeria se intrometem no que parece ser uma
consciência inteiramente normal. A transformação incompleta, no
entanto, é mais comum, de modo que pelo menos parte do afeto que
acompanha o trauma persiste na consciência como um componente do
estado emocional do indivíduo.
Os sintomas psíquicos em nosso atual caso de histeria, em que havia
muito pouca conversão, podem ser divididos em alterações do humor
(angústia, depressão melancólica), fobias e abulias (inibições da
vontade). As duas últimas classes de perturbação psíquica são
consideradas pela escola francesa de psiquiatria como estigmas da
degenerescência neurótica, mas em nosso caso verifica-se que foram
suficientemente determinadas por experiências traumáticas. Essas
fobias e abulias eram, na sua maior parte, de origem traumática, como
mostrarei com detalhes.
Algumas das fobias da paciente, é verdade, correspondiam às fobias
primárias dos seres humanos, e especialmente dos neuropatas — em
particular, por exemplo, seu medo de animais (cobras e sapos, bem
como todos os vermes de que Mefistófeles se gabava de ser o senhor),
de tempestades e assim por diante. Mas também essas fobias se
firmaram mais graças a acontecimentos traumáticos. Assim, seu medo
dos sapos foi fortalecido pela experiência, nos primeiros anos de
infância, de um de seus irmãos lhe ter atirado um sapo morto, o que
levou a seu primeiro acesso de espasmos histéricos |ver em [1]|; e de
modo semelhante, seu medo de tempestades foi provocado pelo
choque que deu lugar a seu estalido característico | ver em [1]|, e o
medo de nevoeiros pelo passeio na Ilha de Rügen |ver em [1]|. Não
obstante, neste grupo o medo primário — ou talvez se pudesse dizer o
medo instintivo — (considerado como um estigma psíquico)
desempenha o papel preponderante.
As outras fobias, mais específicas, também foram explicadas por
acontecimentos bem determinados. Seu temor de choques
inesperados e súbitos era conseqüência da terrível impressão que teve
ao ver o marido, que parecia estar gozando de ótima saúde, sucumbir
a um ataque cardíaco diante de seus próprios olhos. Seu medo dos
estranhos e das pessoas em geral revelou-se originário da época em
que estava sendo perseguida pela família |do marido| e tendia a ver um
agente deles em cada estranho, e de quando lhe pareceu provável que
os estranhos soubessem das coisas que estavam sendo espalhadas
por toda parte a respeito dela, por escrito e verbalmente |ver em
[1]-[2]|. Seu medo dos hospícios e de seus ocupantes remontava a
toda uma série de acontecimentos tristes ocorridos em sua família e às
histórias despejadas em seus ouvidos atentos por uma empregada
estúpida |ver em [1]|. Independentemente disso, essa fobia era
sustentada, de um lado, pelo horror primário e instintivo que as
pessoas sadias têm à loucura, e de outro, pelo medo sentido por ela,
não menos do que por todos os neuróticos, de que ela mesma viesse a
enlouquecer. Seu medo altamente específico de que houvesse alguém
de pé atrás dela |ver em [1]| foi determinado por diversas experiências
apavorantes na mocidade e mais tarde. Desde o episódio do hotel |ver
em [1]|, que lhe foi especialmente aflitivo por causa de suas
implicações eróticas, seu medo de que um estranho se esgueirasse
para seu quarto foi muito acentuado. Por fim, seu medo de ser
enterrada viva, que partilhava com tantos neuropatas, era inteiramente
explicado por sua crença de que o marido não estava morto quando
seu corpo foi levado — crença esta que expressava de modo tão
comovente sua incapacidade de aceitar o fato de que sua vida com o
homem a quem amava chegara a um fim súbito. Na minha opinião,
contudo,todos esses fatores psíquicos embora possam responder pela
escolha dessas fobias, não podem explicar-lhe a persistência. É
necessário, julgo eu, acrescentar um fator neurótico para explicar sua
persistência — o fato de que a paciente vinha vivendo há anos em
estado de abstinência sexual. Tais circunstâncias se acham entre as
causas mais freqüentes de uma tendência à angústia.
As abulias de nossa paciente (inibições da vontade, incapacidade de
agir) admitem ainda menos que as fobias sejam consideradas como
estigmas psíquicos causados por uma limitação geral da capacidade.
Pelo contrário, a análise hipnótica do caso tornou claro que suas
abulias eram determinadas por um duplo mecanismo psíquico — o
qual, no fundo, era um só. Em primeiro lugar, uma abulia pode ser
simples conseqüência de uma fobia. Isso ocorre quando a fobia se
acha ligada a uma ação do próprio sujeito, e não a uma expectativa |de
um fato externo| — por exemplo, em nosso caso atual, o medo de sair
ou de se relacionar com as pessoas, em contraste com o medo de
alguém se esgueirar para dentro do quarto. Aqui, a inibição da vontade
é causada pela angústia concomitante à realização da ação. Seria
errado considerar tais espécies de abulias como sintomas distintos das
fobias correspondentes, embora se deva admitir que essas fobias
podem existir (contanto que não sejam graves demais) sem produzir
abulias. A segunda classe de abulias depende da presença de
associações carregadas de afeto e não resolvidas que se oponham à
vinculação com outras associações, e particularmente com qualquer
uma que seja incompatível com elas. A anorexia da nossa paciente
oferece o mais brilhante exemplo dessa espécie de abulia |ver em [1] |.
Ela comia tão pouco por não gostar do sabor, e não podia apreciar o
sabor porque o ato de comer, desde os primeiros tempos, se vinculara
a lembranças de repulsa cuja soma de afeto jamais diminuíra em
qualquer grau; e é impossível comer com repulsa e prazer ao mesmo
tempo. Sua antiga repulsa às refeições permanecera inalterada porque
ela era constantemente obrigada a reprimi-la, em vez de livrar-se dela
por reação. Na infância ela fora forçada, sob ameaça de punição, a
comer a refeição fria que lhe era repugnante, e nos anos posteriores
tinha sido impedida, por consideração aos irmãos, de externar os
afetos a que ficava exposta durante suas refeições em comum.
Neste ponto, talvez deva referir-me a um pequeno artigo no qual tentei
dar uma explicação psicológica das paralisias histéricas (Freud 1893c).
Nele cheguei à hipótese de que a causa dessas paralisias residiria na
inacessibilidade a novas associações por parte de um grupo de
representações vinculadas, digamos, a uma das extremidades do
corpo; essa inacessibilidade associativa dependeria, por sua vez, do
fato de a representação do membro paralisado estar ligada à
lembrança do trauma — uma lembrança carregada de afeto que não
fora descarregado. Mostrei, a partir de exemplos extraídos da vida
cotidiana, que uma catexia como essa, de uma representação cujo
afeto não foi decomposto, envolve sempre uma certa dose de
inacessibilidade associativa e de incompatibilidade com novas catexias.
Até agora não consegui confirmar, por meio da análise hipnótica, essa
teoria sobre as paralisias motoras, mas posso citar a anorexia da Sra.
von N. como prova de que esse mecanismo é o que opera em certas
abulias, e de que as abulias nada mais são que uma espécie altamente
especializada — ou, para usar uma expressão francesa,
“sistematizada” — de paralisia psíquica.
A situação psíquica da Sra. von N. pode ser caracterizada no seu
essencial, ressaltando-se dois pontos. (1) Os afetos aflitivos vinculados
a suas experiências traumáticas tinham ficado indecompostos — por
exemplo, sua depressão, sua dor (pela morte do marido), seu
ressentimento (por ser perseguida pelos parentes dele), sua repulsa
(pelas refeições compulsórias), seu medo (das numerosas
experiências assustadoras), e assim por diante. (2) Sua memória exibia
uma intensa atividade, que, ora espontaneamente, ora em reação a um
estímulo contemporâneo (por exemplo, as notícias da revolução em
São Domingos |ver em [1]|), trazia seus traumas e os afetos
concomitantes, pouco a pouco, até sua consciência atual. Minha
conduta terapêutica baseou-se nessa atividade de sua memória, e
esforcei-me todos os dias para resolver e livrar-me de tudo o que cada
dia trazia à tona, até que o acervo acessível de suas lembranças
patológicas pareceu estar esgotado.
Essas duas características psíquicas, que considero como geralmente
presentes nos paroxismos histéricos, abriram caminho para muitas
considerações importantes. Adiarei, contudo, a discussão das mesmas
até que tenha dispensado certa atenção ao mecanismo dos sintomas
somáticos.
Não é possível atribuir a mesma origem a todos os sintomas somáticos
desses pacientes. Pelo contrário, mesmo a partir deste caso, que não
os apresentava em grande número, verificamos que os sintomas
somáticos deuma histeria podem surgir de várias maneiras. Ousarei,
em primeiro lugar, incluir as dores entre os sintomas somáticos. Até
onde posso ver, um grupo de dores da Sra. von N. fora por certo
organicamente determinado por ligeiras modificações (de natureza
reumática) nos músculos, tendões ou feixes, que causam muito mais
dor nos neuróticos do que nas pessoas normais. Outro grupo de dores
era, com certeza, as lembranças de dores — eram símbolos mnêmicos
das épocas de agitação e cuidados prestados aos doentes, épocas
que desempenharam papel de grande relevância na vida da paciente.
É bem possível que essas dores também se tenham justificado,
originariamente, em bases orgânicas, mas foram depois adaptadas
para as finalidades da neurose. Baseio estas afirmativas sobre as
dores da Sra. von N. principalmente em observações feitas em outro
caso, as quais relatarei mais adiante. Quanto a este ponto particular,
poucas informações puderam ser colhidas com a própria paciente.
Alguns dos notáveis fenômenos motores revelados pela Sra. von N.
eram simplesmente expressão das emoções e podiam ser
reconhecidos com facilidade como tal. Assim, a maneira como estendia
as mãos para a frente com os dedos separados e retorcidos
expressava horror, do mesmo modo que seu jogo facial. Esta era, com
certeza, uma maneira mais viva e desinibida de expressar as emoções
do que era comum entre as mulheres de sua instrução e raça. Na
realidade, ela própria era comedida, quase rígida em seus movimentos
expressivos quando não se encontrava em estado histérico. Outros de
seus sintomas motores estavam, de acordo com ela própria,
relacionados diretamente com suas dores. Agitada, ela brincava com
os dedos (1888) |ver em [1]| ou esfregava as mãos uma na outra
(1889) |ver em [1]| para impedir-se de gritar. Esse raciocínio nos obriga
a lembrar de um dos princípios formulados por Darwin para explicar a
expressão das emoções — o princípio do extravasamento da excitação
|Darwin, 1872, Cap. III|, que explica, por exemplo, por que os cães
abanam as caudas. Todos nós estamos acostumados, ao sermos
atingidos por estímulos dolorosos, a substituir o grito por outros tipos
de inervações motoras. Uma pessoa que tenha tomado a firme decisão
de, no consultório do dentista, conservar a cabeça e a boca imóveis, e
não colocar a mão no caminho, poderá no mínimo começar a bater
com os pés.
Um método mais complicado de conversão é revelado pelos
movimentos semelhantes a tiques da Sra. von N., como estalar a
língua e gaguejar, chamar pelo nome “Emmy” nos estados
confusionais |ver em [1]| e empregar a expressão “Fique quieto! Não
diga nada! Não me toque!” (1888) |ver em [1]|. Dessas manifestações
motoras, a gagueira e o estalido com a língua podem ser explicados
segundo um mecanismo que descrevi, num breve artigo sobre o
tratamento de um caso por sugestão hipnótica (1892-93), como “o
acionamento de idéias antitéticas”. O processo, tal como exemplificado
em nosso caso atual |ver em [1]| seria como se segue. Nossa paciente
histérica, esgotada pela preocupação e pelas longas horas de vigília
junto ao leito da filha enferma que afinal adormecera, disse a si
mesma: “Agora você precisa ficar inteiramente imóvel para não acordar
a menina.” É provável que essa intenção tenha dado origem a uma
representação antitética, sob a forma de um medo de que, mesmo
assim, ela fizesse um ruído que despertasse a criança do sono que
tanto esperara. Representações antitéticas como essa surgem em nós
de forma marcante quando nos sentimos inseguros de poder pôr em
prática alguma intenção importante.
Os neuróticos, em cujo sentimento a respeito de si mesmos é difícil
deixar de encontrar uma veia de depressão ou de expectativa ansiosa,
formam um número maior dessas idéias antitéticas do que as pessoas
normais, ou as percebem com mais facilidade, e as consideram mais
importantes. No estado de exaustão de nossa paciente a idéia
antitética, que seria normalmente rejeitada, mostrou-se a mais forte.
Foi essa idéia que entrou em ação e que, para horror da paciente, na
realidade produziu o ruído que ela tanto temia. A fim de explicar todo o
processo, pode-se ainda presumir que sua exaustão fosse apenas
parcial; ela afetava, para empregarmos a terminologia de Janet e seus
seguidores, apenas seu ego “primário”, e não resultava igualmente
num enfraquecimento da representação antitética.
Pode-se ainda presumir que foi seu horror ao ruído produzido contra
sua vontade que tornou traumático aquele momento e fixou o ruído em
si como um sintoma mnêmico somático de toda a cena. Creio,
realmente, que o caráter do próprio tique, que consistia numa
sucessão de sons emitidos de forma convulsiva e separados por
pausas e que melhor se assemelharia a estalidos, revela traços do
processo ao qual devia sua origem. Parece terhavido um conflito entre
a intenção dela e a idéia antitética (a contravontade), o que deu ao
tique seu caráter descontínuo e confinou a representação antitética em
outras vias que não as habituais para inervar o aparelho muscular da
fala.
A inibição espástica da fala da paciente — sua gagueira peculiar — era
o resíduo de uma causa excitante fundamentalmente similar |ver em
[1]-[2]|. Nesse caso, contudo, não foi o resultado da inervação final — a
exclamação — mas o próprio processo de inervação — a tentativa de
inibição convulsiva dos órgãos da fala — que foi transformado num
símbolo do acontecimento em sua memória.
Esses dois sintomas, o estalido e a gagueira, que estavam assim
intimamente relacionados pela história de sua origem, continuaram a
se associar e se transformaram em sintomas crônicos após se
repetirem numa ocasião semelhante. A partir daí, passaram a ser
utilizados em mais um sentido. Tendo-se originado num momento de
violento pavor, foram desde então ligados a qualquer medo (de acordo
com o mecanismo da histeria monossintomática, que será descrito no
Caso 5 |ver em [1] |), mesmo quando o medo não podia levar ao
acionamento de uma representação antitética.
Os dois sintomas acabaram sendo vinculados a tantos traumas, e
tiveram tantas razões para serem reproduzidos na memória, que
passaram a interromper sempre a fala da paciente, sem nenhuma
causa específica, à maneira de um tique sem significado. A análise
hipnótica, entretanto, pôde demonstrar quanto significado se ocultava
por trás desse aparente tique; e se o método de Breuer não conseguiu,
nesse caso, eliminar de todo os dois sintomas de um só golpe, foi
porque a catarse se estendera apenas aos três traumas principais, e
não aos traumas associados de forma secundária.
Segundo as normas que regem os ataques histéricos, a exclamação
“Emmy” durante seus acessos de confusão reproduzia, como havemos
de recordar, seus freqüentes estados de desamparo durante o
tratamento da filha. Essa exclamação estava ligada ao conteúdo do
ataque por um complexo encadeamento de idéias e sua natureza era a
fórmula protetora contra o ataque. A exclamação, por uma aplicação
mais ampla do seu significado, provavelmente degeneraria num tique,
como de fato já havia acontecido no caso da complicada fórmula
protetora “Não me toque”, etc. Em ambas as situações o tratamento
hipnótico impediu qualquer outra progressão dos sintomas; mas a
exclamação “Emmy” mal havia surgido, e apanhei-a enquanto ainda
estava em seu solo nativo, restrito aos ataques de confusão.
Como vimos, esses sintomas motores se originaram de várias
maneiras: por meio do acionamento de uma representação antitética
(como no estalido), por uma simples conversão da excitação psíquica
em atividade motora (como na gagueira), ou por uma ação voluntária
durante um paroxismo histérico (como nas medidas protetoras
exemplificadas pela exclamação “Emmy” e pela fórmula mais longa).
Mas como quer que esses sintomas motores se tenham originado,
todos têm uma coisa em comum. Pode-se demonstrar que possuem
uma ligação originária ou de longa data com os traumas, e
representam símbolos destes nas atividades da memória.
Outros dos sintomas somáticos da paciente não eram em absoluto de
natureza histérica. Isto se aplica, por exemplo, às cãibras no pescoço,
que considero como uma forma modificada de enxaqueca |ver em [1]| e
que, como tal, não devem ser classificadas como uma neurose, mas
como um distúrbio orgânico. Os sintomas histéricos, porém, ligam-se
regularmente a tais distúrbios. As cãibras no pescoço da Sra. von N.,
por exemplo, eram empregadas para fins dos ataques histéricos,
embora ela não tivesse a seu dispor a sintomatologia típica dos
ataques histéricos.
Ampliarei esta descrição do estado psíquico da Sra. von N. com
algumas considerações sobre as alterações patológicas de consciência
que puderam ser observadas nela. Tais como suas cãibras no
pescoço, os acontecimentos aflitivos presentes (cf. seu último delírio
no jardim |em [1]|) ou qualquer coisa que a fizesse recordar com
intensidade qualquer de seus traumas levavam-na a um estado de
delírio. Em tais estados — e as poucas observações que fiz não me
conduziram a nenhuma outra conclusão — havia uma limitação da
consciência e uma compulsão a associar, semelhante à que predomina
nos sonhos |em. [1]|; as alucinações e ilusões eram facilitadas
{V2_P125}até o mais alto grau e faziam-se inferências tolas ou mesmo
disparatadas. Esse estado, que era comparável ao da alienação
alucinatória, provavelmente representava um ataque. Poderia ser
encarado como uma psicose aguda (servindo como equivalente de um
ataque) que seria classificada como uma situação de “confusão
alucinatória”. Uma outra semelhança entre esses seus estados e um
ataque histérico típico foi mostrada pelo fato de que uma parcela das
lembranças traumáticas enraizadas desde longa data podia em geral
ser detectada como subjacente ao delírio. A transição de um estado
normal para um delírio ocorria muitas vezes de forma imperceptível.
Num dado momento, ela ia conversando de modo perfeitamente
racional sobre assuntos de pequena importância emocional e, à
medida que a conversa passava para idéias de natureza aflitiva, eu
notava por seus gestos exagerados ou pelo surgimento de suas
fórmulas habituais de fala, etc., que ela se encontrava num estado de
delírio. No início do tratamento o delírio durava o dia inteiro, de modo
que era difícil definir com certeza se quaisquer sintomas — como seus
gestos — faziam parte de seu estado psíquico como meros sintomas
de um ataque, ou se — como o estalido e a gagueira — tinham-se
tornado autênticos sintomas crônicos. Muitas vezes, só após o evento
é que era possível distinguir entre o que tinha acontecido num delírio e
o que tinha acontecido em seu estado normal, pois os dois estados
estavam separados em sua memória e, algumas vezes, ela ficava
extremamente surpresa ao saber das coisas que o delírio havia
introduzido aos poucos em sua conversa normal. Minha primeira
entrevista com ela constituiu o exemplo mais marcante da maneira
como os dois estados se entrelaçavam sem prestar nenhuma atenção
um ao outro. Somente num momento dessa gangorra psíquica foi que
sua consciência normal, em contato com o tempo presente, mostrou-se
afetada: foi quando me deu uma resposta oriunda do delírio e disse ser
“uma mulher que datava do século passado” |ver em [1]|.
A análise desses estados delirantes na Sra. von N. não foi realizada de
forma completa, em virtude de ter sua condição melhorado tão
depressa que os delírios se tornaram nitidamente diferenciados de sua
vida normal e se restringiram aos períodos de suas cãibras no
pescoço. Por outro lado, colhi grande número de informações sobre o
comportamento da paciente num terceiro estado, o do sonambulismo
artificial. Enquanto, em seu estado normal, ela não tinha nenhum
conhecimento das experiências psíquicas ocorridas durante seus
delírios e o sonambulismo, tinha acesso durante o sonambulismo, às
lembranças de todos os três estados. A rigor, portanto, era no estado
de sonambulismo que ela se encontrava no auge de sua normalidade.
Realmente, se eu deixar de lado o fato de que no sonambulismo ela
era muito menos reservada comigo do que em seus melhores
momentos da vida cotidiana — isto é, que no sonambulismo me
davainformações sobre sua família e coisas semelhantes, enquanto
nas outras ocasiões me tratava como um estranho — e se, além disso,
eu desprezar o fato de que ela exibia o grau pleno de
sugestionabilidade que é característico do sonambulismo, serei forçado
a dizer que durante o sonambulismo ela se achava num estado
inteiramente normal. Era interessante observar que, por outro lado, seu
sonambulismo não apresentava nenhum sinal de ser supernormal, mas
estava sujeito a todas as falhas mentais que estamos acostumados a
associar a um estado normal de consciência.
Os exemplos que se seguem esclarecem o comportamento de sua
memória no sonambulismo. Certo dia, numa conversa, ela expressou
seu encanto pela beleza de uma planta num vaso que decorava o
saguão de entrada da casa de saúde. “Mas qual é o nome dela,
doutor? O senhor sabe? Eu sabia seus nomes em alemão e latim, mas
esqueci.” A paciente tinha amplo conhecimento de plantas, ao passo
que fui obrigado, nessa ocasião, a admitir minha falta de preparo em
botânica. Alguns minutos depois perguntei-lhe, sob hipnose, se ela
agora sabia o nome da planta do saguão. Sem qualquer hesitação,
respondeu: “O nome em alemão é ‘Tuerkenlilie’ |martagão|; esqueci
mesmo o nome em latim.” De outra feita, quando se sentia bem de
saúde, falou-me de uma visita que fizera às catacumbas romanas, mas
não conseguia recordar-se de dois termos técnicos, nem pude eu
ajudá-la. Logo depois perguntei-lhe, sob hipnose, quais as palavras
que estavam em sua mente. Mas ela também não soube dizê-las em
hipnose, de modo que lhe falei: “Não se preocupe mais com elas
agora, mas quando estiver no jardim amanhã, entre cinco e seis da
tarde — mais perto das seis do que das cinco — elas subitamente lhe
ocorrerão.” Na noite seguinte, enquanto conversávamos sobre algo
que não tinha nenhuma relação com as catacumbas, ela subitamente
exclamou: “’Cripta’, doutor, e ‘Columbário’.” “Ah! essas são as palavras
em que a senhora não conseguia pensar ontem. Quando foi que lhe
ocorreram?” “Hoje à tarde no jardim, pouco antes de eu subir para meu
quarto.” Vi que, com isso, ela queria que eu soubesse que havia
seguido com precisão minhas instruções quanto ao horário, já que
tinha o hábito de sair do jardim por volta das seis horas da tarde.
Vemos assim que mesmo no sonambulismo ela não tinha acesso a
toda a extensão do seu conhecimento. Mesmo nesse estado havia
uma consciência real e outra potencial. Muitas vezes acontecia que,
quando eu lhe perguntava, durante seu sonambulismo, de onde
provinha esse ou aquele fenômeno, ela franzia a testa e, depois de
uma pausa, respondia num tom de desculpas: “Não sei.” Em tais
ocasiões eu tinha adquirido o hábito de dizer: “Pense por um momento;
virá sem nenhum rodeio”; e depois de breve reflexão, elaconseguia
dar-me a informação desejada. Mas algumas vezes acontecia nada lhe
ocorrer, e eu era obrigado a deixá-la com a tarefa de lembrar-se
daquilo no dia seguinte, o que nunca deixou de acontecer.
Em sua vida cotidiana a Sra. von N. evitava escrupulosamente
qualquer inverdade, e jamais mentiu para mim sob hipnose. Às vezes,
contudo, dava-me respostas incompletas e retinha parte da história até
eu insistir uma segunda vez para que a completasse. Em geral, como
no exemplo citado em [1], era o desagrado inspirado pelo assunto que
lhe fechava a boca no sonambulismo, assim como na vida cotidiana.
Não obstante, apesar desses traços restritivos, a impressão causada
por seu comportamento mental durante o sonambulismo era, no
conjunto, a de um desinibido desenrolar de seus poderes mentais e de
um pleno domínio sobre seu acervo de lembranças.
Embora não se possa negar que no estado de sonambulismo ela era
altamente sugestionável, estava longe de exibir uma ausência
patológica de resistência. Pode-se asseverar, de modo geral, que eu
não lhe causava maior impressão nesse estado de que esperaria
conseguir se estivesse procedendo a uma pesquisa dessa natureza
sobre os mecanismos psíquicos de alguém em pleno gozo de suas
faculdades e que tivesse plena confiança no que eu dizia. A única
diferença era que a Sra. von N. era incapaz, no que era considerado
seu estado normal, de ter para comigo tal atitude mental favorável.
Quando, como aconteceu com sua fobia por animais, eu não
conseguia apresentar-lhe razões convincentes, ou não penetrava na
história psíquica da origem de um sintoma, mas tentava atuar por meio
de sugestão autoritária, invariavelmente notava em seu rosto uma
expressão tensa e insatisfeita; e quando, ao final da hipnose,
perguntava-lhe se ainda tinha medo do animal, ela respondia: “Não…
já que o senhor insiste.” Uma afirmação como esta, baseada apenas
em sua obediência a mim, nunca tinha êxito, como também não o
alcançavam as numerosas injunções genéricas que lhe fazia em lugar
das quais bem poderia ter repetido a simples sugestão de que ela
ficasse boa.
Mas essa mesma pessoa que se apegava tão obstinadamente a seus
sintomas em face da sugestão e só os abandonava em resposta à
análise psíquica ou à convicção pessoal era, por outro lado, tão dócil
quanto a melhor paciente encontrável em qualquer hospital, no que
dizia respeito às sugestões irrelevantes — na medida em que se
tratasse de assuntos não relacionados com sua doença. Já apresentei
exemplos de sua obediência pós-hipnótica ao longo do relato do caso.
Não me parece haver nada de contraditório nesse comportamento.
Também aqui a idéia mais forte estava destinada a se afirmar. Se
penetrarmos no mecanismo das “idées fixes”, constataremos que se
acham baseadas e apoiadas por tantas experiências, que atuam com
tal intensidade, quenão nos podemos surpreender ao descobrir que
essas idéias são capazes de opor uma resistência bem-sucedida à
idéia contrária apresentada pela sugestão, que só está revestida de
poderes limitados. Apenas de um cérebro verdadeiramente patológico
é que se poderiam varrer por mera sugestão produtos tão bem
fundamentados de eventos psíquicos intensos.
Foi enquanto estudava as abulias da Sra. von N. que comecei a ter
sériasdúvidas quanto à validade da asserção de Bernheim de que “tout
est dans la suggestion” |“tudo está na sugestão”| e sobre a dedução do
seu sagaz amigo Delboeuf: “Comme quoi il n’y a pas d’hypnotisme”
|“Sendo assim, não existe o que se chama de hipnotismo”|. E até hoje
não posso compreender como se pode supor que, apenas levantando
um dedo e dizendo uma vez “durma”, eu tinha criado na paciente o
estado psíquico peculiar em que sua memória tinha acesso a todas as
suas experiências psíquicas. Talvez eu tenha evocado esse estado
com minha sugestão, mas não o criei, visto que suas características —
que, aliás, são encontradas universalmente — foram uma grande
surpresa para mim.
O relato do caso esclarece suficientemente a maneira como o trabalho
terapêutico foi conduzido durante o sonambulismo. Como é praxe na
psicoterapia hipnótica, lutei contra as representações patológicas da
paciente por meio de garantias e proibições e apresentando toda
espécie de representações opostas. Mas não me contentei com isso.
Investiguei a gênese dos sintomas individuais a fim de poder combater
as premissas sobre as quais se erguiam as representações
patológicas. No curso dessa análise costumava acontecer que a
paciente expressava verbalmente, com a mais violenta agitação,
assuntos cujo afeto associado até então só se manifestara como uma
expressão de emoção. |ver em [1].| Não sei dizer quanto do êxito
terapêutico, em cada situação, deveu-se ao fato de eu ter eliminado o
sintoma por sugestão in statu nascendi, e quanto se deveu à
transformação do afeto por ab-reação, já que combinei esses dois
fatores terapêuticos. Por conseguinte, este caso não pode ser
rigorosamente utilizado como prova da eficácia terapêutica do método
catártico; ao mesmo tempo, devo acrescentar que só os sintomas de
que fiz uma análise psíquica foram de fato eliminados de forma
permanente.
De modo geral o êxito terapêutico foi considerável, mas não duradouro.
A tendência da paciente a adoecer de forma semelhante sob o impacto
de novos traumas não foi afastada. Qualquer um que desejasse
empreender a cura definitiva de um caso de histeria como este teria
que penetrar mais a fundo do que eu o fiz, em minha tentativa, no
complexo de fenômenos. A Sra. von N. era, sem dúvida, uma
personalidade com grave hereditariedade neuropática. Parece provável
que não pode haver histeria independente de uma predisposição dessa
natureza. Mas, por outro lado, a predisposição sozinha não faz a
histeria. Deve haver razões que a trazem à tona, e, na minha opinião,
essas razões devem ser apropriadas: a etiologia é de natureza
específica. Já tive ocasião de mencionar que, na Sra. von N., os afetos
pertinentes a um grande número de experiências traumáticas tinham
ficado retidos, e que a atividade dinâmica de sua memória fazia aflorar
à sua mente ora um, ora outro desses traumas. Aventurar-me-ei agora
a formular uma explicação do motivo por que ela retinha os afetos
dessa maneira. Esse motivo, é verdade, estava ligado a sua
predisposição hereditária. Por um lado, seus sentimentos eram muito
intensos; ela possuía uma natureza veemente, capaz das mais fortes
paixões. Por outro, desde a morte do marido, tinha vivido em completa
solidão mental; a perseguição que lhe moveram os parentes a havia
tornado desconfiada dos amigos, e ela ficou atentamente em guarda
para impedir que qualquer pessoa adquirisse demasiada influência
sobre suas ações. O círculo de suas obrigações era muito amplo, e ela
realizava sozinha todo o trabalho mental que estas lhe impunham, sem
um amigo ou confidente, quase isolada da família e prejudicada por
sua conscienciosidade, sua tendência a se atormentar e também,
muitas vezes, pelo desamparo natural da mulher. Em suma, o
mecanismo da retenção de grandes quantidades de excitação,
independente de tudo o mais, não pode ser desprezado neste caso.
Baseava-se em parte nas circunstâncias de sua vida, e em parte em
sua predisposição natural. Sua aversão, por exemplo, a dizer qualquer
coisa sobre si mesma era tão grande, que, como notei com assombro,
em 1891, nenhum dos visitantes diários que iam à sua casa percebia
que ela estava doente nem tinha consciência de que eu era seu
médico.
Será que isso esgota a etiologia deste caso de histeria? Penso que
não, pois, na época de seus dois tratamentos, eu ainda não levantara
em minha própria mente as questões a que é preciso responder antes
que seja possível uma explicação completa de um caso como este.
Sou agora de opinião que deve ter havido algum fator adicional para
provocar a irrupção da doença precisamente nestes últimos anos,
considerando-se que as condições etiológicas operantes tinham estado
presentes durante muitos anos anteriormente. Também me ocorreu
que, dentre todas as informações íntimas que me foram dadas pela
paciente, houve uma ausência completa do elemento sexual, que é,
afinal de contas, passível mais do que qualquer outro de ocasionar
traumas. É impossível que suas excitações nesse campo não tivessem
deixado quaisquer vestígios; o que me foi permitido ouvir foi, sem
dúvida, uma editio in usum delphini |uma edição expurgada| da história
de sua vida. A paciente comportava-se com o maior e mais natural
senso de decoro, a julgar pelas aparências, sem nenhum traço de
pudicícia. Quando, porém, reflito sobre a reserva com que me narrou,
sob hipnose, a pequena aventura de sua empregada no hotel, não
posso deixar de suspeitar de que essa mulher, que era tão passional e
tão capaz de sentimentos fortes, não tenha vencido suas necessidades
sexuais sem grandes lutas, e que, por vezes, suas tentativas de
suprimir essa pulsão, que é de todas a mais poderosa, tinham-na
exposto a seu grave esgotamento mental. Uma vez, ela admitiu que
ainda não se havia casado de novo porque, em vista da sua grande
fortuna, não podia dar crédito ao desinteresse de seus pretendentes e
porque se recriminaria por prejudicar as expectativas de suas duas
filhas com um novo matrimônio.
Cabe-me fazer mais uma observação antes de encerrar o caso clínico
da Sra. von N. O Dr. Breuer e eu a conhecíamos razoavelmente bem e
há bastante tempo, e costumávamos sorrir ao comparar seu caráter
com o quadro da psique histérica que pode ser acompanhado desde
os primeiros tempos por meio dos trabalhos e das opiniões dos
médicos. Nós tínhamos aprendido, a partir de nossas observações da
Sra. Caecilie M., que o tipo mais grave de histeria pode coexistir com
dons da natureza mais rica e mais original — uma conclusão mais do
que comprovada na biografia de mulheres eminentes na história e na
literatura. Da mesma forma, a Sra. Emmy von N. nos deu um exemplo
de como a histeria é compatível com um caráter impecável e um modo
de vida bem orientado. A mulher que viemos a conhecer era admirável.
A seriedade moral com que encarava suas obrigações, sua inteligência
e energia, que não eram inferiores às de um homem, e seu alto grau
de instrução e de amor à verdade nos impressionaram grandemente,
enquanto seu generoso cuidado para com o bem-estar de todos os
seus dependentes, sua humildade de espírito e o requinte de suas
maneiras revelaram também suas qualidades de verdadeira dama.
Descrever essa mulher como “degenerada” seria distorcer por
completo o significado desse termo. Faríamos bem em distinguir o
conceito de “predisposição” do de “degenerescência” tais como
aplicados às pessoas; de outra forma, ver-nos-emos forçados a admitir
que a humanidade deve uma grande parcela de suas maiores
realizações ao esforço de “degenerados”.
Devo igualmente confessar que não vejo na história da Sra. von N.
nenhum sinal da “ineficiência psíquica” à qual Janet atribui a gênese da
histeria. De acordo com ele, a predisposição histérica consiste numa
restrição anormal do campo da consciência (em virtude da
degenerescência hereditária), que resulta no desprezo por grupos
inteiros de representações e, mais tarde, numa desintegração do ego e
na organização de personalidades secundárias. Se assim fosse, o que
resta do ego após a retirada dos grupos psíquicos histericamente
organizados seria, por necessidade, também menos eficiente do que
um ego normal; e de fato, de acordo com Janet, o ego na histeria é
afligido por estigmas psíquicos, condenado ao monoideísmo e incapaz
dos atos volitivos da vida cotidiana. Janet, julgo eu, cometeu aqui o
erro de promover o que constituem os efeitos secundários das
alterações da consciência decorrentes da histeria à posição de
determinantes primários da histeria. O assunto merece maior
consideração em outro trecho, mas na Sra. von N. não havia qualquer
sinal de tal ineficiência. Por ocasião de seus piores momentos, ela era
e continuou a ser capaz de desempenhar seu papel na administração
de uma grande empresa industrial, de manter uma vigilância constante
sobre a educação das filhas e de manter sua correspondência com
pessoas preeminentes do mundo intelectual — em suma, de cumprir
com suas obrigações bastante bem para que sua doença
permanecesse oculta. Inclino-me a acreditar, portanto, que tudo isso
envolvia com excesso considerável de eficiência, que talvez não
pudesse ser mantido por muito tempo e estava fadado a levar ao
esgotamento — a uma “misère psychologique” |“empobrecimento
psicológico”| secundária. Parece provável que algumas perturbações
desse tipo em sua eficiência estivessem começando a se fazer sentir
na época em que a vi pela primeira vez, mas, seja como for, uma
histeria grave estivera presente por muitos anos antes do aparecimento
dos sintomas de esgotamento.
CASO 3 - MISS LUCY R., 30 ANOS (FREUD)
No fim do ano de 1892, um colega conhecido meu encaminhou-me
uma jovem que estava sendo tratada por ele de rinite supurativa
cronicamente recorrente. Verificou-se em seguida que a obstinada
persistência do problema da jovem se devia a uma cárie do osso
etmóide. Ultimamente, ela se vinha queixando de alguns sintomas
novos que o competente clínico não pôde mais continuar a atribuir a
uma afecção local. Ela perdera todo o sentido do olfato e era quase
continuamente perseguida por uma ou duas sensações olfativas
subjetivas, que lhe eram muito aflitivas. Além disso, estava
desanimada e fatigada e se queixava de peso na cabeça, pouco
apetite e perda de eficiência.
A jovem, que vivia como governanta na casa do diretor-gerente de uma
fábrica nos arredores de Viena, vinha visitar-me de vez em quando em
meus horários de consulta. Era de nacionalidade inglesa. Tinha uma
constituição delicada, de pigmentação deficiente, mas gozava de boa
saúde, salvo por sua afecção nasal. Suas primeiras declarações
confirmaram o que o médico me dissera. Sofria de depressão e fadiga
e era atormentada por sensações subjetivas do olfato. Quanto aos
sintomas histéricos, apresentava uma analgesia geral mais ou menos
definida, sem nenhuma perda da sensibilidade tátil, e um exame
grosseiro (com a mão) não revelou nenhuma restrição do campo
visual. O interior de seu nariz era inteiramente analgésico e sem
reflexos: ela era sensível à pressão tátil no local, mas a percepção
propriamente dita do nariz como órgão dos sentidos estava ausente,
tanto para estímulos específicos quanto para outros (por exemplo,
amônia, ou ácido acético). O catarro nasal purulento estava então
numa fase de melhora.
Em nossas primeiras tentativas de tornar a doença inteligível, foi
necessário interpretar as sensações olfativas subjetivas, visto que
eram alucinações recorrentes, como sintomas histéricos crônicos. Sua
depressão talvez fosse o afeto ligado ao trauma, e deveria ser possível
encontrar uma experiência em que esses odores, que agora se haviam
tornado subjetivos, tivessem sido objetivos. Essa experiência devia ter
sido o trauma que as sensações recorrentes do olfato simbolizavam na
memória. Talvez seja mais correto considerar as alucinações olfativas
recorrentes, em conjunto com a depressão que as acompanhava,
como equivalentes de um ataque histérico. A natureza das alucinações
recorrentes, a rigor, torna-as inadequadas para desempenharem o
papel de sintomas crônicos. Mas na verdade essa questão não
surgiunum caso como este, que mostrava apenas um desenvolvimento
rudimentar. Era essencial, contudo, que as sensações subjetivas do
olfato tivessem tido uma origem especializada de uma natureza que
admitisse terem-se derivado de algum objeto real bem específico.
Essa expectativa foi logo realizada. Quando lhe perguntei qual era o
odor pelo qual era mais constantemente perturbada, ela me
respondeu: “Um cheiro de pudim queimado.” Assim, eu só precisava
presumir que um cheiro de pudim queimado tinha de fato ocorrido na
experiência que atuara como trauma. É muito incomum, sem dúvida,
que as sensações olfativas sejam escolhidas como símbolos
mnêmicos de traumas, mas não foi difícil explicar essa escolha. A
paciente vinha sofrendo de rinite supurativa e, em conseqüência disso,
sua atenção estava especialmente enfocada no nariz e nas sensações
nasais. O que eu sabia das circunstâncias da vida da paciente
limitava-se ao fato de que as duas crianças de quem ela cuidava não
tinham mãe; esta morrera alguns anos antes em decorrência de uma
moléstia aguda.
Resolvi então fazer do cheiro de pudim queimado o ponto de partida da
análise. Descreverei o curso dessa análise como se tivesse ocorrido
em condições favoráveis. De fato, o que deveria ter sido uma única
sessão estendeu-se por várias. Isso se verificou porque a paciente só
podia visitar-me em meus horários de consulta, quando eu só lhe podia
dedicar pouco tempo. Além disso, uma única discussão dessa
natureza costumava estender-se por mais de uma semana, visto que
as obrigações dela não lhe permitiam fazer a longa viagem da fábrica
até minha casa com grande freqüência. Costumávamos, portanto,
interromper nossa conversa em meio a seu curso e retomar o fio da
meada no mesmo ponto na vez seguinte.
Miss Lucy R. não entrou em estado de sonambulismo quando tentei
hipnotizá-la. Assim, abri mão do sonambulismo e conduzi toda a sua
análise enquanto ela se encontrava num estado que, a rigor, talvez
tenha diferido muito pouco de um estado normal.
Terei que falar com mais detalhes sobre esse aspecto de meu
procedimento técnico. Quando, em 1889, visitei as clínicas de Nancy,
ouvi o Dr. Liébeault, o doyen (decano) do hipnotismo, dizer: “Se ao
menos tivéssemos meios de pôr todos os pacientes em estado de
sonambulismo, a terapia hipnótica seria a mais poderosa de todas.” Na
clínica de Bernheim chegava quase a parecer que essa arte realmente
existia e que era possível aprendê-la com Bernheim. Mas logo que
tentei praticá-la com meus próprios pacientes, descobri que pelo
menos meus poderes estavam sujeitos a graves limitações e que,
quando o sonambulismo não era provocado num paciente nas
trêsprimeiras tentativas, eu não tinha nenhum meio de induzi-lo. A
percentagem de casos acessíveis ao sonambulismo era muito menor,
em minha experiência, do que a relatada por Bernheim.
Vi-me, por conseguinte, defrontado com a opção de abandonar o
método catártico na maioria dos casos que lhe seriam apropriados ou
aventurar-me à experiência de empregar esse método sem o
sonambulismo, quando a influência hipnótica fosse leve ou mesmo
quando sua existência fosse duvidosa. Parecia-me indiferente qual o
grau de hipnose — de acordo com uma ou outra das escalas propostas
para medi-la — que era alcançado nesse estado sonambúlico, pois,
como sabemos, de qualquer modo cada uma das várias formas
assumidas pela sugestionabilidade independe das outras, e a obtenção
da catalepsia, de movimentos automáticos e assim por diante não
funciona nem favorecendo, nem prejudicando aquilo de que eu
precisaria para minhas finalidades, ou seja, que o despertar das
lembranças esquecidas fosse facilitado. Além disso, logo abandonei a
prática de fazer testes para indicar o grau de hipnose alcançado, visto
que num bom número de casos isso provocava a resistência dos
pacientes e abalava sua confiança em mim, da qual eu necessitava
para executar o trabalho psíquico mais importante. Ademais, logo
comecei a ficar cansado de proferir asseguramentos e ordens tais
como “Você vai dormir… durma!” e de ouvir o paciente, como tantas
vezes acontecia quando o grau de hipnose era leve, reclamar comigo:
“Mas doutor, eu não estou dormindo”, e de ter então que fazer
distinções sutis: “Não me refiro a um sono comum, mas sim à hipnose.
Como vê, você está hipnotizado, não consegue abrir os olhos”, etc., “e
de qualquer modo, não há necessidade de que você adormeça”, e
assim por diante. Estou certo de que muitos outros médicos que
praticam a psicoterapia sabem sair dessas dificuldades de forma mais
hábil do que eu. Se assim for, hão de poder adotar algum outro método
que não o meu. Parece-me, contudo, que quando alguém espera com
tanta freqüência descobrir-se numa situação embaraçosa pelo uso de
determinada palavra, será prudente evitar tanto a palavra quanto o
embaraço. Quando, portanto, minha primeira tentativa não me
conduzia nem ao sonambulismo nem a um grau de hipnose que
acarretasse modificações físicas marcantes, eu abandonava de modo
ostensivo a hipnose e pedia apenas “concentração”; e ordenava ao
paciente que se deitasse e deliberadamente fechasse os olhos como
meio de alcançar essa “concentração”. É possível que, dessa forma,
eu obtivesse com apenas um ligeiro esforço o mais profundo grau de
hipnose possível de ser alcançado naquele caso particular.
Mas, ao abrir mão do sonambulismo, talvez me estivesse privando de
uma precondição sem a qual o método catártico não parecia utilizável,
poisesse método era claramente baseado na possibilidade de os
pacientes, em seu estado alterado de consciência, terem acesso às
lembranças e serem capazes de identificar ligações que não pareciam
estar presentes em seu estado de consciência normal. Se a extensão
sonambúlica da memória estivesse ausente, também não haveria
nenhuma possibilidade de estabelecer quaisquer causas
determinantes que o paciente pudesse apresentar ao médico como
algo desconhecido para ele (o paciente); e está claro que são
precisamente as lembranças patogênicas que, como já tivemos
ocasião de dizer em nossa “Comunicação Preliminar” |ver em [1]|, se
acham “ausentes da lembrança dos pacientes quando em estado
psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma bastante sumária”.
Poupei-me desse novo embaraço ao me lembrar de que eu próprio vira
Bernheim dar provas de que as lembranças dos acontecimentos
ocorridos durante o sonambulismo são apenas aparentemente
esquecidas no estado de vigília, e podem ser revividas por meio de
uma ordem delicada e de uma pressão com a mão, destinada a indicar
um estado diferente de consciência. Ele havia, por exemplo, dado a
uma mulher em estado de sonambulismo uma alucinação negativa, no
sentido de que ele não estava mais presente, e depois se esforçava
por chamar a atenção dela para si próprio de diversas maneiras
diferentes, inclusive algumas de natureza decididamente agressiva.
Não teve sucesso. Depois de ela ser despertada, ele lhe pediu que
contasse o que lhe fizera enquanto ela achava que ele não estava
mais lá. Surpresa, ela respondeu nada saber a esse respeito. Mas ele
não aceitou essa resposta, insistindo em que ela podia recordar-se de
tudo, e pôs a mão em sua testa a fim de ajudá-la a lembrar-se. E vejam
só! Ela acabou por descrever tudo o que aparentemente não havia
percebido durante o sonambulismo e aparentemente não havia
recordado no estado de vigília.
Essa surpreendente e instrutiva experiência me serviu de modelo.
Resolvi partir do pressuposto de que meus pacientes sabiam tudo o
que tinha qualquer significado patogênico e que se tratava apenas de
uma questão de obrigá-los a comunicá-lo. Assim, quando alcançava
um ponto em que, depois de formular ao paciente uma pergunta como
“Há quanto tempo tem este sintoma?” ou “Qual foi sua origem?”,
recebia como resposta “Realmente não sei”, eu prosseguia da seguinte
maneira. Colocava a mão na testa do paciente ou lhe tomava a cabeça
entre a mãos e dizia: “Você pensará nisso sob a pressão da minha
mão. No momento em que eu relaxar a pressão, verá algo à sua frente,
ou algo aparecerá em sua cabeça. Agarre-o. Será o que estamos
procurando. — E então, o que foi que viu ou o que lhe ocorreu?”
Nas primeiras ocasiões em que usei esse método (não foi com Miss
Lucy R.), eu próprio me surpreendi ao constatar que ele me
proporcionava precisamente os resultados de que eu necessitava. E
posso afirmar com segurança que quase nunca me deixou em
dificuldades desde então. Sempre apontou o caminho que a análise
deveria seguir e me permitiu conduzir cada uma dessas análises até o
fim sem o emprego do sonambulismo. Afinal fiquei tão confiante que,
quando os pacientes respondiam “não vejo nada” ou “nada me
ocorreu”, podia descartar essa afirmação como uma impossibilidade e
assegurar-lhes que por certo haviam ficado conscientes do que se
desejava, mas se recusavam a acreditar que fosse aquilo e o
rejeitavam. Dizia-lhes que estava pronto a repetir o método quantas
vezes desejassem e que eles veriam a mesma coisa todas as vezes.
Invariavelmente, eu tinha razão. Os pacientes ainda não tinham
aprendido a relaxar sua faculdade crítica. Haviam rejeitado a
lembrança que surgira ou a idéia que lhes tinha ocorrido, sob a
alegação de que não servia e era uma interrupção irrelevante. E depois
que a relatavam a mim, ela sempre revelava ser aquilo que se
desejava. Às vezes, quando após três ou quatro pressões eu tinha por
fim extraído a informação, o pacientereplicava: “Aliás, eu de fato já
sabia disso desde a primeira vez, mas era justamente o que eu não
queria dizer”, ou então, “Eu tinha esperança de que não fosse isso”.
Era trabalhosa essa questão de ampliar o que se supunha ser uma
consciência limitada — muito mais trabalhosa, pelo menos, do que
uma investigação durante o sonambulismo. Não obstante, tornou-se
independente do sonambulismo e me proporcionou uma compreensão
dos motivos que muitas vezes determinam o “esquecimento” das
lembranças. Posso afirmar que esse esquecimento é muitas vezes
intencional e desejado, e seu êxito nunca é mais do que aparente.
Achei ainda mais surpreendente, talvez, que pelo mesmo método fosse
possível fazer retornarem números e datas que, a um exame
superficial, há muito tinham sido esquecidos, e assim revelar como a
memória pode ser inesperadamente precisa.
O fato de, ao procurarmos números e datas, nossa escolha ser tão
limitada permite-nos chamar em nosso auxílio uma proposição que nos
é familiar a partir da teoria da afasia, ou seja, que reconhecer alguma
coisa é uma tarefa mais leve para a memória do que pensar nela
espontaneamente. Assim, quando o paciente é incapaz de recordar-se
do ano, mês ou dia em que um fato particular ocorreu, podemos
repetir-lhe os números dos anos possivelmente relevantes, os nomes
dos doze meses e os trinta e um números dos dias do mês,
assegurando-lhe que, quando chegarmos ao número certo, ou ao
nome certo, seus olhos se abrirão por sua livre vontade ou ele sentirá
qual é o certo. Na grande maioria dos casos, de fato o paciente se
decide por uma data particular. Com grande freqüência (como no caso
da Sra. Caecilie M.) é possível comprovar, por documentos do período
em questão, que a data foi reconhecida de forma correta, enquanto em
outros casos e em outras ocasiões a indiscutível exatidão da data
escolhida pode ser inferida pelo contexto dos fatos recordados. Por
exemplo, depois que uma paciente teve sua atenção atraída para a
data a que se tinha chegado por esse método de “contagem”, ela
disse: “Ora, esse é o aniversário do meu pai!” e acrescentou: “É claro!
foi por ser aniversário dele que eu estava esperando o acontecimento
de que estávamos falando”.
Aqui, só de passagem posso tocar nesse tema. A conclusão que extraí
de todas essas observações foi que as experiências que
desempenharam um papel patogênico importante, junto com todos os
seus concomitantes secundários, são retidas com exatidão na memória
do paciente, mesmo quando parecem ter sido esquecidas — quando
ele é incapaz de relembrá-las.
Após essa longa mais inevitável digressão, voltarei ao caso de Miss
Lucy R. Como disse, portanto, minhas tentativas de hipnose com ela
não produziram o sonambulismo. Ela simplesmente ficava deitada,
quieta, num estado acessível a um discreto grau de influência, com os
olhos fechados o tempo todo, as feições um pouco rígidas e sem
mexer nem as mãos nem os pés. Perguntei-lhe se conseguia
lembrar-se da ocasião em que sentira pela primeira vez o cheiro de
pudim queimado. — “Ah, sim, sei exatamente. Foi há uns dois meses,
dois dias antes do meu aniversário. Estava com as crianças na sala de
aula e brincava de cozinhar com elas” (eram duas meninas). —
“Chegou uma carta que acabara de ser entregue pelo carteiro. Vi pelo
carimbo postal e pela letra que era da minha mãe, em Glasgow, e
queria abri-la e lê-la, mas as crianças se precipitaram sobre mim,
arrancaram a carta de minhas mãos e gritaram: ‘Não, você não vai ler
agora! Deve ser pelo seu aniversário, vamos guardar a carta para
você!’ Enquanto as crianças faziam essa brincadeira comigo, houve de
repente um cheiro forte. Elas haviam esquecido o pudim que estavam
assando, e ele estava queimando. Desde então tenho sido perseguida
pelo cheiro, que está sempre presente e fica mais forte quando estou
agitada”.
— “Você vê essa cena com nitidez diante de seus olhos?” — “Em
tamanho natural, exatamente como a experimentei.” — “Que poderia
haver a respeito dela que fosse tão perturbador?” — “Fiquei
emocionada porque as crianças foram muito afetuosas comigo.” — “E
não o eram sempre?” — “Sim… mas justamente quando recebi a carta
de minha mãe.” — “Nãocompreendo por que há um contraste entre a
afeição das crianças e a carta de sua mãe, pois é o que você parece
estar sugerindo.” — “Eu estava pretendendo voltar para a casa de
minha mãe, e pensar em deixar aquelas crianças queridas me deixava
muito triste.” — “Qual é o problema com sua mãe? Tem se sentido
sozinha e mandou buscar você? Ou estava doente na ocasião, e você
esperava notícias dela?” — “Não; ela não é muito forte, mas não está
exatamente doente, e tem alguém que lhe faz companhia.” — “Então
por que você precisava deixar as crianças?” — “Não podia mais
suportar ficar naquela casa. A empregada, a cozinheira e a governanta
francesa pareciam pensar que eu me estava colocando acima do meu
lugar. Aliaram-se numa pequena intriga contra mim e disseram toda
espécie de coisas a meu respeito ao avô das crianças, e não obtive
tanto apoio quanto esperava dos dois cavalheiros quando me queixei a
eles. Assim, notifiquei o Diretor (o pai das crianças) de que pretendia ir
embora. Ele respondeu de maneira muito amável que seria melhor eu
pensar mais sobre o assunto durante umas duas ou três semanas,
antes de dar-lhe minha decisão final. Eu estava nessa situação de
incerteza na época e achava que iria deixar a casa, mas acabei
ficando.” — “Havia algo em particular, afora a afeição delas por você,
que a ligasse às crianças?” — “Havia. A mãe delas era parente
distante da minha mãe, e eu lhe prometera em seu leito de morte que
me devotaria com todas as minhas forças às crianças, que não as
deixaria e que ocuparia o lugar da mãe junto a elas. Ao dar a
notificação de minha saída eu havia quebrado essa promessa”.
Isso pareceu completar a análise da sensação objetiva de cheiro
apresentada pela paciente. De fato, ela mostrara ter sido, em sua
origem, uma sensação objetiva, intimamente associada a uma
experiência — uma pequena cena — em que dois afetos antagônicos
tinham estado em conflito: sua tristeza por deixar as crianças e as
desconsiderações que, não obstante, a estavam impelindo a decidir-se
por aquele curso de ação. A carta da mãe naturalmente a havia feito
relembrar suas razões para tomar essa decisão, visto que era sua
intenção juntar-se a ela ao partir. O conflito entre seus afetos
promovera o momento da chegada da carta à categoria de um trauma,
e a sensação de cheiro associada a esse trauma persistiu como seu
símbolo. Ainda era necessário explicar por que, de todas as
percepções sensoriais proporcionadas pela cena, ela havia escolhido
aquele odor como símbolo. Eu já estava preparado, contudo, para
recorrer à afecção crônica do nariz de minha paciente para ajudar a
explicar esse ponto. Em resposta a uma pergunta direta, disse-me que,
justamente naquela época, estava mais uma vez com um resfriado
nasal tão forte que mal podia sentir o cheiro do que quer que fosse.
Entretanto, quando em seu estado de agitação, percebeu o cheiro
dopudim queimado, que transpôs a barreira da perda organicamente
determinada de seu sentido de olfato.
Mas não fiquei satisfeito com a explicação assim alcançada. Tudo
parecia muito plausível, mas havia algo que me escapava, alguma
razão adequada por que essas agitações e esse conflito de afetos
levaram à histeria, e não a qualquer outra coisa. Por que tudo não
havia permanecido no nível da vida psíquica normal? Em outras
palavras, qual era a justificativa para a conversão que havia ocorrido?
Por que ela não se recordava sempre da própria cena, em vez da
sensação associada que ela isolava como o símbolo da lembrança?
Tais questões poderiam parecer curiosas demais e supérfluas, se
estivéssemos lidando com uma histérica de longa data em quem o
mecanismo da conversão fosse habitual. Mas não fora senão quando
do advento desse trauma, ou pelo menos dessa pequena história de
perturbações, que a moça ficara histérica.
Ora, eu já sabia, pela análise de casos semelhantes, que antes de a
histeria poder ser adquirida pela primeira vez, uma condição essencial
precisa ser preenchida: uma representação precisa ser
intencionalmente recalcada da consciência e excluída das
modificações associativas. Em minha opinião, esse recalcamento
intencional constitui também a base para a conversão total ou parcial
da soma de excitação. A soma de excitação, estando isolada da
associação psíquica, encontra ainda com mais facilidade seu caminho
pela trilha errada para a inervação somática. A base do próprio
recalcamento só pode ser uma sensação de desprazer, uma
incompatibilidade entre a representação isolada a ser recalcada e a
massa dominante de representações que constituem o ego. A
representação recalcada vinga-se, contudo, tornando-se patogênica.
Por conseguinte, do fato de Miss Lucy R. ter sucumbido à conversão
histérica no momento em questão, inferi que, entre os determinantes
do trauma, devia ter havido um que ela intencionalmente procurara
deixar na obscuridade e se esforçara por esquecer. Se sua afeição
pelas crianças e sua sensibilidade em relação aos outros membros da
casa fossem consideradas em conjunto, só se poderia tirar uma
conclusão. Fui ousado o bastante para informar minha paciente dessa
interpretação. Disse-lhe: “Não consigo conceber que essas sejam
todas as razões para seus sentimentos a respeito das crianças. Creio
que, na verdade, você está apaixonada por seu patrão, o Diretor,
embora talvez sem que você própria esteja consciente disso, e que
nutre a esperança secreta de tomar de verdade o lugar da mãe delas.
Edevemos também recordar a sensibilidade que você agora tem em
relação às criadas, após ter vivido pacificamente com elas durante
anos. Você teme que elas suspeitem de suas esperanças e se divirtam
à sua custa.
Ela respondeu em seu habitual estilo lacônico: “Sim, acho que isso é
verdade.” — “Mas, se você sabia que amava seu patrão, por que não
me disse?” — “Não sabia… ou melhor, não queria saber. Queria tirar
isso de minha cabeça e não pensar mais no assunto, e creio que
ultimamente tenho conseguido.” — “Por que foi que você não estava
disposta a admitir essa inclinação? Estava envergonhada de amar um
homem?” — “De forma alguma, não sou assim tão pudica. De qualquer
forma, não somos responsáveis por nossos sentimentos. Isso me foi
aflitivo apenas porque ele é meu patrão e estou a seu serviço, morando
em sua casa. Não sinto em relação a ele a mesma independência
completa que sentiria em relação a qualquer outro. E depois, sou
apenas uma moça pobre, e ele é um homem muito rico e de boa
família. As pessoas iriam rir de mim se tivessem alguma idéia disso”.
A essa altura, ela não opôs nenhuma resistência a esclarecer a origem
dessa inclinação. Disse-me que nos primeiros anos vivera feliz na
casa, cumprindo com seus deveres e livre de quaisquer desejos
irrealizáveis. Um dia, porém, seu patrão, um homem sério e
sobrecarregado de trabalho, cujo comportamento em relação a ela
sempre fora reservado, iniciou uma discussão sobre os moldes em que
as crianças deveriam ser educadas. Ele foi menos formal e mais
cordial do que de costume e lhe disse o quanto dependia dela para
cuidar de seus filhos órfãos; e ao dizer isso, olhou-a de modo
significativo… O amor da jovem por ele havia começado nesse
momento, e ela se permitira até mesmo apoiar-se nas esperanças
gratificantes que havia baseado nessa conversa. Mas quando não
houve nenhum outro progresso, e depois de esperar em vão por outra
hora íntima de troca de opiniões, ela decidiu banir tudo aquilo da
mente. Miss Lucy concordou inteiramentecomigo em que era provável
que o olhar por ela notado durante a conversa havia brotado dos
pensamentos dele sobre a esposa, e reconheceu de maneira bem
clara que não havia nenhuma perspectiva de que seus sentimentos por
ele fossem de algum modo correspondidos.
Esperava que essa conversa trouxesse uma modificação fundamental
em seu estado, mas por algum tempo isso não se verificou. Ela
continuou desanimada e deprimida. Sentia-se um pouco revigorada
pela manhã, graças ao tratamento hidropático que eu lhe receitara ao
mesmo tempo. O cheiro de pudim queimado não desapareceu por
completo, embora se tornasse menos freqüente e mais fraco. Só
aparecia, disse-me ela, quando ficava extremamente agitada. A
persistência desse símbolo mnêmico levou-me a suspeitar que, além
da cena principal, ele havia assumido a representação dos numerosos
traumas secundários associados àquela cena. Assim, procuramos
alguma outra coisa que pudesse ter relação com o pudim queimado;
penetramos na questão do atrito doméstico, do comportamento do avô
e assim por diante, e à medida que o fazíamos o cheiro de queimado
foi-se dissipando cada vez mais. Também durante essa época o
tratamento foi interrompido por um tempo considerável, graças a um
novo ataque de seu distúrbio nasal, que levou então à descoberta da
cárie do etmóide |ver em [1]|.
Ao retornar, contou ela que no Natal recebera muitos presentes dos
dois cavalheiros da casa e até das empregadas, como se todos
estivessem ansiosos por fazer as pazes com ela e apagar de sua
lembrança os conflitos dos últimos meses. Mas esses sinais de boas
intenções não haviam causado nenhuma impressão nela.
Quando lhe perguntei mais uma vez sobre o cheiro de pudim
queimado, ela me informou que ele havia desaparecido, mas que
agora vinha sendo importunada por outro cheiro semelhante, parecido
com o de fumaça de charuto. Esse cheiro também estivera presente
antes, mas fora encoberto, por assim dizer, pelo cheiro do pudim.
Agora aparecera por si mesmo.
Não fiquei muito satisfeito com os resultados do tratamento. O que
acontecera fora exatamente o que sempre se consegue com um
tratamento sintomático: eu apenas eliminara um sintoma só para que
seu lugar fosse ocupado por outro. Entretanto, não hesitei em
dedicar-me à tarefa de eliminar esse novo símbolo mnêmico através da
análise.
Mas dessa vez ela não sabia de onde provinha a sensação olfativa
subjetiva — em que ocasião importante ela fora uma sensação
objetiva. “Todos os dias as pessoas fumam em nossa casa,” disse, “e
realmente não sei se o cheiro que sinto se refere a alguma ocasião
especial”. Insisti então em que ela tentasse recordar sob a pressão de
minha mão. Já tive oportunidade de mencionar |ver em [1]| que suas
lembranças possuíam a qualidade de uma nitidez plástica, que ela era
um tipo “visual”. E de fato, por insistência minha, um quadro surgiu
gradativamente diante dela, a princípio de maneira hesitante e
fragmentada. Era a sala de jantar de sua casa, onde ela esperava com
as crianças que os dois cavalheiros voltassem da fábrica para almoçar.
“Agora estamos todos sentados à mesa: os cavalheiros, a governanta
francesa, a empregada, as crianças e eu. Mas isso é o que acontece
todos os dias.” — “Continue a olhar para o quadro; ele se desenvolverá
e ficará mais específico.” — “Sim, há um convidado. É o
contador-chefe. É um senhor e é tão afeiçoado às crianças como se
fossem seus próprios netos. Mas ele vem tantas vezes almoçar que
também não há nada de especial nisso.” — “Tenha paciência e
continue a olhar para o quadro; é certo que acontecerá alguma coisa.”
— “Não está acontecendo nada. Estamos nos levantando da mesa; as
crianças se despedem e sobem conosco, como de costume, para o
segundo andar.” — “E então?” — “Ora, afinal de contas é uma ocasião
especial. Agora reconheço a cena. Quando as crianças se despedem,
o contador tenta beijá-las. Meu patrão se exalta e chega a gritar com
ele: ‘Não beije as crianças!’ Sinto uma punhalada no coração, e como
os cavalheiros já estão fumando, a fumaça dos charutos fica em minha
memória.”
Essa, portanto, era uma segunda cena, mais profunda, que à
semelhança da primeira funcionou como um trauma e deixou atrás de
si um símbolo mnêmico. Mas a que essa cena devera sua eficácia? —
“Qual das duas cenas foi a primeira”, perguntei, “essa ou a do pudim
queimado?” — “A cena que acabo de lhe contar foi a primeira, com
uma diferença de quase dois meses.” — “Então por que você sentiu
essa punhalada quando o pai das crianças deteve o velho? A
reprimenda dele não visava a você.” — “Não foi certo da parte dele
gritar com um senhor idoso, que era um bom amigo e, ainda por cima,
um convidado. Ele poderia ter dito aquilo com delicadeza.” — “Então
foi só a violência com que ele se expressou que magoou você? Você
se sentiu constrangida por ele? Ou talvez tenha pensado: ‘Se ele pode
ser tão violento por uma coisa tão insignificante com um velho amigo e
convidado, quanto mais seria comigo se eu fosse mulher dele.’” —
“Não, não é isso.” — “Mas teve algo a ver com a violência dele, não
foi?” — “Teve, em relação ao fato de as crianças serem beijadas. Ele
jamais gostou disso.”
E nesse momento, sob a pressão de minha mão, emergiu a lembrança
de uma terceira cena, ainda mais antiga, que fora o trauma realmente
atuante e que dera à cena com o contador-chefe sua eficácia
traumática. Ainda acontecera, alguns meses antes, que uma senhora
conhecida do patrão fora visitá-los e, ao sair, beijara as duas crianças
na boca. O pai delas, que se achava presente, conseguira refrear-se
para não dizer nada à senhora, mas depois que ela havia partido, sua
fúria explodira sobre a cabeça da infeliz governanta. Disse que a
responsabilizaria se alguém beijasse as crianças na boca, que era seu
dever não permitir tal coisa e que ela estaria incidindo numa falta para
com seu dever se o permitisse; se aquilo acontecesse de novo, ele
confiaria a educação das crianças a outras mãos. Isso havia
acontecido numa ocasião em que Miss Lucy ainda supunha que ele a
amava, e estava na expectativa de uma repetição de sua primeira
conversa amistosa. A cena esmagara suas esperanças. Ela dissera
consigo mesma: “Se ele pode enfurecer-se comigo dessa maneira e
fazer tais ameaças por um assunto tão banal, e em relação ao qual,
além disso, não tenho a mínima responsabilidade, devo ter cometido
um erro. Ele não pode jamais ter tido quaisquer sentimentos ternos por
mim, senão eles o teriam ensinado a tratar-me com maior
consideração.” Foi obviamente a lembrança dessa cena aflitiva que lhe
veio quando o contador-chefe tentou beijar as crianças e foi
repreendido pelo pai destas últimas.
Depois dessa última análise, quando, dois dias depois, Miss Lucy
tornou a me visitar, não pude deixar de lhe perguntar o que lhe
acontecera para deixá-la tão feliz. Parecia transfigurada. Estava
sorridente e de cabeça erguida. Pensei por um momento que, afinal de
contas, eu estava errado sobre a situação e a governanta das crianças
tinha ficado noiva do Diretor. Mas ela desfez essa minha idéia. “Não
aconteceu nada. Ocorre apenas que o senhor não me conhece. O
senhor só me viu doente e deprimida. Em geral, sou sempre alegre.
Quando acordei ontem pela manhã, não sentia mais aquele peso na
cabeça, e desde então tenho-me sentido bem.” — “E o que acha de
suas perspectivas na casa?” — “Tenho uma idéia bem clara sobre o
assunto. Sei que não tenho nenhuma possibilidade e não vou ficar
infeliz por isso.” — “E será que agora vai se dar bem com os
empregados?” — “Acho que minha própria sensibilidade exagerada foi
a responsável pela maior parte do que aconteceu.” — “E você ainda
está apaixonada por seu patrão?” — “Sim, é claro que estou, mas isso
não faz nenhuma diferença. Afinal, posso guardar comigo meus
próprios pensamentos e sentimentos.”
Examinei-lhe então o nariz e verifiquei que sua sensibilidade à dor e
sua excitabilidade reflexa tinham sido quase inteiramente restauradas.
Ela também conseguia distinguir os odores, embora com insegurança
e apenas se fossem fortes. Cabe-me deixar em aberto, contudo, a
questão de saber até que ponto seu distúrbio nasal terá
desempenhado um papel na redução de seu sentido do olfato.
Esse tratamento durou ao todo nove semanas. Quatro meses depois
encontrei-me por acaso com a paciente numa de nossas estações de
veraneio. Estava animada e assegurou-me que sua recuperação fora
duradoura.
DISCUSSÃO
Não estou inclinado a subestimar a importância do caso que acabo de
descrever, muito embora a paciente só estivesse sofrendo de uma
histeria leve e benigna e houvesse apenas poucos sintomas em jogo.
Pelo contrário, parece-me um fato instrutivo que mesmo uma doença
como essa, tão improdutiva quando encarada como uma neurose,
exigisse tantos determinantes psíquicos. Na realidade, quando
considero esse caso clínico mais detidamente, fico tentado a vê-lo
como um modelo exemplar de um tipo particular de histeria, ou seja, a
forma dessa moléstia que pode ser contraída mesmo por uma pessoa
de boa hereditariedade, como resultado de experiências apropriadas.
Deve-se compreender que não me refiro, com isso, a uma histeria
independente de qualquer predisposição já existente. É provável que
tal histeria não exista. Mas só reconhecemos uma predisposição dessa
natureza numa pessoa depois que ela se torna de fato histérica, pois
antes disso não há provas da sua existência. A predisposição
neuropática, tal como genericamente compreendida, é diferente. Já
está marcada, antes da instalação da doença, pelo quantum da
contaminação hereditária do sujeito ou pela soma de suas
anormalidades psíquicas individuais. Até onde vão minhas
informações, não havia em Miss Lucy R. nenhum traço de qualquer
desses fatores. Sua histeria, portanto, pode ser descrita como
adquirida, e não pressupôs nada além da posse do que é,
provavelmente, uma tendência muito difundida — a tendência para
adquirir a histeria. Ainda não temos quase nenhuma idéia de quais
possam ser as características dessa tendência. Nos casos dessa
espécie, contudo, a ênfase principal recai na natureza do trauma,
embora, é claro, considerada em conjunto com a reação do sujeito ao
mesmo. Para a aquisição da histeria, vem a ser um sine qua non o
desenvolvimento de uma incompatibilidade entre o ego e alguma idéia
a ele apresentada. Espero ter a possibilidade de indicar, em outro
texto, como diferentes perturbações neuróticas emergem dos diversos
métodos adotados pelo “ego” para escapar a essa incompatibilidade. O
método histérico de defesa — para o qual, como vimos, é necessária a
posse de uma tendência específica — reside na conversão da
excitação em uma inervação somática; e a vantagem disso é que a
idéia incompatível é forçada para fora do ego consciente. Em troca,
essa consciência guarda então a reminiscência física surgida por meio
da conversão (em nosso caso, as sensações subjetivas de olfato da
paciente) e sofre por causa do afeto que se acha de forma mais ou
menos clara ligado precisamente àquela reminiscência. A situação
assim provocada passa então a não ser suscetível de modificação,
pois a incompatibilidade que teria exigido uma eliminação do afeto não
existe mais, graças ao recalque e à conversão. Assim, o mecanismo
que produz a histeria representa, por um lado, um ato de covardia
moral e, por outro, uma medida defensiva que se acha à disposição do
ego. Com bastante freqüência temos de admitir que rechaçar as
excitações crescentes provocando a histeria é, nessas circunstâncias,
a coisa mais conveniente a fazer; com maior freqüência, naturalmente,
temos que concluir que uma dose maior de coragem moral teria sido
vantajosa para a pessoa em causa.
O momento traumático real, portanto, é aquele em que a
incompatibilidade se impõe sobre o ego e em que este último decide
repudiar a idéia incompatível. Essa idéia não é aniquilada por tal
repúdio, mas apenas recalcada para o inconsciente. Quando esse
processo ocorre pela primeira vez, passa a existir um núcleo e centro
de cristalização para a formação de um grupo psíquico divorciado do
ego — um grupo em torno do qual tudo o que implicaria uma aceitação
da idéia incompatível passa então a se reunir. A divisão da consciência
nesses casos de histeria adquirida é, portanto, deliberada e
intencional. Pelo menos, é muitas vezes introduzida por um ato de
volição, pois o resultado real é um pouco diferente do que o indivíduo
pretendia. O que ele desejava era eliminar uma idéia, como se jamais
tivesse surgido, mas tudo o que consegue fazer é isolá-la
psiquicamente.
Na história de nossa atual paciente, o momento traumático foi o da
explosão do patrão contra ela porque as crianças foram beijadas pela
senhora. Por algum tempo, contudo, essa cena não teve nenhum efeito
manifesto. (Pode ser que a hipersensibilidade e o desânimo da
paciente tenham começando a partir dela, mas não posso afirmá-lo.)
Seus sintomas histéricos só começaram depois, em momentos que
podem ser descritos como “auxiliares”. O traço característico do
momento auxiliar é, creio eu, que os dois grupos psíquicos divididos
convergem temporariamente para ele, como fazem na consciência
ampliada que ocorre no sonambulismo. No caso de Miss Lucy R., o
primeiro dos momentos auxiliares, no qual ocorreu a conversão, foi a
cena à mesa, quando o contador-chefe tentou beijar as crianças. Aqui
a lembrança traumática estava desempenhando um papel: a paciente
não se comportou como se se tivesse livrado de tudo o que se
relacionava com sua dedicação ao patrão. (Na história de outros
casos, esses diferentes momentos coincidem; a conversão ocorre
como efeito imediato do trauma.)
O segundo momento auxiliar repetiu o mecanismo do primeiro de
forma quase exata. Uma impressão poderosa reagrupou
temporariamente a consciência da paciente, e a conversão mais uma
vez seguiu a trilha que se abrira na primeira ocasião. É interessante
notar que o segundo sintoma a se desenvolver camuflou o primeiro, de
modo que este só foi percebido com clareza quando o segundo foi
retirado do caminho. Também me parece que vale a pena fazer uma
observação sobre o curso inverso que teve de ser seguido também
pela análise. Tive a mesma experiência num grande número de casos;
os sintomas surgidos posteriormente camuflaram os primeiros, e a
chave de toda a situação estava apenas no último sintoma a ser
alcançado pela análise.
O processo terapêutico, neste caso, consistiu em compelir o grupo
psíquico que fora dividido a se reunir mais uma vez com a consciência
do ego. Estranhamente, o êxito não acompanhou pari passu o volume
de trabalho realizado. Foi só quando a última tarefa foi concluída que
de repente ocorreu a recuperação.
CASO 4 - KATHARINA - (FREUD)
Nas férias de verão do ano de 189.. fiz uma excursão ao Hohe Tauern
para que por algum tempo pudesse esquecer a medicina e, mais
particularmente, as neuroses. Quase havia conseguido isso quando,
um belo dia, desviei-me da estrada principal para subir uma montanha
que ficava um pouco afastada e que era renomada por suas vistas e
sua cabana de hospedagem bem administrada. Alcancei o cimo após
uma subida estafante e, sentindo-me revigorado e descansado,
sentei-me, mergulhando em profunda contemplação do encanto do
panorama distante. Estava tão perdido em meus pensamentos que, a
princípio, não relacionei comigo estas palavras, quando alcançaram
meus ouvidos: “O senhor é médico?” Mas a pergunta fora endereçada
a mim, e pela moça de expressão meio amuada, de talvez dezoito
anos de idade, que me servira a refeição e à qual a proprietária se
dirigira pelo nome de “Katharina”. A julgar por seus trajes e seu porte,
não podia ser uma empregada, mas era sem dúvida filha ou parenta da
hospedeira.
Voltando a mim, respondi:
—Sim, sou médico, mas como você soube disso?
—O senhor escreveu seu nome no livro de visitantes. E pensei que, se
o senhor pudesse dispor de alguns momentos… A verdade, senhor, é
que meus nervos estão ruins. Fui ver um médico em L— por causa
deles, e ele me receitou alguma coisa, mas ainda não estou boa.
Assim, lá estava eu novamente às voltas com as neuroses — pois
nada mais poderia haver de errado com aquela moça de constituição
forte e sólida e de aparência tristonha. Fiquei interessado ao constatar
que as neuroses podiam florescer assim, a uma altitude superior a
2.000 metros; portanto, fiz-lhe outras perguntas. Relato a conversa que
se seguiu entre nós tal como ficou gravada em minha memória, e não
alterei o dialeto da paciente.
—Bem, e de que é que você sofre?
—Sinto muita falta de ar. Nem sempre. Mas às vezes ela me apanha
de tal forma que acho que vou ficar sufocada.
Isso não pareceu, à primeira vista, um sintoma nervoso. Mas logo me
ocorreu que provavelmente era apenas uma descrição representando
umacrise de angústia: ela estava destacando a falta de ar do complexo
de sensações que decorrem da angústia e atribuindo uma importância
indevida a esse fator isolado.
—Sente-se aqui. Como são as coisas quando você fica “sem ar”?
—Acontece de repente. Antes de tudo, parece que há alguma coisa
pressionando meus olhos. Minha cabeça fica muito pesada, há um
zumbido horrível e fico tão tonta que quase chego a cair. Então alguma
coisa me esmaga o peito a tal ponto que quase não consigo respirar.
—E não nota nada na garganta?
—Minha garganta fica apertada, como se eu fosse sufocar.
—Acontece mais alguma coisa na cabeça?
—Sim, umas marteladas, o bastante para fazê-la explodir.
—E não se sente nem um pouco assustada quando isso acontece?
—Sempre acho que vou morrer. Em geral, sou corajosa e ando
sozinha por toda parte, desde o porão até a montanha inteira. Mas no
dia em que isso acontece não ouso ir a parte alguma; fico o tempo todo
achando que há alguém atrás de mim que vai me agarrar de repente.
Portanto, era de fato uma crise de angústia, e introduzida pelos sinais
de uma “aura” histérica — ou, mais corretamente, era um ataque
histérico cujo conteúdo era a angústia. Mas não seria provável que
houvesse também outro conteúdo?
—Quando você tem uma dessas crises, pensa em alguma coisa? E
sempre a mesma coisa? Ou vê alguma coisa diante de você?
—Sim. Sempre vejo um rosto medonho que me olha de uma maneira
terrível, de modo que fico assustada.
Talvez isso pudesse oferecer um meio rápido de chegarmos ao cerne
da questão.
—Você reconhece o rosto? Quero dizer, é um rosto que realmente já
viu alguma vez?
—Não.
—Sabe de onde vêm as suas crises?
—Não.
—Quando as teve pela primeira vez?
—Há dois anos, quando ainda morava na outra montanha com minha
tia. (Ela dirigia uma cabana de hospedagem e nós nos mudamos para
cá há dezoito meses.) Mas elas continuam a acontecer.
Deveria eu fazer uma tentativa de análise? Não podia aventurar-me
atransplantar a hipnose para essas altitudes, mas talvez tivesse
sucesso com uma simples conversa. Teria que arriscar um bom
palpite. Eu havia constatado com bastante freqüência que, nas moças,
a angústia era conseqüência do horror de que as mentes virginais são
tomadas ao se defrontarem pela primeira vez com o mundo da
sexualidade.
Então disse-lhe:
—Se você não sabe, vou dizer-lhe como eu penso que você passou a
ter seus ataques. Nessa ocasião, há dois anos, você deve ter visto ou
ouvido algo que muito a constrangeu e que teria preferido muitíssimo
não ver.
—Céus, é isso mesmo! — respondeu. — Foi quando surpreendi meu
tio com a moça, com Franziska, minha prima.
—Que história é essa sobre uma moça? Não vai me contar?
—Suponho que se pode contar tudo a um médico. Bem, naquela
época, o senhor sabe, meu tio, o marido de minha tia que o senhor viu
aqui, tinha a estalagem na — kogel. Agora eles estão divorciados, e a
culpa é minha, pois foi através de mim que se veio a saber que ele
estava andando com Franziska.
—E como você descobriu isso?
—Foi assim. Um dia, há dois anos, uns cavalheiros tinham subido a
montanha e pediram alguma coisa para comer. Minha tia não estava
em casa, e Franziska, que era quem sempre cozinhava, não foi
encontrada em parte alguma. E meu tio também não foi encontrado.
Procuramos por toda parte, e finamente Alois, o garotinho que era meu
primo, disse: “Ora, Franziska deve estar no quarto de papai!” E ambos
rimos, mas não estávamos pensando em nada de mau. Fomos então
ao quarto do meu tio, mas o encontramos trancado. Isso me pareceu
estranho. Então Alois disse: “Há uma janela no corredor de onde se
pode olhar para dentro do quarto.” Dirigimo-nos para o corredor, mas
Alois recusou-se a ir até a janela e disse que estava com medo. Então,
eu falei: “Seu menino bobo! Eu vou. Não tenho o menor medo.” E não
tinhanada de mau na mente. Olhei para dentro. O quarto estava um
pouco escuro, mas vi meu tio e Franziska; ele estava deitado em cima
dela.
—E então?
—Afastei-me da janela imediatamente, apoiei-me na parede e fiquei
sem ar, justamente o que me acontece desde então. Tudo ficou opaco,
minhas pálpebras se fecharam à força e havia marteladas e um
zumbido em minha cabeça.
—Você contou isso a sua tia no mesmo dia?
—Oh, não, não disse nada.
—Então por que ficou tão assustada quando os viu juntos? Você
entendeu? Sabia o que estava acontecendo?
—Oh, não. Não compreendi nada naquela ocasião. Tinha apenas
dezesseis anos. Não sei por que me assustei.
—Srta. Katharina, se pudesse lembrar-se agora do que lhe aconteceu
naquela ocasião em que teve sua primeira crise, no que pensou sobre
o fato … isso a ajudaria.
—Sim, se pudesse. Mas fiquei tão assustada que me esqueci de tudo.
(Traduzido na terminologia de nossa “Comunicação Preliminar” |ver em
[1]|, isso significa: “O próprio afeto criou um estado hipnóide cujos
produtos foram então isolados da ligação associativa com a
consciência do ego”.)
—Diga-me, senhorita, será que a cabeça que você sempre vê quando
fica sem ar é a de Franziska, tal como a viu naquele momento?
—Não, não, ela não era tão horrível. Além disso, é uma cabeça de
homem.
—Ou talvez a de seu tio?
—Não vi o rosto dele assim com tanta clareza. Estava escuro demais
no quarto. E por que estaria fazendo uma cara tão medonha
exatamente naquela hora?
—Você tem toda razão.
(O caminho de repente pareceu bloqueado. Talvez algo pudesse surgir
no restante de sua história.)
—E o que aconteceu depois?
—Bem, os dois devem ter ouvido algum ruído, porque saíram logo em
seguida. Senti-me muito mal o tempo todo. Ficava sempre pensando
naquilo. Então, dois dias depois, era domingo, havia muito o que fazer,
e trabalhei o dia inteiro. E na manhã de segunda-feira tornei a me
sentir tonta e caí doente, fiquei acamada por três dias seguidos.
Nós |Breuer e eu| muitas vezes havíamos comparado a sintomatologia
da histeria com uma escrita pictográfica que se torna inteligível após
adescoberta de algumas inscrições bilíngües. Nesse alfabeto, estar
doente significa repulsa. Então eu disse:
—Se você ficou doente três dias depois, creio que isso significa que
quando olhou para dentro do quarto sentiu repulsa.
—Sim, tenho certeza de que senti repulsa — disse ela, pensativa —,
mas repulsa de quê?
—Não terá visto alguém nu, talvez? Como estavam eles?
—Estava muito escuro para ver qualquer coisa; além disso, ambos
estavam vestidos. Oh, se pelo menos soubesse do que foi que senti
nojo!
Eu também não tinha nenhuma idéia. Mas disse-lhe que continuasse e
que me contasse qualquer coisa que lhe ocorresse, na confiante
expectativa de que ela viesse a pensar exatamente no que eu
precisava para explicar o caso.
Bem, ela passou a descrever como afinal havia contado sua
descoberta à tia, que a achou mudada e suspeitou que estivesse
escondendo algum segredo. Seguiram-se algumas cenas muito
desagradáveis entre o tio e a tia, no decorrer das quais as crianças
vieram a ouvir muitas coisas que lhes abriram os olhos de várias
maneiras e que teria sido melhor que não tivessem ouvido. Finalmente,
a tia resolveu mudar-se com os filhos e a sobrinha e ficar com a atual
estalagem, deixando o tio sozinho com Franziska, que entrementes
ficara grávida. Depois disso, contudo, para minha surpresa, Katharina
abandonou o fio da meada e começou a me contar dois grupos de
histórias mais antigas, que retrocediam a dois ou três anos antes do
momento traumático. O primeiro grupo relacionava-se com ocasiões
em que o mesmo tio fizera investidas sexuais contra ela própria,
quando estava com apenas quatorze anos. Ela descreveu como, certa
feita, fora com ele numa viagem até o vale, no inverno, e ali passara a
noite na estalagem. Ele ficou no bar bebendo e jogando cartas, mas
ela sentiu sono e foi cedo para a cama, no quarto que iam partilhar no
andar de cima. Não estava ainda inteiramente adormecida quando ele
subiu; depois, tornou a adormecer e acordou de repente, “sentindo o
corpo dele” na cama. Deu um salto e admoestou-o: “O que é que o
senhor está pretendendo, tio? Por que não fica na sua própria cama?”
Ele tentou apaziguá-la: “Ora, sua bobinha, fique quieta. Você não sabe
como é bom.” — “Não gosto de suas coisas ‘boas’; o senhor nem ao
menos deixa a gente dormir em paz.” Ela ficou de pé na porta, pronta a
se refugiar no corredor do lado de fora, até que finalmente ele desistiu
e foi dormir. Então ela voltou para sua própria cama e dormiu até de
manhã. Pela maneira como relatou ter-se defendido, parece que ela
não reconheceu nitidamente a investida como sendo de ordem sexual.
Quando lhe pergunteise sabia o que ele estava tentando fazer com ela,
respondeu: “Não naquela ocasião.” Disse então que isso lhe ficara
claro muito depois: resistira porque era desagradável ser perturbada
durante o sono e “porque não era bom”.
Fui obrigado a relatar isso minuciosamente por causa de sua grande
importância para a compreensão de tudo o que se seguiu. Ela passou
a relatar-me ainda outras experiências um pouco posteriores: como
mais uma vez teve de defender-se dele numa estalagem, quando ele
estava inteiramente bêbado, e histórias semelhantes. Em resposta a
uma pergunta para saber se, nessas ocasiões, sentira algo semelhante
a sua posterior falta de ar, ela respondeu com firmeza que em todas as
ocasiões sentira a pressão nos olhos e no peito, mas nada semelhante
à força que havia caracterizado a cena da descoberta.
Logo após ter terminado esse conjunto de lembranças, ela começou a
me contar um segundo conjunto, que se relacionava com ocasiões em
que notara algo entre o tio e Franziska. Uma vez, toda a família
passara a noite, com a roupa que trazia no corpo, num palheiro, e ela
fora subitamente despertada por um ruído; pensou ter reparado que o
tio, que estivera deitado entre ela e Franziska, se afastava, e que
Franziska estava acabando de se deitar. De outra feita, passavam a
noite numa estalagem na aldeia de N—; ela e o tio estavam num
quarto, e Franziska, num outro contíguo. Ela acordou de repente
durante a noite e viu uma figura alta e branca na porta, prestes a girar
a maçaneta: — “Deus do céu, é o senhor, tio? O que está fazendo na
porta?” — “Fique quieta. Estava só procurando uma coisa.” — “Mas a
saída é pela outra porta.” — “É, foi um engano meu” … e assim por
diante.
Perguntei-lhe se ficara desconfiada nessa ocasião. “Não, não dei
nenhuma importância àquilo; apenas notei e não pensei mais no
assunto.”
Quando lhe perguntei se tinha ficado assustada também nessas
ocasiões, respondeu que achava que sim, mas não estava tão certa
disso.
Ao fim desses dois conjuntos de lembranças, ela parou. Parecia
alguém que tivesse passado por uma transformação. O rosto amuado
e infeliz ficara animado, os olhos brilhavam, sentia-se leve e exultante.
Entrementes, a compreensão de seu caso tornara-se clara para mim. A
última parte do que me contara, numa forma aparentemente sem
sentido, proporcionou uma admirável explicação de seu
comportamento na cena da descoberta. Naquela ocasião, ela
carregava consigo dois conjuntos de experiências de que se recordava
mas que não compreendia, e das quais não havia extraído nenhuma
inferência. Quando vislumbrou o casal no ato sexual, estabeleceu de
imediato uma ligação entre a nova impressão e aqueles dois conjuntos
de lembranças, começou a compreendê-los e, ao mesmo tempo, a
rechaçá-los. Seguiu-seentão um curto período de elaboração, de
“incubação”, após o qual os sintomas de conversão se instalaram, com
os vômitos funcionando como um substituto para a repulsa moral e
física. Isto solucionou o enigma. Ela não sentira repulsa pela visão das
duas pessoas, mas pela lembrança que aquela visão despertara. E,
levando tudo em conta, esta só poderia ser a lembrança da investida
contra ela na noite em que “sentira o corpo do tio”.
Assim, quando ela terminou sua confissão, eu lhe disse:
—Sei agora o que foi que você pensou ao olhar para dentro do quarto:
“Agora ele está fazendo com ela o que queria fazer comigo naquela
noite e nas outras vezes.” Foi disso que você sentiu repulsa, porque
lembrou-se da sensação de quando despertou durante a noite e sentiu
o corpo dele.
—É bem possível — respondeu — que tenha sido isso o que me
causou repulsa e que tenha sido nisso que pensei.
—Diga-me só mais uma coisa. Você agora é uma moça crescida e
sabe toda espécie de coisas…
—Sim, agora eu sou.
—Diga-me apenas uma coisa. Qual foi a parte do corpo dele que você
sentiu naquela noite?
Mas ela não me deu mais nenhuma resposta definida. Sorriu de
maneira constrangida, como se tivesse sido apanhada, como alguém
que é obrigado a admitir que se atingiu uma posição fundamental na
qual não resta mais muita coisa a dizer. Pude imaginar qual fora a
sensação tátil que ela depois aprendera a interpretar. Sua expressão
facial parecia dizer que ela achava que eu tinha razão em minha
conjetura. Mas não pude ir mais além e, de qualquer modo, fiquei-lhe
grato por me haver tornado muito mais fácil conversar com ela do que
com as senhoras pudicas da minha clínica na cidade, que consideram
vergonhoso tudo o que é natural.
Assim, o caso ficou esclarecido. Mas esperemos um momento! O que
dizer da alucinação periódica da cabeça que surgia durante suas crises
e lhe infundia terror? De onde provinha? Perguntei-lhe então sobre isso
e, como se seu conhecimento também tivesse sido ampliado por nossa
conversa, ela respondeu prontamente:
—Sim, agora eu sei. A cabeça é a do meu tio, agora a reconheço, mas
não daquela época. Mais tarde quando todas as brigas tinham
irrompido, meu tio deu vazão a uma cólera absurda contra mim. Vivia
dizendo que era tudo culpa minha: se eu não tivesse dado com a
língua nos dentes, aquilo nunca teria redundado em divórcio. Ele vivia
ameaçando fazer alguma coisa contramim; e quando me avistava a
distância, seu rosto se transfigurava de ódio e ele partia para cima de
mim com a mão levantada. Eu sempre fugia dele e sempre ficava
apavorada com a idéia de que um dia ele me pegasse desprevenida. O
rosto que sempre vejo agora é o dele, quando ficava furioso.
Esses dados me fizeram recordar que seu primeiro sintoma histérico —
o vômito — havia passado, a crise de angústia permanecera e
adquirira um novo conteúdo. Por conseguinte, estávamos lidando com
uma histeria que fora ab-reagida num grau considerável. E, de fato, ela
havia informado a tia de sua descoberta pouco depois do
acontecimento.
—Você contou a sua tia as outras histórias… sobre as investidas que
ele fez contra você?
—Contei. Não imediatamente, mas depois, quando já se falava em
divórcio. Minha tia disse: “Vamos guardar isso de reserva. Se ele criar
caso no tribunal, contaremos isso também.”
Posso compreender muito bem que tenha sido precisamente este
último período — quando ocorreram cenas cada vez mais agitadas na
casa e quando o estado da própria paciente deixou de interessar a tia,
que estava inteiramente absorta na disputa — que tenha sido esse
período de acúmulo e retenção que lhe tenha deixado o legado do
símbolo mnêmico |do rosto alucinado|.
Espero que essa moça, cuja sensibilidade sexual fora afetada numa
idade tão precoce, tenha tirado algum benefício de nossa conversa.
Desde então não voltei a vê-la.
DISCUSSÃO
Se alguém afirmasse que o presente relato não é tanto um caso
analisado de histeria, e sim um caso solucionado por conjeturas, eu
nada teria a dizer contra ele. É certo que a paciente concordou que
aquilo que introduzi em sua história provavelmente era verdade, mas
ela não estava em condições de reconhecê-lo como algo que houvesse
experimentado. Creio que teria sido necessária a hipnose para
conseguir isso. Admitindo que minhas conjeturas tenham sido certas,
tentarei agora inserir o caso no quadro esquemático de uma histeria
“adquirida”, nos moldes sugeridos pelo Caso 3. Parece plausível,
portanto, comparar os dois conjuntos de experiências eróticas com
momentos “traumáticos”, e a cena da descoberta do casal, com um
momento “auxiliar”. | ver em [1] e seg.| A semelhança está no fato de
que, nas experiências anteriores, criou-se um elemento da consciência
que foiexcluído da atividade de pensamento do ego e permaneceu, por
assim dizer, armazenado, ao passo que, na última cena, uma nova
impressão ocasionou forçosamente uma ligação associativa entre esse
grupo separado e o ego. Por outro lado, existem diferenças que não
podem ser desprezadas. A causa do isolamento não foi, como no Caso
3, um ato de vontade do ego, mas ignorância por parte deste, que
ainda não era capaz de lidar com experiências sexuais. Nesse sentido,
o caso de Katharina é típico. Em toda análise de casos de histeria
baseados em traumas sexuais, verificamos que as impressões do
período pré-sexual que não produziram nenhum efeito na criança
atingem um poder traumático, numa data posterior, como lembranças,
quando a moça ou a mulher casada adquire uma compreensão da vida
sexual. Pode-se dizer que a divisão dos conjuntos psíquicos é um
processo normal no desenvolvimento do adolescente, sendo fácil ver
que sua recepção posterior pelo ego proporciona oportunidades
freqüentes para perturbações psíquicas. Além disso, gostaria, neste
ponto, de externar a dúvida de se uma divisão da consciência devida à
ignorância é realmente diferente de uma que se deva à rejeição
consciente, e se mesmo os adolescentes não possuem conhecimento
sexual com muito mais freqüência do que se supõe ou do que eles
mesmos acreditam.
Outra distinção no mecanismo psíquico deste caso reside no fato de
que a cena da descoberta, que classificamos de “auxiliar” merece
igualmente ser denominada de “traumática”. Ela atuou por seu próprio
conteúdo, e não simplesmente como alguma coisa que revivesse
experiências traumáticas anteriores. Combinou as características de
um momento “auxiliar” e de um momento “traumático”. Não parece
haver nenhum motivo, contudo, para que essa coincidência nos leve a
abandonar uma separação conceitual que em outros casos
corresponde também a uma separação no tempo. Outra peculiaridade
do caso de Katharina, que, aliás, há muito já nos é familiar, pode ser
observada na circunstância de que a conversão, a produção dos
fenômenos histéricos, não ocorreu imediatamente após o trauma, e
sim depois de um intervalo de incubação. Charcot gostava de
classificar esse intervalo de “período de elaboração |élaboration|
psíquica”.
A angústia de que Katharina sofria em suas crises era histérica, isto é,
era uma reprodução da angústia que surgira em conexão com cada um
dos traumas sexuais. Não comentarei aqui o fato que tenho encontrado
regularmente num número muito grande de casos — a saber, que a
mera suspeita de relações sexuais desperta o afeto de angústia nas
pessoas virgens. | ver em [1].|
CASO 5 - SRTA. ELISABETH VON R. (FREUD)
No outono de 1892, um médico meu conhecido pediu-me que
examinasse uma jovem que vinha sofrendo há mais de dois anos de
dores nas pernas e que tinha dificuldades em andar. Ao fazer esse
pedido, acrescentou que julgava tratar-se de um caso de histeria,
embora não houvesse nenhum vestígio das indicações habituais dessa
neurose. Disse-me conhecer ligeiramente a família, e que, nos últimos
anos, ela tivera muitos infortúnios e pouca felicidade. Primeiro, o pai da
paciente morrera, em seguida a mãe tivera de submeter-se a uma séria
operação da vista e logo depois uma irmã casada sucumbira a uma
afecção cardíaca de longa duração após o puerpério. De todas essas
dificuldades e todos os cuidados dispensados aos enfermos, a maior
parcela recaíra sobre nossa paciente.
Minha primeira entrevista com essa jovem de vinte e quatro anos de
idade não me ajudou a realizar grandes progressos na compreensão
do caso. Ela parecia inteligente e mentalmente normal, e suportava
seus problemas, que interferiam em sua vida social e seus prazeres,
com ar alegre — a belle indifférence dos histéricos, como não pude
deixar de pensar. Andava com a parte superior do corpo inclinada para
a frente, mas sem fazer uso de qualquer apoio. Sua marcha não era de
nenhum tipo patológico reconhecido e, além disso, de modo algum era
notavelmente mau. Tudo o que se observava era que ela se queixava
de grande dor ao andar e de se cansar rapidamente ao andar e ao ficar
de pé, e que depois de curto intervalo tinha de descansar, o que
diminuía as dores mas não as eliminava inteiramente. A dor era de
caráter indefinido; depreendi que era algo da natureza de uma fadiga
dolorosa. Uma área bastante grande e mal definida da superfície
anterior da coxa direita era indicada como o foco das dores, a partir da
qual elas se irradiavam com mais freqüência e onde atingiam sua
maior intensidade. Nessa região, a pele e os músculos eram também
particularmente sensíveis à pressão e aos beliscões (embora uma
picada de agulha provocasse, quando muito, certa dose de
indiferença). A hiperalgia da pele e dos músculos não se restringia a
essa região, mas podia ser observada mais ou menos em toda a
extensão das duas pernas. Os músculos eram talvez ainda mais
sensíveis à dor do que a pele;mas não havia dúvida de que as coxas
eram as partes mais sensíveis a essas duas espécies de dor. A força
motora das pernas não podia ser qualificada de pequena e os reflexos
eram de intensidade média. Não havia outros sintomas, de modo que
não existia fundamento para se suspeitar da presença de qualquer
afecção orgânica grave. O distúrbio se desenvolvera gradativamente
durante os dois anos anteriores e variava bastante em intensidade.
Não achei fácil chegar a um diagnóstico, mas resolvi por duas razões
concordar com o que fora proposto por meu colega, isto é, que se
tratava de um caso de histeria. Em primeiro lugar, fiquei impressionado
com a indefinição de todas as descrições do caráter das dores
fornecidas pela paciente, que era, não obstante, uma pessoa muito
inteligente. Um paciente que sofra de dores orgânicas, a menos que
além disso seja neurótico, as descreverá de forma definida e calma.
Dirá, por exemplo, que são dores lancinantes, que ocorrem a certos
intervalos, que se estendem deste lugar para aquele e que lhe
parecem ser provocadas por uma coisa ou outra. Por outro lado,
quando um neurastênico descreve suas dores, dá a impressão de
estar empenhado numa difícil tarefa intelectual que ultrapassa em
muito suas forças. Suas feições se contraem e se deformam como se
ele estivesse sob a influência de um afeto angustiante. A voz torna-se
mais aguda e ele luta por encontrar um meio de expressão. Rejeita
qualquer descrição de suas dores proposta pelo médico, mesmo que
ela depois se revele inquestionavelmente adequada. Percebe-se que
ele é da opinião de que a linguagem é pobre demais para que ele
encontre palavras para descrever suas sensações e de que essas
sensações são algo único e até então desconhecido do qual seria
inteiramente impossível dar uma descrição completa. Por esse motivo,
ele jamais se cansa de acrescentar novos detalhes sem cessar e,
quando é obrigado a parar, com certeza fica com a convicção de que
não conseguiu se fazer entender pelo médico. Tudo isso porque as
dores atraíram toda a atenção dele para elas. A Srta. von R.
comportava-se de forma inteiramente oposta, e somos levados a
concluir que, já que ela ainda assim atribuía importância suficiente a
seus sintomas, sua atenção devia estar em outra coisa, da qual as
dores eram apenas um fenômeno acessório — provavelmente,
portanto, em pensamentos e sentimentos que estavam vinculados a
elas.
Mas existe um segundo fator que é ainda mais decisivamente favorável
a essa opinião sobre as dores. Quando estimulamos uma região
sensível à dor em alguém com uma doença orgânica ou num
neurastênico, o rosto do paciente assume uma expressão de mal-estar
ou de dor física. Além disso, ele se esquiva, retrai-se e resiste ao
exame. No caso da Srta. von R., contudo, quando se pressionava ou
beliscava a pele e os músculos hiperalgésicos de suas pernas, seu
rosto assumia uma expressão peculiar, que era antes de prazer do que
de dor. Ela gritava mais e eu não podia deixar de pensar que era como
se ela estivesse tendo uma voluptuosa sensação de cócega — o rosto
enrubescia, ela jogava a cabeça para trás e fechava os olhos, e seu
corpo se dobrava para trás. Nenhum desses movimentos era muito
exagerado, mas era distintamente observável, e isso só podia ser
conciliado com o ponto de vista de que seu distúrbio era histérico e de
que o estímulo tocara uma zona histerogênica.
Sua expressão facial não se ajustava à dor evidentemente provocada
pela beliscadura dos músculos e da pele; provavelmente se
harmonizava mais com o tema dos pensamentos que jaziam ocultos
por trás da dor e que eram despertados nela pela estimulação das
partes do corpo associadas com esses pensamentos. Observei
repetidamente expressões de significado semelhante em casos
incontestáveis de histeria, quando se aplicava um estímulo às zonas
hiperalgésicas. Os outros gestos da paciente eram, é claro, indícios
muito leves de um ataque histérico.
Para começar, não havia explicação para a localização inusitada de
sua zona histerogênica. O fato de a hiperalgia afetar principalmente os
músculos também dava o que pensar. O distúrbio mais habitualmente
responsável pela sensibilidade difusa e local à pressão nos músculos é
uma infiltração reumática desses músculos — o reumatismo muscular
crônico comum. Já mencionei | ver em. [1]| a tendência desse distúrbio
a simular afecções nervosas. Essa possibilidade não entrava em
contradição com a consistência dos músculos hiperalgésicos da
paciente. Havia numerosas fibras endurecidas na substância muscular
e estas pareciam ser especialmente sensíveis. Assim, era provável que
uma alteração muscular orgânica da espécie indicada estivesse
presente e que a neurose se houvesse ligado a ela, fazendo-a parecer
exageradamente importante.
O tratamento prosseguiu na suposição de que o distúrbio fosse dessa
espécie mista. Recomendamos a continuação da massagem e
faradização sistemática dos músculos sensíveis, independentemente
da dor resultante, e reservei para mim o tratamento das pernas com
correntes elétricas de alta tensão, a fim de poder manter-me em
contato com a paciente. Sua pergunta quanto a se deveria forçar-se a
andar foi respondida com um incisivo “sim”.
Dessa maneira, promovemos uma ligeira melhora. Em especial, ela
parecia gostar muito dos choques dolorosos produzidos pelo aparelho
de alta-tensão, e quanto mais fortes estes eram, mais pareciam afastar
suas próprias dores para um segundo plano. Entrementes, meu colega
preparava o terreno para o tratamento psíquico, e quando, após quatro
semanas de meu pretenso tratamento, propus a ela o outro método e
lhe dei algumas explicações sobre seu processamento e modo de
ação, obtive rápida compreensão e pouca resistência.
A tarefa em que então me empenhei veio a ser, entretanto, uma das
mais árduas que já empreendi, e a dificuldade de fazer um relato dela
é comparável, além disso, às dificuldades que tive então de superar.
Também por muito tempo fui incapaz de apreender a conexão entre os
fatos de sua doença e seus sintomas reais, que, não obstante,
deveriam ter sido causados e determinados por aquele conjunto de
experiências.
Quando se inicia um tratamento catártico dessa natureza, a primeira
pergunta que se faz é se a própria paciente tem consciência da origem
e da causa precipitante de sua doença. Em caso afirmativo, não se faz
necessária nenhuma técnica especial para permitir-lhe reproduzir a
história de sua doença. O interesse que o médico demonstra por ela, a
compreensão que lhe permite sentir e as esperanças de recuperação
que lhe dá, tudo isso faz com que a paciente se decida a revelar seu
segredo. Desde o início me pareceu provável que a Srta. Elisabeth
estivesse consciente da causa de sua doença, que o que guardava na
consciência fosse apenas um segredo, e não um corpo estranho.
Contemplando-a, não se podia deixar de pensar nas palavras do poeta:
Das Maeskchen da weissagt verborgnen Sinn
A princípio, portanto, pude dispensar a hipnose, porém com a ressalva
de que poderia fazer uso dela posteriormente, se no curso de sua
confissão surgisse algum material cuja elucidação não estivesse ao
alcance de sua memória. Ocorreu assim que nesta, que foi a primeira
análise integral de uma histeria empreendida por mim, cheguei a um
processo que mais tarde transformei num método regular e empreguei
deliberadamente. Esse processo consistia em remover o material
psíquico patogênico camada por camada e gostávamos de compará-lo
à técnica de escavar uma cidade soterrada. Eu começava por fazer
com que a paciente me contasse o que sabia e anotava
cuidadosamente os pontos em que alguma seqüência de pensamentos
permanecia obscura ou em que algum elo da cadeia causal parecia
estar faltando. E depois penetrava em camadas mais profundas de
suas lembranças nesses pontos, realizando uma investigação sob
hipnose ou utilizando alguma técnica semelhante. Todo o trabalho
baseava-se, naturalmente, na expectativa de que seria possível
identificar um conjunto perfeitamente adequado de determinantes para
os fatos em questão. Examinarei agora os métodos utilizados para a
investigação profunda.
A história que a Srta. Elisabeth me relatou de sua doença foi cansativa,
composta de muitas experiências penosas diferentes. Enquanto fazia o
relato, ela não ficava sob hipnose, mas eu a fazia deitar-se e conservar
os olhos fechados, embora não me opusesse a que os abrisse
ocasionalmente, mudasse de posição, se sentasse e assim por diante.
Quando ela ficava mais profundamente emocionada do que de
costume com uma parte da história, parecia cair num estado mais ou
menos semelhante à hipnose. Ficava então imóvel e mantinha os olhos
bem fechados.
Começarei por repetir o que surgiu como a camada mais superficial de
suas lembranças. Sendo a mais jovem de três filhas, ela era
ternamente apegada aos pais e passara a juventude na propriedade
deles, na Hungria. A saúde da mãe era freqüentemente perturbada por
uma afecção dos olhos, bem como por estados nervosos. Foi assim
que ela se viu atraída para um contato muito íntimo com o pai, um
homem alegre e experiente conhecedor da vida que costumava dizer
que aquela filha ocupava o lugar de um filho e de um amigo com quem
ele podia trocar idéias. Embora a mente da moça encontrasse estímulo
intelectual nessa relação com o pai, ele não deixava de observar que a
constituição mental dela estava, por causa disso, afastando-se do ideal
que as pessoas gostam de ver concretizado numa moça. Em tom
brincalhão, ele a chamava de “insolente” e “convencida” e a
aconselhava a não ser categórica demais em seus julgamentos,
advertindo-a contra o hábito de dizer a verdade às pessoas sem medir
as conseqüências e muitas vezes dizendo que ela teria dificuldades em
achar um marido. Ela se sentia, de fato, muito descontente por ser
mulher. Tinha muitos planos ambiciosos. Queria estudar ou receber
educação musical e ficava indignada com a idéia de ter de sacrificar
suas inclinações e sua liberdade de opinião pelo casamento. Assim,
nutria-se de seu orgulho pelo pai e do prestígio e posição social da
família, e guardava zelosamente tudo o que se relacionava com essas
vantagens. O altruísmo, contudo, com que colocava em primeiro lugar
a mãe e as irmãs mais velhas, quando surgia a ocasião, reconciliava
inteiramente seus pais com o lado mais áspero do seu caráter.
Em vista da idade das moças, ficou resolvido que a família se mudaria
para a capital, onde Elisabeth, durante um curto espaço de tempo,
pôde desfrutar de uma vida mais completa e mais alegre no círculo
familiar. Mas sobreveio então o golpe que destruiu a felicidade da
família. O pai ocultara, ou talvez tivesse ele próprio subestimado, uma
afecção crônica do coração, e um dia foi levado inconsciente para
casa, com um edema pulmonar. Foi assistido durante dezoito meses, e
Elisabeth agiu no sentido de desempenhar o papel principal junto a seu
leito de doente. Dormia no quarto dele, estava pronta a despertar
quando ele a chamava à noite, cuidava dele durante o dia e
obrigava-se a parecer alegre, enquanto ele se conformava com seu
estado irremediável, mostrando uma resignação sem queixas. O início
da doença dela deve ter-se relacionado com esse período de desvelos,
pois ela se recordava de que, durante os últimos seis meses, ficara
acamada por um dia e meio por causa das dores que descrevemos.
Ela asseverou, porém, que essas dores passaram rapidamente e não
lhe haviam causado nenhuma inquietação nem atraído sua atenção. E,
de fato, só dois anos após o falecimento do pai foi que ela se sentiu
doente e ficou impossibilitada de andar por causa das dores.
A lacuna causada na vida dessa família de quatro mulheres pela morte
do pai, seu isolamento social, a interrupção de tantas relações que
prometiam trazer-lhe interesse e diversão, a saúde precária da mãe,
que então se tornou mais acentuada — tudo isso lançou uma sombra
sobre o estado de espírito da paciente; mas, ao mesmo tempo,
despertou-lhe um vivo desejo de que sua família logo pudesse
encontrar algo para substituir a felicidade perdida, levando-a a
concentrar toda a sua afeição e cuidado na mãe que ainda vivia.
Quando o ano de luto havia passado, sua irmã mais velha casou-se
com um homem bem-dotado e dinâmico. Ele ocupava posição de
responsabilidade e sua capacidade intelectual parecia prometer-lhe um
grande futuro. Mas para com os conhecidos mais íntimos ele exibia
uma sensibilidade mórbida e uma insistência egoísta em suas
excentricidades. E foi o primeiro do círculo da família a ousar
demonstrar falta de consideração pela velha senhora. Isso foi demais
para Elisabeth. Ela se sentiu convocada a empreender uma luta contra
o cunhado sempre que ele lhe dava oportunidade para isso, enquanto
as outras mulheres não levavam a sério as explosões temperamentais
dele. Foi um desapontamento penoso para ela ver assim interrompida
a reconstrução da antiga felicidade da família, e ela não conseguia
perdoar a irmã casada pela complacência feminina com que esta
sempre evitava tomar partido. Elisabeth reteve na memória inúmeras
cenas ligadas a isso, envolvendo queixas parcialmente não
verbalizadas contra seu primeiro cunhado. Mas sua principal
recriminação a ele continuava a prender-se ao fato de, em nome de
uma possível promoção, ele ter-se mudado com sua pequena família
para uma remota cidade da Áustria e assim ter ajudado a aumentar o
isolamento da mãe. Nessa ocasião, Elisabeth sentiu de maneira
intensa seu desamparo, sua incapacidade de proporcionar à mãe um
substituto pela felicidade que perdera e a impossibilidade de levar a
cabo a intenção que tivera quando da morte do pai.
O casamento da segunda irmã pareceu prometer um futuro mais
brilhante para a família, pois o segundo cunhado, embora menos
bem-dotado intelectualmente, era do agrado daquelas mulheres cultas,
educado que fora, como acontecera com elas, para ter consideração
pelos outros. Seu comportamento reconciliou Elisabeth com a
instituição do matrimônio e com a idéia dos sacrifícios que este
implicava. Além disso, o segundo casal permaneceu morando perto da
mãe e o filho que tiveram tornou-se o predileto de Elisabeth.
Infelizmente, outro acontecimento veio lançar uma sombra sobre o ano
em que a criança nasceu. O tratamento do problema na vista da mãe
exigiu que ela permanecesse num quarto escuro por várias semanas,
durante as quais Elisabeth ficou com ela. Uma operação foi
considerada inevitável. A agitação diante dessa perspectiva coincidiu
com os preparativos para a mudança do primeiro cunhado. Finalmente,
a mãe saiu-se bem da operação, que foi realizada por mão de mestre.
As três famílias se reuniram numa estação de veraneio e esperou-se
que Elisabeth, que ficara exausta com as ansiedades dos últimos
meses, se recuperasse inteiramente durante o que seria o primeiro
período de libertação dos pesares e temores a ser desfrutado pela
família desde a morte do pai.
Foi precisamente durante essas férias, contudo, que as dores e a
fraqueza locomotora de Elisabeth começaram. Ela estivera mais ou
menos cônscia das dores por um curto período, mas elas sobrevieram
com violência, pela primeira vez, depois de ela ter tomado um banho
quente na pequena estação de águas. Alguns dias antes ela saíra para
dar um longo passeio — na verdade, uma caminhada que durou meio
dia —, o qual eles relacionaram com o aparecimento das dores, de
modo que foi fácil adotar o ponto de vista de que Elisabeth primeiro
ficara “cansada demais” e em seguida “se resfriara”.
A partir dessa época Elisabeth foi a inválida da família. Foi
aconselhada pelo médico a dedicar o resto do mesmo verão a um
período de tratamento hidropático em Gastein |nos Alpes austríacos|, e
viajou para lá com a mãe. Mas foi então que surgiu uma nova
preocupação. A segunda irmã ficara grávida novamente e as notícias
de seu estado eram extremamente desfavoráveis, de modo que a
custo pôde decidir-se a ir para Gastein. Ela e a mãe mal tinham
passado quinze dias lá quando foram chamadas de volta pelas notícias
de que a irmã se achava acamada e em estado gravíssimo.
Seguiu-se uma viagem angustiante, durante a qual Elisabeth foi
atormentada não só por suas dores como também por expectativas
sombrias. Quando as duas chegaram à estação, houve sinais que as
levaram a temer o pior; e ao entrarem no quarto da doente tiveram a
certeza de que haviam chegado tarde demais para se despedirem de
uma pessoa viva.
Elisabeth sofreu não só com a perda dessa irmã, a quem amava
ternamente, mas quase na mesma medida com os pensamentos
provocados pela morte dela e pelas mudanças que esta acarretou. A
irmã sucumbira a uma doença cardíaca que fora agravada pela
gravidez. Surgiu então a idéia de que a doença de coração fora
herdada do lado paterno da família. Recordou-se que a irmã morta
havia sofrido, no início da adolescência, de coréia, acompanhada de
um distúrbio cardíaco brando. A família culpou a si própria e aos
médicos por terem permitido o casamento, e foi impossível poupar o
infeliz do viúvo da acusação de ter posto em perigo a saúde da
esposa, ao provocar duas gestações em sucessão imediata. A partir
dessa época, os pensamentos de Elisabeth se ocuparam
ininterruptamente com a sombria reflexão de que quando, para variar,
as raras condições para um casamento feliz tinham sido preenchidas,
essa felicidade chegara a um fim terrível. Além disso, ela viu mais uma
vez o colapso de tudo o que desejara para a mãe. O cunhado viúvo
ficou inconsolável e afastou-se da família da esposa. Ao que parece, a
família dele, que se afastara durante seu breve e feliz casamento,
achou que aquele momento era favorável para atraí-lo de volta para
seu próprio círculo. Não houve meio de preservar a união que existira
anteriormente. Não era viável ele morar com a mãe dela, uma vez que
Elisabeth era solteira. Como ele também se recusasse a deixar a
criança, que era o único legado da esposa morta, sob a custódia das
duas mulheres, deu-lhes a oportunidade, pela primeira vez, de acusá-lo
de crueldade. Por fim — e este não foi o fato menos aflitivo — chegou
aos ouvidos de Elisabeth o boato de que surgira uma querela entre
seus dois cunhados. Ela só pôde tentar adivinhar-lhe a causa; mas, ao
que parecia, o viúvo formulara exigências de ordem financeira que o
outro declarou injustificáveis e que, na verdade, em vista do pesar da
mãe na ocasião, ele pôde caracterizar como chantagem da pior
espécie.
Essa era, portanto, a infeliz história dessa moça orgulhosa com sua
ânsia de amor. Incompatibilizada com seu destino, amargurada pelo
fracasso de todos os seus pequenos planos para o restabelecimento
das antigas glórias da família, com todos aqueles a quem amava
mortos, distantes ou estremecidos, e despreparada para refugiar-se no
amor de algum homem desconhecido, ela viveu dezoito meses em
reclusão quase completa, não tendo nada a ocupá-la senão os
cuidados com a mãe e com suas próprias dores.
Se pusermos de lado os grandes infortúnios e penetrarmos nos
sentimentos de uma moça, não poderemos deixar de sentir profunda
solidariedade humana pela Srta. Elisabeth. Mas que dizer do interesse,
puramente médico, dessa história de sofrimentos, de suas relações
com a dolorosa fraqueza locomotora da paciente e das possibilidades
de explicação e cura proporcionadas por nosso conhecimento desses
traumas psíquicos?
No que concerne ao médico, a confissão da paciente foi, à primeira
vista, uma grande decepção. Era um relato de choques emocionais
corriqueiros e nada havia que explicasse por que ela adoecera
precisamente de histeria ou por que sua histeria assumira a forma
específica de uma abasia dolorosa. O relato não esclarecia nem as
causas, nem a determinação específica de sua histeria. Talvez
pudéssemos presumir que a paciente havia estabelecido uma
associação entre suas impressões mentais dolorosas e as dores
corporais que por acaso estava experimentando na mesma época, e
que agora, em sua vida de lembranças, estivesse usando suas
sensações físicas como símbolo das mentais. Mas restava explicar
quais teriam sido seus motivos para fazer tal substituição e em que
momento ela ocorrera. Essas perguntas, aliás, não eram do tipo que os
médicos tinham por hábito formular. Em geral, nós nos contentávamos
com a afirmação de que um paciente era constitucionalmente histérico
e sujeito a desenvolver sintomas histéricos sob a pressão de
excitações intensas de qualquer natureza.
Aquela confissão parecia oferecer ainda menos ajuda para a cura de
sua doença do que para sua explicação. Não era fácil verificar que tipo
de influência benéfica a Srta. Elisabeth poderia obter da recapitulação
da história de seus sofrimentos de anos recentes — com os quais
todos os membros da sua família estavam acostumados — para um
estranho que a ouvia com solidariedade apenas moderada. Nem havia
qualquer sinal de que a confissão produzisse um efeito curativo dessa
espécie. Durante esse primeiro período de tratamento, ela nunca
deixou de repetir que ainda se sentia doente e que suas dores
continuavam intensas como sempre; e, quando dizia isso olhando-me
com uma expressão maliciosa de satisfação por eu estar confuso, eu
não podia deixar de me lembrar da opinião do velho Sr. von R. sobre
sua filha predileta — que ela era muitas vezes “insolente” e
“convencida”. Mas eu era obrigado a admitir que ela estava certa.
Se eu tivesse interrompido o tratamento psíquico da paciente nesse
estágio, o caso da Srta. Elisabeth von R. não teria lançado nenhuma
luz sobre a teoria da histeria. Mas continuei minha análise porque
esperava, convicto, que os níveis mais profundos de sua consciência
proporcionariam uma compreensão tanto das causas como dos
determinantes específicos dos sintomas histéricos. Resolvi, portanto,
formular uma pergunta direta à paciente, num estado ampliado de
consciência, e indagar-lhe qual teria sido a impressão psíquica à qual
se vinculara a primeira emergência de dores nas pernas.
Com essa finalidade em vista, propus-me pôr a paciente em hipnose
profunda. Infelizmente, porém, não pude deixar de observar que meu
procedimento não a colocara em nenhum outro estado a não ser
naquele em que ela fizera seu relato. Já me dei por satisfeito por ela
não ter protestado triunfalmente nessa ocasião: “Não estou dormindo,
sabe; não posso ser hipnotizada.” Nesse ponto, ocorreu-me a idéia de
recorrer ao expediente de aplicar-lhe a pressão na cabeça, cuja origem
descrevi na íntegra no caso clínico de Miss Lucy | ver em. [1] e segs.|.
Realizei isso instruindo a paciente para que me informasse com
fidelidade tudo o que aparecesse em sua imaginação ou de que se
lembrasse no momento da pressão. Ela ficou calada por muito tempo e
então, por insistência minha, admitiu ter pensado numa noite em que
um jovem a acompanhara até em casa depois de uma festa, da
conversa que houvera entre eles e dos sentimentos com que voltara
para casa a fim de ficar à cabeceira do pai enfermo.
Essa primeira menção ao rapaz abriu uma nova corrente de
representações cujos conteúdos extraí então gradativamente.
Tratava-se aqui de um segredo, pois ela não havia contado a ninguém,
exceto a um amigo comum, suas relações com esse rapaz e as
esperanças ligadas a elas. Ele era filho de uma família com a qual há
muito eles mantinham relações amistosas e que morava perto da
antiga propriedade de nossa paciente. O jovem, que era órfão, fora
devotadamente afeiçoado ao pai dela e seguira os conselhos deste no
tocante a sua carreira. Estendera sua admiração pelo pai às damas da
família. Numerosas lembranças de leituras feitas em comum, de trocas
de idéias e de observações feitas por ele que eram repetidas a ela por
outras pessoas apoiaram nela o gradual desenvolvimento da convicção
de que ele a amava e a compreendia e de que o casamento com ele
não implicaria sacrifícios por parte dela, sacrifícios esses que ela tanto
temia no casamento de maneira geral. Infelizmente, ele era pouco mais
velho do que ela e ainda estava longe de poder sustentar-se. Mas ela
estava firmemente determinada a esperar por ele.
Depois que o pai de Elisabeth adoeceu gravemente e ela ficou muito
ocupada em cuidar dele, seus encontros com o namorado se tornaram
cada vez mais raros. A noite da qual ela se recordara pela primeira vez
representou o que fora, na verdade, o clímax dos sentimentos dela,
mas mesmo nessa ocasião não tinha havido nenhum éclaircissement
entre eles. Naquela ocasião ela se deixara convencer, por insistência
da família e do próprio pai, a ir a uma festa em que era provável que o
encontrasse. Quisera voltar cedo para casa, mas fora pressionada a
ficar e cedera quando ele prometeu acompanhá-la até a residência
dela. Elisabeth nunca experimentou sentimentos tão afetuosos para
com ele como enquanto ele a acompanhou nessa noite. Mas ao chegar
tarde em casa, nesse estado de espírito abençoado, ela constatou que
o pai sofrera uma piora e se recriminou amargamente por ter
sacrificado tanto tempo à sua própria diversão. Essa foi a última vez
que se afastou do pai doente por uma noite inteira. Encontrou-se
poucas vezes com o namorado depois disso. Após a morte do pai, o
jovem pareceu afastar-se dela em sinal de respeito por seu pesar. O
curso de sua vida levou-o então por outros rumos. Ela teve de se
acostumar pouco a pouco com a idéia de que o interesse dele por ela
fora substituído por outros e de que ela o havia perdido. Mas essa
decepção em seu primeiro amor ainda a feria sempre que ela pensava
nele.
Foi nessa relação, portanto, e na cena descrita acima, na qual ela
atingiu seu auge, que pude procurar as causas de suas primeiras
dores histéricas. O contraste entre os sentimentos de alegria que ela
se permitira ter naquela ocasião e o agravamento do estado do pai
com que deparara ao voltar para casa constituiu um conflito, uma
situação de incompatibilidade. O resultado desse conflito foi que a
representação erótica foi recalcada para longe da associação e o afeto
ligado a essa representação foi utilizado para intensificar ou reviver
uma dor física que estivera presente simultaneamente ou pouco antes.
Assim, tratava-se de um exemplo do mecanismo de conversão com
finalidade de defesa, o qual descrevi com pormenores em outro texto.
Vários comentários, é claro, podem ser feitos a esta altura. Devo
ressaltar que não consegui estabelecer, com base em suas
recordações, se a conversão ocorreu no momento de sua volta à casa.
Assim, procurei por experiências semelhantes durante o tempo em que
ela cuidou do pai e trouxe à tona grande número delas. Entre estas,
uma importância especial se prendeu, por causa de sua ocorrência
freqüente, a cenas em que, a chamado do pai, ela pulava da cama de
pés descalços num quarto frio. Eu me senti inclinado a atribuir alguma
importância a esses fatores, visto que além de se queixar de dor nas
pernas, ela também se queixava de torturantes sensações de frio. Não
obstante, mesmo aqui fui incapaz de obter qualquer cena passível de
ser identificada como aquela em que ocorreu a conversão. Por essa
razão, eu me sentia inclinado a achar que havia uma lacuna na
explicação nesse ponto, até me lembrar que, de fato, as dores
histéricas nas pernas não haviam surgido durante o período em que
ela estava cuidando do pai. Ela só se recordava de um único acesso
de dor, que durara apenas um ou dois dias e não lhe chamara a
atenção | ver em. [1]|. Dirigi então minhas indagações para esse
primeiro aparecimento das dores. Consegui reavivar com segurança a
lembrança que a paciente tinha dele. Precisamente naquela ocasião
um parente os visitara e ela não pudera recebê-lo por estar de cama.
Esse mesmo homem fora infeliz o bastante para visitá-las novamente
dois anos depois, para encontrá-la de cama mais uma vez. Mas,
apesar de repetidas tentativas, não conseguimos descobrir qualquer
causa psíquica para as primeiras dores. Julguei seguro presumir que,
de fato, elas haviam surgido sem nenhuma causa psíquica e eram uma
afecção reumática branda; e pude estabelecer que esse distúrbio
orgânico, que foi o modelo copiado em sua histeria posterior, teria de
ser situado, de qualquer modo, antes da cena em que ela voltara da
festa acompanhada. A julgar pela natureza das coisas, não obstante, é
possível que essas dores, sendo de origem orgânica, tivessem
persistido por algum tempo em grau atenuado, sem serem muito
percebidas. A obscuridade devida ao fato de que a análise apontava
para a ocorrência de uma conversão de excitação psíquica em dor
física, embora essa dor certamente não fosse percebida na ocasião em
questão ou relembrada em época posterior — esse é um problema que
espero poder solucionar mais tarde, com base em outras
considerações e em exemplos posteriores. | ver em [1] |
A descoberta da razão da primeira conversão abriu um segundo
período profícuo do tratamento. A paciente surpreendeu-me logo
depois, ao anunciar que agora sabia por que era que as dores sempre
se irradiavam daquela região específica da coxa direita e atingiam ali
sua maior intensidade: era nesse lugar que seu pai costumava apoiar a
perna todas as manhãs, enquanto ela renovava a atadura em torno
dela, pois estava muito inchada. Isso deve ter acontecido uma centena
de vezes, mas ela não havia notado a ligação até esse momento.
Assim, ela me forneceu a explicação de que eu precisava quanto ao
surgimento do que era uma zona histerogênica atípica. Além disso,
suas pernas doloridas começaram a “participar da conversa” durante
nossas sessões de análise. | ver em [1].| O que tenho em mente é o
seguinte fato notável: em geral, a paciente estava sem dor quando
começávamos a trabalhar. Se então, por meio de uma pergunta ou
pela pressão na sua cabeça, eu despertava uma lembrança, surgia
uma sensação de dor, e esta era comumente tão aguda que a paciente
estremecia e punha a mão no ponto doloroso. A dor assim despertada
persistia enquanto a paciente estivesse sob a influência da lembrança;
alcançava seu clímax quando ela estava no ato de me contar a parte
essencial e decisiva do que tinha a comunicar, e com a última palavra
desse relato, desaparecia. Com o tempo, passei a utilizar essas dores
como uma bússola para minha orientação: quando a moça parava de
falar mas admitia ainda estar sentindo dor, eu sabia que ela não me
havia contado tudo e insistia para que continuasse sua história, até que
a dor se esgotasse pela fala. Só então eu despertava uma nova
lembrança.
Durante esse período de ‘ab-reação’, o estado da paciente, tanto físico
quanto mental, teve uma melhora tão notável que eu costumava dizer,
meio de brincadeira, que estava retirando um pouco de seus motivos
de dor de cada vez e que, quando os tivesse eliminado inteiramente,
ela ficaria boa. Elisabeth logo chegou ao ponto de passar a maior parte
do tempo sem dor; deixou-se convencer a caminhar bastante e a
abandonar seu isolamento anterior. No curso da análise, ora eu
acompanhava as oscilações espontâneas do estado da paciente, ora
seguia minha própria estimativa da situação, quando achava não ter
esgotado inteiramente alguma parte da história de sua doença.
Durante esse trabalho, fiz algumas observações interessantes, cujas
lições vi confirmadas mais tarde, ao tratar de outros pacientes. Quanto
às oscilações espontâneas, em primeiro lugar, constatei que, na
verdade, não ocorrera nenhuma que não tivesse sido provocada por
associação com algum evento contemporâneo. Numa ocasião, ela
ouvira falar de uma doença de um de seus conhecidos, o que a fez
lembrar-se de um detalhe da doença do pai; de outra feita, o filho da
irmã morta fora visitá-las e sua semelhança com a mãe provocara nela
sentimentos de pesar; e ainda noutra ocasião uma carta da irmã
distante mostrou claramente a influência do cunhado insensível e
causou-lhe uma dor que a obrigou a relatar a história de uma cena
familiar que ainda não me contara. Visto que ela nunca trazia à tona
duas vezes a mesma causa precipitante para uma dor, parecia-me
justificado supor que assim esgotaríamos o estoque dessas causas.
Desse modo, eu não hesitava em colocá-la em situações projetadas
para despertar novas lembranças que ainda não tivessem alcançado a
superfície. Por exemplo, mandei-a visitar o túmulo da irmã e
encorajei-a a ir a uma festa, em que poderia mais uma vez encontrar o
namorado de sua juventude.
A seguir, consegui algum discernimento sobre o modo originário do
que poderia ser chamado de histeria “monossintomática”. Verifiquei
que sua perna direita doía durante a hipnose quando a discussão
versava sobre os cuidados que ela dispensara ao pai enfermo, ou
sobre suas relações com o namorado da mocidade, ou sobre outros
acontecimentos que se enquadravam no primeiro período de suas
experiências patogênicas; por outro lado, a dor surgia na outra perna, a
esquerda, tão logo eu provocava uma lembrança relacionada com a
irmã morta ou com os dois cunhados — em suma, com uma impressão
proveniente da segunda metade da história de sua doença. Tendo
assim minha atenção despertada pela regularidade dessa relação,
levei minha pesquisa adiante e fiquei com a impressão de que essa
diferenciação ia ainda mais além e que cada novo determinante
psíquico de sensações dolorosas ficara ligado a algum ponto novo da
região dolorosa das pernas. O ponto doloroso original de sua coxa
direita se relacionara com os cuidados prestados ao pai; a região da
dor estendera-se desse ponto para regiões vizinhas, como resultado
de novos traumas. O que tínhamos aqui, portanto, não era,
rigorosamente falando, um sintoma físico único, ligado a uma
variedade de complexos mnêmicos na mente, mas sim um grande
número de sintomas semelhantes, que pareciam, numa visão
superficial, estar fundidos num único sintoma. Mas, ao verificar que a
atenção da paciente se desviava desse tema, não prossegui com a
delimitação das zonas de dor correspondentes aos diferentes
determinantes psíquicos.
Não deixei, contudo, de voltar minha atenção para o modo como todo o
complexo sintomático da abasia poderia ter-se estruturado nessas
zonas dolorosas e, nesse sentido, fiz várias perguntas à paciente, tais
como: Qual foi a origem de suas dores ao andar? E ao ficar de pé? E
ao deitar-se? A algumas dessas perguntas ela respondeu
espontaneamente, a outras sob a pressão de minha mão. Duas coisas
resultaram daí. Em primeiro lugar, ela dividiu em grupos para mim
todas as cenas a que estavam vinculadas impressões dolorosas,
conforme as tivesse experimentado enquanto estava sentada ou de pé,
e assim por diante. Por exemplo, estava de pé junto a uma porta
quando o pai foi levado para casa logo após o ataque cardíaco | ver em
[1]| e, com o susto, ficara paralisada como se tivesse raízes no chão.
Continuou acrescentando várias outras lembranças a esse primeiro
exemplo de susto quando se achava de pé, até chegar à cena
assustadora em que, mais uma vez, estava de pé, como que
enfeitiçada, junto ao leito de morte da irmã | ver em [1]|. Poder-se-ia
esperar que toda essa cadeia de lembranças mostrasse haver uma
conexão verdadeira entre suas dores e o ficar de pé, e a rigor ela
poderia ser aceita como prova de uma associação. Mas convém
lembrar que seria preciso comprovar a presença de um outro fator em
todos esses eventos, um fator que lhe teria dirigido a atenção
precisamente para o fato de estar de pé (ou, conforme o caso,
andando, sentada, etc.) e, por conseguinte, levado à conversão. A
explicação para o fato de sua atenção ter tomado esse rumo só pode
ser buscada na circunstância de que andar, ficar de pé e deitar são
funções e estados da parte do corpo que, no caso dela, abrangiam as
zonas dolorosas: a saber, as pernas. Portanto, foi fácil compreender
nesse caso a ligação entre a astasia-abasia e a primeira ocorrência da
conversão.
Entre os episódios que, de acordo com esse catálogo, pareceram ter
tornado doloroso o andar, um recebeu destaque especial: um passeio
que ela fizera na estação de águas em companhia de várias outras
pessoas | ver em [1]-[2]| e que teria sido longo demais. Os detalhes
desse episódio só emergiram de maneira hesitante e deixaram vários
enigmas não solucionados. Ela estivera num estado de ânimo
particularmente dócil e se juntou, alegremente, a seu grupo de amigos.
O dia estava bonito e não fazia muito calor. A mãe ficou em casa e a
irmã mais velha já tinha ido embora. A irmã mais moça sentiu-se mal,
mas não quis estragar o prazer dela; o cunhado primeiro disse que
ficaria com a esposa, mas depois resolveu juntar-se ao grupo por
causa de Elisabeth. Essa cena parecia estar estreitamente relacionada
com o primeiro aparecimento das dores, pois ela se lembrou de ter
ficado muito cansada e de ter sentido uma dor violenta ao voltar do
passeio. Disse, contudo, não estar certa de já ter percebido as dores
antes disso. Fiz-lhe ver que era improvável que tivesse empreendido
uma caminhada tão longa se já tivesse sentido quaisquer dores fortes.
Perguntei-lhe o que na caminhada poderia ter provocado a dor, e ela
me forneceu a resposta um tanto obscura de que o contraste entre sua
própria solidão e a felicidade conjugal da irmã enferma (felicidade esta
que o comportamento do cunhado lhe lembrava constantemente) fora
doloroso para ela.
Outra cena, muito próxima da primeira no tempo, teve seu papel na
ligação das dores com o sentar. Ocorreu alguns dias depois, quando a
irmã e o cunhado já haviam ido embora. Ela estava inquieta e ansiosa.
Levantou-se cedo e subiu uma pequena colina, indo até um lugar onde
muitas vezes eles tinham estado juntos e que proporcionava uma linda
vista. Sentou-se num banco de pedra e se abandonou a seus
pensamentos, que mais uma vez diziam respeito a sua solidão e ao
destino de sua família, e dessa vez confessou abertamente o desejo
intenso de ser tão feliz quanto a irmã. Retornou dessa meditação
matinal com dores violentas e, naquela mesma noite, tomou o banho
após o qual as dores surgiram em caráter definitivo e permanente | ver
em [1]|.
Constatou-se ainda, sem qualquer sombra de dúvida, que suas dores
ao andar e ao ficar de pé eram, de início, aliviadas quando ela se
deitava. As dores só passaram a se relacionar com o ficar deitada
quando, após ter notícia da doença da irmã, ela viajou de volta de
Gastein [loc. cit.] e foi atormentada durante a noite tanto pela
preocupação com a irmã quanto por dores lancinantes, tendo ficado
estendida e insone no vagão de trem. E por muito tempo depois disso,
deitar-se foi, na realidade, mais doloroso para ela do que andar ou ficar
de pé.
Dessa forma, em primeiro lugar, a região dolorosa se estendera com o
acréscimo de áreas adjacentes: cada novo tema que exercia um efeito
patogênico catexizara uma nova região das pernas; em segundo lugar,
cada uma das cenas que lhe haviam causado uma forte impressão
deixara um vestígio, provocando uma catexia duradoura e
constantemente acumulada das várias funções das pernas, uma
ligação dessas funções com suas sensações dolorosas. Mas um
terceiro mecanismo indubitavelmente estivera envolvido na formação
de sua astasia-abasia. A paciente encerrou sua descrição de uma série
de episódios com a queixa de que eles lhe haviam tornado doloroso o
fato de “ficar sozinha”. Em outra série de episódios, que abrangiam
suas tentativas frustradas de estabelecer uma nova vida para sua
família, ela nunca se cansou de repetir que o doloroso nelas tinha sido
seu sentimento de desamparo, o sentimento de que não podia “dar um
único passo à frente”. Em vista disso, fui forçado a supor que entre as
influências que contribuíram para a formação de sua abasia, tiveram
papel essas suas reflexões; não pude deixar de pensar que a paciente
não fizera nada mais nada menos do que procurar uma expressão
simbólica para seus pensamentos dolorosos, e que a encontrara na
intensificação de seus sofrimentos. O fato de que os sintomas
somáticos da histeria podem ser produzidos por uma simbolização
dessa natureza já foi afirmado em nossa “Comunicação Preliminar” |
ver em [1]|. Na discussão do presente caso, apresentarei dois ou três
exemplos conclusivos disso. | ver em [1] e segs.| Esse mecanismo
psíquico de simbolização não exerceu um papel importante na Srta.
Elisabeth von R, não criou sua abasia. Mas tudo contribui para mostrar
que a abasia que já estava presente recebeu assim um reforço
considerável. Por conseguinte, essa abasia, na fase de
desenvolvimento em que a encontrei, devia ser igualada não só a uma
paralisia funcional baseada em associações psíquicas, mas também a
uma paralisia baseada na simbolização.
Antes de prosseguir meu relato do caso, acrescentarei algumas
palavras sobre o comportamento da paciente durante essa segunda
fase do tratamento. No curso de toda a análise usei a técnica de
provocar o surgimento de imagens e idéias através da pressão sobre a
cabeça da paciente, um método, vale dizer, que seria impraticável sem
a plena cooperação e a atenção voluntária da paciente. | ver em [1] e
segs.| Por vezes, realmente, seu comportamento correspondeu às
minhas melhores expectativas, e durante tais períodos foi
surpreendente a prontidão com que as diferentes cenas relacionadas
com um dado tema surgiram numa ordem rigorosamente cronológica.
Era como se ela estivesse lendo um extenso livro ilustrado cujas
páginas estivessem sendo viradas diante de seus olhos. Em outras
ocasiões, parecia haver impedimentos de cuja natureza eu não
desconfiava na época. Quando lhe pressionava a cabeça, ela
sustentava que nada lhe havia ocorrido. Eu repetia a pressão e lhe
dizia que esperasse, mas ainda assim nada aparecia. Nas primeiras
vezes em que surgiu, essa recalcitrância permitiu-me interromper o
trabalho: era um dia desfavorável, tentaríamos em outra ocasião. Duas
observações, contudo, levaram-me a alterar minha atitude. Notei, em
primeiro lugar, que o método só falhava quando eu encontrava
Elisabeth alegre e sem dor, e nunca quando ela se sentia mal. Em
segundo lugar, reparei que muitas vezes ela fazia essas afirmações de
não ter visto nada depois de deixar passar um longo intervalo durante o
qual, não obstante, a expressão tensa e preocupada de seu rosto traía
o fato de haver um processo mental em curso. Resolvi, portanto,
adotar a hipótese de que o método nunca falhava: de que, em todas as
ocasiões, sob a pressão da minha mão, alguma idéia ocorria a
Elisabeth ou alguma imagem surgia diante de seus olhos, mas ela nem
sempre estava preparada para comunicá-las a mim e tentava reprimir
mais uma vez o que fora evocado. Consegui pensar em dois motivos
para esse encobrimento. Ou ela estava criticando a idéia, o que não
tinha nenhum direito de fazer, com o pretexto de que não era
suficientemente importante ou de que era uma resposta irrelevante à
pergunta que lhe fora formulada, ou estava hesitando em exibi-la por
achá-la muito desagradável de contar. Passei a agir, portanto, como se
estivesse inteiramente convencido da confiabilidade da minha técnica.
Não aceitava mais sua declaração de que nada lhe havia ocorrido e
assegurava a ela que algo devia ter acontecido. Talvez, dizia eu, ela
não tivesse prestado bastante atenção, e nesse caso eu teria prazer
em repetir a pressão. Ou talvez ela achasse que sua idéia não era a
idéia certa. Isso, dizia-lhe eu, não era problema dela; sua obrigação
era a de ser inteiramente objetiva e dizer o que lhe viesse à cabeça,
quer fosse apropriado, quer não. Por fim, eu declarava saber muito
bem que algo lhe havia ocorrido e que ela o estava ocultando de mim,
mas que jamais se livraria de suas dores enquanto escondesse
qualquer coisa. Ao insistir dessa maneira, consegui que, a partir dessa
época minha pressão sobre sua cabeça jamais falhasse. Não pude
deixar de concluir que minha opinião estava certa e extraí dessa
análise uma confiança literalmente irrestrita em minha técnica. Muitas
vezes acontecia de só depois de eu pressionar-lhe a cabeça por três
vezes é que ela me dava uma informação. Mas ela mesma observava
depois: “Poderia ter-lhe dito isso da primeira vez.” — “E por que não
disse?” — “Pensei que não fosse o que era preciso”, ou “Pensei que
pudesse evitá-lo, mas ficava voltando todas as vezes”. No curso desse
difícil trabalho, comecei a atribuir maior importância à resistência
oferecida pela paciente na reprodução de suas lembranças e a
compilar cuidadosamente as ocasiões em que era particularmente
acentuada.
Cheguei então à terceira fase do tratamento. A paciente sentia-se
melhor. Fora mentalmente aliviada e era agora capaz de esforços
bem-sucedidos. Mas suas dores, manifestamente, não tinham sido
eliminadas, repetiam-se de tempos em tempos e com toda a sua antiga
gravidade. Esse resultado terapêutico incompleto correspondia a uma
análise incompleta. Eu ainda não sabia exatamente em que momento e
por qual mecanismo as dores se haviam originado. Durante a
reprodução da grande variedade de cenas da segunda fase e enquanto
observava a resistência da paciente em falar-me delas, eu havia
formado uma suspeita específica. Não me aventurava ainda, contudo,
a adotá-la como base para minha ação subseqüente. Mas uma
ocorrência fortuita resolveu o assunto. Um dia, enquanto trabalhava
com a paciente, ouvi passos de um homem na sala contígua e uma voz
agradável que parecia estar formulando alguma pergunta. Minha
paciente levantou-se de imediato e pediu para interrompermos os
trabalhos por aquele dia: tinha ouvido o cunhado chegar e perguntar
por ela. Até esse momento ela estivera livre de dor, mas, após a
interrupção, sua expressão facial e seu andar traíram o súbito
surgimento de dores agudas. Minha suspeita foi fortalecida por esse
fato e decidi-me a precipitar a explicação decisiva.
Assim, perguntei-lhe pelas causas e circunstâncias da primeira vez em
que as dores haviam surgido. À guisa de resposta, seus pensamentos
se voltaram para a visita de verão à estação de águas antes de sua
viagem a Gastein, e inúmeras cenas que não tinham sido tratadas de
maneira muito completa surgiram de novo. Ela se lembrou de como se
sentia na época, de como estava esgotada após a preocupação com a
visão da mãe e os cuidados prestados a ela na época da operação, e
de como por fim perdera a esperança de que uma moça solitária como
ela pudesse ter alguma felicidade na vida ou realizar alguma coisa. Até
então ela se julgara forte o bastante para poder passar sem a ajuda de
um homem, mas agora se via dominada pelo sentimento de sua
fraqueza como mulher e por um anseio de amor no qual, citando suas
próprias palavras, sua natureza congelada começava a derreter-se.
Nesse estado de espírito, ela foi profundamente afetada pelo
casamento feliz da segunda irmã — por ver com que tocante carinho o
cunhado cuidava dela, como os dois se entendiam com um simples
olhar e como pareciam seguros um do outro. Sem duvida, era
lastimável que a segunda gravidez tivesse vindo tão perto da primeira,
e a irmã sabia que esse era o motivo de sua doença, mas como a
suportava de bom grado por ter sido ele o causador! Por ocasião do
passeio que estava tão intimamente ligado às dores de Elisabeth, o
cunhado a princípio não se mostrara disposto a participar e desejara
permanecer ao lado da esposa enferma. Ela, porém, o persuadira com
um olhar a acompanhá-los, por achar que isso daria prazer a Elisabeth.
Elisabeth permaneceu na companhia dele durante todo o passeio.
Falaram sobre todos os assuntos, até os mais íntimos. Ela se
descobriu em completo acordo com tudo o que ele dizia, e o desejo de
ter um marido como ele acentuou-se muito. Então, alguns dias depois,
veio a cena da manhã após a partida da irmã e do cunhado, quando
ela foi ao local que tinha uma vista bonita e que fora o preferido nos
passeios deles. Ali, sentou-se e sonhou mais uma vez em desfrutar de
uma felicidade como a da irmã e em encontrar um marido que
soubesse cultivar-lhe o coração, como seu cunhado cativara o dela.
Sentiu dor ao levantar-se, mas esta passou mais uma vez. Foi somente
à tarde, depois de ter tomado o banho quente, que as dores
irromperam, e ela nunca mais se livrou delas. Tentei descobrir que
pensamentos lhe teriam ocupado a mente enquanto ela tomava banho,
mas soube apenas que o banheiro a fizera recordar-se dos membros
da família que haviam partido, pois fora naquela casa que eles tinham
ficado.
Como era inevitável, tudo isso já ficara claro para mim há muito tempo.
Mas a paciente, mergulhada em suas lembranças acridoces, não
parecia notar para onde se estava encaminhando e continuou a
reproduzir suas recordações. Passou a falar de sua visita a Gastein, da
ansiedade com que aguardava cada carta e finalmente das más
notícias sobre a irmã, da longa espera até o anoitecer, que foi o
primeiro momento em que puderam partir de Gastein, e então da
viagem, feita numa torturante incerteza, e da noite insone — tudo isso
acompanhado por um violento aumento das dores. Perguntei-lhe se
durante a viagem havia pensado na possibilidade deplorável que
depois se concretizou. Respondeu-me que evitara cuidadosamente
pensar nela, mas acreditava que desde o início a mãe havia esperado
o pior. Suas lembranças passaram então à chegada a Viena, à
impressão que lhes causaram os parentes que as esperavam, à curta
viagem de Viena até a estação de veraneio próxima onde morava a
irmã, à chegada à noite, à caminhada apressada pelo jardim até a
porta da casa ajardinada, ao silêncio que reinava em seu interior e à
escuridão opressiva. Lembrou que o cunhado não estava lá para
recebê-las e que ficaram diante da cama, olhando para a irmã morta.
Naquele momento de terrível certeza de que a irmã amada estava
morta sem ter-lhes dito adeus, e sem que ela lhe tivesse aliviado os
últimos dias com seus cuidados, naquele exato momento outro
pensamento atravessou a mente de Elisabeth, e agora se impunha de
maneira irresistível a ela mais uma vez, como um relâmpago nas
trevas: “Agora ele está livre novamente e posso ser sua esposa.”
Tudo ficou claro então. Os esforços do analista foram ricamente
recompensados. Os conceitos de “rechaço” de uma representação
incompatível, da gênese dos sintomas histéricos através da conversão
de excitações psíquicas em algo físico e da formação de um grupo
psíquico separado, através do ato de vontade que conduziu ao rechaço
— todas essas coisas, naquele momento, apareceram diante de meus
olhos de forma concreta. Assim, e de nenhuma outra maneira, as
coisas haviam ocorrido nesse caso. Essa moça sentia pelo cunhado
uma ternura cuja aceitação na consciência deparara com a resistência
de todo o seu ser moral. Ela conseguiu poupar-se da dolorosa
convicção de que amava o marido da irmã induzindo dores físicas em
si mesma. E foi nos momentos em que essa convicção procurou
impor-se a ela (no passeio com o cunhado, durante o devaneio matinal,
no banho e junto ao leito da irmã) que suas dores surgiram, graças à
conversão bem-sucedida. Na época em que comecei o tratamento
dela, o grupo de representações relativas a seu amor já havia sido
separado de seu conhecimento. De outra forma, penso eu, ela jamais
teria concordado em iniciar o tratamento. A resistência que ela havia
repetidamente oferecido à reprodução das cenas que atuaram de
forma dramática correspondera, na verdade, à energia com que a
representação incompatível fora expulsa de suas associações.
O período que se seguiu, porém, foi árduo para o médico. O resgate
dessa representação recalcada teve um efeito devastador sobre a
pobre moça. Ela chorou alto quando lhe expus secamente a situação
com as palavras: “Quer dizer que, durante muito tempo, você esteve
apaixonada por seu cunhado. ”Nesse momento, ela queixou-se das
dores mais terríveis e fez um último e desesperado esforço para
rejeitar a explicação: não era verdade, eu a havia induzido àquilo, não
podia ser verdade, ela seria incapaz de tanta maldade, jamais poderia
perdoar-se por isso. Foi fácil provar-lhe que o que ela própria me
dissera não admitia outra interpretação. Mas passou-se muito tempo
antes que meus dois argumentos consoladores — o de que não somos
responsáveis por nossos sentimentos e o de que seu comportamento,
o fato de ter adoecido naquelas circunstâncias, era prova suficiente de
seu caráter moral — passou-se muito tempo antes que essas minhas
consolações a impressionassem um mínimo que fosse.
Para minorar os sofrimentos da paciente, tive então que percorrer mais
de um caminho. Em primeiro lugar, eu queria dar-lhe uma oportunidade
de se livrar da excitação que se vinha acumulando há tanto tempo
através da “ab-reação”. Vasculhamos as primeiras impressões que
suas relações com o cunhado lhe causaram, o início dos sentimentos
por ele que ela mantivera inconscientes. Aí deparamos com todos os
pequenos sinais e impressões premonitórios a que uma paixão
plenamente desenvolvida confere tanta importância em retrospectiva.
Na primeira visita que fizera à família, ele a confundira com a moça
com quem iria casar-se e a cumprimentara antes da irmã mais velha,
de aparência um tanto insignificante. Certa noite, os dois conversavam
com tanta animação e pareciam dar-se tão bem que a noiva os
interrompeu num tom parcialmente sério, com a seguinte observação:
“A verdade é que vocês dois se ajustariam de maneira esplêndida.” De
outra vez, numa festa em que ninguém sabia do noivado dele,
falava-se do rapaz e uma senhora criticou-lhe um defeito físico que
indicava que ele tivera uma doença óssea na infância. A própria noiva
ouviu isso tranqüilamente, mas Elisabeth inflamou-se e defendeu a
simetria do físico de seu futuro cunhado com um zelo que ela própria
não pôde compreender. À medida que fomos trabalhando essas
lembranças, tornou-se claro para Elisabeth que seu sentimento
afetuoso pelo cunhado estivera latente por muito tempo, talvez mesmo
desde que o conhecera e ficara escondido todo aquele tempo atrás da
máscara de uma mera afeição fraterna, que seu senso familiar muito
desenvolvido permitia-lhe aceitar como natural.
Esse processo de ab-reação certamente lhe fez muito bem. Mas pude
aliviá-la ainda mais ao me interessar como amigo por sua situação
atual. Com essa finalidade em mente, providenciei uma entrevista com
a Sra. von R. Verifiquei ser ela uma senhora compreensiva e sensível,
embora seu ânimo vital tivesse sido abatido pelos recentes infortúnios.
Soube por ela que, num exame mais detido, a acusação de chantagem
insensível que o cunhado mais velho proferira contra o viúvo, e que
fora tão penosa para Elisabeth, tivera de ser retirada. Não restou
nenhuma mancha no caráter do rapaz. Tudo fora um mal-entendido
devido aos valores diferentes que, como se pode ver facilmente, são
atribuídos ao dinheiro por um homem de negócios, para quem o
dinheiro constitui um instrumento de sua profissão, e por um servidor
público. Nada além disso restara do penoso episódio. Pedi à mãe dela
que, a partir daquele momento contasse a Elisabeth tudo o que ela
precisava saber, e que no futuro lhe desse a oportunidade de
descarregar sua mente, coisa a que eu já a teria habituado.
Eu também estava, naturalmente, ansioso para saber que possibilidade
haveria de que o desejo da moça, do qual ela agora tinha consciência,
se concretizasse. Aqui, as perspectivas eram menos favoráveis. A mãe
contou-me que há muito adivinhara os sentimentos de Elisabeth pelo
rapaz, embora não soubesse que esses sentimentos já existiam
quando a irmã era viva. Ninguém que visse os dois juntos — embora,
na verdade, isso agora ocorresse raramente — poderia duvidar da
ânsia da moça em agradá-lo. Mas, disse, nem ela (a mãe) nem os
conselheiros da família eram muito favoráveis a um casamento. A
saúde do rapaz não era nada boa e recebera um novo golpe com a
morte da esposa amada. Também não era nada certo que o estado
mental dele já se houvesse recuperado o bastante para que ele fizesse
um novo casamento. Talvez fosse por isso que ele se comportava com
tanta reserva; talvez, também, estivesse incerto da acolhida que
poderia ter e desejasse evitar os comentários que provavelmente
seriam feitos. Em vista dessas restrições de ambos os lados, era
improvável que a solução pela qual ansiava Elisabeth viesse a ocorrer.
Disse à moça o que ouvira da mãe dela e tive a satisfação de ajudá-la
ao dar-lhe a explicação sobre a questão do dinheiro. Por outro lado,
encorajei-a a enfrentar com calma a incerteza sobre o futuro, que era
impossível dissipar. Mas a essa altura, a aproximação do verão tornou
urgente que encerrássemos a análise. O estado da paciente estava de
novo melhor e não se falara mais em suas dores desde que
começáramos a investigar-lhes as causas. Ambos tínhamos a
sensação de havermos chegado ao fim, embora eu dissesse a mim
mesmo que a ab-reação do amor que ela havia refreado por tanto
tempo não se realizara completamente. Considerei-a curada e
disse-lhe que a solução de suas dificuldades se processaria por sua
própria conta, agora que o caminho fora aberto. Ela não questionou
isso. Partiu de Viena com a mãe para encontrar-se com a irmã mais
velha e a família desta, a fim de passarem juntas o verão.
Tenho algumas palavras a acrescentar sobre o curso posterior do caso
da Srta. Elisabeth von R. Algumas semanas depois de nos termos
separado, recebi uma carta desesperada de sua mãe. Na primeira
tentativa que fizera, disse-me ela, de discutir os assuntos sentimentais
da filha com ela, a moça se rebelara violentamente e desde então
passara a sofrer de dores intensas mais uma vez. Ficara indignada
comigo por eu ter traído seu segredo. Mostrava-se inteiramente
inacessível e o tratamento fora um fracasso completo. O que se
deveria fazer agora? — perguntou. Elisabeth se recusava a ter mais
qualquer outra coisa a ver comigo. Não respondi a isso. Era evidente
que Elisabeth, depois de sair dos meus cuidados, faria mais uma
tentativa de rejeitar a intervenção da mãe e refugiar-se mais uma vez
no isolamento. Mas eu tinha uma espécie de convicção de que tudo
acabaria bem e de que o trabalho que eu tivera não fora em vão. Dois
meses depois elas voltaram a Viena, e o colega que me apresentara o
caso deu-me notícias de que Elisabeth se sentia perfeitamente bem e
se comportava como se não houvesse nada de errado com ela,
embora ainda sofresse ocasionalmente de leves dores. Várias vezes
desde então ela me enviou mensagens semelhantes e, em cada uma
delas, prometeu vir ver-me. Mas é característico da relação pessoal
que se estabelece nos tratamentos dessa natureza que ela nunca o
tenha feito. Como me assegura meu colega, ela deve ser considerada
curada. A ligação do cunhado dela com a família permaneceu
inalterada.
Na primavera de 1894, eu soube que ela iria a um baile particular para
o qual eu poderia obter um convite, e não deixei escapar a
oportunidade de ver minha ex-paciente passar por mim rodopiando
numa dança animada. Depois dessa ocasião, por sua própria vontade,
casou-se com alguém que não conheço.
DISCUSSÃO
Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas, fui
preparado para empregar diagnósticos locais e eletroprognósticos, e
ainda me causa estranheza que os relatos de casos que escrevo
pareçam contos e que, como se poderia dizer, falte-lhes a marca de
seriedade da ciência. Tenho de consolar-me com a reflexão de que a
natureza do assunto é evidentemente a responsável por isso, e não
qualquer preferência minha. A verdade é que o diagnóstico local e as
reações elétricas não levam a parte alguma no estudo da histeria, ao
passo que uma descrição pormenorizada dos processos mentais,
como as que estamos acostumados a encontrar nas obras dos
escritores imaginativos, me permite, com o emprego de algumas
fórmulas psicológicas, obter pelo menos alguma espécie de
compreensão sobre o curso dessa afecção. Os casos clínicos dessa
natureza devem ser julgados como psiquiátricos; entretanto, possuem
uma vantagem sobre estes últimos, a saber: uma ligação íntima entre a
história dos sofrimentos do paciente e os sintomas de sua doença —
uma ligação pela qual ainda procuramos em vão nas biografias das
outras psicoses.
Ao relatar o caso da Srta. Elisabeth von R., esforcei-me por entrelaçar
as explicações que pude fornecer sobre o caso com minha descrição
do curso da recuperação da paciente. Talvez valha a pena reunir mais
uma vez os pontos importantes. Descrevi o caráter da paciente — as
características que são encontradas com tanta freqüência nas pessoas
histéricas e que não há nenhuma desculpa para se considerar como
conseqüência da degenerescência: seus talentos variados, sua
ambição, sua sensibilidade moral, sua excessiva exigência de amor, a
princípio atendida pela família, e a independência de sua natureza, que
ia além do ideal feminino e encontrava expressão numa dose
considerável de obstinação, combatividade e reserva. Nenhuma
mancha hereditária apreciável, segundo me disse meu colega, pôde
ser encontrada em qualquer dos dois lados da família. É verdade que a
mãe sofrera por muitos anos de uma depressão neurótica que não fora
investigada, mas os irmãos e as irmãs da mãe, assim como o pai e a
família deste, podiam ser considerados pessoas equilibradas, sem
problemas nervosos. Não ocorrera nenhum caso grave de
neuropsicose entre os parentes próximos.
Tal era a natureza da paciente, que agora se via dominada por
emoções dolorosas, a começar pelo efeito depressivo de cuidar de seu
querido pai durante uma doença prolongada.
Há bons motivos para que o fato de cuidar de pessoas doentes
desempenhe um papel tão significativo na pré-história dos casos de
histeria. Muitos dos fatores em ação são óbvios: a perturbação da
saúde física que decorre do sono interrompido, o desleixo para consigo
mesmo e o efeito da preocupação constante sobre as próprias funções
vegetativas. Em minha opinião, porém, deve-se procurar o
determinante mais importante em outra parte. Qualquer pessoa cuja
mente seja ocupada pelas mil e uma tarefas envolvidas na prestação
de cuidados a pessoas enfermas, tarefas essas que se seguem umas
às outras numa sucessão interminável por um período de semanas e
meses, adotará, por um lado, o hábito de suprimir todos os sinais de
sua própria emoção, e por outro, logo desviará a atenção de suas
próprias impressões, visto não ter nem tempo nem forças para
apreciá-las devidamente. Assim, acumula uma massa de impressões
passíveis de carregar afeto, que mal chegam a ser suficientemente
percebidas e que, de qualquer modo, não foram enfraquecidas pela
ab-reação. Está criando material para uma “histeria de retenção”.
Quando o doente se recupera, é claro, todas essas impressões
perdem seu significado. Mas quando ele morre e se instala então o
período de luto, no qual as únicas coisas que parecem ter valor são as
que se relacionam com a pessoa que morreu, aquelas impressões que
ainda não foram trabalhadas entram igualmente em cena, e após um
breve intervalo de exaustão, irrompe a histeria, cujas sementes foram
lançadas durante o tempo de prestação de cuidados ao doente.
Também deparamos ocasionalmente com esse mesmo fato de os
traumas acumulados durante a prestação de cuidados a um enfermo
serem enfrentados mais tarde, sem que haja nenhuma impressão geral
de doença, mas retendo-se ainda assim o mecanismo da histeria. É o
caso, por exemplo, de uma senhora que conheço, extremamente
bem-dotada, que sofre de leve nervosismo e cujo caráter, como um
todo, apresenta traços de histeria, embora ela nunca tenha tido que
procurar assistência médica ou ficado impossibilitada de cumprir seus
deveres. Ela já cuidou até o fim de três ou quatro pessoas a quem
amava. A cada vez, chegava a um estado de completo esgotamento,
mas não adoecia depois desses trágicos esforços. Pouco depois da
morte de cada paciente seu, contudo, iniciava-se nela um trabalho de
reprodução que mais uma vez lhe colocava diante dos olhos as cenas
da doença e da morte. Todos os dias ela repassava cada uma
daquelas impressões, chorava e se consolava — a seu bel-prazer,
poder-se-ia dizer. Esse processo de lidar com suas impressões
encaixava-se em suas tarefas cotidianas sem que as duas atividades
interferissem uma na outra. A situação inteira lhe passava pela mente
em seqüência cronológica. Não sei dizer se o trabalho de
rememoração correspondia dia a dia ao passado. Desconfio que isso
dependia do número de horas de lazer proporcionadas por seus
afazeres domésticos correntes.
Além dessas explosões de choro com que ela compensava o atraso e
que ocorriam logo após o término fatal da doença, essa senhora
celebrava festivais anuais de lembranças no período de suas várias
catástrofes, e nessas ocasiões sua nítida reprodução visual e suas
expressões de sentimento se atinham rigorosamente às datas exatas.
Por exemplo, uma vez encontrei-a chorando a perguntei-lhe
amavelmente o que acontecera naquele dia. Ela repeliu minha
pergunta, um pouco irritada: “Não foi nada”, disse, “foi só que o
especialista esteve aqui hoje novamente e nos deu a entender que não
havia {#V2_P186} mais nenhuma esperança. Não tive tempo de chorar
por causa disso na hora”. Referia-se à última doença do marido, que
falecera três anos antes. Muito me interessaria saber se as cenas que
ela relembrava nesses festivais anuais de recordações eram sempre
as mesmas, ou se a cada vez se apresentavam detalhes diferentes
para fins de ab-reação, tal como suspeito em vista de minha teoria.
Mas não posso saber com certeza. Essa senhora, que não tinha
menos força de caráter do que inteligência, sentia-se envergonhada do
efeito violento que essas reminiscências tinham sobre ela.
Devo frisar mais uma vez que essa mulher não está doente; sua
ab-reação retardada não era um processo histérico, por mais que se
assemelhasse a tal processo. Podemos perguntar por que uma
situação de velar por doentes é acompanhada de histeria e outra, não.
Não pode ser uma questão de predisposição individual, pois esta se
achava presente em alto grau na senhora de que falei.
Mas devo agora voltar à Srta. Elisabeth von R. Enquanto cuidava do
pai, como vimos, ela desenvolveu pela primeira vez um sintoma
histérico — uma dor numa região específica da coxa direita. Por meio
da análise, foi possível encontrar uma elucidação adequada para o
mecanismo do sintoma. Ele aconteceu no momento em que o círculo
de idéias que abrangia seus deveres para com o pai enfermo entrou
em conflito com o conteúdo do desejo erótico que ela estava sentindo
na época. Sob a pressão de intensas autocensuras, ela se decidiu em
favor do primeiro e, ao fazê-lo, provocou a dor histérica.
De acordo com a visão sugerida pela teoria conversiva da histeria o
que aconteceu pode ser descrito da seguinte maneira. Ela recalcou
uma idéia erótica fora da consciência e transformou a carga de seu
afeto em sensações físicas de dor. Não ficou claro se esse primeiro
conflito se apresentou a ela numa única ocasião ou em várias; a
segunda alternativa é a mais provável. Um conflito exatamente
semelhante — embora de maior significação ética e ainda mais
claramente estabelecido pela análise — desenvolveu-se de novo
alguns anos depois e levou a uma intensificação e uma extensão das
mesmas dores para além dos limites originais. Mais uma vez, foi um
círculo de representações de natureza erótica que entrou em conflito
com todas as suas representações morais, pois suas inclinações
centralizaram-se no cunhado e, tanto durante a vida da irmã como
depois de sua morte, a representação de ser atraída precisamente por
esse homem lhe era totalmente inaceitável. A análise proporcionou
informações pormenorizadas sobre esse conflito, que foi o ponto
central da história da doença. Os germes do sentimento da paciente
pelo cunhado podiam ter estado presentes por muito tempo; seu
desenvolvimento foi favorecido pela exaustão física devida à ampliação
dos cuidados com os doentes e pela exaustão moral devida às
decepções que se estendiam por muitos anos. A frieza de sua
natureza começou a ceder e ela admitiu para si mesma sua
necessidade do amor de um homem. Durante as várias semanas que
passou na companhia dele na estação de águas, seus sentimentos
eróticos, bem como suas dores, alcançaram seu clímax.
A análise, além disso, deu provas de que durante o mesmo período a
paciente se encontrava num estado psíquico especial. A ligação desse
estado com seus sentimentos eróticos e suas dores parece possibilitar
a compreensão do que aconteceu segundo a teoria da conversão.
Parece-me seguro afirmar que, na época, a paciente só se
conscientizou claramente de seus sentimentos pelo cunhado, por mais
poderosos que fossem, numas poucas ocasiões, e mesmo assim
apenas momentaneamente. Se tivesse sido de outra forma, ela
também se teria conscientizado, inevitavelmente, da contradição entre
esses sentimentos e suas representações morais, e teria
experimentado tormentos mentais como os que a observei ter depois
de nossa análise. Ela não se lembrava de nenhum sofrimento desse
tipo; havia-os evitado. Sucedeu que seus próprios sentimentos não
ficaram claros para ela. Naquela época, assim como durante a análise,
seu amor pelo cunhado estava presente em sua consciência, como um
corpo estranho, sem entrar em relação com o restante de sua vida
representativa. Com relação a esses sentimentos, ela estava na
situação peculiar de saber e, ao mesmo tempo, de não saber —
situação, vale dizer, em que um grupo psíquico é isolado. Mas isto, e
nada mais, é o que queremos dizer quando afirmamos que esses
sentimentos não estavam claros para ela. Não queremos dizer que a
consciência deles fosse de qualidade inferior ou de menor grau, mas
sim que eles foram isolados de qualquer livre conexão associativa de
pensamento com o resto do conteúdo representativo de sua mente.
Mas como poderia ocorrer que um grupo representativo com tanta
força emocional fosse mantido tão isolado? Afinal de contas, em geral
o papel desempenhado nas associações por uma idéia aumenta,
proporcionalmente à quantidade de afetos que há nela.
Poderemos responder a essa pergunta se levarmos em conta dois
fatos que podemos usar como estabelecidos com certeza. (1)
Simultaneamente à formação desse grupo psíquico isolado, a paciente
desenvolveu suas dores histéricas. (2) A paciente ofereceu forte
resistência à tentativa de se promover uma associação entre o grupo
psíquico isolado e o resto do conteúdo de sua consciência; e quando,
apesar disso, a ligação se realizou, ela sentiu uma grande dor
psíquica. Nossa visão da histeria relaciona esses dois fatos com a
divisão de sua consciência, afirmando que o segundo deles indica o
motivo para a divisão da consciência, ao passo que o primeiro indica
seu mecanismo. O motivo foi o de defesa — a recusa, por parte de
todo o ego da paciente, a chegar a um acordo com esse grupo
representativo. O mecanismo foi o de conversão, isto é, em lugar das
dores mentais que ela evitou, surgiram as dores psíquicas. Desse
modo, efetuou-se uma transformação que teve a vantagem de livrar a
paciente de uma condição mental intolerável, embora, é verdade, à
custa de uma anormalidade psíquica — a divisão da consciência que
se efetuou — e de uma doença física — suas dores, sobre as quais se
desenvolveu uma astasia-abasia.
Devo confessar que não posso oferecer nenhuma indicação de como
se processa uma conversão dessa natureza. Evidentemente, ela não
se efetua da mesma maneira que uma ação intencional e voluntária. É
um processo que ocorre sob a pressão da motivação de defesa em
alguém cuja organização — ou modificação temporária dela — tem
uma tendência nesse sentido.
Essa teoria exige um exame mais detido. Podemos perguntar: o que é
que se transforma aqui em dor física? Uma resposta cautelosa seria:
algo que talvez se tivesse transformado e que deveria ter-se
transformado em dor mental. Se nos aventurarmos um pouco mais e
tentarmos representar o mecanismo representativo numa espécie de
quadro algébrico, poderemos atribuir uma certa carga de afeto ao
complexo representativo dos sentimentos eróticos que permaneceram
inconscientes e dizer que essa quantidade (a carga afetiva) é o que foi
convertido. Resultaria diretamente dessa descrição que o “amor
inconsciente” teria perdido tanto de sua intensidade através de uma
conversão desse tipo que se teria reduzido a apenas uma
representação fraca. Essa redução da força seria, então, a única coisa
que tornou possível a existência desses sentimentos inconscientes
como um grupo psíquico isolado. O presente caso, contudo, não se
presta bem a dar um quadro nítido de um assunto tão delicado, pois
nele provavelmente só houve conversão parcial; em outros, pode-se
demonstrar com probabilidade que a conversão completa também
ocorre, e que nela a representação incompatível é de fato “recalcada”,
como somente uma representação de intensidade muito fraca pode
ser. Os pacientes em questão declaram, depois que a ligação
associativa com a representação incompatível se estabelece, que seus
pensamentos não se voltavam para ela desde o aparecimento dos
sintomas histéricos.
Afirmei anteriormente | ver em [1]| que em algumas ocasiões, embora
apenas por um momento, a paciente reconheceu conscientemente seu
amor pelo cunhado. Como exemplo disso, podemos recordar o
momento em que ela se encontrava de pé junto à cama da irmã e um
pensamento lhe cruzou a mente: “Agora ele está livre e você pode ser
sua esposa” | ver em [1]|. Cabe-me agora considerar o significado
desses momentos em sua relação com nossa visão de toda a neurose.
Parece-me que o próprio conceito de “histeria de defesa” implica que
pelo menos um desses momentos deve ter ocorrido. A consciência
simplesmente não sabe por antecipação quando uma representação
incompatível vai aflorar. A representação incompatível, que juntamente
com as que lhe estão associadas é depois excluída e forma um grupo
psíquico separado, deve originalmente ter estado em comunicação
com a corrente principal de pensamento. De outra forma, o conflito que
levou a sua exclusão não poderia ter ocorrido. São esses momentos,
portanto, que devem ser classificados de “traumáticos”; é nesses
momentos que ocorre a conversão, cujos resultados são a divisão da
consciência e o sintoma histérico. No caso da Srta. Elisabeth von R.,
tudo indica que ocorreram vários desses momentos — as cenas do
passeio, o devaneio matinal, o banho e a presença à cabeceira da
irmã. É até possível que novos momentos da mesma espécie tenham
acontecido durante o tratamento. O que possibilita a existência de
vários desses momentos traumáticos é que as experiências
semelhantes à que originalmente introduziu a representação
incompatível acrescentam uma nova excitação ao grupo psíquico
separado e, desse modo, suspendem temporariamente o êxito da
conversão. O ego é obrigado a prestar atenção a essa irrupção súbita
da representação e a restaurar o antigo estado de coisas através de
uma nova conversão. A Srta. Elisabeth, que passava muito tempo na
companhia do cunhado, deve ter ficado particularmente sujeita à
ocorrência de novos traumas. Do ponto de vista da minha exposição
atual, eu teria preferido um caso em que a história traumática se
situasse inteiramente no passado.
Cabe-me agora tocar num ponto que conforme descrevi | ver em [1]-[2]|
levanta um obstáculo à compreensão desse caso. Baseando-se na
análise, presumi que uma primeira conversão havia ocorrido quando a
paciente estava cuidando do pai, na época em que seus deveres de
enfermeira entraram em conflito com seus desejos eróticos, e que o
que aconteceu então foi o protótipo dos eventos posteriores, na
estação de águas nos Alpes, que levaram à irrupção da doença. Mas
parecia, pelo relato da paciente, que enquanto cuidava do pai e
durante o tempo que se seguiu — o que descrevi como o “primeiro
período” — ela não teve nenhuma dor e nenhuma fraqueza
locomotora. É verdade que certa vez, durante a doença do pai, ela
esteve acamada por alguns dias com dores nas pernas, mas
permaneceu uma dúvida quanto a determinar se esse ataque deveria
ser atribuído à histeria. Não se pôde achar na análise nenhuma ligação
causal entre essas primeiras dores e qualquer impressão psíquica. É
possível, e na realidade provável, que o que ela sentia na época
fossem dores musculares reumáticas comuns. Além disso, mesmo que
estivéssemos inclinados a supor que esse primeiro acesso de dores foi
o efeito de uma conversão histérica devida ao repúdio de seus
pensamentos eróticos na época, permanece o fato de que as dores
desapareceram depois de apenas alguns dias, de modo que a paciente
se comportara, na vida real, de maneira diferente do que pareceu
indicar na análise. Durante a reprodução do que denominei de primeiro
período, todas as histórias da paciente sobre a doença e morte do pai,
sobre suas impressões acerca do relacionamento com o primeiro
cunhado, e assim por diante, foram acompanhadas de dores, ao passo
que, na época em que efetivamente vivenciou essas impressões, ela
não sentira dor alguma. Não seria esta uma contradição destinada a
reduzir bastante nossa crença no valor explicativo de uma análise
como esta?
Creio que posso solucionar essa contradição presumindo que as dores
— os produtos da conversão — não ocorreram enquanto a paciente
estava experimentando as impressões do primeiro período, mas só
posteriormente, isto é, no segundo período, enquanto reproduzia essas
impressões em seus pensamentos. Em outras palavras, a conversão
não se deu ligada a suas impressões enquanto novas, mas sim em
conexão com suas lembranças das mesmas. Acredito mesmo que
esse curso dos acontecimentos não é nada incomum na histeria e que,
na verdade, desempenha um papel regular na gênese dos sintomas
histéricos. Mas como uma afirmação desse tipo não é evidente em si
mesma, tentarei torná-la mais plausível apresentando mais alguns
exemplos.
Certa vez aconteceu que um novo sintoma histérico se desenvolveu
numa paciente em pleno curso de um tratamento analítico dessa
espécie, de modo que pude empreender a tarefa de me livrar dele um
dia após seu aparecimento. Interpolarei aqui as principais
características do caso. Foi um caso bem simples, porém não
destituído de interesse.
A Srta. Rosalia H., de vinte e três anos de idade, vinha há alguns anos
estudando para tornar-se cantora. Tinha boa voz, mas se queixava de
que, em certas partes de seu registro, perdia o controle sobre ela.
Tinha uma sensação de sufocamento e de constrição na garganta, de
modo que sua voz soava velada. Por esse motivo seu professor ainda
não pudera consentir que ela se apresentasse em público como
cantora. Embora essa imperfeição lhe afetasse apenas o registro
médio, não podia ser atribuída a um defeito no próprio órgão. Às vezes
a perturbação desaparecia por completo e seu professor expressava
grande satisfação; em outras ocasiões, bastava ela estar um pouco
agitada, algumas vezes sem nenhuma causa aparente, para que a
sensação de constrição reaparecesse e a produção da voz fosse
prejudicada. Não foi difícil reconhecer uma conversão histérica nessa
sensação extremamente perturbadora. Não tomei nenhuma
providência para descobrir se havia de fato uma contratura dos
músculos das cordas vocais. Durante a análise hipnótica que realizei
com a moça vim a saber dos seguintes fatos sobre sua história e,
conseqüentemente, sobre a causa de seu problema. Ela perdera os
pais cedo e fora levada para morar com uma tia que tinha muitos filhos.
Em conseqüência disso, envolveu-se numa vida familiar muito infeliz. O
marido da tia, que era uma pessoa visivelmente patológica, maltratava
de maneira brutal a esposa e os filhos. Feria os sentimentos deles,
sobretudo pela forma como demonstrava uma evidente preferência
sexual pelas criadas e amas da casa; e quanto mais os filhos foram
crescendo, mais ofensivo isso se tornou. Após a morte da tia, Rosalia
tornou-se a protetora da multidão de crianças que agora eram órfãs e
oprimidas pelo pai. Ela levava seus deveres a sério e superou todos os
conflitos a que sua posição a conduziu, embora isso requeresse
grande esforço para reprimir o ódio e o desprezo que sentia pelo tio.
Foi nessa época que a sensação de constrição na garganta começou.
Todas as vezes que tinha de refrear uma resposta, ou se obrigava a
ficar calada em face de alguma acusação ultrajante, sentia a garganta
arranhar e apertar e perdia a voz — todas as sensações localizadas na
laringe ou na faringe que agora interferiam com o canto. Não era de
admirar que ela buscasse uma oportunidade para se tornar
independente e escapar das agitações e das experiências aflitivas que
ocorriam diariamente na casa do tio. Um professor de canto muito
competente ajudou-a de modo desinteressado e lhe assegurou que
sua voz justificava que escolhesse o canto como profissão. Ela
começou então a tomar lições com ele em segredo. Mas muitas vezes
saía às pressas para a aula de canto enquanto ainda tinha a constrição
na garganta, que costumava persistir após cenas violentas em casa.
Como conseqüência, estabeleceu-se com firmeza uma ligação entre o
canto e sua paraestesia histérica — uma ligação para a qual o caminho
foi preparado pelas sensações orgânicas provocadas pelo canto. O
aparelho sobre o qual ela deveria ter pleno controle quando cantava
revelou-se catexizado com resíduos de inervação que sobraram das
numerosas cenas de emoção reprimida. Depois dessa época, ela
abandonou a casa do tio e se mudou para outra cidade, para ficar
longe da família. Mas isso não eliminou sua dificuldade.
Essa moça bonita e excepcionalmente inteligente não exibia quaisquer
outros sintomas histéricos.
Fiz o melhor que pude para livrá-la dessa “histeria de retenção”
fazendo-a narrar todas as suas experiências perturbadoras e a
ab-reagi-las a posteriori. Fiz com que destratasse o tio, lhe passasse
sermões, lhe dissesse a verdade nua e crua e assim por diante, e esse
tratamento lhe fez bem. Infelizmente, contudo, ela vivia em Viena em
condições muito desfavoráveis. Não tinha sorte com os parentes. Fora
alojada por outro tio, que a tratava de maneira amistosa, mas
exatamente por esse motivo a tia tomara aversão a ela. Essa mulher
suspeitava que o marido tinha um interesse mais profundo pela
sobrinha e, assim resolveu tornar-lhe a estada em Viena tão
desagradável quanto possível. A própria tia, em sua mocidade, fora
obrigada a desistir de uma carreira artística e invejava a sobrinha por
poder cultivar seu talento, embora no caso da moça não tivesse sido
seu desejo, mas sua necessidade de independência, que lhe
determinara a decisão. Rosalie sentia-se tão constrangida na casa que
não se aventurava, por exemplo, a cantar ou tocar piano enquanto a tia
pudesse ouvi-la, e evitava cuidadosamente cantar ou tocar para o tio
(que, aliás, era um senhor idoso, irmão de sua mãe) quando havia
alguma possibilidade de a tia entrar. Enquanto eu tentava eliminar os
vestígios de antigas agitações, surgiram outras a partir dessas
relações com seu anfitrião e sua anfitrioa, que por fim interferiram no
êxito do meu tratamento e o levaram a um fim prematuro.
Um dia a paciente chegou para a sessão com um novo sintoma, que
não chegava a ter vinte e quatro horas. Queixava-se de uma
desagradável sensação de alfinetadas nas pontas dos dedos, as quais,
segundo disse, vinha sentindo com intervalos de poucas horas desde o
dia anterior e que a obrigavam a fazer um movimento peculiar de
contorção dos dedos. Não cheguei a observar um acesso, caso
contrário sem dúvida teria podido adivinhar, pela natureza dos
movimentos, o que os havia ocasionado. Mas imediatamente tentei
seguir a trilha da explicação do sintoma (era, na verdade, um ataque
histérico menor) pela análise hipnótica. Visto que a coisa só começara
a existir há tão pouco tempo, eu tinha esperança de poder explicar
rapidamente o sintoma e eliminá-lo. Para minha surpresa, a paciente
desfiou um grande número de cenas, sem hesitação e em ordem
cronológica, a começar por sua primeira infância. Pareciam ter em
comum o fato de lhe ter sido causado algum dano do qual ela não
pudera defender-se e que teria feito seus dedos estremecerem. Eram
cenas, por exemplo, como a de ter que estender a mão na escola para
que o professor lhe batesse com uma régua. Mas tinham sido ocasiões
muito comuns e eu estava preparado para negar que pudessem
desempenhar um papel na etiologia de um sintoma histérico. Mas foi
diferente com uma cena de sua infância que ela descreveu. O tio mau,
que sofria de reumatismo, pedira-lhe que massageasse suas costas e
ela não ousara recusar. Na ocasião, ele estava deitado na cama e, de
repente, jogou longe os lençóis, deu um salto e tentou agarrá-la e
derrubá-la na cama. A massagem, é claro, estava terminada, e no
momento seguinte ela havia fugido e se trancado em seu quarto. Ficou
claro que ela relutava em se lembrar disso e não estava disposta a
dizer se vira algo quando ele se descobriu subitamente. As sensações
nos dedos poderiam ser explicadas, nesse caso, pelo impulso
reprimido de puni-lo, ou simplesmente por tê-lo massageado na
ocasião. Foi somente depois de relatar essa cena que ela chegou à do
dia anterior, depois da qual a sensação e os tremores nos dedos
haviam-se instalado como um símbolo mnêmico recorrente. O tio com
quem ela morava agora pedira-lhe que tocasse alguma coisa. Ela se
sentara ao piano e se acompanhara numa canção, pensando que a tia
houvesse saído, mas, de repente, esta apareceu na porta. Rosalie deu
um salto, fechou violentamente a tampa do piano e jogou longe a
partitura. Podemos adivinhar qual foi a lembrança que lhe surgiu à
mente e qual a seqüência de pensamentos que ela estava rechaçando
naquele momento: um sentimento intenso de ressentimento pela
suspeita injusta a que ficou sujeita e que a teria levado a abandonar a
casa, ao passo que, na verdade, se via obrigada a permanecer em
Viena por causa do tratamento e não havia nenhum outro lugar onde
pudesse alojar-se. O movimento dos dedos que a vi fazer enquanto
narrava essa cena foi o de afastar algo retorcendo os dedos, da
maneira como em sentido literal ou figurado, pomos algo de lado —
jogamos fora um pedaço de papel ou rejeitamos uma sugestão.
Ela foi muito firme em sua insistência de que não havia notado esse
sintoma antes — de que ele não fora ocasionado pelas cenas
inicialmente descritas por ela. Assim, só nos restou supor que o
acontecimento da véspera havia, em primeiro lugar, despertado a
lembrança de acontecimentos anteriores de temática semelhante, e
que a partir daí se formara um símbolo mnêmico que se aplicava a
todo o grupo de lembranças. A energia para a conversão fora suprida,
de um lado, por um afeto renovado e, de outro, pelo afeto relembrado.
Ao considerarmos a questão mais detidamente, devemos reconhecer
que um processo dessa natureza é mais a regra do que a exceção na
gênese dos sintomas histéricos. Quase invariavelmente, ao investigar
os determinantes desses estados, o que tenho encontrado não é uma
única causa traumática, mas um grupo de causas semelhantes. (Isso
foi bem exemplificado no caso da Sra. Emmy — Caso 2). Em alguns
desses exemplos, foi possível comprovar que o sintoma em causa já
aparecera por um breve período após o primeiro trauma e depois
passara, até ser novamente provocado e estabilizado por um trauma
subseqüente. Não existe, contudo, em princípio, nenhuma diferença
entre o fato de o sintoma surgir dessa forma temporária após sua
primeira causa provocadora e o fato de estar latente desde o começo.
Com efeito, na grande maioria dos exemplos, verificamos que um
primeiro trauma não deixa nenhum sintoma, ao passo que um trauma
posterior da mesma espécie produz um sintoma, só que este último
não pode ter surgido sem a cooperação da causa provocadora
anterior, nem pode ter esclarecido sem se levarem em conta todas as
causas provocadoras.
Enunciado em termos da teoria da conversão, esse fato indiscutível da
soma dos traumas e da latência preliminar dos sintomas nos ensina
que a conversão pode resultar tanto de sintomas novos quanto dos
que são relembrados. Essa hipótese explica inteiramente a aparente
contradição que observamos entre os fatos da doença da Srta.
Elisabeth von R. e sua análise. Não resta dúvida de que a existência
persistente na consciência de idéias cujo afeto não foi trabalhado pode
ser tolerada em alto grau por indivíduos saudáveis. A opinião que
acabo de apresentar nada mais faz do que aproximar o comportamento
das pessoas histéricas do das pessoas sadias. O que nos interessa
aqui é claramente um fator quantitativo — a questão de qual o grau
máximo de tensão afetiva dessa natureza que o organismo pode
tolerar. Mesmo uma pessoa histérica é capaz de reter certa quantidade
de afeto com o qual não se lidou; quando, em virtude da ocorrência de
causas provocadoras semelhantes, essa quantidade é aumentada pela
soma até um ponto além da tolerância do indivíduo, dá-se o ímpeto
para a conversão. Assim, quando dizemos que a formação dos
sintomas histéricos pode processar-se com base tanto em afetos
relembrados quanto em afetos novos, não estamos fazendo nenhuma
afirmação desconhecida, e sim declarando algo que é quase aceito
como um postulado.
Acabo de examinar os motivos e o mecanismo desse caso de histeria;
resta-me considerar com que precisão o sintoma histérico foi
determinado. Por que foi que o sofrimento mental da paciente passou a
ser representado por dores nas pernas e não em qualquer outra parte?
As circunstâncias indicam que essa dor somática não foi criada pela
neurose, mas apenas utilizada, aumentada e mantida por ela. Posso
acrescentar imediatamente que encontrei um estado de coisas
semelhantes em quase todos os casos de dores histéricas dos quais
pude obter alguma compreensão. | ver em [1].| Sempre estivera
presente, no início, uma dor autêntica, de base orgânica. Parece que
as dores humanas mais comuns e mais difundidas são as escolhidas
com mais freqüência para desempenhar um papel na histeria: em
particular, as dores periosteais e nevrálgicas que acompanham as
doenças dentárias, as dores de cabeça provenientes de muitas fontes
diferentes e, não com menos freqüência, as dores musculares
reumáticas que tantas vezes deixam de ser reconhecidas | ver em [1]|.
Da mesma forma, atribuo uma base orgânica ao primeiro acesso de
dor da Srta. Elisabeth von R., que ocorreu muito antes, quando ela
ainda cuidava do pai. Não obtive nenhum resultado quando tentei
descobrir uma causa psíquica para ela — e estou inclinado, devo
confessar, a atribuir um poder de diagnóstico diferencial a meu método
de evocar lembranças ocultas, contanto que ele seja utilizado com
cuidado. Essa dor, que fora reumática em sua origem, tornou-se então
um símbolo mnêmico das excitações psíquicas penosas da paciente, e
isso aconteceu, até onde posso ver, por mais de uma razão. A
primeira, e sem dúvida a mais importante delas, foi que a dor se
achava presente na consciência |de Elisabeth| mais ou menos na
mesma época que as excitações. Em segundo lugar, estava ligada, ou
poderia estar ligada, por muitos caminhos com as idéias em sua mente
na época. De fato, a dor pode realmente ter sido uma conseqüência,
embora apenas remota, do período em que ela cuidara dos doentes —
da falta de exercício e da alimentação reduzida que seus deveres de
enfermeira acarretavam. Mas a moça não tinha nenhum conhecimento
nítido disso. Maior importância provavelmente há de ser atribuída ao
fato de que ela deve ter sentido a dor naquela ocasião em momentos
significativos, por exemplo, quando pulava da cama no frio do inverno
em resposta aos chamados do pai | ver em [1]|. Mas o que deve ter
tido influência positivamente decisiva sobre o rumo tomado pela
conversão foi outra linha de conexão associativa | ver em [1]|: o fato de
que, durante vários dias seguidos, uma de suas pernas doloridas
entrou em contato com a perna intumescida do pai enquanto as
ataduras eram trocadas. A região da perna direita que foi marcada por
esse contato ficou sendo, a partir daí, o foco de suas dores e o ponto
de onde elas se irradiavam. Formou uma zona histerogênica artificial
cuja origem, no presente caso, pôde ser claramente observada.
Se alguém ficar surpreso com essa conexão associativa entre a dor
física e o afeto psíquico, em razão de ela ser de caráter tão múltiplo e
artificial, devo responder que esse sentimento é tão pouco justificado
quanto a surpresa diante do fato de serem os ricos aqueles que têm
mais dinheiro. Na verdade, quando não existem essas conexões tão
numerosas, o sintoma histérico não se forma, pois a conversão não
encontra nenhuma trilha aberta para ela. E posso afirmar que, quanto a
sua determinação, o exemplo da Srta. Elisabeth von R. situou-se entre
os mais simples. Já tive que desenredar fios dos mais emaranhados,
especialmente no caso da Sra. Caecilie M.
No relato do caso clínico | ver em [1] e segs.| já discuti a maneira pela
qual a astasia-abasia da paciente se desenvolveu sobre essas dores,
depois de uma trilha específica ter sido aberta para a conversão.
Naquele trecho, contudo também externei a opinião de que a paciente
criara ou aumentara seu distúrbio funcional por meio da simbolização,
que encontrara na astasia-abasia uma expressão somática para sua
falta de uma posição independente e sua incapacidade de fazer
qualquer alteração em suas circunstâncias de vida, e que expressões
como “não ser capaz de dar um único passo à frente” e “não ter nada
em que se apoiar” serviram de ponte para esse novo ato de conversão
| ver em [1]|.
Tentarei sustentar esse ponto de vista por meio de outros exemplos. A
conversão com base na simultaneidade, quando há também uma
ligação associativa, parece ser a que menos exige uma predisposição
histérica; a conversão por simbolização, por outro lado, parece exigir a
presença de um grau mais elevado de modificações histéricas. Isso
pôde ser observado no caso da Srta. Elisabeth, mas apenas no último
estágio de sua histeria. Os melhores exemplos de simbolização que vi
ocorreram na Sra. Caecilie M., cujo caso eu poderia descrever de o
mais grave e instrutivo que já tive. Já expliquei | ver em [1]| que um
relato pormenorizado de sua doença é infelizmente impossível.
A Sra. Caecilie sofria, entre outras coisas, de uma nevralgia facial
extremamente violenta, que surgia subitamente duas ou três vezes por
ano, durava de cinco a dez dias, resistia a qualquer espécie de
tratamento e cessava abruptamente. Limitava-se à segunda e terceira
ramificações do trigêmeo, e visto que uma excreção anormal de uratos
estava sem dúvida alguma presente e que um “reumatismo agudo” não
muito bem definido desempenhava certo papel na história da paciente,
o diagnóstico de nevralgia gotosa era bastante plausível. Esse
diagnóstico foi confirmado pelos diferentes médicos chamados a cada
acesso. Prescrevia-se o tratamento comum para esses casos: escova
elétrica, água alcalina e purgantes; mas a cada vez a nevralgia se
mantinha inalterada até que resolvia dar lugar a outro sintoma. Numa
época anterior de sua vida — a nevralgia tinha quinze anos de idade
—, os dentes da paciente tinham sido responsabilizados pelo
problema. Foram condenados à extração e, um belo dia, sob narcose,
a sentença foi executada em sete dos criminosos. Essa tarefa não foi
tão fácil; os dentes estavam presos com tanta firmeza que as raízes da
maioria deles tiveram que ser deixadas no lugar. Essa operação cruel
não teve nenhum resultado, nem temporário nem permanente. Naquela
época, a nevralgia campeou por meses a fio. Mesmo durante meu
tratamento, a cada acesso de nevralgia o dentista era chamado. Em
todas essas ocasiões, ele diagnosticou a presença de raízes doentes e
começou a trabalhar nelas; mas, em geral, logo foi interrompido, pois a
nevralgia cessava de repente, ao mesmo tempo, cessava a
necessidade dos serviços do dentista. No intervalo entre as crises, os
dentes da paciente não doíam. Certo dia, quando um acesso estava
outra vez campeando furiosamente, a paciente fez com que eu lhe
aplicasse tratamento hipnótico. Proibi-lhe energicamente que sentisse
dores e, a partir desse momento, elas pararam. Comecei então a ter
dúvidas quanto à autenticidade da nevralgia.
Cerca de um ano após esse tratamento hipnótico bem-sucedido, a
doença da Sra. Caecilie assumiu uma forma nova e surpreendente. Ela
subitamente apresentou novos estados patológicos, diferentes dos que
haviam caracterizado os últimos anos. Mas, após pensar um pouco, a
paciente declarou que tivera todos eles em várias ocasiões durante
sua longa doença, que datava de trinta anos antes. Surgiu então uma
abundância realmente surpreendente de ataques histéricos a que a
paciente pôde atribuir um lugar preciso no passado. Logo foi possível
acompanhar também as cadeias de pensamento muitas vezes
complexas que determinaram a ordem de ocorrência desses ataques.
Elas pareciam uma série de quadros com textos explanatórios. Pitres
deve ter pensado em algo semelhante ao apresentar sua descrição do
que denominou de “délire ecmnésique”. Era notável observar a
maneira como um ataque histérico desse tipo, pertencente ao passado,
era reproduzido. Primeiro surgia, enquanto a paciente gozava da
melhor saúde, um estado de “ânimo patológico com um colorido
específico, que ela sistematicamente interpretava mal e atribuía a
algum acontecimento corriqueiro das últimas horas. A seguir,
acompanhados por uma crescente turvação da consciência,
sobrevinham os sintomas histéricos: alucinações, dores, espasmos e
longos discursos declamatórios. Por fim, estes sintomas eram seguidos
pela emergência, sob forma alucinatória, de uma experiência passada
que tornava possível explicar seu estado de espírito inicial e o que
determinara os sintomas de seu atual ataque. Com essa última parte
do ataque ela recuperava a lucidez mental. Seus problemas
desapareciam como que num passe de mágica e ela voltava a
sentir-se bem — até o ataque seguinte, meio dia depois. Em geral, eu
era chamado no clímax do ataque, induzia um estado de hipnose,
evocava a reprodução da experiência traumática e apressava o final do
ataque por meios artificiais. Como assisti a várias centenas desses
ciclos com a paciente, obtive as informações mais instrutivas sobre a
maneira pela qual os sintomas histéricos são determinados. Na
realidade, foi o estudo desse caso notável, juntamente com Breuer,
que levou diretamente à publicação de nossa “Comunicação
Preliminar” |de 1893, que serve de introdução ao presente volume|.
Nessa fase do trabalho chegamos finalmente à reprodução de sua
nevralgia facial, que eu próprio tratara nas ocasiões em que surgiu em
ataques atuais. Estava curioso em descobrir se também a nevralgia
mostraria ter uma causa psíquica. Quando comecei a evocar a cena
traumática, a paciente viu-se de volta a um período de grande
irritabilidade mental para com o marido. Descreveu uma conversa que
tivera com ele e uma observação dele que ela sentira como um áspero
insulto. De repente, levou a mão à face, soltou um grande grito de dor
e exclamou: “Foi como uma bofetada no rosto”. Com isso, cessaram
tanto a dor como o ataque.
Não há dúvida de que o que acontecera fora uma simbolização. Ela se
sentira como se tivesse realmente recebido uma bofetada. Todos
perguntarão imediatamente como foi que a sensação de uma “bofetada
no rosto” veio a assumir os contornos externos de uma nevralgia do
trigêmeo, por que se restringiu às segundas e terceiras ramificações e
por que piorava quando a paciente abria a boca e mastigava —
embora, diga-se de passagem, não quando ela falava.
No dia seguinte, a nevralgia estava de volta. Mas dessa vez foi
dissipada pela narração de outra cena, cujo conteúdo fora, mais uma
vez, um suposto insulto. As coisas continuaram assim por nove dias.
Parecia que, durante anos, os insultos, principalmente os externados
verbalmente, haviam, através da simbolização, provocado novos
ataques de sua nevralgia facial.
Mas por fim repercorreu o caminho de volta a seu primeiro acesso de
nevralgia, mais de quinze anos antes. Ali não tinha havido
simbolização, mas uma conversão através da simultaneidade. Ela vira
um quadro doloroso, acompanhado de sentimentos de autocensura, e
isso a forçara a rechaçar outro grupo de pensamentos. Assim,
tratava-se de um caso de conflito e defesa. A geração da nevralgia
naquele momento só podia ser explicada pela suposição de que ela
estava sofrendo, na época, de leves dores de dentes ou de dores no
rosto, e isso não era improvável, visto que ela estava então nos
primeiros meses de sua primeira gravidez.
Assim, a explicação foi que essa nevralgia passara a ser indicativa de
uma excitação psíquica específica pelo método usual da conversão,
mas que, posteriormente, pôde ser acionada através de reverberações
associativas provenientes de sua vida mental ou da conversão
simbólica — a rigor, o mesmo comportamento que encontramos na
Srta. Elisabeth von R.
Darei um segundo exemplo que demonstra a ação da simbolização em
outras condições. Num determinado período, a Sra. Caecilie foi
acometida de uma violenta dor no calcanhar direito — uma dor
lancinante a cada passo que dava, que tornou impossível andar. A
análise levou-nos, com relação a isso, a uma época em que a paciente
estivera num sanatório no exterior. Ela passara uma semana de cama
e ia ser levada ao refeitório comum pela primeira vez pelo médico
residente. A dor sobreveio no momento em que ela lhe tomou o braço
para sair da sala com ele; desapareceu durante a reprodução da cena,
quando a paciente me disse que, não ocasião, ficara com medo de não
“acertar o passo” com aqueles estranhos.
A princípio, isso parece ser um exemplo surpreendente e mesmo
cômico da gênese dos sintomas histéricos através da simbolização por
meio de uma expressão verbal. Um exame mais detido da situação, no
entanto, favorece outra opinião do caso. A paciente vinha sofrendo, na
época, de dores generalizadas nos pés, e fora por causa delas que
ficara presa ao leito por tanto tempo. Tudo o que se poderia alegar em
favor da simbolização era que o medo que dominou a paciente ao dar
os primeiros passos escolheu, dentre todas as dores que a afligiam na
época, a dor específica que era simbolicamente apropriada, a dor no
calcanhar direito, e a transformara numa dor psíquica, imprimindo-lhe
uma persistência especial.
Nesses exemplos, o mecanismo da simbolização parece ser relegado
a uma importância secundária, como sem dúvida é a regra geral. Mas
disponho de exemplos que parecem provar a gênese dos sintomas
histéricos apenas através da simbolização. O exemplo que se segue é
um dos melhores e se relaciona, mais uma vez, com a Sra. Caecilie.
Quando contava quinze anos, ela estava deitada na cama sob o olhar
vigilante da avó rigorosa. A moça subitamente deu um grito; sentira
uma dor penetrante na testa, entre os olhos, que durou semanas. No
decorrer da análise dessa dor, que foi descrita após quase trinta anos,
ela me disse que a avó lhe dirigira um olhar tão “penetrante” que fora
direto até o cérebro. (Ela sentira medo de que a velha a estivesse
olhando com desconfiança.) Ao contar-me isso, irrompeu numa sonora
gargalhada e a dor mais uma vez desapareceu. Neste caso, não posso
discernir outra coisa senão o mecanismo da simbolização, que tem seu
lugar, em certo sentido, a meio caminho entre a auto-sugestão e a
conversão.
Minha observação da Sra. Caecilie M. proporcionou-me a oportunidade
de fazer uma coletânea sistemática de tais simbolizações. Todo um
grupo de sensações físicas que normalmente se considera que são
determinadas por causas orgânicas era, no caso dela, de origem
psíquica, ou pelo menos possuía um significado psíquico. Uma série
específica de suas experiências foi acompanhada por uma sensação
de punhalada na região cardíaca (significando “apunhalou-me no
coração”). A dor, que ocorre na histeria, em que se cravam pregos na
cabeça tinha sem dúvida de ser explicada, no caso dela, como uma dor
relacionada com o pensamento. (“Uma coisa me entrou na cabeça.”)
As dores dessa espécie eram sempre dissipadas tão logo os
problemas em jogo eram esclarecidos. Junto com a sensação de uma
“aura” histérica na garganta, quando essa sensação surgia após um
insulto, havia a idéia de que “terei de engolir isto”. A paciente
apresentava uma quantidade enorme de sensações e idéias que
corriam paralelamente umas às outras. Ora a sensação evocava a
idéia que a explicava, ora a idéia criava a sensação por meio de
simbolização, e não raro tinha-se que deixar em aberto a questão de
qual dos dois elementos fora o primário.
Não constatei nenhum uso tão extenso da simbolização em qualquer
outro paciente. É verdade que a Sra. Caecilie M.era uma mulher de
talentos bastante incomuns, principalmente artísticos, e cujo senso
muito desenvolvido da forma era revelado em alguns poemas de
grande perfeição. Sou de opinião, contudo, que quando um histérico
cria uma expressão somática para uma idéia emocionalmente colorida,
através da simbolização, isso depende menos do que se poderia
imaginar de fatores pessoais ou voluntários. Ao tomar uma expressão
verbal ao pé da letra e sentir uma “punhalada no coração” ou uma
“bofetada no rosto” após um comentário depreciativo vivido como um
fato real, o histérico não está tomando liberdades com as palavras,
mas simplesmente revivendo mais uma vez as sensações a que a
expressão verbal deve sua justificativa. Como poderíamos referir-nos a
alguém que foi menosprezado dizendo que foi “apunhalado no
coração”, a menos que o menosprezo tivesse de fato sido
acompanhado por uma sensação precordial que poderia ser
adequadamente descrita por essa expressão e a menos que fosse
identificável por essa sensação? O que poderia ser mais provável do
que a idéia de que a figura de linguagem “engolir alguma coisa”, que
empregamos ao falar de um insulto ao qual não foi apresentada
nenhuma réplica, originou-se na verdade das sensações inervatórias
que surgem na faringe quando deixamos de falar e nos impedimos de
reagir ao insulto? Todas essas sensações e inervações pertencem ao
campo da “Expressão das Emoções”, que, como nos ensinou Darwin
|1872|, consiste em ações que originalmente possuíam um significado
e serviam a uma finalidade. Em sua maior parte, estas podem ter-se
enfraquecido tanto que sua expressão em palavras nos parece ser
apenas um quadro figurativo delas, ao passo que, com toda
probabilidade, essa descrição um dia foi tomada em seu sentido literal;
e a histeria tem razão em restaurar o significado original das palavras
ao retratar suas inervações inusitadamente fortes. Com efeito, talvez
seja errado dizer que a histeria cria essas sensações através da
simbolização. É possível que ela não tome em absoluto o uso da
língua como seu modelo, mas que tanto a histeria quanto o uso da
língua extraiam seu material de uma fonte comum. [1]
III - CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
(BREUER)
Na “Comunicação Preliminar” que introduz este trabalho formulamos as
conclusões a que fomos levados por nossas observações, e penso que
posso mantê-las em essência. Mas a “Comunicação Preliminar” é tão
curta e concisa que, em sua maior parte, só nos foi possível ventilar
nossos conceitos. Portanto, agora que os casos clínicos apresentaram
provas que confirmam nossas conclusões, talvez seja permissível
enunciá-las mais amplamente. Por certo aqui não é uma questão, é
evidente, de lidar com todo o campo da histeria. Mas talvez possamos
dar um tratamento mais detido e mais claro (com acréscimo de
algumas ressalvas, sem dúvida) dos pontos para os quais foram
reunidas provas insuficientes ou que não receberam bastante destaque
na “Comunicação Preliminar”.
No que se segue, far-se-á pouca menção ao cérebro e nenhuma
absolutamente às moléculas. Os processos psíquicos serão abordados
na linguagem da psicologia; e, a rigor, não poderia ser de outra forma.
Se em vez de “idéia” escolhêssemos falar em “excitação do córtex”, a
segunda expressão só teria algum sentido para nós na medida em que
reconhecêssemos um velho amigo sob esse disfarce e tacitamente
restaurássemos a “idéia”. Pois, enquanto as idéias são objetos
permanentes de nossa experiência e nos são familiares em todas as
suas gradações de significado, as “excitações corticais” pelo contrário,
têm mais a natureza de um postulado: são objetos que temos a
esperança de identificar no futuro. A substituição de um termo pelo
outro não pareceria ser mais do que um disfarce desnecessário. Por
conseguinte, talvez me seja perdoado recorrer quase exclusivamente a
termos psicológicos.
Há outro aspecto para o qual devo pedir de antemão a indulgência do
leitor. Quando uma ciência vem fazendo rápidos avanços, certos
pensamentos inicialmente expressos por indivíduos isolados logo se
transformam em domínio público. Dessa forma, ninguém que tente
formular hoje seus conceitos sobre a histeria e sua base psíquica pode
evitar repetir um grande número de idéias de outrem que se acham em
transição do domínio pessoal para o público. É difícil ter sempre a
certeza de quem os expressou pela primeira vez, e há sempre o perigo
de se considerar como produto próprio o que já foi dito por terceiros.
Espero, portanto, que me desculpem se forem encontradas poucas
citações neste trabalho e se não for feita qualquer distinção rigorosa
entre o que é de minha própria lavra e o que tem origens alhures.
Reivindicamos originalidade para uma parte muito pequena do que
será encontrado nas páginas que se seguem.
(1) SERÃO IDEOGÊNICOS TODOS OS FENÔMENOS HISTÉRICOS?
Em nossa “Comunicação Preliminar” examinamos o mecanismo
psíquico dos “fenômenos histéricos”, e não da “histeria”, pois não
quisemos defender o conceito de que esse mecanismo psíquico, ou a
teoria psíquica dos sintomas histéricos em geral, têm validade
ilimitada. Não somos de opinião de que todos os fenômenos da histeria
ocorram da maneira descrita por nós naquele artigo, nem acreditamos
que todos sejam ideogênicos, isto é, determinados por idéias. Nesse
aspecto divergimos de Moebius, que em 1888 propôs definir como
histéricos todos os fenômenos patológicos determinados por idéias.
Essa afirmação foi posteriormente elucidada no sentido de que apenas
parte dos fenômenos patológicos corresponde, em seu conteúdo, às
idéias que os provocam — a saber, os fenômenos que são produzidos
por alo-sugestão ou auto-sugestão, como, por exemplo, quando a idéia
de não poder mover o braço provoca uma paralisia do mesmo,
enquanto outra parte dos fenômenos, embora causados por idéias, não
corresponde a elas em seu conteúdo — como, por exemplo, quando
em uma de nossas pacientes uma paralisia do braço foi provocada
pela visão de objetos semelhantes a cobras |ver em [1]-[2]|.
Ao dar essa definição, Moebius não está meramente propondo uma
modificação na nomenclatura e sugerindo que, no futuro, só
deveremos descrever como histéricos os fenômenos patológicos que
forem ideogênicos (determinados por idéias); o que ele está supondo é
que todos os sintomas histéricos são ideogênicos. “Visto que as idéias
são com muita freqüência a causa dos fenômenos histéricos, creio que
sempre o são.” Ele denomina isso de inferência por analogia. Prefiro
denominá-lo de generalização, cuja justificativa deve primeiro ser
submetida à prova.
Antes de qualquer discussão do assunto, devemos obviamente decidir
o que entendemos por histeria. Considero que a histeria é um quadro
clínico empiricamente descoberto e baseado na observação, da
mesma maneira que a tuberculose pulmonar. Esses quadros clínicos
empiricamente obtidos ganham mais precisão, profundidade e clareza
com o progresso de nossosconhecimentos, mas não devem nem
podem ser desmontados por eles. A pesquisa etiológica revela que os
vários processos constitutivos da tísica pulmonar têm diversas causas:
o tubérculo é devido ao bacillus Kochii, enquanto a degeneração do
tecido, a formação de cavernas e a febre séptica se devem a outros
micróbios. Apesar disso, a tuberculose permanece como uma unidade
clínica e seria um erro desintegrá-la, atribuindo-lhe apenas as
modificações “especificamente tuberculosas” do tecido, provocadas
pelo bacilo de Koch, e desvinculando dela as outras modificações. Da
mesma forma, a histeria deve continuar a ser uma unidade clínica,
mesmo se ficar demonstrado que suas manifestações são
determinadas por várias causas e que algumas delas são acarretadas
por um mecanismo psíquico e outras, não.
Estou convencido de que é isto o que de fato ocorre; apenas parte dos
fenômenos da histeria é ideogênica, e a definição formulada por
Moebius rompe a unidade clínica da histeria, e, a rigor, também a
unidade de um mesmo sintoma num mesmo paciente.
Estaríamos fazendo uma inferência inteiramente análoga à “inferência
por analogia” de Moebius, se afirmássemos que, como as idéias e
percepções com muita freqüência provocam ereções, devemos
presumir que só elas é que o fazem e que os estímulos periféricos só
poriam esse processo vasomotor em ação por vias indiretas através da
psique. Sabemos que essa inferência seria falsa e, no entanto, ela está
baseada em pelo menos tantos fatos quanto os que fundamentam a
asserção de Moebius sobre a histeria. De conformidade com nossa
experiência de um grande número de processos fisiológicos, tais como
a secreção de saliva ou de lágrimas, as modificações no trabalho do
coração, etc., é possível e plausível presumir que o mesmíssimo
processo pode ser igualmente acionado por idéias e por estímulos
periféricos e outros estímulos não-psíquicos. O contrário teria de ser
provado e estamos muito longe disso. Com efeito parece certo que
muitos fenômenos descritos como histéricos não são provocados
apenas por idéias.
Consideremos um exemplo cotidiano. Uma mulher pode, sempre que
surge um afeto, apresentar no pescoço, nos seios e no rosto um
eritema, que aparece primeiro em manchas e depois se torna
confluente. Isso é determinado por idéias e, portanto, de acordo com
Moebius, é uma manifestação histérica. Mas esse mesmo eritema
surge, embora numa área menos extensa, quando a pele fica irritada
ou é tocada, etc. Isso não seria histérico. Assim, um fenômeno que é
indubitavelmente uma unidade completa seria histérico numa ocasião e
não-histérico em outra. É claro que se pode indagar se esse fenômeno
— o eretismo vasomotor — deveria ser considerado como
especificamente histérico ou se não seria mais apropriado encará-lo
comosimplesmente “nervoso”. Do ponto de vista de Moebius, porém, o
esfacelamento da unidade seria uma conseqüência necessária, de
qualquer maneira, e só o eritema determinado pelo afeto deveria ser
denominado histérico.
Isso se aplica exatamente do mesmo modo às dores histéricas, que
são de tão grande importância prática. Sem dúvida, elas muitas vezes
são determinadas diretamente por idéias. São “alucinações de dor”. Se
as examinarmos bem mais de perto, veremos que, ao que parece, o
fato de uma idéia ser muito nítida não é suficiente para produzi-las,
mas que deve haver uma condição anormal especial nos aparelhos
relativos à condução e percepção da dor, do mesmo modo que no
caso do eritema emocional deve estar presente uma excitabilidade
anormal dos vasomotores. A expressão “alucinações de dor” sem
dúvida proporciona a mais rica descrição da natureza dessas
nevralgias, mas também nos obriga a transpor para elas os conceitos
que formamos sobre as alucinações em geral. Não caberia aqui um
exame pormenorizado desses conceitos. Endosso a opinião de que as
“representações”, imagens mnêmicas puras e simples, sem qualquer
excitação do aparelho perceptivo, jamais, nem mesmo no ápice de sua
nitidez e intensidade, atingem o caráter de existência objetiva, que é a
marca das alucinações.
Isso se aplica às alucinações sensoriais e mais ainda às alucinações
de dor, pois não parece possível que uma pessoa sadia seja capaz de
dotar a lembrança de uma dor física sequer com o mesmo grau de
nitidez ou sequercom uma aproximação distante da sensação real que
pode, afinal de contas, ser alcançada pelas imagens mnêmicas ópticas
e acústicas. Mesmo no estado alucinatório normal das pessoas sadias,
que ocorre durante o sono, nunca há, creio eu, sonhos de dor, a
menos que uma sensação real de dor esteja presente. Essa excitação
“retrogressiva”, que emana do órgão da memória e atua sobre o
aparelho perceptivo por meio das reproduções, é, portanto, no curso
normal das coisas, ainda mais difícil no caso da dor do que no das
sensações visuais ou auditivas. Uma vez que as alucinações de dor
surgem com tanta facilidade na histeria, devemos pressupor uma
excitabilidade anormal do aparelho relacionado com as sensações de
dor.
Essa excitabilidade surge não apenas sob o estímulo das idéias, mas
também sob estímulos periféricos, da mesma forma que o eretismo
dos vasomotores que examinamos acima.
É uma observação cotidiana constatar que, nas pessoas com nervos
normais, as dores periféricas são provocadas por processos
patológicos não dolorosos em si mesmos, localizados em outros
órgãos. Assim, surgem as dores de cabeça decorrentes de alterações
relativamente insignificantes no nariz ou nas cavidades vizinhas, e
nevralgias dos nervos intercostais e braquiais provenientes de
patologias do coração, etc. Quando a excitabilidade anormal, que
fomos obrigados a postular como uma condição necessária para as
alucinações de dor, acha-se presente num paciente, essa
excitabilidade também fica à disposição, por assim dizer, das
irradiações que acabo de mencionar. As irradiações que ocorrem
também em pessoas não-neuróticas são mais intensificadas e
formam-se irradiações de um tipo que, na verdade, só encontramos em
pacientes neuróticos, mas que se baseiam no mesmo mecanismo que
as outras. Dessa forma, a nevralgia ovariana depende, creio eu, das
condições do aparelho genital. Sua causalidade psíquica teria que ser
provada, e não se chega a essa comprovação pela demonstração de
que essa particular espécie de dor, como qualquer outra, pode ser
produzida sob hipnose como uma alucinação, ou de que suas causas
podem ser psíquicas. Tal como o eritema ou qualquer das secreções
normais, a nevralgia surge tanto de causas psíquicas como de causas
puramente somáticas. Será que devemos descrever apenas a primeira
espécie como histérica — os casos que sabemos terem uma origem
psíquica? Se assim for, os casos comumenteobservados de nevralgia
ovariana teriam de ser excluídos da síndrome histérica, e isso mal
seria uma solução.
Quando um ligeiro traumatismo numa articulação é gradativamente
seguido de uma artralgia grave, o processo sem dúvida envolve um
elemento psíquico, isto é, uma concentração da atenção na parte
traumatizada, o que intensifica a excitabilidade dos filetes nervosos em
questão. Poder-se-ia dificilmente expressar isso, no entanto, afirmando
que a hiperalgesia foi causada por representações.
O mesmo se aplica à diminuição patológica da sensação. Não está de
modo algum provado e é improvável que a analgesia geral ou a
analgesia de partes individuais do corpo, desacompanhada de
anestesia, seja provocada por representações. E mesmo que as
descobertas de Binet e Janet fossem confirmadas por completo, no
sentido de que a hemianestesia é determinada por uma condição
psíquica peculiar, por uma divisão da psique, o fenômeno seria
psicogênico, mas não ideogênico, e portanto, de acordo com Moebius,
não deve ser denominado histérico.
Se existe, portanto, um grande número de fenômenos histéricos
característicos que não podemos supor que sejam ideogênicos,
pareceria acertado limitar a aplicação da tese de Moebius. Não
definiremos como histéricos os fenômenos patológicos que são
causados por representações, mas apenas asseveraremos que um
grande número de fenômenos histéricos, provavelmente mais do que
suspeitamos hoje em dia, são ideogênicos. Mas a alteração patológica
fundamental que se acha presente em cada caso e que permite às
representações, bem como aos estímulos não-psicológicos,
produzirem efeitos patológicos, reside numa excitabilidade anormal do
sistema nervoso. Até que ponto essa excitabilidade é de origem
psíquica é uma outra questão.
Contudo, mesmo que apenas alguns dos fenômenos da histeria sejam
ideogênicos, na verdade são eles que podem ser considerados
especificamente histéricos, e é a investigação deles, a descoberta de
sua origem psíquica, que constitui o avanço recente mais importante
na teoria desse distúrbio. Surge então uma outra pergunta: como se
dão esses fenômenos? Qual é seu “mecanismo psíquico”?
Essa pergunta exige uma resposta bem diferente no caso de cada um
dos dois grupos em que Moebius divide os sintomas ideogênicos | ver
em [1]|. Os fenômenos patológicos que correspondem em seu
conteúdo à representação instigadora são relativamente
compreensíveis e claros. Quando a representação de uma voz ouvida
não a faz apenas ecoar fracamente no “ouvido interior”, como acontece
nas pessoas sadias, mas a leva a ser percebida de maneira
alucinatória como uma sensação acústica objetiva real, isso pode ser
equiparado a fenômenos familiares da vida normal — aos sonhos — e
é bem inteligível com base na hipótese de excitabilidade anormal.
Sabemos que a cada movimento voluntário é a idéia do resultado a ser
alcançado que dá início à contração muscular pertinente, e não é muito
difícil ver que a idéia de que essa contração é impossível impedirá o
movimento (como acontece na paralisia por sugestão).
A situação é outra com os fenômenos que não têm nenhuma conexão
lógica com a representação determinante. (Também aqui, a vida
normal oferece paralelos como, por exemplo, o enrubescer de
vergonha.) Como surgem eles? Por que uma representação num
homem doente evoca um movimento ou uma alucinação específica
inteiramente irracional que de modo algum corresponde a ela?
Em nossa “Comunicação Preliminar” sentimo-nos em condições de
dizer algo sobre essa relação causal com base em nossas
observações. Em nossa exposição do assunto, entretanto,
introduzimos e empregamos, sem o justificar, o conceito de “excitações
que fluem ou têm de ser ab-reagidas”. Esse conceito, que é de
fundamental importância para nosso tema e para a teoria das neuroses
em geral, parece exigir e merecer um exame mais detalhado. Antes de
passar a efetuá-lo, devo pedir desculpas por levar o leitor de volta aos
problemas básicos do sistema nervoso. Um sentimento de opressão
está fadado a acompanhar qualquer descida desse tipo até as “Mães”
[isto é, à exploração das profundezas|.
Mas qualquer tentativa de chegar às raízes de um fenômeno leva
inevitavelmente, dessa forma, a problemas básicos dos quais não se
pode escapar. Espero, portanto, que a obscuridade do exame que se
segue possa ser encarada com indulgência.
(2) AS EXCITAÇÕES TÔNICAS INTRACEREBRAIS — OS AFETOS
(A)
Conhecemos duas condições extremas do sistema nervoso central: um
estado lúcido de vigília e um sono desprovido de sonhos. Uma
transição entre elas é proporcionada por uma série de condições com
todos os graus de decrescente lucidez. O que nos interessa aqui não é
a questão da finalidade do sono e sua base física (seus determinantes
químicos ou vasomotores), mas a questão da distinção essencial entre
as duas condições.
Não podemos dar nenhuma informação direta sobre o sono mais
profundo e sem sonhos, pela mesma razão de que todas as
observações e experiências são excluídas pelo estado de total
inconsciência. Mas no que tange à condição fronteiriça do sono
acompanhado de sonhos podem-se fazer as asserções que se
seguem. Em primeiro lugar, quando, estando nessa condição,
tencionamos fazer movimentos voluntários — de andar, falar, etc. —
isso não faz com que as contrações correspondentes dos músculos
sejam voluntariamente iniciadas, como na vida de vigília. Em segundo
lugar, os estímulos sensoriais talvez sejam percebidos (pois muitas
vezes forçam sua entrada nos sonhos), mas não são apercebidos, isto
é, não se tornam percepções conscientes. Além disso, as
representações que emergem não ativam, como na vida de vigília,
todas as representações vinculadas a ela e que se encontram
presentes na consciência potencial; um grande número destas últimas
permanece não excitado. (Por exemplo, descobrimo-nos falando com
uma pessoa morta sem nos lembrarmos de que está morta.)
Outrossim, representações incompatíveis podem estar presentes ao
mesmo tempo sem se inibirem mutuamente, como fazem na vida de
vigília. Dessa forma, a associação é imperfeita e incompleta. Podemos
presumir com segurança que, no sono mais profundo, essa ruptura das
vinculações entre os elementos psíquicos é levada ainda mais além e
se torna total.
Por outro lado, quando estamos inteiramente acordados, todo ato de
vontade inicia o movimento correspondente; as impressões sensoriais
transformam-se em percepções conscientes e as representações se
associam com todo conteúdo presente na consciência potencial. Nesse
estado o cérebro funciona como uma unidade, com conexões internas
completas.
Talvez estejamos apenas descrevendo esses fatos com outras
palavras, se dissermos que, no sono, as vias de conexão e condução
do cérebro não são percorríveis pelas excitações dos elementos
psíquicos (células corticais?), ao passo que na vida de vigília o são
inteiramente.
A existência desses dois estados diferentes das vias de condução, ao
que parece, só pode tornar-se inteligível se supormos que, na vida de
vigília, essas vias se encontram num estado de excitação tônica (o que
Exner |1894, 93| chama de “tetania intercelular”) e que essa excitação
intracerebral tônica é o que determina sua capacidade condutora,
sendo que sua diminuição e desaparecimento é que estabelecem o
estado de sono.
Não devemos pensar na via cerebral de condução como semelhante a
um fio telefônico que só é eletricamente excitado no momento em que
tem de funcionar (isto é, no contexto presente, quando tem que
transmitir um sinal). Devemos assemelhá-lo ao tipo de fio telefônico em
que há sempre um fluxo constante de corrente galvânica e que deixa
de ser excitável quando tal corrente cessa. Ou melhor, imaginemos um
sistema elétrico amplamente ramificado para transmissão de luz e
força; o que se espera desse sistema é que o simples estabelecimento
de um contato seja capaz de pôr qualquer lâmpada ou máquina em
funcionamento. Para possibilitar isso, de modo que tudo esteja pronto
para funcionar, deve haver certa tensão presente em toda a rede de
linhas de condução, devendo o gerador despender uma dada
quantidade de energia para esse fim. Da mesma forma, há certa
quantidade de excitação presente nas vias condutoras do cérebro
quando este se encontra em repouso, mas desperto e preparado para
trabalhar.
Esse conceito é apoiado pelo fato de que estar meramente desperto,
sem realizar qualquer trabalho, dá lugar à fadiga e produz a
necessidade de dormir. O estado de vigília em si provoca um consumo
de energia.
Imaginemos um homem num estado de intensa expectativa, que não
está, contudo, dirigida para qualquer campo sensorial específico.
Temos então diante de nós um cérebro em repouso mas preparado
para a ação. Podemos com razão supor que em tal cérebro todas as
vias de condução se encontram no máximo de sua capacidade
condutora — que se acham num estado de excitação tônica. É
significativo que na linguagem comum nos refiramos a esse estado
como sendo de tensão. A experiência nos ensina o quanto de desgaste
esse estado representa e como pode ser fatigante, mesmo que
nenhum trabalho motor ou psíquico seja nele realizado.
Esse é um estado excepcional que, precisamente por causa do grande
consumo de energia em jogo, não pode ser tolerado por muito tempo.
Mas mesmo o estado normal de estar bem desperto exige uma
quantidade de excitação intracerebral que varia entre limites separados
de forma não muito ampla. Cada grau decrescente de vigília, até a
sonolência e o verdadeiro sono, faz-se acompanhar por graus
correspondentes menores de excitação.
Quando o cérebro está realmente trabalhando, exige-se sem dúvida
um consumo maior de energia do que quando está apenas preparado
para executar trabalho. (Da mesma forma, o sistema elétrico descrito
anteriormente à guisa de analogia deve fazer com que maior
quantidade de energia elétrica flua para as linhas condutoras quando
um grande número de lâmpadas ou motores está ligado ao circuito.)
Quando o funcionamento é normal, não se libera maior quantidade de
energia do que a empregada de imediato na atividade. O cérebro,
contudo, comporta-se como um daqueles sistemas elétricos de
capacidade restrita que são incapazes de produzir ao mesmo tempo
uma quantidade superior de luz e de trabalho mecânico. Quando um
deles está transmitindo força, dispõe-se apenas de uma pequena
quantidade de energia para a iluminação, e vice-versa. Assim,
constatamos que, se estivermos fazendo grandes esforços
musculares, seremos incapazes de nos empenharmos num raciocínio
contínuo, ou que, se concentrarmos nossa atenção num único campo
sensorial, a eficiência dos outros órgãos cerebrais ficará reduzida —
em outras palavras, verificamos que o cérebro trabalha com uma
quantidade de energia variável, mas limitada.
A distribuição não-uniforme de energia é sem dúvida determinada pelo
que Exner |1894, 165| denomina de “facilitação pela atenção” — por
um aumento da capacidade condutora das vias em uso e um
decréscimo da capacidade das outras, e assim, num cérebro em
funcionamento, a “excitação tônica intracerebral” também é distribuída
de maneira não uniforme.
Despertamos uma pessoa que está adormecida — ou seja, elevamos
de repente a quantidade de sua excitação intracerebral tônica —
fazendo que um vívido estímulo sensorial exerça influência sobre ela.
Se as alterações na circulação sanguínea cerebral são aqui elos
essenciais na corrente causal, e se os vasos sanguíneos são
diretamente dilatados pelo estímulo, ou se a dilatação é conseqüência
da excitação dos elementos cerebrais — tudo isso é incerto. O certo é
que o estado de excitação, penetrando por uma das portas dos
sentidos, espalha-se pelo cérebro a partir desse ponto, torna-se difuso
e leva todas as vias de condução a um estado de facilitação mais
elevado.
Ainda não está nada esclarecido, é natural, como ocorre o despertar
espontâneo — se é sempre a mesma parte do cérebro que entra num
estado de excitação de vigília, e se a excitação então se difunde a
partir dali, ou se ora um, ora outro grupo de elementos atua como o
agente que desperta. Não obstante, o despertar espontâneo que, como
sabemos, pode ocorrer na total quietude e escuridão sem qualquer
estímulo externo, prova que o desenvolvimento da energia se baseia
no processo vital dos próprios elementos cerebrais. Um músculo pode
permanecer não estimulado e quiescente por mais que tenha ficado
em estado de repouso e mesmo que tenha acumulado um máximo de
força elástica. O mesmo não se aplica aos elementos cerebrais. Sem
dúvida, temos razão ao supor que durante o sono os elementos
cerebrais recuperam sua condição anterior e acumulam energia
potencial. Quando isso acontece até certo ponto — quando, por assim
dizer, certo nível é atingido — o excedente é descarregado nas vias de
condução, facilita-as e estabelece a excitação intracerebral do estado
de vigília.
Podemos encontrar um exemplo instrutivo da mesma coisa na vida de
vigília. Quando o cérebro em vigília ficou quiescente por um tempo
considerável, sem transformar a força elástica em energia ativa através
de seu funcionamento, surgem uma necessidade e um impulso para a
atividade. Aquiescência motora prolongada gera necessidade de
movimento (compare-se o correr sem objetivo, de um lado para outro,
de um animal enjaulado), e quando essa necessidade não pode ser
atendida instaura-se uma sensação aflitiva. A falta de estímulos
sensoriais, a escuridão e o silêncio total tornam-se uma tortura; o
repouso mental e a falta de percepções, idéias e atividade associativa
produzem o tormento de tédio. Essas sensações de desprazer
correspondem a uma “excitação”, a um aumento da excitação
intracerebral normal.
Assim, os elementos cerebrais, depois de serem restaurados por
completo, liberam certa quantidade de energia mesmo quando estão
em repouso; e quando essa energia não é empregada funcionalmente,
ela aumenta a excitação intracerebral normal. O resultado é uma
sensação de desprazer. Tais sensações são sempre geradas quando
uma das necessidades do organismo deixa de encontrar satisfação.
Visto que essas sensações desaparecem quando a quantidade
excedente de energia que foi liberada é empregada funcionalmente,
podemos concluir que a eliminação dessa excitação excedente é uma
necessidade do organismo. E aqui deparamos pela primeira vez com o
fato de que existe no organismo uma “tendência a manter constante a
excitação intracerebral”. (Freud.)
Tal excedente de excitação é uma sobrecarga e um incômodo, e o
impulso de consumi-lo surge como conseqüência disso. Quando não
pode ser utilizado na atividade sensorial ou ideacional, o excedente se
descarrega numa ação motora sem finalidade, no andar de um lado
para outro e assim por diante — o que encontraremos mais à frente
como o método mais comum de descarregar as tensões excessivas.
Estamos familiarizados com as grandes variações individuais que se
encontram a esse respeito: as grandes diferenças entre as pessoas
vivazes e as inertes e letárgicas, entre as que “não conseguem ficar
paradas” e as que têm o “dom inato de se espreguiçarem nos sofás”, e
entre os espíritos mentalmente ágeis e os embotados, que conseguem
tolerar a inação intelectual por um período ilimitado de tempo. Essas
diferenças, que constituem o “temperamento natural” de um homem,
por certo se baseiam em profundasdiferenças em seu sistema nervoso
— no grau em que os elementos cerebrais funcionalmente quiescentes
liberam energia.
Já nos referimos à tendência, por parte do organismo, a manter
constante a excitação cerebral tônica. Uma tendência dessa natureza,
porém, só se torna inteligível quando conseguimos ver a que
necessidade atende. Podemos compreender a tendência nos animais
de sangue quente de manter uma temperatura média constante porque
nossa experiência nos ensinou que essa temperatura é a ideal para o
funcionamento de seus órgãos. E fazemos uma suposição similar
quanto à constância do teor de água no sangue, e assim por diante.
Creio podermos também presumir que existe um ponto ótimo para o
nível da excitação tônica intracerebral. Nesse nível de excitação tônica
o cérebro é acessível a todos os estímulos externos, os reflexos são
facilitados, embora apenas na medida da atividade reflexa normal, e o
acervo de representações é passível de ser despertado e aberto à
associação, na relação mútua entre representações individuais que
corresponde a um estado mental de lucidez. É nesse estado que o
organismo se acha mais bem preparado para funcionar.
A situação já fica alterada pela elevação uniforme | ver em [1]| da
excitação tônica que constitui a “expectativa”. Isso torna o organismo
hiperestésico aos estímulos sensoriais, que rapidamente se tornam
aflitivos, e aumenta também sua excitabilidade reflexa acima do que é
útil (inclinação ao susto). Sem dúvida esse estado é útil para algumas
situações e finalidades, mas quando aparece espontaneamente e não
por quaisquer dessas razões, não melhora nossa eficiência, mas a
prejudica. Na vida cotidiana, chamamos a isso estar “nervoso”. Na
grande maioria das formas de aumento da excitação, contudo, a
superexcitação não é uniforme, o que é sempre prejudicial à eficiência.
Chamamos a isso “excitamento”. Que o organismo tenda a manter o
ponto ótimo de excitação e a retornar a esse ponto ótimo depois de
havê-lo ultrapassado não é de se surpreender, mas está inteiramente
de acordo com outros mecanismos reguladores do organismo.
Permitir-me-ei mais uma vez recorrer à comparação com um sistema
de iluminação elétrica. A tensão na rede de linhas de condução possui
também o seu ponto ótimo. Se este for ultrapassado, seu
funcionamento pode ser prejudicado com facilidade; por exemplo, os
filamentos da luz elétrica podem ser prontamente queimados. Falarei
mais adiante sobre o dano causado ao próprio sistema se o isolamento
falhar ou se ocorrer um “curto-circuito”.
(B)
Nossa fala, resultado da experiência de muitas gerações, distingue
com admirável sutileza as formas e graus de elevação da excitação
que ainda são úteis à atividade mental |isto é, apesar de se elevarem
acima do ponto ótimo (ver penúltimo parágrafo)|, por elevarem a
energia livre de todas as funções cerebrais de maneira uniforme, das
formas e graus que prejudicam essa atividade, por aumentarem
parcialmente e inibirem parcialmente essas funções psíquicas de uma
maneira que não é uniforme. Às primeiras se dá o nome de “incitação”
e às últimas, de “excitamento”. Uma conversa interessante ou uma
xícara de chá ou café têm um efeito “incitante” |estimulante|; uma
altercação ou uma dose considerável de álcool têm um efeito
“excitante”. Enquanto a incitação desperta apenas a ânsia de empregar
funcionalmente o excesso de excitação, o excitamento procura
descarregar-se de formas mais ou menos violentas, que são quase ou
decididamente patológicas. O excitamento constitui a base psicofísica
dos efeitos, que serão examinados mais adiante. Mas devo em
primeiro lugar abordar sucintamente algumas causas fisiológicas e
endógenas dos aumentos de excitação.
Entre essas, em primeiro lugar, estão as principais necessidades e
pulsões fisiológicas do organismo: a necessidade de oxigênio, o anseio
intenso de alimentos e a sede. Visto que o excitamento que eles
disparam está vinculado a certas sensações e idéias intencionais, esse
não é um exemplo tão puro do aumento de excitação como o
examinado anteriormente | ver em [1]-[2]|, que surgia apenas da
aquiescência dos elementos cerebrais. O primeiro sempre possui seu
colorido especial. Mas é inconfundível na agitação angustiante que
acompanha a dispnéia e na inquietação de um homem faminto.
O aumento da excitação que provém dessas fontes é determinado pela
alteração química dos próprios elementos cerebrais, que estão
carentes de oxigênio, de força elástica ou de água. Tal excitação flui
por vias motoras pré-formadas que levam à satisfação da necessidade
que a estimulou: a dispnéia leva à respiração forçada, e a fome e a
sede, à busca e obtenção de alimento e água. O princípio da
constância da excitação quase não entra em ação no que tange a essa
espécie de excitamento, pois os interesses que são atendidos pelo
aumento da excitação nesses casos são de muito maiorimportância
para o organismo do que o restabelecimento das condições normais de
funcionamento no cérebro. É verdade que vemos os animais de um
jardim zoológico correndo excitadamente de um lado para outro antes
da hora da alimentação, mas isso sem dúvida pode ser considerado
como um resíduo da atividade motora pré-formada de procurar
alimento, que agora se tornou inútil pelo fato de estarem eles em
cativeiro, e não como um meio de livrar o sistema nervoso do
excitamento.
Se a estrutura química do sistema nervoso tiver sido permanentemente
alterada pela introdução sistemática de substâncias estranhas, então a
falta dessas substâncias provocará estados de excitamento, tal como a
falta de substâncias nutritivas normais nas pessoas sadias. Vemos isso
no excitamento que se verifica na abstinência de narcóticos.
Uma transição entre esses aumentos endógenos da excitação e os
afetos psíquicos no sentido mais estrito é proporcionada pela excitação
sexual e pelo afeto sexual. A sexualidade na puberdade surge, na
primeira dessas formas, como uma elevação vaga, indeterminada e
despropositada da excitação. À medida que o desenvolvimento se
processa, tal elevação endógena da excitação, determinada pelo
funcionamento das glândulas sexuais, torna-se firmemente vinculada
(no curso normal das coisas) à percepção ou idéia do outro sexo — e,
a rigor, à idéia de um indivíduo em particular, quando ocorre o notável
fenômeno do apaixonar-se. Essa idéia absorve toda a quantidade de
excitação liberada pela pulsão sexual. Torna-se uma “idéia afetiva”; em
outras palavras, quando está ativamente presente na consciência, ela
estimula o acréscimo de excitação que de fato se originou de outra
fonte, a saber, as glândulas sexuais.
A pulsão sexual é sem dúvida a fonte mais poderosa de acúmulos
sistemáticos de excitação (e, por conseguinte, de neuroses). Esses
aumentos distribuem-se de maneira muito desigual pelo sistema
nervoso. Quando alcançam um grau considerável de intensidade, o
encadeamento de idéias fica perturbado e o valor relativo das idéias se
altera; e no orgasmo o pensamento é quase inteiramente extinto.
Também a percepção — a interpretação psíquica das impressões
sensoriais — é prejudicada. Um animal normalmente tímido e
cauteloso torna-se cego e surdo ao perigo. Por outro lado, pelo menos
nos machos, há umaintensificação do instinto agressivo. Os animais
pacíficos ficam perigosos, até a sua excitação ser descarregada nas
atividades motoras do ato sexual.
(C)
Tal perturbação do equilíbrio dinâmico do sistema nervoso — uma
distribuição não uniforme do aumento da excitação — é o que compõe
a faceta psíquica dos afetos.
Não se fará aqui nenhuma tentativa de formular uma psicologia ou uma
filosofia dos afetos. Examinarei apenas um único ponto, que é de
importância para a patologia, e além disso apenas para os afetos
ideogênicos — os que são provocados por percepções e
representações. (Lange, 1885 |[1] e segs.|), ressaltou com razão que
os afetos podem ser causados por substâncias tôxicas, ou, como a
psiquiatria nos ensina, acima de tudo pelas alterações patológicas,
quase da mesma forma que podem ser causadas pelas
representações.
Pode-se considerar evidente por si mesmo que todas as perturbações
do equilíbrio mental que denominamos de afetos agudos acompanham
um aumento da excitação. (No caso dos afetos crônicos, tais como o
pesar e a preocupação, isto é, a angústia prolongada, o quadro se
complica por um estado de grave fadiga, que, embora mantenha a
distribuição não uniforme da excitação, reduz sua intensidade.) Mas
esse aumento da excitação não pode ser empregado na atividade
psíquica. Todos os afetos intensos restringem a associação — o fluxo
de representações. As pessoas ficam “insensatas” com a raiva ou com
o pavor. Somente o grupo de representações que provocou o afeto
persiste na consciência e o faz com extrema intensidade. Assim, a
atividade associativa não consegue aplacar o excitamento.
Os afetos que são “ativos” ou “estênicos”, entretanto, de fato aplacam
a excitação aumentada através da descarga motora. Os gritos e os
saltos de alegria, o maior tônus muscular da cólera, as palavras
raivosas e as ações retaliatórias — tudo isso permite que a excitação
se escoe em movimentos. O sofrimento mental a descarrega na
respiração difícil e em atividades secretoras: em soluços e lágrimas. É
uma constatação cotidiana que tais reações reduzem e aliviam o
excitamento. Como já tivemos ocasião de observar | ver em [1]|, a
linguagem comum expressa isso em frases como “debulhar-se em
lágrimas”, “desabar as mágoas”, etc. Aquilo que se está expelindo
nada mais é do que o aumento da excitação cerebral.
Apenas algumas dessas reações, como os atos e as palavras raivosas,
servem a uma finalidade no sentido de promoverem alguma
modificação no estado real de coisas. O resto não serve a qualquer
finalidade, ou melhor, seuúnico objetivo é aplainar o aumento da
excitação e estabelecer o equilíbrio psíquico. Na medida em que o
conseguem, servem à “tendência a manter constante a excitação
|intra-|cerebral” | ver em [1]|.
Os afetos “astênicos” do medo e da angústia não promovem essa
descarga reativa. O pavor paralisa por completo a capacidade de
movimento, bem como a de associação, e o mesmo faz a angústia,
quando a única reação útil — de fugir — é excluída pela causa do afeto
de angústia ou pelas circunstâncias. A excitação do pavor só
desaparece através de um nivelamento gradual.
A raiva dispõe de reações adequadas que correspondem a sua causa.
Quando estas não são viáveis ou estão inibidas, são trocadas por
substitutos. Até as palavras raivosas são substitutos dessa espécie.
Mas outros atos, mesmo inteiramente destituídos de sentido, podem
aparecer como substitutos. Quando Bismarck teve de reprimir seus
sentimentos enraivecidos na presença do Rei, desabafou depois
espatifando um valioso vaso no chão. Essa substituição deliberada de
uma ação motora por outra corresponde exatamente à substituição dos
reflexos naturais da dor por outras contrações musculares. Quando se
extrai um dente; o reflexo pré-formado é o de empurrar o dentista e
soltar um grito; se, em vez disso, contraímos os músculos dos braços e
fazemos pressão nos braços da cadeira, estamos deslocando o
quantum de excitação que foi gerado pela dor de um grupo de
músculos para outro. |ver em [1].| No caso de uma violenta dor de
dente espontânea, quando não há nenhum reflexo pré-formado afora o
gemido, a excitação se escoa num despropositado andar de um lado
para outro. Da mesma forma, transpomos a excitação da raiva da
reação adequada para outra e nos sentimos aliviados, contanto que ela
seja consumida por qualquer inervação motora vigorosa.
Quando, porém, o afeto não consegue encontrar nenhuma descarga
de excitação de qualquer natureza dentro desses moldes, a situação é
a mesma, tanto com a raiva quanto com o pavor e a angústia. A
excitação intracerebral é poderosamente aumentada, mas não é
empregada nem em atividade associativa, nem motora. Nas pessoas
normais a perturbação é eliminada de modo gradativo. Mas em
algumas, aparecem reações anormais. Forma-se uma “expressão
anormal dos afetos”, como afirma Oppenheim |1890|.
(3) CONVERSÃO HISTÉRICA
Dificilmente hão de suspeitar que identifico a excitação nervosa com a
eletricidade por eu recorrer mais uma vez à comparação com um
sistema elétrico. Quando a tensão em tal sistema torna-se
excessivamente alta, há um risco de que ocorra uma interrupção nos
pontos fracos do isolamento. Os fenômenos elétricos aparecem então
em pontos anormais, ou, quando dois fios estão muito próximos um do
outro, dá-se um curto-circuito. Visto que uma alteração permanente
produz-se nesses pontos, a perturbação assim provocada pode
repetir-se constantemente se a tensão for aumentada de modo
suficiente. Passou a haver uma “facilitação” anormal.
É perfeitamente possível afirmar que as condições que se aplicam ao
sistema nervoso são, até certo ponto, semelhantes. Ele forma em toda
a sua extensão um todo interligado, mas em muitos de seus pontos
interpõem-se grandes resistências, embora não insuperáveis, que
impedem a distribuição geral uniforme da excitação. Assim, nas
pessoas normais em estado de vigília, a excitação no órgão de
representação não passa para os órgãos da percepção: essas pessoas
não têm alucinações. |ver em [1].| A bem da segurança e da eficiência
do organismo, os plexos nervosos dos complexos de órgãos que são
de importância vital — os aparelhos circulatório e digestivo — são
separados por fortes resistências dos órgãos de representação. Sua
independência está assegurada e eles não são diretamente afetados
pelas representações. Mas as resistências que impedem a passagem
da excitação intracerebral para os aparelhos circulatório e digestivo
variam de intensidade de um indivíduo para outro. Todos os graus de
excitabilidade afetiva situam-se, por um lado, entre o ideal (que
raramente se encontra hoje em dia) de um homem absolutamente livre
de problemas dos “nervos” — um homem cuja ação cardíaca
permanece constante em todas as situações e só é afetada pelo
trabalho específico que tem de realizar, um homem que tem bom
apetite e boa digestão, qualquer que seja o perigo em que se ache —
entre um homem desse tipo e, por outro lado, um homem “nervoso”,
que tem palpitações e diarréia à menor provocação.
Como quer que seja, há resistências nas pessoas normais contra a
passagem da excitação cerebral para os órgãos vegetativos. Essas
resistências correspondem ao isolamento nas linhas condutoras
elétricas. Nos pontos onde estão anormalmente fracas, elas são
invadidas quando a tensão da excitação cerebral se eleva, e esta — a
excitação afetiva — passa para os órgãos periféricos. Segue-se a isso
uma “expressão do afeto anormal”.
Dos dois fatores que mencionamos como responsáveis por esse
resultado, um já foi examinado por nós com pormenores. Esse primeiro
fator é um alto grau de excitação intracerebral que deixou de ser
aplacada, fosse por atividades ideacionais, fosse pela descarga
motora, ou que é grande demais para ser enfrentado dessa maneira.
O segundo fator é uma fraqueza anormal das resistências em algumas
vias específicas de condução. Isso pode ser determinado pela
constituição inicial do indivíduo (predisposição inata), ou pode ser
determinado por estados de excitação de longa duração, que
afrouxam, por assim dizer, toda a estrutura do sistema nervoso do
indivíduo e reduzem toda a sua resistência (predisposição puberal); ou
pode ser determinado por influências debilitantes, como doença e
subnutrição (predisposição devida aos estados de esgotamento). A
resistência de certas vias específicas de condução pode estar reduzida
por uma doença prévia do órgão em causa, que facilitou as vias que
ascendem e descendem do cérebro. Um coração doente é mais
suscetível à influência de um afeto do que um coração sadio. “Tenho
uma espécie de caixa de ressonância no abdome”, disse-me uma
mulher que sofria de parametrite; “quando acontece alguma coisa, ela
recomeça minha antiga dor”. (Disposição através de doença local.)
As ações motoras em que a excitação dos afetos costuma ser
descarregada são ordenadas e coordenadas, muito embora com
freqüência sejam inúteis. Mas uma excitação excessivamente forte
pode contornar ou irromper através dos centros coordenadores e se
escoar em movimentos primitivos. Nos bebês, além do ato respiratório
de gritar, os afetos só produzem e encontram expressão em
contrações musculares descoordenadas desse tipo primitivo — em
arquear o corpo e espernear. À medida que o desenvolvimento se
processa, a musculatura passa cada vez mais para o controle da
coordenação e da vontade. Mas o opistótono, que representa o
máximo de esforço motor da musculatura somática total, bem como os
movimentos clônicos do espernear e do debater-se, persistem pela
vida afora como a forma de reação à excitação máxima do cérebro — à
excitação puramente física dos ataques epilépticos e à descarga dos
afetos máximos sob a forma de convulsões mais ou menos
epileptóides (por exemplo, a parte puramente motora dos ataques
histéricos).
É verdade que essas reações afetivas anormais são características da
histeria. Mas também ocorrem independentemente dessa doença. O
que indicam é um grau mais ou menos elevado de distúrbio nervoso, e
não de histeria. Tais fenômenos não podem ser descritos como
histéricos, quando aparecem como conseqüências de um afeto que,
embora de grande intensidade, possui uma base objetiva, mas só
quando surgem com aparente espontaneidade, como manifestações
de uma moléstia. Estas últimas, como demonstraram muitas
observações, inclusive as nossas, baseiam-se emlembranças que
revivem o afeto original — ou melhor, que o reviveriam se essas
reações de fato não ocorressem em seu lugar.
Pode-se admitir como certo que um fluxo de representações e
lembranças corre pela consciência de qualquer pessoa razoavelmente
inteligente enquanto sua mente está em repouso. Essas
representações são tão pouco nítidas que não deixam nenhum traço
na memória e é impossível dizer, posteriormente, como foi que as
associações ocorreram. Quando, porém, surge uma representação que
originalmente esteve vinculada a um afeto intenso, esse afeto é
revivido com maior ou menor intensidade. A representação assim
“colorida” pelo afeto emerge na consciência clara e nitidamente. A
intensidade de afeto que pode ser liberada por uma lembrança é muito
variável, conforme o grau em que tenha ficado exposta ao “desgaste”
por diferentes influências e sobretudo o grau em que o afeto original
tenha sido “ab-reagido”. Ressaltamos em nossa “Comunicação
Preliminar” | ver em [1]| em que extensão variável o afeto de raiva
diante de um insulto, por exemplo, é evocado por uma lembrança,
conforme o insulto tenha sido revidado ou suportado em silêncio. Se o
reflexo psíquico tiver sido plenamente realizado na ocasião original, a
lembrança dele liberará uma quantidade muito menor de excitação. Em
caso negativo, a lembrança ficará perpetuamente forçando nos lábios
do indivíduo as palavras abusivas que foram originalmente reprimidas
e que teriam sido o reflexo psíquico do estímulo original.
Nos casos em que o afeto original foi descarregado não através de um
reflexo normal, mas por um reflexo “anormal”, este último é também
liberado pela lembrança. A excitação decorrente da idéia afetiva é
“convertida” (Freud) num fenômeno somático.
Caso esse reflexo anormal se torne inteiramente facilitado pela
repetição freqüente, poderá, ao que parece, exaurir a força operativa
das representações liberadoras de forma tão total que o próprio afeto
não surgirá, ou surgirá com intensidade mínima. Em tal caso, a
“conversão histérica” é completa. Além disso, a representação, que
agora não produz mais quaisquer conseqüências psíquicas, pode ser
desprezada pelo indivíduo, ou pode ser prontamente esquecida
quando emergir, como qualquer outra representação desacompanhada
de afeto.
Talvez seja mais fácil aceitar a possibilidade de uma excitação cerebral
que deveria ter dado origem a uma representação ser substituída por
uma excitação de alguma via periférica, se recordarmos o curso
inverso dos acontecimentos que se verifica quando um reflexo
pré-formado deixa de ocorrer. Escolherei um exemplo extremamente
trivial — o reflexo do espirro. Quando um estímulo da membrana
mucosa do nariz deixa, por qualquer motivo, de liberar esse reflexo
pré-formado, surge uma sensação de excitação e de tensão, como
todos sabemos. A excitação, que ficou impossibilitada de se escoar
pelas vias motoras, agora, inibindo todas as outras atividades,
dissemina-se pelo cérebro. Esse exemplo cotidiano nos fornece o
modelo do que acontece quando um reflexo psíquico, mesmo o mais
complicado, deixa de ocorrer. O excitamento que examinamos
anteriormente | ver em [1]| como característica da pulsão de vingança
é, em essência, o mesmo. E podemos seguir esse processo mesmo
até as regiões mais elevadas da realização humana. Goethe não
sentia haver elaborado uma experiência até tê-la descarregado numa
atividade artística criadora. Esse era, no seu caso, o reflexo
pré-formado concernente aos afetos, e enquanto não fosse levado a
cabo, persistia no poeta o aumento aflitivo de excitação.
A excitação intracerebral e o processo excitatório nas vias periféricas
são de magnitudes recíprocas: a primeira aumenta se e enquanto
nenhum reflexo é liberado; diminui e desaparece depois de
transformada em excitação nervosa periférica. Assim, parece
compreensível que nenhum afeto observável seja gerado quando a
representação que deveria tê-lo feito emergir libera imediatamente um
reflexo anormal, no qual a excitação se escoa tão logo é gerada. A
“conversão histérica” é então completa. A excitação intracerebral
original pertinente ao afeto é transformada em processo excitatório nas
vias periféricas. O que era originalmente uma representação afetiva
deixa agora de provocar o afeto, suscitando apenas o reflexo anormal.
Acabamos de dar um passo além da “expressão anormal dos afetos”.
Os fenômenos histéricos (reflexos anormais) não parecem ser
ideogênicos mesmo para os pacientes inteligentes que são bons
observadores, porque a representação que lhes deu origem não é mais
colorida pelo afeto, nem destacada de outras representações e
lembranças. Surgem como fenômenos puramente somáticos,
aparentemente sem raízes psíquicas.
O que é que determina a descarga de afeto de tal forma que um
específico reflexo anormal é produzido em vez de algum outro? Nossas
observações respondem a essa pergunta, em muitos casos, revelando
que novamente aqui a descarga segue o “princípio da menor
resistência” e ocorre ao longo das vias cujas resistências já foram
enfraquecidas por circunstâncias coincidentes. Isso abrange o caso
que já mencionamos | ver em [1]| de um reflexo particular ser facilitado
pela doença somática já existente. Se, por exemplo, alguém sofre com
freqüência de dores cardíacas, estas também serão provocadas pelos
afetos. Alternadamente, um reflexo pode ser facilitado pelo fato de a
inervação muscular em causa ter sido deliberadamente pretendida no
momento em que o afeto ocorreu originalmente.
Assim, Anna O. (em nosso primeiro caso clínico) | ver em [1]| tentou,
em seu medo, estender o braço direito, que ficara dormente por causa
da pressão contra o espadar da cadeira, a fim de afastar a cobra; e a
partir dessa época a tetania no braço direito passou a ser provocada
pela visão de qualquer objeto semelhante a cobras. Ou ainda | ver em
[1]|, em sua emoção, ela forçou a vista para ler os ponteiros do relógio,
e a partir de então um estrabismo convergente se transformou num
dos reflexos daquele afeto. E assim por diante.
Isso se deve à ação da simultaneidade que de fato rege as nossas
associações normais. Toda percepção sensorial traz de volta à
consciência qualquer outra percepção sensorial que tenha
originalmente ocorrido ao mesmo tempo. (Cf. o exemplo do livro-texto
com a imagem visual de um carneiro e o som do seu balido, etc.) Se o
afeto original se fez acompanhar de uma nítida impressão sensorial,
esta última é evocada mais uma vez quando o afeto se repete; e já que
é uma questão de descarga de uma excitação excessivamente grande,
a impressão sensorial emerge não como uma lembrança, mas como
uma alucinação. Quase todos os nossos casos clínicos proporcionam
exemplos disso. É também o que aconteceu no caso de uma mulher
que experimentou um afeto aflitivo numa época em que estava
sofrendo de violenta dor de dente por causa de uma periostite, e que a
partir daí passou a sofrer nevralgia infra-orbital sempre que o afeto se
renovava ou sequer era relembrado | ver em [1]-[2]|.
O que temos aqui é a facilitação de reflexos anormais de acordo com
as leis gerais da associação. Mas algumas vezes (embora, deva-se
admitir, só em graus mais elevados de histeria) há verdadeiras
seqüências de representações associadas entre o afeto e seu reflexo.
Temos aí a determinação através do simbolismo. O que une o afeto ao
seu reflexo é, muitas vezes, algum trocadilho ridículo ou associações
pelo som, mas isso só acontece em estados semelhantes ao sonho,
quando os poderes críticos se acham reduzidos, e está fora do grupo
de fenômenos com que estamos lidando aqui.
Num grande número de casos o caminho seguido pela seqüência da
determinação permanece ininteligível para nós, pois com freqüência
temos uma compreensão muito incompleta do estado mental do
paciente e um conhecimento imperfeito das representações que eram
ativas por ocasião da origem do fenômeno histérico. Mas podemos
presumir que o processo não é inteiramente dessemelhante do que
podemos observar com clareza em casos mais favoráveis.
As experiências que liberaram o afeto original, cuja excitação foi então
convertida num fenômeno somático, são por nós descritas como
traumas psíquicos, e a manifestação patológica que surge desta forma,
como sintomas histéricos de origem traumática. (A expressão “histeria
traumática” já foi aplicada a fenômenos que, por serem conseqüência
de danos físicos — traumas no sentido mais estrito do termo — fazem
parte da classe das “neuroses traumáticas”.)
A gênese dos fenômenos que são determinados por traumas encontra
analogia na conversão histérica da excitação psíquica, que se origina
não de estímulos externos nem da inibição dos reflexos psíquicos
normais, e sim da inibição do curso de associação. O exemplo e
modelo mais simples disso é proporcionado pela excitação que surge
quando não conseguimos recordar um nome ou não podemos
solucionar um enigma, e assim por diante. Quando alguém nos diz o
nome ou nos dá a resposta do enigma, a cadeia deassociações
termina e a excitação desaparece, exatamente como faz no final de
uma cadeia de reflexos. A intensidade da excitação causada pelo
bloqueio de uma linha de associações está na razão direta do
interesse que temos nelas — isto é, do grau em que elas acionam
nossa vontade. Visto, porém, que a procura de uma solução do
problema, ou o que quer que seja, sempre envolve grande volume de
trabalho, embora possa não ter nenhuma serventia, mesmo uma
poderosa excitação encontra utilização e não pressiona a descarga, e
conseqüentemente, jamais se torna patogênica.
Essa excitação, entretanto, se torna de fato patogênica quando o curso
de associações é inibido graças às representações irreconciliáveis de
igual importância — quando, por exemplo, novas representações
entram em conflito com complexos representativos enraizados. Tais
são os tormentos da dúvida religiosa a que muitas pessoas sucumbem
e muitas outras sucumbiram no passado. Mesmo nesses casos,
contudo, a excitação e o sofrimento psíquico acompanhante (a
sensação de desprazer) só atingem um grau considerável quando
entra em jogo algum interesse volitivo do sujeito — quando, por
exemplo, alguém cheio de dúvidas se sente ameaçado em sua
felicidade ou salvação. Tal fator está sempre presente, no entanto,
quando o conflito se dá entre complexos firmemente enraizados de
representações morais em que o indivíduo foi educado e a lembrança
de ações ou simples pensamentos irreconciliáveis com essas
representações; quando, em outras palavras, se sentem as dores da
consciência. O interesse volitivo em gostar da própria personalidade e
estar satisfeito com ela entra em ação nesse ponto e eleva ao mais
alto grau a excitação atribuída à inibição das associações. É uma
constatação cotidiana que um conflito entre representações
irreconciliáveis possui um efeito patogênico. O que se acha em
questão na maioria das vezes são representações e processos ligados
à vida sexual: a masturbação num adolescente com susceptibilidades
morais; ou, numa mulher casada de moral rigorosa, a conscientização
de sentir-se atraída por um homem que não é o próprio marido. Com
efeito, o primeiro aparecimento das sensações e representações
sexuais, por si só, é muitas vezes suficiente para acarretar um intenso
estado de excitação, por causa de seu conflito com a representação
profundamente enraizada da pureza moral.
Um estado de excitação dessa natureza costuma ser seguido por
conseqüências psíquicas, tais como a depressão patológica e os
estados de angústia (Freud |1895b|). Às vezes, porém, algumas
circunstâncias coincidentes acarretam um fenômeno somático anormal
em que a excitação é descarregada. Assim, pode haver vômitos
quando o sentimento de impureza produz uma sensação física de
náusea; ou uma tussis nervosa, como em Anna O. (Caso Clínico nº 1 |
ver em [1]|), quando a angústia moral provoca um espasmo da glote, e
assim por diante.
Há uma reação normal apropriada à excitação provocada por
representações muito nítidas e irreconciliáveis — a saber,
comunicá-las pela fala. Um quadro divertidamente exagerado da ânsia
de fazer isso é fornecido na história do barbeiro de Midas, que revelou
em voz alta seu segredo aos caniços. Encontramos o mesmo anseio
como um dos fatores básicos de uma grande instituição histórica — o
confessionário católico romano. Dizer as coisas é um alívio;
descarrega a tensão, mesmo quando a pessoa a quem elas são ditas
não é um padre e mesmo quando não se procura qualquer absolvição.
Quando se nega essa saída à excitação, ela às vezes se converte num
fenômeno somático, tal como acontece com a excitação pertinente aos
afetos traumáticos. Todo o grupo de fenômenos histéricos que assim
se origina pode ser descrito, com Freud, como fenômenos histéricos de
retenção.
O relato que fizemos até aqui do mecanismo pelo qual se originam os
fenômenos histéricos está sujeito à crítica de ser esquemático em
demasia e de simplificar os fatos. Para que uma pessoa saudável que
não seja inicialmente neuropata possa desenvolver um sintoma
histérico autêntico, com sua aparente independência da mente e com
existência somática própria, deve haver sempre grande número de
circunstâncias convergentes.
O caso seguinte servirá de exemplo da natureza complicada do
processo. Um menino de doze anos de idade, que antes sofrera de
pavor nocturnus e cujo pai era altamente neurótico, voltou certo dia da
escola para casa sentindo-se mal. Queixava-se de dificuldade de
engolir e de dor de cabeça. O médico da família presumiu que a causa
fosse uma inflamação na garganta. Mas o estado não melhorou,
mesmo após vários dias. O menino recusava os alimentos e vomitava
quando estes lhe eram forçados. Movia-se de um lado para o outro
apaticamente, sem energia ou prazer; queria ficar deitado o tempo todo
e estava fisicamente muito abatido. Quando o examinei cinco semanas
depois, ele me deu a impressão de ser uma criança acanhada e
introvertida e me convenci de que seu estado tinha uma base psíquica.
Ao ser inquirido detidamente, apresentou uma explicação trivial — uma
reprimenda severa passada pelo pai — que claramente não fora a
causa real de sua doença. Nada se pôde saber tampouco em sua
escola. Prometi que extrairia a informação mais tarde, sob hipnose.
Mas isso foi desnecessário. Reagindo a fortes apelos de sua mãe
inteligente e enérgica, o menino debulhou-se em lágrimas e contou a
seguinte história. Quando voltava da escola para casa, ele fora a um
mictório e um homem lhe mostrara o pênis e pedira-lhe que ele o
pusesse na boca. O garoto fugira apavorado e nada mais lhe tinha
acontecido. Mas a partir daquele instante, adoeceu. Tão logo fez sua
confissão, recuperou-se inteiramente. — Para produzir a anorexia, a
dificuldade de engolir e os vômitos, vários fatores se fizeram
necessários: a natureza neurótica inata do menino, seu intenso pavor,
a irrupção da sexualidade em sua forma mais crua no seu
temperamento infantil e, como fator especificamente determinante, a
idéia de repulsa. A doença deveu sua persistência ao silêncio do
menino, que impediu a excitação de encontrar sua saída normal.
Em todos os outros casos, como nesse, é preciso haver uma
convergência de vários fatores para que um sintoma histérico possa
ser gerado em qualquer um que até então tenha sido normal. Tais
sintomas são invariavelmente “sobredeterminados”, para usar a
expressão de Freud.
Pode-se presumir que uma sobredeterminação dessa natureza
também se ache presente quando o mesmo afeto é evocado por uma
série de causas desencadeantes. O paciente e aqueles que o cercam
atribuem o sintoma histérico apenas à última causa, embora essa
causa, em geral, só tenha gerado algo que já fora quase realizado por
outros traumas.
Uma moça de dezessete anos teve seu primeiro ataque histérico
(seguido de vários outros) quando um gato pulou sobre seu ombro no
escuro. O ataque parecia ser apenas o resultado do susto. Uma
investigação mais detida revelou, contudo, que a moça, que era bonita
e não muito vigiada, recentemente experimentara várias investidas
mais ou menos brutais e ficara sexualmente excitada com elas. (Temos
aqui o fator da predisposição.) Alguns dias antes, um jovem a atacara
na mesma escada escura e ela fugira dele com dificuldade. Esse fora o
verdadeiro trauma psíquico, que o gato nada mais fez do que tornar
manifesto. Mas teme-se que em muitos outros casos dessa natureza o
gato seja considerado a causa efficiens.
Para que a repetição de um afeto promova uma conversão dessa
maneira, nem sempre é necessário que haja grande número de causas
externas desencadeantes; a renovação do afeto na memória é também
muitas vezes suficiente, se a lembrança for repetida com rapidez e
freqüência, logo após o trauma e antes que seu afeto fique
enfraquecido. Isso é o bastante caso o afeto tenha sido muito intenso.
Tal é o caso da histeria traumática, no sentido mais estrito do termo.
Durante os dias que se seguem a um acidente ferroviário, por exemplo,
o sujeito volta a vivenciar suas experiências assustadoras, tanto
dormindo como acordado, e sempre com o afeto renovado de pavor,
até que afinal, depois desse período de “elaboração |élaboration|
psíquica” (para usar a expressão de Charcot | ver em [1]| ou de
“incubação”, ocorre a conversão num fenômeno somático (embora haja
outro fator em causa, que teremos de examinar mais tarde).
Em geral, porém, uma representação afetiva é prontamente submetida
a um “desgaste”, isto é, a todas as influências mencionadas em nossa
“Comunicação Preliminar” (ver em. [1]), que a privam pouco a pouco de
sua carga de afeto. Sua revivescência causa uma quantia sempre
decrescente de excitação, e a lembrança perde assim a capacidade de
contribuir para a produção de um fenômeno somático. A facilitação do
reflexo anormal desaparece e o status quo ante é então restabelecido.
As influências do “desgaste”, entretanto, são todas efeitos da
associação, do pensamento e de correções por referências a outras
representações. Esse processo de correção torna-se impossível
quando a representação afetiva retira-se do “contato associativo”.
Quando isso acontece, a representação retém toda a sua carga
afetiva. Visto que a cada renovação toda a soma de excitação do afeto
original volta a ser liberada, a facilitação do reflexo anormal que se
iniciou na época é finalmente estabelecida; ou então, se a facilitação já
estava completa, ela é mantida e estabilizada. O fenômeno da
conversão histérica assim se estabelece permanentemente.
Nossas observações mostram duas maneiras pelas quais as
representações afetivas podem ser excluídas da associação.
A primeira é a “defesa”, a supressão deliberada de representações
aflitivas que parecem ameaçar a felicidade ou a auto-estima do
indivíduo. Em seu |primeiro| artigo sobre “As Neuropsicoses de Defesa”
(1894a) e em seus casos clínicos no presente volume, Freud examinou
esse processo, que indubitavelmente possui altíssima significação
patológica. Não podemos, é verdade, compreender como uma
representação pode ser deliberadamente recalcada da consciência.
Mas estamos perfeitamente familiarizados com o processo positivo
correspondente, o de concentrar a atenção numa representação, e
somos da mesma maneira incapazes de dizer como efetuamos isso.
Assim, as representações de que a consciência se desvia, que não são
objeto de pensamento, são também retiradas do processo de desgaste
e retêm sua carga afetiva sem diminuição.
Verificamos ainda que existe outra espécie de representação que
permanece isenta do desgaste pelo pensamento. Isso pode acontecer,
não porque não se queira lembrar a representação, mas porque não se
consegue lembrá-la: porque ela emergiu originalmente e foi dotada de
afeto em estados com relação aos quais existe uma amnésia na
consciência de vigília — isto é, na hipnose ou estados semelhantes a
ela. Estes últimos parecem ser da mais alta importância para a teoria
da histeria e, por conseguinte, merecem um exame um pouco mais
complexo.
(4) ESTADOS HIPNÓIDES
Quando, em nossa “Comunicação Preliminar” | ver em [1]|,
apresentamos a tese de que a base e condição sine qua non da
histeria é a existência de estados hipnóides, estávamos desprezando o
fato de que Moebius já dissera exatamente a mesma coisa em 1890.
“A condição necessária para a atuação (patogênica) das idéias é, por
um lado, uma predisposição inata — isto é, uma disposição histérica —
e, por outro, um peculiar estado mental. Podemos apenas formar uma
idéia imprecisa desse estado mental. Deve assemelhar-se a um estado
de hipnose; deve corresponder a alguma espécie de vazio da
consciência em que uma idéia emergente não depara com qualquer
resistência por parte de outra — no qual, por assim dizer, o campo está
livre para a primeira idéia que vier. Sabemos que esse tipo de estado
pode ser acarretado não somente pelo hipnotismo, como também pelo
choque emocional (susto, cólera, etc.) e por fatores que esgotam as
forças (privação do sono, fome, etc.)” |Moebius, 1894, 17|.
O problema para cuja solução Moebius fazia aqui uma abordagem
preliminar é o da geração de manifestações somáticas pelas idéias.
Ele recorda nesse ponto a facilidade com que isso pode ocorrer sob
hipnose e considera análoga à atuação dos afetos. Nosso conceito
sobre a atuação dos afetos, um tanto diferente, foi plenamente
explicado atrás | ver em [1] e segs.|. Não preciso, portanto, penetrar
ainda mais na dificuldade existente na suposição de Moebius de que,
na raiva, há um “vazio da consciência” (o que reconhecidamente existe
no pavor e na angústia prolongada), ou na dificuldade mais geral de
traçar uma analogia entre o estado de excitação num afeto e o estado
quiescente na hipnose. Recorreremos mais adiante | ver em [1]|,
contudo, a essas observações de Moebius, que em minha opinião
contêm uma verdade importante.
A nosso ver, a importância desses estados que se assemelham à
hipnose — “os estados hipnóides” — reside além disso e
principalmente na amnésia que os acompanha e em seu poder de
provocarem a divisão da mente, que logo examinaremos e que é de
fundamental significação para a “grande histeria”. Ainda atribuímos
essa importância aos estados hipnóides. Mas devo acrescentar uma
ressalva substancial à nossa tese. A conversão — a produção
ideogênica de fenômenos somáticos — também pode ocorrer
independentemente dos estados hipnóides. Freud encontrou na
amnésia deliberada de defesa uma segunda fonte, independente dos
estados hipnóides, para a formação de complexos representativos que
são excluídos do contato associativo. Mas ao aceitar essa ressalva,
ainda sou de opinião que os estados hipnóides são a causa e a
condição necessária de muitas, na realidade da maioria, das histerias
grandes e complexas.
Antes de mais nada, é claro, devem-se enumerar entre os estados
hipnóides as auto-hipnoses verdadeiras, que só se distinguem das
hipnoses artificiais pelo fato de se originarem de modo espontâneo.
Encontramo-las em grande número de histerias plenamente
desenvolvidas, ocorrendo com variada freqüência e duração, e muitas
vezes alternando-se rapidamente com estados de vigília normais (cf.
Casos Clínicos 1 e 2). Em virtude da natureza quase onírica de seu
conteúdo, muitas vezes merecem o nome de “delirium histericum”. O
que acontece durante os estados auto-hipnóticos está sujeito à
amnésia mais ou menos total na vida de vigília (ao passo que é
completamente recordado na hipnose artificial). Os produtos psíquicos
desses estados e as associações que se formaram neles são
impedidos pela amnésia de qualquer correção durante o pensamento
de vigília; e como na auto-hipnose a crítica e o controle provocados por
outras idéias se reduzem, e em geral desaparecem quase por
completo, os mais loucos delírios podem emergir dela intactos por
longos períodos. Assim, quase só nesses estados é que surge uma
“relação simbólica (um tanto irracional e complicada) entre a causa
precipitante e o fenômeno patológico” | ver em [1]-[2]|, que, na verdade,
muitas vezes se baseia nas mais absurdas semelhanças fonéticas e
associações verbais. A ausência de crítica nos estados auto-hipnóticos
explica por que deles surgem auto-sugestões com tanta freqüência —
como, por exemplo, quando uma paralisia fica como seqüela após um
ataque histérico. Mas — e isso talvez apenas se deva ao acaso —
quase nunca deparamos, em nossas análises, com um exemplo de um
fenômeno histérico que se tenha originado assim. Sempre a vimos
acontecer, não menos na auto-hipnose do que fora dela, como
resultado do mesmo processo — a saber, a conversão de uma
excitação afetiva.
Seja como for, essa “conversão histérica” verifica-se mais facilmente
na auto-hipnose do que no estado de vigília, do mesmo modo que as
representações sugeridas se realizam fisicamente, como alucinações e
movimentos, com muito mais facilidade na hipnose artificial. Não
obstante, o processo de conversão da excitação é em essência
idêntico ao descrito acima. Uma vez que tenha ocorrido, o fenômeno
somático se repete se o afeto e a auto-hipnose ocorrerem
simultaneamente. E nesse caso, é como se o estado hipnótico fosse
evocado pelo próprio afeto. Por conseguinte, desde que haja uma
alternância nítida entre a hipnose e a vida de vigília plena, o sintoma
histérico permanece restrito ao estado hipnótico e é nele fortalecido
pela repetição; além disso, arepresentação que lhe deu lugar fica
isenta de correção pelos pensamentos de vigília e pela sua crítica,
precisamente porque nunca emerge na vida lúcida de vigília.
Assim, com Anna O. (Caso Clínico 1), a contratura do braço direito,
que se associava em sua auto-hipnose com o afeto de angústia e com
a representação da cobra, permaneceu durante quatro meses restrita
aos momentos durante os quais ela se encontrava num estado
hipnótico (ou, se considerarmos esse termo inapropriado para as
absences de duração muito curta, um estado hipnóide), embora se
repetisse com freqüência. A mesma coisa aconteceu com outras
conversões que se verificaram em seu estado hipnóide; e dessa forma,
o grande complexo de fenômenos histéricos organizou-se num estado
de completa latência e veio a revelar-se quando seu estado hipnóide
se tornou permanente. | ver em [1] |
Os fenômenos assim surgidos só emergem na consciência lúcida
quando a divisão da mente, que examinarei depois, já foi concluída, e
quando a alternância entre os estados de vigília e hipnose foi
substituída por uma coexistência entre os complexos representativos
normais e os hipnóides.
Será que existem estados hipnóides dessa natureza antes de o
paciente adoecer? Como aparecem eles? Muito pouco posso dizer a
respeito disso, pois afora o caso de Anna O., não dispomos de
qualquer observação que possa lançar luz sobre esse ponto. Parece
certo que, no caso dela, a auto-hipnose teve seu terreno preparado por
devaneios habituais e foi plenamente estabelecida por um afeto de
angústia prolongado, o qual, por si só, teria sido a base de um estado
hipnóide. Não nos parece improvável que este processo seja válido de
um modo bastante geral.
Uma grande variedade de estados conduz à “ausência da mente”, mas
apenas alguns deles predispõem à auto-hipnose ou logo passam para
ela. Sem dúvida, um investigador profundamente absorto num
problema fica anestesiado até certo ponto, não formando qualquer
percepção consciente de grandes grupos de suas sensações; e o
mesmo se aplica a qualquer um que esteja usando ativamente sua
imaginação criadora (cf. “o teatro particular” de Anna O. | ver em [1]|).
Mas em tais estados, um intenso trabalho mental é executado e a
excitação liberada pelo sistema nervoso é consumida nesse trabalho.
Nos estados de distração e devaneio, por outro lado, a excitação
intracerebral cai abaixo de seu nível lúcido de vigília. Esses estados
bordejam a sonolência e se convertem em sono. Se, durante tal estado
de absorção e enquanto o fluxo de representações é inibido, um grupo
de representações de tonalidade afetiva estiver em ação, criará um alto
nível de excitação intracerebral que não será consumida pelo trabalho
mental e ficará à disposição do funcionamento anormal, como a
conversão.
Assim, nem a “ausência da mente” durante o trabalho intenso, nem os
estados crepusculares destituídos de emoção são patogênicos; por
outro lado, os devaneios carregados de emoção e os estados de fadiga
decorrentes de afetos prolongados são patogênicos. As ruminações de
um homem cheio de preocupações, a angústia de uma pessoa que
esteja velando à cabeceira de um doente que lhe é caro e os
devaneios dos amantes são estados desta segunda natureza. A
concentração no grupo afetivo de representações começa por produzir
uma “ausência da mente”. O fluxo de representações torna-se
gradualmente mais lento e, por fim, quase pára; mas a representação
afetiva e seu afeto permanecem ativas e, por conseguinte, também a
grande quantidade de excitação que não está sendo consumida
funcionalmente. A semelhança entre essa situação e os determinantes
da hipnose parece inconfundível. O indivíduo que vai ser hipnotizado
não precisa realmente adormecer, isto é, sua excitação intracerebral
não precisa mergulhar ao nível do sono; mas seu fluxo de
representações deve ser inibido. Quando isso acontece, toda a massa
de excitação fica à disposição da representação sugerida.
É dessa maneira que a auto-hipnose patogênica parece surgir em
algumas pessoas — através da introdução de afeto num devaneio
habitual. Essa talvez seja uma das razões por que, na anamnese da
histeria, deparamos tão freqüentemente com os dois grandes fatores
patogênicos de estar apaixonado e cuidar de doentes. No primeiro, os
pensamentos saudosos do indivíduo sobre a pessoa amada ausente
criam nele um estado de espírito “arrebatado”, fazem com que seu
ambiente real se esmaeça e então levam seu pensamento a um estado
de paralisação carregado de afeto; já no cuidar de doentes, a quietude
pela qual o indivíduo se vê rodeado, sua concentração num objeto, sua
atenção fixada na respiração do paciente — tudo isso garante
precisamente as condições exigidas por muitas técnicas hipnóticas e
enche o estado crepuscular assim produzido com o afeto de angústia.
É possível que esses estados difiram apenas quantitativamente das
auto-hipnoses verdadeiras e que se transformem nelas.
Uma vez que isso tenha acontecido, o estado semelhante à hipnose se
repete muitas vezes ao surgirem as mesmas circunstâncias, e o
indivíduo, em vez dos dois estados normais da mente, possui três: o
estado de vigília, o de sono e o hipnóide. Verificamos que a mesma
coisa acontece quando a hipnose artificial profunda é com freqüência
provocada.
Não sei dizer se os estados hipnóticos espontâneos podem também
ser gerados sem que haja a intervenção de um afeto dessa maneira,
comoresultado de uma predisposição inata, mas considero-o muito
provável. Quando vemos a diferença de suscetibilidade à hipnose
artificial tanto entre pessoas sadias como entre doentes, e vemos quão
facilmente é provocada em algumas delas, parece razoável supor que
em tais pessoas ela também possa aparecer de modo espontâneo. E
talvez seja necessária uma predisposição para isso para que um
devaneio possa transformar-se numa auto-hipnose. Estou, portanto,
longe de atribuir a todos os pacientes histéricos o mecanismo gerador
que nos foi ensinado por Anna O.
Refiro-me antes a estados hipnóides do que à hipnose em si porque é
muito difícil estabelecer uma demarcação clara desses estados, que
desempenham um papel tão importante na gênese da histeria. Não
sabemos se os devaneios, descritos acima como estágios preliminares
da auto-hipnose, não podem eles próprios ser capazes de produzir o
mesmo efeito patológico que a auto-hipnose, e se os mesmos também
não podem aplicar-se a um afeto prolongado de angústia. Por certo
que isso se aplica ao medo. Visto que o medo inibe o fluxo de
representações ao mesmo tempo em que uma representação afetiva
(de perigo) está muito ativa, ele oferece um paralelo completo a um
devaneio carregado de afeto; e uma vez que a lembrança da
representação afetiva que sempre se renova, continua a estabelecer
esse estado mental, passa a existir um “medo hipnóide” em que a
conversão é promovida ou estabilizada. Temos aí o estágio de
incubação da “histeria traumática” no sentido estrito da expressão.
Uma vez que há possibilidade de agrupar com a auto-hipnose estados
mentais tão diferentes, embora compatíveis entre si nos aspectos mais
importantes, parece desejável adotar a expressão “hipnóide”, que dá
ênfase a essa semelhança interna. Ela resume o conceito,
apresentado por Moebius no trecho citado anteriormente | ver em
[1]-[2]|. Acima de tudo, porém, essa expressão aponta para a própria
auto-hipnose, cuja importância na gênese dos fenômenos histéricos
repousa no fato de que ela torna a conversão mais fácil e protege (pela
amnésia) as representações convertidas de se desgastarem —
proteção esta que acaba por levar a um aumento da divisão psíquica.
Quando um sintoma somático causado por uma representação é
repetidamente desencadeado por ela, poderíamos esperar que os
pacientes inteligentes e capazes de auto-observação ficassem
conscientes da vinculação; eles saberiam por experiência que a
manifestação somática aparecia ao mesmo tempo que a lembrança de
um fato específico. O nexo causal subjacente, na verdade, é
desconhecido deles; mas todos nós sempre sabemos qual é a
representação que nos faz chorar, rir ou enrubescer, ainda que
nãotenhamos a mais leve compreensão do mecanismo nervoso desses
fenômenos ideogênicos. Algumas vezes os pacientes realmente
observam a conexão e estão cônscios dela. Por exemplo, uma mulher
pode dizer que seu ataque histérico branco (tremores e palpitação,
talvez) provém de alguma grande perturbação emocional e se repete
quando, e somente quando, algum fato faz com que ela se lembre
disso. Mas este não é o caso com muitos ou, na verdade, com a
maioria dos sintomas histéricos. Mesmo os pacientes inteligentes não
estão cônscios de que seus sintomas surgem como resultado de uma
representação e os consideram manifestações físicas independentes.
Se fosse de outra forma, a teoria psíquica da histeria já teria alcançado
uma idade respeitável.
Seria plausível acreditar que, embora os sintomas em questão fossem
originalmente ideogênicos, a repetição deles os tornou, para usar o
termo de Romberg |1840, 192|, “gravados” no corpo, e agora não mais
se baseariam num processo psíquico, e sim em modificações no
sistema nervoso ocorridas nesse meio tempo: ter-se-iam tornado
sintomas independentes e genuinamente somáticos.
Esse conceito não é, em si mesmo, nem insustentável nem improvável.
Mas creio que a nova luz que nossas observações lançaram sobre a
teoria da histeria reside precisamente em ter ela demonstrado que
essa visão é insuficiente para sustentar os fatos, pelo menos em
muitos casos. Vimos que sintomas histéricos dos mais variados tipos,
que datavam de muitos anos, “desapareciam imediata e
permanentemente quando conseguíamos evocar com clareza a
lembrança do fato que os havia provocado e despertar seu afeto
concomitante, e quando a paciente havia descrito tal evento com os
maiores detalhes possíveis e traduzira o afeto em palavras” | ver em
[1]|. Os casos clínicos relatados nessas páginas fornecem algumas
provas em apoio de tais asser-ções. “Podemos inverter a máxima
‘cessante causa cessat effectus‘ |’cessando a causa cessa o efeito’| e
concluir dessas observações que o processo determinante” (isto é, a
recordação dele) “continua a atuar durante anos — não indiretamente,
através de uma cadeia de elos causais intermediários, mas como uma
causa diretamente liberadora — do mesmo modo que um sofrimento
psíquico que é recordado na consciência de vigília ainda provoca uma
secreção lacrimal muito depois do acontecimento. Os histéricos sofrem
principalmente de reminiscências” |p. [1]|. Mas se esse for o caso — se
a lembrança do trauma psíquico tiver que ser considerada tão atuante
quanto um agente contemporâneo, como um corpo estranho muito
depois da sua entrada forçada, e se, não obstante, o paciente não tiver
nenhuma consciência de tais lembranças ou do surgimento delas —
então deveremos admitir que as representações inconscientes existem
e são atuantes.
Além disso, quando chegamos a analisar os fenômenos histéricos, não
encontramos apenas essas representações inconscientes em
isolamento. Devemos reconhecer o fato de que na realidade, como foi
demonstrado pelo valioso trabalho executado por pesquisadores
franceses, grandes complexos de representações e processos
psíquicos complicados e de importantes conseqüências permanecem
inteiramente inconscientes num grande número de pacientes, e
coexistem com a vida mental consciente: devemos reconhecer que há
algo que se pode chamar de divisão da atividade psíquica, e que isso é
de valor fundamental para nossa compreensão das histerias
complicadas.
Talvez me seja permitido explorar bem mais amplamente essa região
difícil e obscura. A necessidade de estabelecer o significado da
terminologia aqui empregada talvez justifique, até certo ponto, a
discussão teórica que se segue.
(5) REPRESENTAÇÕES INCONSCIENTES E REPRESENTAÇÕES
INADMISSÍVEIS À CONSCIÊNCIA — DIVISÃO DA MENTE
Chamamos representações conscientes àquelas de que temos
conhecimento. Existe nos seres humanos o fato estranho da
consciência de si mesmo. Somos capazes de encarar e observar,
como se fossem objetos, representações que surgem em nós e se
sucedem umas às outras. Isso nem sempre acontece, uma vez que
são raras as oportunidades de auto-observação. Mas a capacidade
para isso está presente em cada um, pois todos podem dizer: “pensei
nisto ou naquilo”. Descrevemos como conscientes as representações
que observamos como ativas em nós, ou que assim observaríamos se
prestássemos atenção a elas. Em qualquer momento específico do
tempo há pouquíssimas delas; e se além dessas houver também
outras representações presentes, teremos de chamá-las de
representações inconscientes.
Não mais parece necessário argumentar em favor da existência de
representações correntes que são inconscientes ou subconscientes.
Elas se acham entre os fatos mais comuns na vida cotidiana. Caso me
esqueça de fazer uma de minhas visitas médicas, terei sentimentos de
viva inquietação. Sei por experiência o que significa essa sensação de
que me esqueci de algo.Vasculho minhas lembranças em vão; não
consigo descobrir a causa até que, subitamente, talvez algumas horas
depois, ela entra em minha consciência. Mas estive inquieto o tempo
todo. Por conseguinte, a representação da visita esteve todo o tempo
atuante, isto é, presente, mas não em minha consciência. Ou então um
homem atarefado se aborrece com alguma coisa em certa manhã. Fica
inteiramente absorto em seu trabalho no escritório; enquanto o
executa, seus pensamentos conscientes estão inteiramente ocupados
e ele não pensa em seu aborrecimento. Mas suas decisões são
influenciadas por ele e é bem possível que o sujeito diga “não” onde de
outra forma diria “sim”. Portanto, apesar de tudo, essa lembrança é
atuante, ou seja, está presente. Grande parte do que descrevemos
como “estado de ânimo” provém de fontes dessa natureza, de
representações que existem e estão atuantes abaixo do limiar da
consciência. De fato, toda a conduta da nossa vida é constantemente
influenciada por representações subconscientes. Podemos ver na vida
cotidiana como, quando há degenerescência mental, como por
exemplo nos estágios iniciais da paralisia geral, as inibições que
normalmente restringem certas ações se tornam mais fracas e
desaparecem. Mas o paciente que agora faz piadas indecentes na
presença de mulheres não era, em seus dias de saúde, impedido de
fazê-lo por lembranças e reflexões consciente; evitava-o “instintiva” e
“automaticamente” — isto é, era refreado por representações que eram
evocadas pelo impulso de comportar-se dessa forma, mas que
permaneciam abaixo do limiar da consciência, embora, não obstante,
inibissem o impulso. — Toda a atividade intuitiva é dirigida por
representações que em grande medida são inconscientes, pois apenas
as representações mais claras e mais intensas são percebidas pela
consciência de si mesmo, enquanto a grande massa de
representações correntes, porém mais fracas, permanece inconsciente.
As objeções que são levantadas contra a existência e a atuação das
“representações inconscientes” parecem, na maior parte, ser um jogo
de palavras. Sem dúvida, “representação” é uma palavra que pertence
à terminologia do pensamento consciente, e “representação
inconsciente” é portanto uma expressão autocontraditória. Mas o
processo físico subjacente a uma representação é o mesmo no
conteúdo e na forma (embora não em quantidade), quer a
representação se eleve acima do limiar da consciência, quer
permaneça abaixo dele. Bastaria construir uma expressão como
“substrato representativo” para evitar a contradição e rebater a objeção.
Assim, não parece haver nenhuma dificuldade teórica em reconhecer
também as representações inconscientes como causas dos fenômenos
patológicos. Mas se entrarmos no assunto mais detidamente,
encontraremos outras dificuldades. Em geral, quando a intensidade de
uma representação inconsciente aumenta, ela penetra na consciência
ipso facto. Só quando sua intensidade é leve é que ela permanece
inconsciente. O que parece difícil de compreender é como uma
representação pode ser suficientemente intensa para provocar um ato
motor ativo, por exemplo, e ao mesmo tempo não ser intensa o
bastante para tornar-se consciente.
Já mencionei |ver em. [1] | um conceito que talvez não deva ser
descartado de imediato. De acordo com ele, a clareza de nossas
representações, e conseqüentemente sua capacidade de serem
observadas por nossa autoconsciência — isto é, de serem conscientes
— é determinada, entre outras coisas, pelas sensações de prazer ou
desprazer que desperta, por sua carga de afeto. Quando uma
representação produz imediatamente nítidas conseqüências
somáticas, isso implica que a excitação engendrada por ela escoou-se
pelas vias implicadas nessas conseqüências, em vez de difundir-se no
cérebro, e precisamente porque essa representação tem
conseqüências físicas, porque suas somas de estímulos psíquicos são
“convertidas” em estímulos somáticos, ela perde a clareza que de outra
forma a teria destacado na corrente de representações. Em vez disso,
perde-se entre as demais.
Suponhamos, por exemplo, que alguém tenha experimentado um afeto
violento durante uma refeição e não o tenha “ab-reagido”. Ao tentar
comer, mais tarde, ele é dominado por engasgos e vômitos e estes lhe
parecem sintomas puramente somáticos. Seus vômitos histéricos
continuam por tempo considerável. Desaparecem depois que o afeto é
revivido, descrito e tornado alvo de reação por parte do paciente sob
hipnose. Não há dúvida de que cada tentativa de comer evocava a
lembrança em causa. Essa lembrança deu origem aos vômitos, mas
não surgiu claramente na consciência, pois estava então destituída do
afeto, enquanto os vômitos absorviam a atenção inteiramente.
É concebível que a razão que acaba de ser dada explique por que
algumas idéias que liberam fenômenos histéricos não sejam
reconhecidas como suas causas. Mas essa razão — o fato de as
representações que perderam seu afeto, por terem sido convertidas,
passarem despercebidas — não tem possibilidade de explicar por que,
em outros casos, complexos representativos que são tudo, menos
desprovidos de afeto, não entram naconsciência. Numerosos exemplos
disso são encontrados em nossos casos clínicos.
Em tais pacientes verificamos que a norma era a perturbação
emocional — apreensão, irritabilidade raivosa, tristeza — preceder o
aparecimento do sintoma somático ou segui-lo imediatamente, e
aumentar até ser dissipada através de sua expressão em palavras, ou
até que o afeto e a manifestação somática tornassem a desaparecer
gradativamente. Quando ocorria o primeiro caso, a qualidade do afeto
sempre se tornava perfeitamente compreensível, embora sua
intensidade não pudesse deixar de parecer, aos olhos de uma pessoa
normal (e do próprio paciente, depois de ter sido esclarecida),
totalmente desproporcional. Essas eram, portanto, representações
intensas o bastante não apenas para causar fortes fenômenos
somáticos, como também para evocar o afeto apropriado e influenciar
o curso da associação, dando destaque a representações afins — mas
que, apesar de tudo isso, permaneciam elas próprias fora da
consciência. Para trazê-las à consciência, a hipnose se fazia
necessária (como nos Casos Clínicos 1 e 2), ou (como nos Casos 4 e
5) era preciso empreender uma busca trabalhosa com a ajuda
esforçada do médico.
Representações tais como essas, que, embora presentes, são
inconscientes, não por causa de seu grau relativamente pequeno de
nitidez, mas apesar de sua grande intensidade, podem ser descritas
como representações que são “inadmissíveis à consciência”.
A existência desse tipo de representações inadmissíveis à consciência
é patológica. Nas pessoas normais, todas as representações que
podem tornar-se presentes também penetram na consciência, desde
que sejam suficientemente intensas. Em nossos pacientes
encontramos um grande complexo de representações admissíveis à
consciência coexistindo com um complexo menor de representações
que não o são. Neles, portanto, o campo da atividade psíquica
representativa não coincide com a consciência potencial. Esta última é
mais restrita que a primeira. A atividade psíquica representativa dessas
pessoas divide-se numa parte consciente e noutra inconsciente, e suas
representações se dividem em algumas que são admissíveis e
algumas que sãoinadmissíveis à consciência. Não podemos, portanto,
falar numa divisão da consciência, embora possamos mencionar uma
divisão da mente.
Inversamente, essas representações subconscientes não podem ser
influenciadas ou corrigidas pelo pensamento consciente. Com muita
freqüência elas se referem a experiências que, entrementes, perderam
seu significado — o pavor de fatos que não ocorreram, o susto que se
transformou em riso ou alegria após um salvamento. Tais
desenvolvimentos subseqüentes privam a memória de todo o seu afeto
no que tange à consciência, mas deixam inteiramente intacta a
representação subconsciente que provoca fenômenos somáticos.
Talvez me seja permitido citar outro exemplo. Uma jovem mulher
casada ficou, por algum tempo, muito preocupada com o futuro de sua
irmã mais moça. Como resultado disso, sua menstruação,
normalmente regular, passou a durar duas semanas. Ela ficou com o
hipogástrico esquerdo sensível e por duas vezes se descobriu deitada
no chão, rígida, voltando a si de um “desmaio”. Seguiu-se uma
nevralgia ovariana do lado esquerdo, com sinais de peritonite aguda. A
ausência de febre e uma contratura da perna esquerda (e das costas)
indicaram que a moléstia era uma pseudo-peritonite; e quando alguns
anos depois a paciente faleceu, e se procedeu à autópsia, tudo o que
se encontrou foi uma “degeneração microcística” de ambos os ovários,
sem quaisquer vestígios de uma antiga peritonite. Os sintomas agudos
foram desaparecendo aos poucos e deixaram atrás de si uma nevralgia
ovariana, uma contratura dos músculos das costas, de modo que seu
tronco ficara rijo como uma tábua, e uma contratura da perna
esquerda. Esta última foi eliminada sob hipnose por sugestão direta. A
contratura das costas não foi afetada por isso. Entrementes, as
dificuldades da irmã mais moça tinham sido inteiramente dissipadas e
todos os seus temores baseados nelas desapareceram. Mas os
fenômenos histéricos, que só poderiam ter-se originado delas,
permaneceram inalterados. Era tentador presumir que aquilo com que
nos defrontávamos eram modificações da inervação, que teriam
assumido um status independente e não mais estariam vinculadas à
representação que as havia causado. Mas depois de a paciente ter
sido obrigada a narrar, sob hipnose, toda a história até a época em que
adoecera de “peritonite” — o que fez muito a contragosto — ela logo
sentou-se aprumada na cama, sem ajuda, e as contraturas das costas
desapareceram para sempre. (A nevralgia ovariana, que sem dúvida
era de origem muito antiga, permaneceu inalterada.) Assim, vemos que
sua representação patogênica angustiada continuara a agir ativamente
por meses a fio e fora totalmente inacessível a qualquer correção pelos
acontecimentos reais.
Se formos obrigados a reconhecer a existência de complexos
representativos que jamais penetram na consciência e não são
influenciados pelo pensamento consciente, teremos admitido que,
mesmo em casos tão simples de histeria como o que acabo de
descrever, há uma divisão da mente em duas partes relativamente
independentes. Não afirmo que tudo o que denominamos de histérico
apresente tal divisão como sua base e condição necessária; mas de
fato assevero que “a divisão da atividade psíquica que é tão marcante
nos casos famosos sob a forma de ‘double conscience‘ encontra-se
presente, em grau rudimentar, em toda grande histeria”, e que “a
disposição e tendência a essa dissociação constitui o fenômeno básico
dessa neurose”.
Mas antes de examinarmos este assunto, devo acrescentar um
comentário quanto às representações inconscientes que produzem
efeitos somáticos. Muitos fenômenos histéricos duram continuamente
por muito tempo, como a contratura no caso antes descrito. Será que
devemos e podemos supor que, por todo esse tempo, a representação
causativa está perpetuamente em ação e se acha presente na
atualidade? Penso que sim. É verdade que nas pessoas sadias vemos
a atividade psíquica processar-se concomitantemente a uma rápida
mudança de idéias. Mas encontramos portadores de melancolia grave
imersos, por longos períodos, numa mesma representação aflitiva, que
está perpetuamente ativa e presente. Na verdade, podemos muito bem
acreditar que mesmo quando uma pessoa sadia tem uma grande
preocupação em sua mente, esta se faz presente o tempo todo, uma
vez que tal preocupação domina a expressão facial mesmo quando a
consciência está repleta de outros pensamentos. Mas a parcela da
atividade psíquica que é isolada nas pessoas histéricas, e na qual
costumamos pensar como estando repleta de representações
inconscientes, encerra, em geral, uma dose tão pequena destas e é
tão inacessível ao intercâmbio com as impressões externas que é fácil
acreditar que uma representação única possa estar permanentemente
ativa na mente.
Se nos parece, como ocorre com Binet e Janet, que o que se acha no
centro da histeria é uma expulsão de parte da atividade psíquica,
temos o dever de ser tão claros quanto possível sobre este assunto. É
fácil demais cairmos num hábito de pensamento que pressupunha que
todo substantivo tem por detrás uma substância — um hábito que
pouco a pouco passa a considerar a “consciência” como representando
uma coisa real; e quando nosacostumamos a fazer uso das relações
espaciais metaforicamente como no termo “subconsciente”,
verificamos, à medida que o tempo passa, que na verdade formamos
uma representação que perdeu sua natureza metafórica e que
podemos com facilidade manipular como se fosse real. Nossa
mitologia torna-se então completa.
Todo o nosso pensamento tende a se fazer acompanhar e ajudar por
representações espaciais, e nos expressamos através de metáforas
espaciais. Assim, quando falamos de representações que se
encontram na região da consciência lúcida e de representações
inconscientes que jamais penetram na plena luz da consciência de si
mesmo, quase inevitavelmente formamos quadros de uma árvore com
o tronco à luz do dia e as raízes na escuridão, ou de um edifício com
seus escuros porões subterrâneos. Se, contudo, tivermos sempre em
mente que todas essas relações espaciais são metafóricas, e não nos
deixarmos iludir pela suposição de que essas relações se acham
literalmente presentes no cérebro, poderemos, não obstante, falar
numa consciência e num subconsciente. Mas só nessa condição.
Estaremos livres do perigo de nos deixarmos enganar por nossas
próprias figuras de linguagem se sempre nos lembrarmos de que,
afinal de contas, é no mesmo cérebro, e muito provavelmente no
mesmo córtex cerebral, que as representações conscientes e
inconscientes têm sua origem. Como isso é possível não sabemos
dizer. Por outro lado, sabemos tão pouco sobre a atividade psíquica do
córtex cerebral que mais uma complicação enigmática quase não
chega a aumentar nossa ignorância sem limites. Devemos aceitar
como um fato que, nos pacientes histéricos, parte de sua atividade
psíquica é inacessível à percepção pela autoconsciência do indivíduo
desperto e que a mente deles é assim dividida.
Um exemplo universalmente conhecido de uma divisão de atividade
psíquica como essa pode ser visto nos ataques histéricos, em algumas
de suas formas e fases. No início deles, o pensamento consciente
muitas vezes se extingue, mas depois gradualmente desperta. Muitos
pacientes inteligentes admitem que seu eu consciente estava bem
lúcido durante o ataque e contemplava com curiosidade e surpresa
todas as coisas loucas que eles faziam e diziam. Esses pacientes têm,
além disso, a crença (errônea) de que, com um pouco de boa vontade,
poderiam ter inibido o ataque, e mostram-se inclinados a culpar-se por
isso. “Não precisavam ter-se comportado assim.” (Suas autocensuras
por se sentirem culpados de simulação também se baseiam, em
grande medida, nesse sentimento.) Mas quando sobrevém outro
ataque, o eu consciente é tão incapaz de controlá-lo como nos
anteriores. — Temos aqui uma situação na qual o pensamento e a
representação do eu consciente edesperto encontram-se lado a lado
com representações que normalmente residem nas trevas do
inconsciente, mas que agora adquiriram controle sobre o aparelho
muscular e sobre a fala e, na realidade, até mesmo sobre grande parte
da própria atividade representativa: a divisão da mente é manifesta.
Talvez se possa observar que as descobertas de Binet e Janet
merecem ser descritas como uma divisão não só da atividade psíquica,
mas da consciência. Como sabemos, esses observadores
conseguiram entrar em contato com o “subconsciente” de seus
pacientes, com a parcela da atividade psíquica da qual o eu consciente
e desperto nada sabe, e puderam, em alguns de seus casos,
demonstrar a presença de todas as funções psíquicas, inclusive a
autoconsciência, nessa parte da mente, uma vez que ela tem acesso à
lembrança de fatos psíquicos anteriores. Essa metade da mente é,
portanto, bastante completa e consciente em si mesma. Em nossos
casos, a parte dividida da mente é “lançada nas trevas”, como os Titãs
aprisionados na cratera do Etna, que podem abalar a terra, mais
jamais emergirem à luz do dia. Nos casos de Janet, a divisão do
domínio da mente foi total. Não obstante, existe ainda uma
desigualdade de status. Mas também esta desaparece quando as duas
metades da consciência se alternam, como fazem nos célebres casos
de double conscience, e quando não diferem em sua capacidade
funcional.
Mas voltemos às representações que indicamos em nossos pacientes
como as causas de seus fenômenos histéricos. Está longe de ser
possível para nós descrever todas elas com sendo “inconscientes” e
“inadmissíveis à consciência”. Elas formam uma escala quase
ininterrupta, passando por todas as gradações da indefinição e
obscuridade, entre as representações perfeitamente conscientes que
liberam um reflexo inusitado e aquelas que jamais entram na
consciência na vida de vigília, a não ser na hipnose. Apesar disso,
consideramos estabelecido que uma divisão da atividade psíquica
ocorre nos graus mais graves da histeria e que só ela parece tornar
possível uma teoria psíquica da doença.
Que, então, pode ser asseverado ou suspeitado com probabilidade
sobre as causas e a origem desse fenômeno?
Janet, a quem a teoria da histeria tanto deve e com quem estamos em
concordância na maioria dos aspectos, externou uma opinião sobre
esse ponto que não podemos aceitar.
O conceito de Janet é o seguinte. Considera ele que a “divisão de
umapersonalidade” repousa numa insuficiência psicológica inata
(“insuffisance psychologique”). Toda atividade mental normal
pressupõe certa capacidade de “síntese”, a capacidade de unir várias
representações num complexo. A combinação das várias percepções
sensoriais num quadro do ambiente já é uma atividade sintética dessa
natureza. Verifica-se que essa função mental está muito abaixo do
normal nos pacientes histéricos. Quando a atenção de uma pessoa
normal é dirigida tão plenamente quanto possível para algum ponto,
por exemplo, para uma percepção por um único sentido, é verdade que
ela perde temporariamente a capacidade de aperceber impressões
provenientes dos outros sentidos — ou seja, de absorvê-las em seu
pensamento consciente. Mas nos indivíduos histéricos isso acontece
sem qualquer concentração especial da atenção. Logo que percebem
qualquer coisa, eles se tornam inacessíveis a outras percepções
sensoriais. De fato, sequer estão em condições de receber em
conjunto diversas impressões decorrentes de um único sentido.
Podem, por exemplo, aperceber-se apenas de sensações táteis em um
lado do corpo; as que são oriundas do outro lado alcançam o centro e
são utilizadas para a coordenação do movimento, mas não são
apercebidas. Uma pessoa assim é hemianestésica. Nas pessoas
normais, uma representação atrai para a consciência um grande
número de outras, por associação; estas podem relacionar-se com a
primeira, por exemplo, de maneira confirmatória ou inibitória, e apenas
as representações mais nítidas têm tamanho poder que suas
associações permanecem abaixo do limiar da consciência. Nas
pessoas histéricas isso sempre acontece. Cada representação
apodera-se de toda a sua limitada atividade mental, e isso explica sua
afetividade excessiva. Essa característica da mente delas é descrita
por Janet como a “restrição do campo da consciência”, nos pacientes
histéricos, por analogia com a “restrição do campo da visão”. Em sua
maior parte, as impressões sensoriais que não são apercebidas e as
representações que são despertadas, mas não entram na consciência,
cessam sem produzir outras conseqüências. Contudo, elas às vezes
se acumulam e formam complexos — camadas mentais retiradas da
consciência; formam uma subconsciência.
A histeria, que se baseia essencialmente nessa divisão da mente, é
uma“maladie par faiblesse” |“doença causada pela fraqueza”|, e eis por
que se desenvolve mais depressa quando uma mente fraca por
natureza é submetida a influências que a enfraquecem ainda mais, ou
se defronta com exigências fortes em relação às quais sua debilidade
se destaca ainda mais.
As opiniões de Janet, resumidas dessa forma, dão de antemão sua
resposta à importante questão sobre a predisposição para a histeria —
sobre a natureza do typus hystericus (tomando a expressão no sentido
pelo qual nos referimos a um typus phthisicus, pelo que
compreendemos o tórax estreito e longo, o coração pequeno, etc.).
Janet considera que a predisposição à histeria é uma forma particular
de debilidade mental congênita. Em resposta, gostaríamos de formular
em breves linhas nosso conceito, como se segue. Não é uma questão
de a divisão da consciência ocorrer porque os pacientes têm a mente
fraca; eles parecem ter a mente fraca porque sua atividade mental está
dividida e apenas parte de sua capacidade se acha à disposição do
seu pensamento consciente. Não podemos considerar a fraqueza
mental como o typus hystericus, como a essência da predisposição à
histeria.
Um exemplo esclarece o que se pretende dizer com a primeira dessas
duas frases. Pudemos observar muitas vezes a seguinte evolução dos
acontecimentos com uma de nossas pacientes (Sra. Caecilie M.).
Quando ela se sentia relativamente bem, surgia um sintoma histérico
— uma alucinação torturante e obsessiva, uma nevralgia ou coisa
semelhante — que, durante algum tempo, aumentava de intensidade.
Simultaneamente, a capacidade mental da paciente decrescia de
forma contínua e, após alguns dias, qualquer observador não-iniciado
seria levado a dizer que a mente dela era fraca. Em seguida, ela era
aliviada da representação inconsciente (a lembrança de um trauma
psíquico, muitas vezes pertencente ao passado remoto), quer pelo
médico, sob hipnose, quer pelo fato de ela descrever de súbito o
evento, num estado de agitação e com o acompanhamento de ativa
emoção. Depois que isso acontecia, ela não só ficava tranqüila, alegre
e livre do sintoma torturante, como era sempre espantoso observar a
amplitude e a lucidez de seu intelecto, bem como a agudeza de sua
compreensão e julgamento. O xadrez, que ela jogava muito bem, era
uma de suas ocupações favoritas, e ela gostava de jogar duas partidas
de cada vez, o que se poderia dificilmente considerar indicativo de falta
de síntese mental. Era impossível fugir à impressão de que, durante
uma evolução de acontecimentos como o que acabamos de descrever,
a representação inconsciente atraía para si própria uma parcela
sempre crescente da atividade psíquica da paciente e que, quanto
mais isso acontecia, menor se tornava o papel desempenhado pelo
pensamento consciente, até ficar reduzido à imbecilidade total; mas
que, para empregarmos a expressãovienense notavelmente adequada,
quando ela estava “beisammen” |literalmente, “reunida”, significando
“eu seu juízo perfeito”|, possuía poderes mentais bem marcantes.
Como um estado comparável nas pessoas normais poderíamos
mencionar não a concentração da atenção, mas a preocupação.
Quando alguém está “preocupado” com alguma nítida representação,
como um aborrecimento, sua capacidade mental fica similarmente
reduzida.
Todo observador é basicamente influenciado por seus objetos de
observação, e estamos inclinados a crer que os conceitos de Janet
formaram-se principalmente na evolução de um estudo detalhado dos
pacientes histéricos oligofrênicos que costumam ser encontrados nos
hospitais e instituições, por não terem conseguido levar sua própria
vida em virtude de sua doença e da fraqueza mental por ela
provocada. Nossas próprias observações, levadas a efeito em
pacientes histéricos instruídos, forçaram-nos a adotar uma visão
essencialmente diferente de suas mentes. Em nossa opinião, “entre os
histéricos podem-se encontrar pessoas da mais lúcida inteligência, da
maior força de vontade, do melhor caráter e da mais elevada
capacidade crítica” | ver em [1]|. Nenhuma parcela de uma dotação
mental sólida e autêntica é excluída pela histeria, embora as
realizações efetivas com freqüência se tornem impossíveis por causa
da doença. Afinal, a padroeira da histeria, Santa Teresa, era uma
mulher de gênio com grande capacidade prática.
Mas por outro lado, nenhum grau de sandice, incompetência e
fraqueza de vontade constitui proteção contra a histeria. Mesmo que
desprezemos o que é meramente um resultado da doença, devemos
reconhecer o tipo de histérico oligofrênico como um tipo comum.
Mesmo assim, entretanto, o que encontramos aí não é a estupidez
embotada e fleumática, mas um grau excessivo de mobilidade mental
que leva à ineficiência. Examinarei posteriormente a questão da
predisposição inata. Aqui, proponho apenas demonstrar que a opinião
de Janet de que a fraqueza mental está de algum modo na raiz da
histeria e de que a divisão da mente é insustentável.
Em total oposição aos conceitos de Janet, creio que, num grande
número de casos, o que está subjacente à dissociação é um excesso
de eficiência, a coexistência habitual de duas seqüências de
representações heterogêneas. Tem-se ressaltado com freqüência que,
muitas vezes, não estamos apenas “mecanicamente” ativos enquanto
nosso pensamento consciente se acha ocupado com cadeias de
representações que nada têm em comum com nossa atividade, mas
que somos também capazes do que é, sem dúvida, umfuncionamento
psíquico, enquanto nossos pensamentos estão “ocupados em outro
lugar” como, por exemplo, quando lemos em voz alta corretamente e
com entonação adequada, mas depois não temos a menor idéia do
que estivemos lendo.
Há sem dúvida inúmeras atividades, desde as mecânicas, como
tricotar ou tocar escalas, até algumas que exigem no mínimo um
pequeno grau de funcionamento mental, que são todas realizadas por
muitas pessoas com apenas parte da mente concentrada nelas. Isso
se aplica especialmente às pessoas dotadas de disposição muito ativa,
para as quais uma ocupação monótona, simples e desinteressante
constitui uma tortura, e que na realidade começam deliberadamente a
se divertir pensando em algo diferente (cf. o “teatro particular” de Anna
O. | ver em [1]|. Outra situação semelhante, ocorre quando um grupo
interessante de representações, oriundo por exemplo de livros ou
peças, impõe-se à atenção do sujeito e se intromete em seus
pensamentos. Essa intromissão é ainda mais vigorosa quando o grupo
estranho de representações tem uma intensa tonalidade afetiva (por
exemplo, a aflição ou a saudade da pessoa amada). Temos então o
estado de preocupação a que aludi acima, o qual, não obstante, não
impede muitas pessoas de executarem ações bastante complicadas.
As situações sociais muitas vezes exigem uma duplicação dessa
espécie, mesmo quando os pensamentos em jogo são de natureza
dominadora — como, por exemplo, quando uma mulher que lutando
com uma extrema preocupação ou uma excitação inflamada
desempenha seus deveres sociais e as funções de afável anfitriã.
Todos nós conseguimos apenas realizações desse tipo no decurso de
nosso trabalho, e a auto-observação parece sempre demonstrar que o
grupo de representações afetivas não é meramente despertado de
quando em vez pela associação, mas está presente todo o tempo na
mente e penetra na consciência, a menos que esta esteja tomada por
alguma impressão externa ou ato de vontade.
Mesmo nas pessoas que têm o costume de não permitirem que sua
mente seja perpassada por devaneios paralelos a sua atividade
habitual, certas situações dão margem, durante consideráveis períodos
de tempo, a essa existência simultânea de impressões e reações
mutáveis da vida externa, por um lado, e de um grupo de
representações coloridas de afeto, por outro. Post equitem sedet atra
cura |“atrás do cavaleiro senta-se a negra preocupação”|. Entre essas
situações, as mais marcantes são a de cuidar de alguém que nos é
caro e a de estar apaixonado. A experiência mostra que o cuidar de
doentese os afetos sexuais também desempenham o papel principal
na maioria dos casos de pacientes histéricos analisados mais
detidamente.
Suspeito que a duplicação do funcionamento psíquico, quer seja
habitual, quer provocada por situações emocionais da vida, atue como
uma predisposição apreciável para uma divisão patológica autêntica da
mente. Essa duplicação passa para o segundo estado quando o
conteúdo dos dois grupos de representações coexistentes deixa de ser
da mesma espécie, quando um deles encerra representações que são
inadmissíveis à consciência — ou seja, que foram repelidas ou
surgiram de estados hipnóides. Quando isto ocorre, é impossível para
as duas correntes temporariamente divididas voltarem a se reunir,
como acontece com freqüência nas pessoas sadias, e uma região da
atividade psíquica inconsciente é dividida de forma permanente. Essa
cisão histérica da mente está para o “duplo eu” assim como o estado
hipnóide está para um devaneio normal. Neste segundo contraste, o
que determina a qualidade patológica é a amnésia, e no primeiro, o
que a determina é a inadmissibilidade das representações à
consciência.
Nosso primeiro caso clínico, o de Anna O., a que sou obrigado a estar
sempre recorrendo, proporciona uma compreensão nítida do que
acontece. Essa moça tinha o hábito, enquanto gozava de perfeita
saúde, de permitir que seqüências de representações imaginativas lhe
passassem pela mente durante suas ocupações corriqueiras.
Enquanto se encontrava numa situação que favorecia a auto-hipnose,
o afeto de angústia penetrou em seu devaneio e criou um estado
hipnóide em relação ao qual ela teve amnésia. Isso se repetiu em
diversas ocasiões e seu conteúdo representativo foi-se tornando cada
vez mais rico, mas continuou a se alternar com estados de
pensamento de vigília inteiramente normais. Após quatro meses, o
estado hipnóide assumiu pleno controle da paciente. Os ataques
isolados esbarraram uns nos outros e assim surgiu um état de mal,
uma histeria aguda do tipo mais grave. Este durou vários meses sob
diversas formas (o período de sonambulismo); foi então interrompido à
força | ver em [1]| e, a partir daí, voltou a se alternar com o
comportamento psíquico normal. Mesmo durante seu comportamento
normal, porém, havia uma persistência de fenômenos somáticos e
psíquicos (contraturas, hemianestesia e alterações da fala) a respeito
dos quais, neste caso, sabemos com certeza que se baseavam em
representações pertinentes ao estado hipnóide. Isso prova que,
mesmo durante seu comportamento normal, o complexo representativo
pertencente ao estado hipnóide, a “subconsciência”, estava atuante, e
que a divisão em sua mente persistia.
Não disponho de um segundo exemplo a oferecer de um curso
evolutivo semelhante. Penso, contudo, que o caso lança alguma luz
também sobre odesenvolvimento das neuroses traumáticas. Durante
os primeiros dias após o fato traumático, o estado de pavor hipnóide
repete-se a cada vez que o fato é relembrado. Enquanto esse estado
se repete com freqüência cada vez maior, sua intensidade vai
diminuindo tanto que ele não mais se alterna com o pensamento de
vigília, mas apenas coexiste com ele. Torna-se então contínuo, e os
sintomas somáticos, que antes só se faziam presentes durante o
ataque de pavor, adquirem existência permanente. Todavia, posso
apenas suspeitar de que seja isso o que acontece, já que nunca
analisei um caso dessa natureza.
As observações e as análises de Freud revelam que a divisão da
mente também pode ser causada pela “defesa”, pelo desvio deliberado
da consciência das representações aflitivas: mas só em algumas
pessoas, às quais, portanto, devemos atribuir uma idiossincrasia
mental. Nas pessoas normais, tais representações ou são suprimidas
com êxito, e nesse caso desaparecem por completo, ou não o são, e
nesse caso continuam a surgir na consciência. Não sei dizer qual é a
natureza dessa idiossincrasia. Arrisco-me apenas a sugerir que o
auxílio do estado hipnóide é necessário para que a defesa resulte não
meramente na transformação de representações convertidas isoladas
em representações inconscientes, mas numa autêntica divisão da
mente. A auto-hipnose, por assim dizer, terá criado o espaço ou região
da atividade psíquica inconsciente para o qual são dirigidas as
representações rechaçadas. Seja como for, porém, a realidade da
significância patogênica da “defesa” é um fato que devemos
reconhecer.
Não penso, entretanto, que a gênese da divisão da mente sequer seja
abarcada pelos processos incompletamente compreendidos que vimos
discutindo. Assim, em suas fases iniciais, as histerias de grau severo
costumam exibir por algum tempo uma síndrome que pode ser descrita
como de histeria aguda. (Na anamnese dos casos masculinos de
histeria em geral nos defrontamos com uma representação dessa
forma de doença como “encefalite”; nos casos femininos, a nevralgia
ovariana leva a um diagnóstico de “peritonite”.) Nesse estágio agudo
da histeria, os traços psicóticos são muito distintos, tais como estados
de excitação maníacos e coléricos, fenômenos histéricos que se
transformam rapidamente, alucinações e assim por diante. Em tais
estados, a divisão da mente talvez ocorra de maneira diferente da que
tentamos descrever acima. Talvez todo esse estágio deva ser
encarado como um longo estado hipnóide cujos resíduos fornecem o
núcleo do complexo representativo inconsciente, enquanto o
pensamento de vigília é amnésico quanto a ele. Visto que na maioria
das vezes ignoramos as causas que levam a uma histeria aguda dessa
natureza (não me arrisco a considerar o curso dos acontecimentos
observados em Anna O. como tendo aplicação geral), parece haver
outra espécie de divisão psíquica que, em contraste com as
examinadas acima, poderia ser denominada de irracional. E sem
dúvida ainda existem outras formas desse processo, que ainda se
acham ocultas de nossa jovem ciência psicológica, pois é certo que
demos apenas os primeiros passos nesse setor do conhecimento e
nossos conceitos atuais serão substancialmente alterados por outras
observações.
Perguntemo-nos agora qual o resultado que o conhecimento da divisão
da mente alcançado nos últimos anos trouxe para a compreensão da
histeria. Parece ter sido grande em quantidade e importância.
Tais descobertas possibilitaram, em primeiro lugar, que o que parece
serem sintomas puramente somáticos fosse relacionado com
representações, as quais, contudo, não podem ser descobertas na
consciência dos pacientes. (É desnecessário abordar isso novamente.)
Em segundo lugar, ensinaram-nos a compreender os ataques
histéricos, pelo menos em parte, como sendo produtos de um
complexo representativo inconsciente. (Cf. Charcot.) Mas, além disso,
explicaram também algumas das características psíquicas da histeria,
e este ponto talvez mereça um exame mais pormenorizado.
É verdade que as “representações inconscientes” jamais, ou só
raramente e com dificuldade, penetram no pensamento de vigília; mas
elas o influenciam. Fazem-no, em primeiro lugar, através de suas
conseqüências — quando, por exemplo, um paciente é atormentado
por uma alucinação que é totalmente ininteligível e absurda, mas cujo
significado e motivação tornam-se claros sob hipnose. Além disso,
influenciam a associação, tornando certas representações mais nítidas
do que teriam sido caso não fossem assim reforçadas a partir do
inconsciente. Dessa maneira, alguns grupos específicos de
representações impõem-se constantemente ao paciente com certo
grau de compulsão e ele é obrigado a pensar neles. (O caso é
semelhante aos dos pacientes semi-anestésicos de Janet. Quando sua
mão anestésica é repetidamente tocada, eles não sentem nada, mas
quando lhes mandam indicar um número qualquer a seu gosto, eles
sempre escolhem o que corresponde ao número de vezes que foram
tocados.) Por outro lado, as representações inconscientes regem o
tônus emocional do paciente, seu estado de espírito. Quando, no curso
do desenrolar de suas lembranças, Anna O. abordava umfato que em
sua origem estivera ligado a um afeto nítido o sentimento
correspondente surgia com vários dias de antecedência e antes que a
lembrança aparecesse claramente, mesmo em sua consciência
hipnótica.
Isso torna inteligíveis os “estados de ânimo” dos pacientes — suas
alterações inexplicáveis e desarrazoadas de humor, que parecem ao
pensamento de vigília ocorrer sem motivo. Com efeito, a
impressionabilidade dos pacientes histéricos é determinada, em
grande parte, simplesmente por sua excitabilidade inata; mas os afetos
nítidos em que eles são lançados por causas relativamente triviais
ficam mais inteligíveis ao considerarmos que a “parte dividida da
mente” reage como uma caixa de ressonância à nota de um diapasão.
Qualquer acontecimento que provoque lembranças inconscientes libera
toda a força afetiva dessas representações que não sofreram
desgaste, e o afeto evocado fica então inteiramente desproporcional a
qualquer um que surgisse apenas na mente consciente.
Referi-me antes (ver em [1]) a uma paciente cujo funcionamento
psíquico estava sempre na razão inversa da nitidez de suas
representações inconscientes. A diminuição de seu pensamento
consciente baseava-se, em parte, mas apenas em parte, numa espécie
peculiar de abstração. Após cada uma de suas “absences”
momentâneas — e estas sempre ocorriam — ela não sabia em que
havia pensado no curso dela. Oscilava entre suas “conditions primes” e
“secondes”, entre os complexos representativos conscientes e
inconscientes. Mas não era apenas por isso que seu funcionamento
psíquico se via reduzido, nem por causa do afeto que a dominava a
partir do inconsciente. Enquanto se encontrava nesse estado, seu
pensamento de vigília ficava sem energia, seu julgamento era infantil e
ela parecia, como já tive ocasião de dizer, positivamente imbecil. Creio
que isso se devia ao fato de que o pensamento de vigília dispõe de
menos energia quando uma grande quantidade de excitação psíquica é
apropriada pelo inconsciente.
Quando este estado de coisas não é apenas temporário, quando a
parte dividida da mente está num constante estado de excitação, como
ocorria com os pacientes hemianestésicos de Janet — nos quais, além
disso, todas as sensações em nada menos da metade do corpo só
eram percebidas pela mente inconsciente — quando este é o caso,
resta tão pouco funcionamento cerebral para o pensamento de vigília
que a debilidade mental que Janet descreve e considera inata fica
plenamente explicada. São pouquíssimas as pessoas de quem se
pode dizer, como do Bertrand de Born, de Uhland, que nunca precisam
de mais da metade de sua mente.1 Tal redução da energia psíquica
realmente transforma a maioria das pessoas em débeis mentais.
Essa debilidade mental, causada por uma divisão da psique,
tambémparece ser a base de uma notável característica de alguns
pacientes histéricos — sua sugestionabilidade. (Digo “alguns” por ser
certo que entre os pacientes histéricos também se encontram pessoas
do julgamento mais sensato e mais crítico.)
Por sugestionabilidade entendemos, em primeiro lugar, apenas uma
incapacidade de criticar as representações e complexos de
representações (julgamentos) que emergem na própria consciência do
sujeito, ou são nela introduzidos de fora através da palavra falada ou
da leitura. Qualquer crítica dessas representações recém-chegadas na
consciência baseia-se no fato de elas despertarem outras
representações por associação, e entre estas algumas que são
irreconciliáveis com as novas. A resistência a estas últimas fica assim
na dependência do acervo de representações antagônicas na
consciência potencial, e a intensidade da resistência corresponde à
proporção entre a nitidez das novas representações e a das
despertadas na memória. Mesmo nos intelectos normais essa
proporção é muito variada. O que descrevemos como um
temperamento intelectual depende dela em larga medida. Um homem
“sangüíneo” sempre se delicia com novas pessoas e coisas, e isso
sem dúvida ocorre porque a intensidade de suas imagens mnêmicas é
menor em comparação com a das novas impressões num homem mais
tranqüilo e “fleumático”. Nos estados patológicos a preponderância de
novas representações e a falta de resistência a elas aumentam em
proporção à escassez das imagens mnêmicas despertadas — isto é,
proporcionalmente à pobreza e à debilidade de seus poderes
associativos. Isso já é o que acontece no sono e nos sonhos, na
hipnose e sempre que há uma redução da energia mental, desde que
esta não reduza também a nitidez das novas representações.
A parte inconsciente expelida pela mente na histeria é sobretudo
sugestionável, em virtude da pobreza e incompletude de seu conteúdo
representativo. Mas em alguns pacientes histéricos também a
sugestionabilidade da mente consciente parece basear-se nisso. Eles
são excitáveis por causa de sua predisposição inata; neles, as
representações novas são muito nítidas. Em contraste com isso, sua
atividade intelectual propriamente dita, sua função associativa, é
reduzida, porque apenas parte de sua energia psíquica se acha à
disposição de seu pensamento de vigília, em virtude da cisão de um
“inconsciente”. Como resultado disso, seu poder de resistência tanto às
auto-sugestões como às alo-sugestões se vê reduzido e por vezes
abolido. A sugestionabilidade de sua vontade também parece dever-se
apenas a isso. Por outro lado, a sugestionabilidade alucinatória, que
transforma prontamentequalquer representação de uma percepção
sensorial numa percepção real, exige, como todas as alucinações, um
grau anormal de excitabilidade do órgão perceptivo e não pode ser
atribuída apenas a uma divisão da mente.
(6) PREDISPOSIÇÃO INATA — DESENVOLVIMENTO DA HISTERIA
Em quase todas as etapas destas considerações fui obrigado a
reconhecer que a maioria dos fenômenos que nos vimos esforçando
por compreender pode basear-se, entre outras coisas, numa
idiossincrasia inata. Isso desafia qualquer explicação que procure ir
além de uma simples enunciação dos fatos. Mas a capacidade de
adquirir a histeria também se acha indubitavelmente ligada a uma
idiossincrasia da pessoa em questão, e a tentativa de defini-la com
maior exatidão talvez não seja inteiramente infrutífera.
Expliquei acima por que não posso aceitar a opinião de Janet de que a
predisposição para a histeria se baseia numa fraqueza psíquica inata.
O clínico que, na qualidade de médico da família, observa os membros
de famílias histéricas em todas as idades, por certo ficará inclinado a
achar que essa predisposição reside antes num excesso do que numa
falta. Os adolescentes que depois se tornarão histéricos são, em sua
maioria, bem vivazes, dotados e repletos de interesses intelectuais
antes de adoecerem. Muitas vezes, sua força de vontade é notável.
Incluem-se entre eles moças que levantam da cama à noite, em
segredo, para fazer algum estudo que seus pais lhes proíbem temendo
que se esforcem demais. A capacidade de formar opiniões sólidas por
certo não é maior neles do que nas outras pessoas; mas é raro
encontrar neles simples inércia intelectual e estupidez. A produtividade
exuberante de suas mentes levou um de meus amigos a afirmar que os
histéricos são a flor da humanidade — tão estéreis, sem dúvida, mas
tão belos quanto as flores.
Sua vivacidade e inquietude, sua ânsia de sensações e atividade
mental, sua intolerância à monotonia e ao tédio podem ser assim
formuladas: eles se situam entre aquelas pessoas cujo sistema
nervoso, enquanto em repouso, libera um excesso de excitação que
exige ser utilizado (ver em [1]). Durante o desenvolvimento na
puberdade e em conseqüência dele, esse excesso original é
complementado pelo poderoso aumento da excitação que decorre do
despertar da sexualidade, das glândulas sexuais. A partir daí há uma
quantidade excedente de energia nervosa livre disponível para a
produção de fenômenos patológicos.
Mas, para que esses fenômenos surjam sob a forma de sintomas
histéricos, evidentemente precisa haver também uma outra
idiossincrasia específicano indivíduo em questão, pois, afinal, a grande
maioria das pessoas ativas e excitáveis não se torna histérica. Um
pouco mais atrás | ver em [1]|, só pude definir essa idiossincrasia com
uma expressão vaga e não esclarecedora: “excitabilidade anormal do
sistema nervoso”. Mas talvez seja possível ir mais além e dizer que
essa anormalidade reside no fato de que em tais pessoas a excitação
do órgão central pode fluir para os aparelhos nervosos sensoriais que
normalmente só são acessíveis aos estímulos periféricos, bem como
para os aparelhos nervosos dos órgãos vegetativos, que são isolados
do sistema nervoso central por poderosas resistências. É possível que
essa idéia de haver um excedente de excitação constantemente
presente, com acesso aos aparelhos sensorial, vasomotor e visceral, já
explique certos fenômenos patológicos.
Nas pessoas desse tipo, tão logo sua atenção se concentra
forçosamente em alguma parte do corpo, aquilo a que Exner |1894,
165 e segs.| chama de “facilitação pela atenção” na via sensorial de
condução em questão excede a quantidade normal. A excitação livre e
flutuante é, por assim dizer, desviada para essa via, produzindo-se
uma hiperalgesia local. Como resultado, qualquer dor, como quer que
seja causada, alcança intensidade máxima, e qualquer mal-estar é
“horrível” e “insuportável”. Além disso, enquanto nas pessoas normais
uma quantidade de excitação, depois de catexizar uma via sensitiva,
sempre a abandona, isto não ocorre nestes casos. Aquela quantidade,
ademais, não só permanece ali como é constantemente aumentada
pelo influxo de novas excitações. Um leve dano a uma articulação leva
assim à artralgia, e as sensações dolorosas devidas ao
intumescimento ovariano conduzem à nevralgia ovariana crônica; e
visto que os aparelhos nervosos da circulação são mais acessíveis à
influência cerebral do que nas pessoas normais, deparamos com
palpitações nervosas do coração, tendência a desmaios, propensão ao
enrubescimento e empalidecimento excessivos, e assim por diante.
Todavia, não é apenas quando às influências centrais que os
aparelhos nervosos periféricos são mais facilmente excitáveis. Eles
também reagem de maneira excessiva e imprópria a estímulos
funcionais adequados. Surgem palpitações tanto a partir de esforços
moderados quanto da excitação emocional, e os nervos vasomotores
fazem com que as artérias se contraiam (“dedos mortos”)
independentemente de qualquer influência psíquica. E, da mesma
forma que um ligeiro dano deixa uma artralgia atrás de si, um curto
acesso de bronquite é seguido de asma nervosa, e a indigestão, de
freqüentes dores cardíacas. Por conseguinte, devemos admitir que a
acessibilidade a somas de excitação de origem central nada mais é do
que um caso especial de uma excitabilidade anormal genérica, muito
embora ela seja a mais importante do ponto de vista de nosso tópico
atual.
Parece-me, portanto, que a antiga “teoria reflexa” desses sintomas,
que talvez fossem mais bem definidos simplesmente como “nervosos”,
mas que fazem parte do quadro clínico empírico da histeria, não deve
ser inteiramente rejeitada. Os vômitos, que naturalmente acompanham
a dilatação do útero na gravidez, podem muito bem, quando existe uma
excitabilidade anormal, ser desencadeados de maneira reflexa por
estímulos uterinos banais, ou talvez até mesmo pelas alterações
periódicas do tamanho dos ovários. Estamos familiarizados com tantos
efeitos remotos decorrentes de alterações orgânicas, tantos casos
estranhos de “dor transferida”, que não podemos rejeitar a
possibilidade de que um imenso grupo de sintomas nervosos por vezes
determinados psiquicamente possam, em outros casos, ser efeitos
distantes da ação reflexa. De fato, arrisco-me a formular a heresia
bastante conservadora de que até mesmo a debilidade motora numa
perna pode, algumas vezes, ser determinada por uma afecção genital,
não psiquicamente, mas por ação reflexa direta. Penso que faremos
bem em não insistir demais na exclusividade de nossas novas
descobertas ou procurar aplicá-las a todos os casos.
Outras formas de excitabilidade sensorial anormal ainda escapam
inteiramente à nossa compreensão: a analgesia geral, por exemplo, as
áreas anestésicas, a restrição real do campo da visão, e assim por
diante. É possível, e talvez provável, que outras observações venham
comprovar a origem psíquica de um ou outro desses estigmas e assim
expliquem o sintoma; só que isso ainda não aconteceu (pois não me
arrisco a generalizar os resultados apresentados por nosso primeiro
relato de caso), e não acho justificável presumir que essa seja a
origem deles enquanto ela não tiver sido satisfatoriamente investigada.
Por outro lado, a idiossincrasia do sistema nervoso e da mente que
vimos examinando parece explicar uma ou duas propriedades muito
familiares de diversos pacientes histéricos. O excedente de excitação
liberado pelo sistema nervoso dessas pessoas quando em estado de
repouso determina sua incapacidade de tolerarem uma vida monótona
e o tédio — a ânsia de sensações que os impele, após início de sua
doença, a interromper a monotonia de sua vida sem validade por toda
sorte de “incidentes”, dos quais os mais destacados são, a julgar pela
natureza das coisas, fenômenos patológicos. Muitas vezes, essas
pessoas são ajudadas nisso pela auto-sugestão. São impelidas a cada
vez mais penetrar nesse caminho por sua necessidade de ficarem
doentes — um traço notável que é tão patognomônico para a histeria
quanto é o medo de adoecer para a hipocondria. Conheço uma mulher
histérica que infligiaa si mesma danos freqüentemente muito graves,
apenas para seu próprio consumo e sem que aqueles que a cercavam,
ou seu médico, tomassem conhecimento disso. Que mais não fosse,
ela costumava fazer toda sorte de brincadeiras enquanto estava
sozinha em seu quarto, simplesmente para provar a si mesma que não
era normal. E o fazia, por ter, de fato, uma nítida sensação de não
estar bem e de não poder desempenhar seus deveres de maneira
satisfatória, tentando justificar-se a seus próprios olhos através de
ações como essas. Outra paciente, uma mulher muito doente que
sofria de uma conscienciosidade patológica e era cheia de dúvidas a
respeito de si mesma, vivenciava todos os fenômenos histéricos como
algo culposo, pois, segundo dizia, não precisava tê-los se realmente
não os quisesse ter. Quando uma paresia em suas pernas foi
erroneamente diagnosticada como uma doença da espinha, ela
vivenciou isso como um imenso alívio e, quando lhe disseram que era
“apenas nervosa” e que passaria, isso foi o bastante para acarretar
graves dores de consciência. A necessidade de adoecer decorre do
desejo da paciente de convencer a si mesma e às outras pessoas da
realidade de sua doença. Quando essa necessidade se associa ainda
à aflição causada pela monotonia de um quarto de enfermo, a
inclinação a produzir cada vez mais sintomas novos desenvolve-se ao
máximo.
Quando, no entanto, isso se transforma em fingimento e verdadeira
simulação (e penso que agora pecamos tanto por excesso ao negar a
simulação quanto pecávamos ao aceitá-la), isso se baseia, não na
predisposição histérica, mas, como disse Moebius tão
apropriadamente, em ser ela complicada por outras formas de
degenerescência — por uma inferioridade moral inata. Da mesma
forma, o “histérico rancoroso” surge quando alguém que é inatamente
excitável, mas deficiente de emoção, cai também vítima do
embrutecimento egoísta do caráter que é tão facilmente produzido pela
má saúde crônica. Aliás, o “histérico rancoroso” mal chega a ser mais
comum do que o paciente rancoroso nos estágios mais avançados da
tabes.
O excedente da excitação também dá margem a fenômenos
patológicos na esfera motora. As crianças com essa característica
desenvolvem com muita facilidade movimentos semelhantes a tiques.
Estes podem começar, num primeiro caso, por alguma sensação nos
olhos ou no rosto, ou por alguma peça desconfortável do vestuário,
mas se tornam permanentes a menos que sejam prontamente
contidos. As vias reflexas são muito fáceis e rapidamente marcadas a
fundo.
Também não se pode afastar a possibilidade de haver ataques
convulsivos puramente motores, independentes de qualquer fator
psíquico, e nos quais tudo o que acontece é que a massa de excitação
acumulada por soma édescarregada, do mesmo modo que a massa de
estímulos causada por modificações anatômicas é descarregada num
ataque epiléptico. Nesse caso, teríamos a convulsão histérica
não-ideogênica.
É tão freqüente vermos adolescentes anteriormente sadios, embora
excitáveis, adoecerem de histeria durante a puberdade, que devemos
perguntar a nós mesmos se esse processo não poderia criar uma
predisposição para a histeria quando ela não está inatamente
presente. E de qualquer modo, devemos atribuir a ela mais do que uma
simples elevação da quantidade de excitação. O amadurecimento
sexual incide sobre todo o sistema nervoso, aumentando a
excitabilidade e reduzindo as resistências por toda parte. Isso nos é
ensinado pela observação de adolescentes que não são histéricos, e
temos assim justificativas para crer que o amadurecimento sexual
também estabelece a predisposição histérica, na medida em que
consiste precisamente nessa característica do sistema nervoso. Ao
afirmarmos isso, já estamos reconhecendo a sexualidade como um dos
principais componentes da histeria. Veremos que o papel que
desempenha nela é ainda muito maior e que contribui das mais
diversas maneiras para a constituição da doença.
Se os estigmas brotam diretamente desse campo de cultura inato da
histeria e não são de origem ideogênica, é também impossível dar à
ideogênese uma posição tão central na histeria quanto às vezes se dá
hoje em dia. O que poderia ser mais autenticamente histérico do que
os estigmas? Eles são os achados patognomônicos que estabelecem o
diagnóstico, e no entanto, precisamente, eles não parecem ser
ideogênicos. Mas se a base da histeria é uma idiossincrasia de todo o
sistema nervoso, o complexo de sintomas ideogênicos psiquicamente
determinados ergue-se sobre ela tal como um prédio sobre seus
alicerces. E é um prédio de vários andares. Do mesmo modo que só é
possível compreender a estrutura de tal prédio se distinguirmos os
planos dos diferentes pisos, é necessário, penso eu, para entendermos
a histeria, prestar atenção às várias espécies de complicação na
causação dos sintomas. Se as desprezarmos e tentarmos levar adiante
uma explicação da histeria empregando um nexo causal único, sempre
encontraremos um resíduo muito grande de fenômenos que
permanecem inexplicados. É como se tentássemos inserir os
diferentes cômodos de uma casa de muitos pavimentos na planta de
um único andar.
Tal como os estigmas, diversos outros sintomas nervosos — certas
dores e fenômenos vasomotores, e talvez os ataques convulsivos
puramente motores — são, como vimos, não causados por idéias, mas
resultados diretos da anormalidade fundamental do sistema nervoso.
Os mais próximos deles são os fenômenos ideogênicos que consistem
simplesmente em conversões da excitação afetiva (ver em [1]). Surgem
como conseqüências de afetos em pessoas com uma predisposição
histérica e, a princípio, são apenas uma “expressão anormal das
emoções” (Oppenheim |1890|). Esta se transforma, pela repetição,
num sintoma histérico autêntico e, na aparência, puramente somático,
enquanto a idéia que deu lugar a ele se torna imperceptível (ver em [1])
ou é rechaçada e, portanto, repelida da consciência. As mais
numerosas e importantes das representações que são rechaçadas e
convertidas possuem um contexto sexual. Elas se acham na base de
grande parte dos casos de histeria da puberdade. As moças que se
aproximam da maturidade — e é principalmente delas que se trata —
comportam-se de maneiras muito diferentes em relação às
representações e sentimentos sexuais que se avolumam nelas. Certas
moças defrontam-se com eles com total desembaraço, havendo entre
elas algumas que ignoram e fecham os olhos a todo o assunto. Outras
aceitam-nos como os meninos, sendo esta sem dúvida a norma entre
as moças das classes camponesa e trabalhadora. Outras ainda, com
uma curiosidade mais ou menos obstinada, correm atrás de qualquer
coisa sexual que possam encontrar em conversas ou livros. E,
finalmente, há naturezas de organização requintada que, embora seja
grande sua excitabilidade sexual, possuem uma pureza moral
igualmente grande e sentem que qualquer coisa sexual é algo
incompatível com seus padrões éticos, algo de conspurcante e
degradante. Elas recalcam a sexualidade afastando-a da consciência,
e as representações afetivas de conteúdo sexual que provocaram os
fenômenos somáticos são rechaçadas e assim se tornam
inconscientes.
A tendência a rechaçar o que é sexual é ainda mais intensificada pelo
fato de que, nas moças solteiras, a excitação sensual tem uma mescla
de angústia, de medo do que está por vir, do que é desconhecido e
apenas suspeitado, ao passo que, nos rapazes normais e saudáveis,
ela é uma pulsão agressiva sem mesclas. A moça sente em Eros o
terrível poder que rege e decide seu destino, e se assusta com isso.
Tanto maior, portanto, é sua inclinação para desviar os olhos e recalcar
para fora da consciência a coisa que a assusta.
O casamento acarreta novos traumas sexuais. É surpreendente que a
noite de núpcias não tenha efeitos patogênicos com maior freqüência,
visto que, infelizmente, o que ela implica é, muitas vezes, não uma
sedução erótica, mas uma violação. A rigor, porém, não é raro
encontrar em jovens casadas histerias que podem ser relacionadas a
isso e que desaparecem quando, no correr do tempo, o prazer sexual
emerge e apaga o trauma. Os traumas sexuais também ocorrem no
curso ulterior de muitos casamentos. Os relatos de caso de cuja
publicação fomos obrigados a nos abster incluem um grande número
deles — exigências caprichosas feitas pelo marido, práticas
antinaturais, etc. Não penso estar exagerando ao afirmar que a grande
maioria das neuroses graves nas mulheres tem sua origem no leito
conjugal.
Certos fatores sexuais nocivos, que consistem essencialmente em
satisfação insuficiente (coitus interruptus, ejaculatio praecox, etc.)
resultam, de acordo com a descoberta de Freud (1895b), não na
histeria, mas numa neurose de angústia. Sou da opinião, entretanto, de
que mesmo nesses casos a excitação do afeto sexual muitas vezes se
converte em fenômenos histéricos somáticos.
É evidente por si só, e suficientemente comprovado por nossas
observações, que os afetos não sexuais do susto, da angústia e da
raiva levam ao desenvolvimento de fenômenos histéricos. Mas talvez
valha a pena insistir repetidamente em que o fator sexual é de longe o
mais importante e o que mais produz resultados patológicos. As
observações pouco sofisticadas de nossos antecessores, cujo resíduo
é preservado no termo “histeria” |originado da palavra grega
designativa de “útero”|, aproximaram-se mais da verdade do que a
concepção mais recente, que situa a sexualidade quase em último
lugar, a fim de poupar os pacientes de recriminações morais. As
necessidades sexuais dos pacientes histéricos são, sem dúvida, tão
variáveis em grau de indivíduo para indivíduo quanto nas pessoas
sadias, e não são mais fortes do que nelas; mas os primeiros adoecem
por causa delas e, na maioria das vezes, precisamente pela luta que
travam contra elas, em virtude de sua defesa contra a sexualidade.
Juntamente com a histeria sexual, devemos recordar nesta altura a
histeria devida ao susto — a histeria traumática propriamente dita —,
que constitui uma das formas de histeria mais conhecidas e
reconhecidas.
No que se pode denominar de camada idêntica à dos fenômenos que
resultam da conversão da excitação afetiva, encontram-se aqueles que
devem sua origem à sugestão (na maioria das vezes, à auto-sugestão)
em indivíduos inatamente sugestionáveis. O grau elevado de
sugestionabilidade — isto é, a preponderância irrestrita das
representações que foram despertadas recentemente — não se
encontra entre os traços essenciais da histeria. Contudo, pode estar
presente como uma complicação em pessoas com predisposição
histérica, nas quais essa mesma idiossincrasia do sistema nervoso
possibilita a realização somática de representações supervalentes.
Além disso, na maioria dos casos, são apenas representações afetivas
que se realizam em fenômenos somáticos por sugestão e,
conseqüentemente, o processo pode muitas vezes ser considerado
uma conversão do afeto concomitante de medo ou de angústia.
Esses processos — a conversão do afeto e a sugestão —
permanecem idênticos mesmo nas formas complicadas de histeria que
devemos agora considerar. Eles simplesmente encontram condições
mais favoráveis em tais casos: é sempre através de um desses dois
processos que surgem os fenômenos histéricos psiquicamente
determinados.
O terceiro componente da predisposição histérica, que aparece em
alguns casos além dos que já foram analisados, é o estado hipnóide, a
tendência à auto-hipnose (ver em [1]). Esse estado favorece e facilita
em grau máximo tanto a conversão como a sugestão, e dessa forma
erige, por assim dizer, no topo das pequenas histerias, o pavimento
mais alto da grande histeria. A tendência à auto-hipnose é um estado
que, no começo, é apenas temporário e se alterna com o estado
normal. Podemos atribuir-lhe o mesmo aumento de influência mental
sobre o corpo que observamos na hipnose artificial. Essa influência é
muito mais intensa e profunda aqui, na medida em que atua sobre um
sistema nervoso que mesmo fora da hipnose é anormalmente
excitável. Não sabemos dizer até que ponto e em que casos a
tendência à auto-hipnose constitui uma propriedade inata do
organismo.Externei antes (ver em [1]-[2]) a opinião de que ela se
desenvolve a partir de devaneios carregados de afeto. Mas não há
nenhuma dúvida de que a predisposição inata também desempenha
um papel nisso. Se esse ponto de vista for correto, mais uma vez ficará
claro aqui o quanto é enorme a influência atribuível à sexualidade no
desenvolvimento da histeria, pois, salvo pelo cuidar de doentes,
nenhum fator psíquico é tão bem destinado a produzir devaneios
carregados de afeto quanto os anseios de uma pessoa apaixonada. E
acima de tudo isso, o próprio orgasmo sexual, com sua riqueza de
afeto e sua restrição da consciência, é intimamente afim dos estados
hipnóides.
O elemento hipnóide manifesta-se mais claramente nos ataques
histéricos e nos estados que podem ser classificados de histeria aguda
e que, segundo parece, desempenham um papel tão relevante no
desenvolvimento da histeria (ver em [1]). Estes são, obviamente,
estados psicóticos que persis-tem por muito tempo, muitas vezes
durante vários meses, e que com freqüência é necessário classificar de
confusão alucinatória. Mesmo quando a perturbação não vai tão longe
assim, surge nela uma grande variedade de fenômenos histéricos,
alguns dos quais, na realidade, persistem depois de ela terminar. O
conteúdo psíquico desses estados consiste, em parte, precisamente
nas representações que foram rechaçadas na vida de vigília e
recalcadas, sendo eliminadas da consciência. (Cf. os “delírios
histéricos dos santos e das freiras, das mulheres que guardam a
castidade e das crianças bem-educadas” | ver em [1]|.)
Visto que esses estados são, com muita freqüência, nada menos do
que psicoses, apesar de derivados imediata e exclusivamente da
histeria, não posso concordar com a opinião de Moebius de que, “com
exceção dos delírios ligados aos ataques, é impossível falar numa
insanidade histérica real” (1895, 18). Em muitos casos, esses estados
constituem uma insanidade dessa natureza; e psicoses como estas
também se repetem no curso ulterior de uma histeria. É verdade que,
em essência, elas nada mais são do que a fase psicótica de um
ataque, mas, considerando-se que duram meses, seria difícil
denominá-las de ataques.
Como surge uma dessas histerias agudas? No caso mais conhecido
(Caso 1), surgiu de uma acumulação de ataques hipnóides; em outro
caso (quando já estava presente uma histeria complicada), surgiu
associada a uma suspensão da morfina. O processo, em sua maior
parte, é inteiramente obscuro e aguarda elucidação a partir de
observações adicionais.
Assim sendo, podemos aplicar às histerias aqui analisadas o
pronunciamento de Moebius (ibid., 16): “A modificação essencial que
ocorre na histeria é que o estado mental do paciente histérico torna-se
temporária ou permanentemente semelhante ao de um indivíduo
hipnotizado.”
No estado normal, a persistência dos sintomas que surgem durante o
estado hipnóide corresponde inteiramente a nossas experiências com
a sugestão pós-hipnótica. Mas isso já implica que complexos de
representações inadmissíveis à consciência coexistem com as
seqüências de representações que seguem um curso consciente, que
ocorreu uma divisão da mente (ver em [1]). Parece certo que isso pode
acontecer até mesmo sem um estado hipnóide, a partir da profusão de
pensamentos que foram rechaçados e recalcados da consciência, mas
não suprimidos. De um modo ou de outro, passa a existir uma região
da vida mental — ora precária de representações e rudimentar, ora
mais ou menos em igualdade de condições com o pensamento de
vigília — cujo conhecimento devemos, acima de tudo, a Binet e Janet.
A divisão da mente é a consumação da histeria. Mostrei anteriormente
(na Seção 5) de que modo ele explica as principais características
desse distúrbio. Uma parte da mente do paciente fica em estado
hipnóide permanentemente, mas com um grau variável de nitidez em
suas representações, estando sempre preparada, todas as vezes que
há um lapso no pensamento de vigília, para assumir o controle da
pessoa inteira (por exemplo, num ataque ou num delírio). Isso ocorre
tão logo um afeto poderoso interrompe o curso normal das
representações, nos estados crepusculares e nos estados de
exaustão. A partir desse estado hipnóide persistente, representações
não motivadas e estranhas à associação normal forçam sua entrada na
consciência, introduzem-se alucinações no sistema perceptivo e
inervam-se atos motores independentemente da vontade consciente.
Essa mente hipnóide é suscetível, no mais alto grau, à conversão de
afetos e à sugestão, e assim aparecem com facilidade novos
fenômenos histéricos, que, sem a divisão da mente, só surgiriam com
grande dificuldade e sob a pressão de afetos repetidos. A parte
expelida da mente é o demônio pelo qual a observação ingênua dos
supersticiosos dos tempos primitivos acreditava que esses pacientes
se achavam possuídos. É verdade que um espírito estranho à
consciência de vigília do paciente exerce domínio sobre ele, porém o
espírito não é de fato um estranho, mas parte dele mesmo.
A tentativa aqui empreendida de fazer uma interpretação sintética da
histeria partindo do que dela sabemos hoje está sujeita à recriminação
de ecletismo, se é que tal recriminação é justificável. Houve
inúmerasformulações da histeria, desde a antiga “teoria reflexa” até a
“dissociação da personalidade”, que tiveram de encontrar um lugar
nela. Mas dificilmente poderia ser de outra forma, já que numerosos
observadores excelentes e espíritos agudos se interessaram pela
histeria. É improvável que qualquer de suas formulações estivesse
destituída de uma parcela de verdade. Uma futura exposição do
verdadeiro estado de coisas por certo as abrangerá a todas e
simplesmente combinará todas as visões unilaterais do assunto numa
realidade coletiva. O ecletismo, portanto, não me parece nada de que
se deva envergonhar.
Mas quão longe ainda estamos hoje da possibilidade de qualquer
compreensão completa da histeria! Com que traços incertos seus
contornos foram esboçados nestas páginas, com que hipóteses toscas
as imensas lacunas foram escondidas, e não preenchidas! Apenas
uma consideração é até certo ponto consoladora: a de que essa falha
se prende, e deve prender-se, a todas as exposições fisiológicas de
processos psíquicos complexos. Devemos sempre dizer delas o que
Teseu, no Sonho de uma Noite de Verão, diz da tragédia: “As melhores
dentre estas não passam de sombras.” E mesmo a mais fraca não será
destituída de valor se, honesta e modestamente, tentar apegar-se aos
contornos das sombras que os objetos reais desconhecidos lançam
sobre a parede, pois assim, apesar de tudo, sempre se justificará a
esperança de que possa haver algum grau de correspondência e
semelhança entre os processos reais e a idéia que fazemos deles.
IV - A PSICOTERAPIA DA HISTERIA
(FREUD)
Em nossa “Comunicação Preliminar” relatamos como, no curso de
nossa pesquisa sobre a etiologia dos sintomas histéricos,
deparamo-nos também com um método terapêutico que nos pareceu
de importância prática. Pois “verificamos, a princípio para nossa
grande surpresa, que cada sintoma histérico individual desaparecia, de
forma imediata e permanente, quando conseguíamos trazer à luz com
clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto
que o acompanhava, e quando o paciente havia descrito esse
acontecimento com o maior número de detalhes possível e traduzido o
afeto em palavras.” (ver em [1].)
Esforçamo-nos ainda por explicar o modo como funciona nosso
método psicoterapêutico: “Ele põe termo à força atuante da
representação que não fora ab-reagida no primeiro momento, ao
permitir que seu fato estrangulado encontre uma saída através da fala;
e submete essa representação à correção associativa ao introduzi-la
na consciência normal (sob hipnose leve), ou eliminá-la por sugestão
do médico, como se faz no sonambulismo acompanhado de amnésia.”
(ver em [1].)
Tentarei agora fazer um relato coerente de até onde este método nos
leva, dos aspectos em que ele consegue mais do que outros métodos,
da técnica pela qual funciona e das dificuldades com que se defronta.
Grande parte da substância disso já se acha no relato dos casos que
constam da parte anterior deste livro, e não conseguirei evitar
repetir-me no relato que se segue.
(1)
De minha parte, também posso afirmar que ainda me mantenho fiel ao
que está contido na “Comunicação Preliminar”. Não obstante, devo
confessar que, durante os anos decorridos desde então — nos quais
estive incessantemente voltado para os problemas ali abordados —,
novos pontos de vista se impuseram a minha mente. Estes levaram ao
que é, ao menos em parte, um agrupamento e uma interpretação
diferentes do material fatual por mimconhecido naquela época. Seria
injusto tentar atribuir uma responsabilidade grande demais por essa
transformação a meu estimado amigo Dr. Josef Breuer. Por este
motivo, as considerações que se seguem são formuladas
principalmente em meu próprio nome.
Quando tentei aplicar a um número relativamente grande de pacientes
o método de Breuer, de tratamento de sintomas histéricos pela
investigação e ab-reação destes sob hipnose, defrontei-me com duas
dificuldades e, ao lidar com elas, fui levado a fazer uma alteração tanto
na minha técnica quanto na minha visão dos fatos. (1) Verifiquei que
nem todas as pessoas que exibiam sintomas histéricos indiscutíveis e
que, muito provavelmente, eram regidas pelo mesmo mecanismo
psíquico podiam ser hipnotizadas. (2) Vi-me forçado a tomar uma
posição quanto à questão do que, afinal, caracteriza essencialmente a
histeria e do que a distingue de outras neuroses.
Deixarei para depois meu relato de como superei a primeira dessas
duas dificuldades e o que dela aprendi e começarei por descrever a
atitude que adotei em minha prática diária em relação ao segundo
problema. É muito difícil obter uma visão clara de um caso de neurose
antes de tê-lo submetido a uma análise minuciosa — uma análise que,
na verdade, só pode ser efetuada pelo uso do método de Breuer; mas
a decisão sobre o diagnóstico e a forma de terapia a ser adotada tem
de ser tomada antes de se chegar a qualquer conhecimento assim
minucioso do caso. O único caminho aberto a mim, portanto, era
selecionar para tratamento catártico os casos que pudessem ser
provisoriamente diagnosticados como histeria, que exibissem um ou
mais dos estigmas ou sintomas característicos da histeria. Ocorreu
então algumas vezes que, apesar do diagnóstico de histeria, os
resultados terapêuticos se revelaram muito escassos e nem mesmo a
análise trazia à luz nada de significativo. Em outras ocasiões ainda,
tentei aplicar o método de tratamento de Breuer a casos de neurose
que ninguém poderia confundir com histeria, e assim verifiquei que eles
podiam ser influenciados e, na verdade, esclarecidos. Tive essa
experiência, por exemplo, com as idéias obsessivas — idéias
obsessivas autênticas, do tipo de Westphal — em casos sem um único
traço que lembrasse a histeria. Conseqüentemente, o mecanismo
psíquico revelado pela “Comunicação Preliminar” não poderia ser
patogmônico da histeria, nem tampouco consegui decidir-me, apenas
para preservar aquele mecanismo como critério, a englobar todas
essas neuroses na histeria. Acabei encontrando uma saída para todas
essas dúvidas através do plano de tratartodas as outras neuroses em
questão da mesma forma que a histeria. Determinei-me a investigar
sua etiologia e a natureza de seu mecanismo psíquico em cada caso e
a deixar na dependência do resultado dessa investigação a decisão
quanto a se o diagnóstico de histeria se justificava.
Assim, partindo do método de Breuer, vi-me envolvido em
considerações sobre a etiologia e o mecanismo das neuroses em
geral. Tive sorte o bastante para chegar a alguns resultados úteis num
prazo relativamente curto. Em primeiro lugar, fui obrigado a reconhecer
que, na medida em que se possa falar em causas determinantes que
levam à aquisição de neuroses, sua etiologia deve ser buscada em
fatores sexuais. Seguiu-se a descoberta de que diferentes fatores
sexuais, no sentido mais geral, produzem diferentes quadros de
distúrbios neuróticos. Tornou-se então possível, na medida em que
essa relação era confirmada, correr o risco de utilizar a etiologia com o
objetivo de caracterizar as neuroses e de fazer uma distinção nítida
entre os quadros clínicos das várias neuroses. Quando as
características etiológicas coincidiam sistematicamente com as
clínicas, isso era naturalmente justificável.
Dessa maneira, verifiquei que a neurastenia apresentava um quadro
clínico monótono no qual, como demonstram minhas análises, nenhum
papel era desempenhado por um “mecanismo psíquico”. Havia uma
nítida distinção entre a neurastenia e a “neurose obsessiva”, a neurose
das idéias obsessivas propriamente ditas. Nesta última pude
reconhecer um complexo mecanismo psíquico, uma etiologia
semelhante à da histeria e uma ampla possibilidade de reduzi-la pela
psicoterapia. Por outro lado, pareceu-me absolutamente necessário
destacar da neurastenia um complexo de sintomas neuróticos que
dependem de uma etiologia inteiramente diferente e, na verdade, no
fundo, contrária. Os sintomas que formam esse complexo estão unidos
por uma característica que já foi reconhecida por Hecker (1893), pois
são sintomas ou equivalentes e rudimentos de manifestações de
angústia; e por essa razão dei a tal complexo, a ser destacado da
neurastenia, o nome deneurose de angústia. Sustentei (Freud, 1895b)
que ele decorre de um acúmulo de tensão física, que é, em si mesma,
também de origem sexual. Essa neurose também não possui nenhum
mecanismo psíquico, mas invariavelmente influencia a vida mental, de
modo que a “expectativa ansiosa”, as fobias, e hiperestesia às dores,
etc. encontram-se entre suas manifestações regulares. Essa neurose
de angústia, no sentido que dou à expressão, sem dúvida coincide em
parte com as neuroses que, sob o nome de “hipocondria”, encontra
lugar em muitas descrições ao lado da histeria e da neurastenia. Mas
não posso considerar correta a delimitação da hipocondria em nenhum
dos trabalhos em questão, e a aplicabilidade de seu nome me parece
ser prejudicada pela ligação fixa do termo com o sintoma de “medo de
doença”.
Depois de ter fixado assim os quadros simples de neurastenia, neurose
de angústia e idéias obsessivas, passei a considerar os casos de
neurose comumente incluídos no diagnóstico de histeria. Refleti que
não era certo rotular de histérica uma neurose, em sua totalidade, só
porque alguns sintomas histéricos ocupavam um lugar de destaque em
seu complexo de sintomas. Era-me fácil compreender essa prática,
visto que, afinal de contas, a histeria é a mais antiga, a mais conhecida
e a mais marcante das neuroses em consideração; mas isso era um
abuso, pois lançava por conta da histeria muitos traços de perversão e
degenerescência. Sempre que um sintoma histérico, como uma
anestesia ou um ataque característico, era observado num caso
complicado de degeneração psíquica, todo esse estado era descrito
como de “histeria”, de modo que não surpreende que as piores e mais
contraditórias coisas fossem reunidas sob esse rótulo. Mas, assim
como era certo que esse diagnóstico estava errado, era igualmente
certo que também deveríamos separar as várias neuroses; e já que
estávamos familiarizados com a neurastenia, a neurose de angústia,
etc., em sua forma pura, não havia mais necessidade de desprezá-las
no quadro conjunto.
O ponto de vista que se segue, portanto, parecia ser o mais provável.
As neuroses que comumente ocorrem devem ser classificadas, em sua
maior parte, de “mistas”. A neurastenia e as neuroses de angústia são
facilmente encontradas também em formas puras, especialmente em
pessoas jovens. As formas puras de histeria e neurose obsessiva são
raras; em geral, essas duasneuroses combinam-se com a neurose de
angústia. A razão por que as neuroses mistas ocorrem com tanta
freqüência é que seus fatores etiológicos se acham muitas vezes
entremeados, às vezes apenas por acaso, outras vezes como
resultado de relações causais entre os processos de que derivam os
fatores etiológicos das neuroses. Não há nenhuma dificuldade em
descobrir isso e demonstrá-lo com detalhes. Quanto à histeria, porém,
sucede que esse distúrbio dificilmente poderia ser segregado, para fins
de estudo, do eixo de ligação das neuroses sexuais; que, em geral, ele
representa apenas um lado isolado, apenas um aspecto de um caso
complicado de neuroses; e que é somente em casos marginais que ele
pode ser encontrado e tratado isoladamente. Talvez possamos dizer
em algumas ocasiões: a potiori fit denominatio |isto é, recebeu seu
nome pela sua característica mais importante|.
Examinarei agora os casos clínicos aqui relatados a fim de verificar se
eles depõem em favor da minha opinião de que a histeria não é uma
entidade clínica independente.
A paciente de Breuer, Anna O., parece contradizer minha opinião e ser
um exemplo de distúrbio histérico puro. Esse caso, porém, que foi tão
útil para nosso conhecimento da histeria, não foi de modo algum
considerado por seu observador do ponto de vista de uma neurose
sexual, sendo agora inteiramente inútil para esse propósito. Quando
comecei a analisar a segunda paciente, a Sra. Emmy von N., a
expectativa de que a base da histeria fosse uma neurose sexual estava
muito longe de minha mente. Eu acabara de sair da escola de Charcot
e encarava a ligação da histeria com o tema da sexualidade como uma
espécie de insulto — exatamente como fazem as próprias pacientes.
Quando examino minhas notas sobre esse caso hoje em dia,
parece-me não haver nenhuma dúvida de que ele deve ser visto como
um caso grave de neurose de angústia acompanhada de expectativa
ansiosa e fobias — uma neurose de angústia que se originara da
abstinência sexual e se combinara com a histeria. O caso 3, de Miss
Lucy R., talvez possa ser definido de maneira mais conveniente como
um caso marginal de histeria pura. Foi uma histeria breve que seguiu
um curso episódico e tinha uma inconfundível etiologia sexual do tipo
que corresponderia a uma neurose de angústia. A paciente era uma
moça plenamente madura, que precisava ser amada e cujos afetos
tinham sido despertados, muito apressadamente, por um
mal-entendido. A neurose de angústia, contudo, não se tornou visível
ou me escapou. O caso 4, de Katharina, nada mais era do que um
modelo do que classifiquei de “angústia virginal”. Era uma combinação
de neurose de angústia e histeria. A primeira criava os sintomas,
enquanto a segunda os repetia e se valia deles para atuar. A propósito,
era um caso típico de um grande número de neuroses de pessoas
jovens que são classificadas de “histeria”. O caso 5, da Srta. Elisabeth
von R., também não foi investigado como neurose sexual. Pude
apenas expressar, sem confirmá-la, a suspeita de que uma
neurastenia espinhal talvez tivesse constituído sua base | ver em [1]|.
Devo acrescentar, todavia, que nesse meio tempo as histerias puras se
tornaram ainda mais raras em minha experiência. Se pude reunir esses
quatro casos como de histeria e se, ao relatá-los, pude desprezar os
pontos de vista que eram de importância quanto às neuroses sexuais,
a razão foi que essas histórias remontam a um tempo algo distante e
que, naquela época, eu ainda não submetia tais casos a uma
investigação deliberada e minuciosa de sua base sexual neurótica. E
se, em vez desses quatro, não relatei doze casos cuja análise
proporciona uma confirmação do mecanismo psíquico dos fenômenos
histéricos proposto por nós, essa relutância foi exigida pelo próprio fato
de que a análise revelou esses casos como sendo, simultaneamente,
neuroses sexuais, embora por certo nenhum diagnosticador lhes
recusasse o nome de histeria. Mas a elucidação dessas neuroses
sexuais ultrapassaria os limites da presente publicação conjunta.
Eu não gostaria que se pensasse, erroneamente, que não desejo
admitir que a histeria é uma afecção neurótica independente, que a
considero meramente uma manifestação psíquica da neurose de
angústia e que lhe atribuo apenas os sintomas “ideogênicos”,
transferindo os sintomas somáticos (por exemplo, pontos
histerogênicos e anestesias) para a neurose de angústia. Nada disso.
Em minha opinião, é possível lidar com a histeria, liberada de qualquer
mistura, como algo independente, e fazê-lo em todos os aspectos,
salvo na terapêutica, pois nesta estamos voltados para uma finalidade
prática — livrarmo-nos do estado patológico como um todo. E se em
geral a histeria aparece como componente de uma neurose mista,
essa situação se assemelha àquela em que há uma infecção mista e
em que a preservação da vida cria um problema que não coincide com
o de combater a ação de um agente patogênico específico.
É muito importante para mim distinguir o papel desempenhado pela
histeria, no quadro das neuroses mistas, do papel desempenhado pela
neurastenia, pela neurose de angústia e assim por diante, pois, uma
vez feita essa distinção, poderei expressar de maneira concisa o valor
terapêutico do método catártico. E isso porque me inclino a arriscar a
afirmação de que esse método é, em termos teóricos, perfeitamente
capaz de eliminar qualquer sintoma histérico, ao passo que, como será
fácil compreender, ele éinteiramente impotente contra os fenômenos
da neurastenia e só raramente e por vias indiretas, é capaz de
influenciar os efeitos psíquicos da neurose de angústia. Sua eficácia
terapêutica em qualquer caso específico dependerá, por conseguinte
de os componentes histéricos do quadro clínico assumirem ou não
uma posição de importância prática em comparação com os outros
componentes neuróticos.
Existe ainda outro obstáculo à eficácia do método catártico, que já
indicamos na “Comunicação Preliminar” | ver em [1]|. Ele não consegue
afetar as causas subjacentes da histeria: assim, não consegue impedir
que novos sintomas tomem o lugar daqueles que foram eliminados.
Grosso modo, portanto, cabe-me reivindicar um lugar de destaque para
nosso método terapêutico quando empregado dentro do contexto de
uma terapia das neuroses, mas eu gostaria de advertir contra a
apreciação de seu valor ou sua aplicação fora desse contexto.
Entretanto, uma vez que não posso, nestas páginas, oferecer uma
“terapia das neuroses” do tipo de que os clínicos precisam, o que
acabo de dizer equivale a adiar minha visão do assunto para uma
possível publicação ulterior. Penso, no entanto, poder acrescentar as
seguintes observações à guisa de ampliação e elucidação.
(1) Não sustento ter de fato eliminado todos os sintomas histéricos que
me dispus a influenciar pelo método catártico. Mas sou da opinião de
que os obstáculos residiram nas circunstâncias pessoais das pacientes
e não se deveram a qualquer questão de teoria. Sinto-me justificado a
desconsiderar esses casos malsucedidos ao formar um juízo sobre o
assunto, da mesma forma que um cirurgião despreza os casos de
morte ocorridos sob anestesia, devido a hemorragia pós-operatória,
sepsia acidental, etc., ao tomar uma decisão sobre uma nova técnica.
Quando vier a abordar as dificuldades e os defeitos do processo, mais
adiante, voltarei a uma consideração das falhas oriundas dessa fonte. |
ver em [1].|
(2) O método catártico não deve ser considerado sem valor pelo fato
de ser sintomático, e não causal, pois a rigor a terapia causal é, via de
regra, uma terapia profilática; ela faz com que cessem quaisquer
efeitos adicionais do agente nocivo, mas não elimina,
necessariamente, os resultados que esse agente já causou. Em geral,
uma segunda fase de tratamento é necessária para realizar esta
segunda tarefa, e nos casos de histeria o método catártico é de valor
inestimável para esse fim.
(3) Depois que um período de produção histérica, um paroxismo
histérico agudo, é superado e tudo o que resta são sintomas histéricos
sob a forma de fenômenos residuais, o método catártico é suficiente
para todas as indicações e promove êxitos completos e permanentes.
Tal quadroterapêutico favorável não raro é encontrado precisamente
na esfera da vida sexual, graças às amplas oscilações da intensidade
das necessidades sexuais e às complicações das condições
necessárias para provocar um trauma sexual. Aqui o método catártico
faz tudo o que se pode esperar dele, pois um médico não pode
atribuir-se a tarefa de alterar uma constituição como a histérica. Deve
contentar-se em eliminar os problemas a que tal constituição está
inclinada e que podem decorrer dela em conjunto com as
circunstâncias externas. Deve sentir-se satisfeito se o paciente
recuperar sua capacidade de trabalho. Além disso, não precisa ficar
desanimado quanto ao futuro, ao considerar a possibilidade de uma
recaída. Ele está ciente do aspecto principal da etiologia das neuroses
— que sua gênese é, em geral, sobredeterminada, que vários fatores
precisam reunir-se para produzir esse resultado; e poderá ter
esperança de que essa convergência não se repita de uma só vez,
mesmo que alguns fatores etiológicos individuais permaneçam
atuantes.
Talvez se possa objetar que, em casos de histeria como esse, em que
a doença já completou seu curso, os sintomas residuais, de qualquer
modo, desaparecem espontaneamente. Pode-se replicar, porém, que
uma cura espontânea desse tipo muitas vezes não é rápida nem
completa o bastante, e que pode ser ajudada num grau extraordinário
por nossa intervenção terapêutica. Podemos deixar em aberto, por
enquanto, a questão de se por meio da terapia catártica curamos
apenas o que é passível de cura espontânea ou, algumas vezes,
também o que não se teria dissipado espontaneamente.
(4) Quando nos defrontamos com uma histeria aguda, um caso que
esteja atravessando o período da produção mais ativa de sintomas
histéricos, no qual o ego seja constantemente subjugado pelos
produtos da doença (isto é, durante uma psicose histérica), até mesmo
o método catártico fará poucas alterações no aparecimento e na
evolução do distúrbio. Nessas circunstâncias, vemo-nos, no que diz
respeito à neurose, na mesma posição de um médico que se defronta
com uma doença infecciosa aguda. Os fatores etiológicos realizaram
suficientemente seu trabalho numa época que já passou e que está
fora do alcance de qualquer influência; e agora, passado o período de
incubação, eles se tornaram manifestos. A doença não pode ser
interrompida de súbito. Temos de esperar que siga seu curso e,
enquanto isso, tornar a situação do paciente tão favorável quanto
possível. Quando, durante um período agudo como esse, eliminamos
os produtos da doença, os sintomashistéricos recém-gerados,
devemos também estar preparados para descobrir que aqueles que
foram eliminados serão prontamente substituídos por outros. Não será
poupado ao médico o sentimento deprimente de estar às voltas com
uma tarefa de Sísifo. O imenso dispêndio de trabalho e a insatisfação
da família do paciente, para quem a extensão inevitável de uma
neurose aguda não tende a ser tão familiar quanto é o caso análogo de
uma moléstia infecciosa aguda — em geral, estas e outras dificuldades
provavelmente tornarão impossível, de qualquer modo, uma aplicação
sistemática do método catártico. Não obstante, continua sendo um
assunto para séria reflexão a questão de se é ou não verdade que,
mesmo numa histeria aguda, a elucidação regular dos produtos da
doença exerce uma influência curativa, ao apoiar o ego normal do
paciente, que se acha ocupado no trabalho de defesa, e ao impedi-lo
de ser subjugado e cair numa psicose, e talvez até num estado
permanente de confusão.
O que o método catártico é capaz de realizar, mesmo na histeria
aguda, e como pode até mesmo restringir a nova produção de
sintomas patológicos, de uma forma que tem importância prática, é
revelado de maneira bem clara pelo caso clínico de Anna O., em que
Breuer aprendeu originalmente a empregar tal processo
psicoterapêutico.
(5) Quando se trata de histerias que seguem um curso crônico,
acompanhadas de uma produção moderada, mas constante, de
sintomas histéricos, encontramos a mais forte razão para lamentar
nossa falta de uma terapia que tenha eficácia causal, mas temos
também os maiores motivos para apreciar o valor do processo catártico
como terapia sintomática. Em tais casos temos que lidar com o dano
produzido por uma etiologia que persiste de maneira crônica. Tudo
depende de reforçar a capacidade de resistir do sistema nervoso do
paciente, e devemos lembrar que a existência de um sintoma histérico
significa uma diminuição da resistência do sistema nervoso e
representa um fator que predispõe à histeria. Como se pode ver pelo
mecanismo da histeria monossintomática, a maneira mais fácil de se
formar um novo sintoma histérico é em relação e em analogia com
outro que já esteja presente. O ponto no qual um sintoma já irrompeu
uma vez (ver em [1]) constitui um ponto fraco onde ele irromperá
novamente da vez seguinte. Um grupo psíquico que já tenha sido
expelido uma vez desempenha o papel de cristal “provocador” a partir
do qual se inicia, com a maior facilidade, uma cristalização que de
outra forma não teria ocorrido | ver em [1]|. Eliminar os sintomas já
presentes e desfazer as alterações psíquicas subjacentes a eles é
devolver aos pacientes toda a sua capacidade de resistência, de modo
que possam suportar com êxito os efeitos do agente prejudicial. Muito
se pode fazer por esses pacientesatravés de uma supervisão
prolongada e de uma “limpeza de chaminé” ocasional (ver em [1]).
(6) Resta-me citar a aparente contradição entre admitir que nem todos
os sintomas histéricos são psicogênicos e afirmar que todos eles
podem ser eliminados por um processo psicoterapêutico. A solução
está no fato de que alguns desses sintomas não-psicogênicos (os
estigmas, por exemplo), são, é verdade, sinais de doença, mas não
podem ser classificados de moléstias e conseqüentemente não tem
importância prática que eles persistam após o tratamento
bem-sucedido da doença. Quanto a outros sintomas desses, parece
que, de alguma forma indireta, eles são eliminados juntamente com os
sintomas psicogênicos, do mesmo modo que, afinal, de alguma forma
indireta dependem de uma causação psíquica.
Devo agora considerar as dificuldades e desvantagens de nosso
processo terapêutico, na medida em que elas não se tornem óbvias
para todos a partir dos casos clínicos relatados antes ou das
observações sobre a técnica do método que se seguem mais adiante.
Irei sobretudo enumerar e indicar essas dificuldades, e não entrar em
pormenores sobre elas.
O processo é laborioso e exige muito tempo do médico. Pressupõe
grande interesse pelos acontecimentos psicológicos, mas também um
interesse pessoal pelos pacientes. Não consigo me imaginar sondando
o mecanismo psíquico de uma histeria de alguém que me causasse a
impressão de ser vulgar e repelente e que, num conhecimento mais
íntimo, não fosse capaz de despertar solidariedade humana, ao passo
que consigo manter o tratamento de um paciente tabético ou
reumático, independentemente de uma aprovação pessoal desse tipo.
As exigências feitas ao paciente não são menores. O processo não é
de modo algum aplicável abaixo de certo nível de inteligência, sendo
extremamente dificultado por qualquer vestígio de debilidade mental. A
concordância e a atenção integrais dos pacientes são necessárias,
mas, acima de tudo, é preciso contar com sua confiança, visto que a
análise invariavelmente leva à revelação dos eventos psíquicos mais
íntimos e secretos. Grande número dos pacientes que se adequariam
a essa forma de tratamento abandonam o médico tão logo começam a
suspeitar da direção para a qual a investigação está conduzindo. Para
tais pacientes, o médico continua a ser um estranho. Com outros, que
resolvem colocar-se em suas mãos e depositar sua confiança nele —
um passo que em outras situações dessa natureza só é dado
voluntariamente, e nunca a pedido do médico —, com esses pacientes,
repito, é quase inevitável que sua relação pessoal com ele assuma
indevidamente, pelo menos por algum tempo, o primeiro plano.Na
verdade, parece que tal influência por parte do médico é uma condição
sine qua non para a solução do problema. Não penso que faça
qualquer diferença essencial, nesse sentido, se a hipnose poderá ser
utilizada ou se terá que ser contornada e substituída por outra coisa.
Mas a razão exige que ressaltemos o fato de que esses obstáculos,
embora inseparáveis de nosso método, não podem ser atribuídos
unicamente a ele. Pelo contrário, está bastante claro que eles se
baseiam nas condições predeterminantes das neuroses a serem
curadas e que têm de estar ligados a qualquer atividade médica que
envolva uma intensa preocupação com o paciente e conduza a uma
modificação psíquica nele. Não pude atribuir nenhum efeito deletério
ou qualquer perigo ao emprego da hipnose, embora a tenha usado
abundantemente em alguns de meus casos. Nas situações em que
causei algum dano, as razões foram outras e mais profundas. Ao
examinar meus esforços terapêuticos desses últimos anos, desde que
as comunicações feitas por meu estimado mestre e amigo Josef
Breuer me mostraram a utilidade do método catártico, creio que,
apesar de tudo, fiz muito mais, e com maior freqüência, o bem do que
o mal, e consegui algumas coisas que nenhum outro processo
terapêutico poderia ter alcançado. De modo geral, como disse a
“Comunicação Preliminar”, ele trouxe “consideráveis vantagens
terapêuticas” | ver em [1]|.
Há uma outra vantagem no uso desse processo que devo ressaltar.
Não conheço melhor forma de começar a compreender um caso grave
de neurose complicada, com maior ou menor mistura de histeria, do
que submetendo-o a uma análise pelo método de Breuer. A primeira
coisa que acontece é o desaparecimento de qualquer coisa que exiba
um mecanismo histérico. Entrementes, aprendi, no curso das análises,
a interpretar os fenômenos residuais e a traçar-lhes a etiologia, e assim
assegurei uma base firme para decidir qual das armas do arsenal
terapêutico contra as neuroses é indicada no caso em questão. Ao
refletir sobre a diferença que costumo encontrar entre meu julgamento
sobre um caso de neurose antes e depois de uma análise, sinto-me
quase inclinado a considerar a análise essencial à compreensão de
uma doença neurótica. Além disso, adotei o hábito de combinar a
psicoterapia catártica com uma cura de repouso, que pode, se
necessário, estender-se a um tratamento completo de dieta alimentar
nos moldes de Weir Mitchell. Isso me dá a vantagem de poder, por um
lado, evitar a introdução muito perturbadora de novas impressões
psíquicas durante a psicoterapia, e, por outro, eliminar o tédio de uma
cura de repouso, na qual os pacientes não raro caemno hábito de
entregar-se a devaneios prejudiciais. Poder-se-ia esperar que o
trabalho psíquico, freqüentemente muito intenso, imposto aos
pacientes durante um tratamento catártico, bem como as excitações
resultantes da reprodução de experiências traumáticas, fossem de
encontro às intenções do método da cura de repouso de Weir Mitchell
e prejudicassem os êxitos que estamos acostumados a vê-lo trazer.
Mas é o oposto que de fato se verifica. Uma combinação dos métodos
de Breuer e de Weir Mitchell produz todas as melhoras físicas que
esperamos deste último, além de ter uma influência psíquica de grande
amplitude, que jamais resulta de uma cura de repouso sem
psicoterapia.
(2)
Voltarei agora a minha observação anterior | ver em [1]| de que, em
minhas tentativas de aplicar mais amplamente o método de Breuer,
deparei com a dificuldade de que muitos pacientes não eram
hipnotizáveis, embora seu diagnóstico fosse de histeria e parecesse
provável que o mecanismo psíquico por nós descrito atuasse neles. Eu
precisava da hipnose para ampliar-lhes a memória, a fim de descobrir
as lembranças patogênicas que não estavam presentes em seu estado
comum de consciência. Assim, eu era obrigado a desistir da idéia de
tratar tais pacientes, ou a me esforçar por promover essa ampliação de
alguma outra forma.
Eu era tão incapaz quanto qualquer outra pessoa de explicar por que
uma pessoa pode ser hipnotizada e outra não, e assim não podia
adotar um método causal para enfrentar essa dificuldade. Notei,
contudo, que em alguns pacientes o obstáculo era ainda mais
arraigado: eles recusavam até mesmo qualquer tentativa de hipnose.
Ocorreu-me então, um dia, a idéia de que os dois casos poderiam ser
idênticos e de que ambos poderiam significar uma indisposição: que as
pessoas não hipnotizáveis eram as que faziam uma objeção psíquica à
hipnose, quer sua objeção se expressasse como má vontade ou não.
Não está claro para mim se posso manter este ponto de vista.
O problema, porém, estava em como contornar a hipnose e, ainda
assim, obter as lembranças patogênicas. Consegui fazer isso da
maneira que relato a seguir.
Quando, em nossa primeira entrevista, eu perguntava a meus
pacientes se se recordavam do que tinha originariamente ocasionado o
sintoma em questão, em alguns casos eles diziam não saber nada a
esse respeito,enquanto, em outros, traziam à baila algo que
descreviam como uma lembrança obscura e não conseguiam
prosseguir. Quando, seguindo o exemplo de Bernheim ao provocar em
seus pacientes impressões provenientes do estado sonambúlico que
tinham aparentemente sido esquecidas (ver em [1] e seg.), eu me
tornava insistente — quando lhes assegurava que eles efetivamente
sabiam, que aquilo lhes viria à mente — então, nos primeiros casos,
algo de fato lhes ocorria, e nos outros a lembrança avançava mais um
pouco. Depois disso, eu ficava ainda mais insistente: dizia aos
pacientes que se deitassem e fechassem deliberadamente os olhos a
fim de se “concentrarem” — o que tinha pelo menos alguma
semelhança com a hipnose. Verifiquei então que, sem nenhuma
hipnose, surgiam novas lembranças que recuavam ainda mais no
passado e que provavelmente se relacionavam com nosso tema.
Experiências como essas fizeram-me pensar que seria de fato possível
trazer à luz, por mera insistência, os grupos patogênicos de
representações que, afinal de contas, por certo estavam presentes. E
visto que essa insistência exigia esforços de minha parte, e assim
sugeria a idéia de que eu tinha de superar uma resistência, a situação
conduziu-me de imediato à teoria de que, por meio de meu trabalho
psíquico, eu tinha de superar uma força psíquica nos pacientes que se
opunha a que as representações patogênicas se tornassem
conscientes (fossem lembradas). Uma nova compreensão pareceu
abrir-se ante meus olhos quando me ocorreu que esta sem dúvida
deveria ser a mesma força psíquica que desempenhara um papel na
geração do sintoma histérico e que, na época, impedira que a
representação patogênica se tornasse consciente. Que espécie de
força poder-se-ia supor que estivesse em ação ali, e que motivo
poderia tê-la posto em ação? Pude formar com facilidade uma opinião
sobre isso, pois já dispunha de algumas análises concluídas em que
viera a conhecer exemplos de representações que eram patogênicas e
que tinham sido esquecidas e expulsas da consciência. A partir desses
exemplos, reconheci uma característica universal de tais
representações: eram todas de natureza aflitiva, capazes de despertar
afetos de vergonha, de autocensura e de dor psíquica, além do
sentimento de estar sendo prejudicado; eram todas de uma espécie
que a pessoa preferiria não ter experimentado, que preferiria esquecer.
De tudo isso emergiu, como que de forma automática, a idéia de
defesa. Com efeito, em geral os psicólogos têm admitido que a
aceitação de uma nova representação (aceitação no sentido de crer ou
de reconhecer como real) depende da natureza e tendência das
representações já reunidas no ego, e inventaram nomes técnicos
especiais para esse processo de censura a que a nova representação
deve submeter-se. Oego do paciente teria sido abordado por uma
representação que se mostrara incompatível, o que provocara, por
parte do ego, uma força de repulsão cuja finalidade seria defender-se
da representação incompatível. Essa defesa seria de fato
bem-sucedida. A representação em questão fora forçada para fora da
consciência e da memória. Seu traço psíquico foi aparentemente
perdido de vista. Não obstante, esse traço deveria estar ali. Quando eu
me esforçava por dirigir a atenção do paciente para ele, apercebia-me,
sob a forma de resistência, da mesma força que se mostrara sob a
forma de repulsão quando o sintoma fora gerado. Ora, se eu pudesse
fazer com que parecesse provável que a representação se tornara
patogênica precisamente em conseqüência de sua expulsão e de seu
recalcamento, a cadeia pareceria completa. Em várias discussões
sobre nossos casos clínicos e num breve artigo sobre “As
Neuropsicoses de Defesa” (1894a), tentei esboçar as hipóteses
psicológicas com cuja ajuda essa ligação causal — o fato da
conversão — pode ser demonstrada.
Assim, uma força psíquica, uma aversão por parte do ego, teria
originariamente impelido a representação patogênica para fora da
associação e agora se oporia a seu retorno à memória. O “não saber”
do paciente histérico seria, de fato, um “não querer saber” — um não
querer que poderia, em maior ou menor medida, ser consciente. A
tarefa do terapeuta, portanto, está em superar, através de seu trabalho
psíquico, essa resistência à associação. Ele o faz, em primeiro lugar,
“insistindo”, usando a compulsão psíquica para dirigir a atenção dos
pacientes para os traços representativos que está buscando. Seus
esforços, contudo, não se esgotam aí, mas, como demonstrarei,
assumem outras formas no decorrer da análise e recorrem a outras
forças psíquicas para assistir-lhes.
Devo repisar um pouco mais a questão da insistência. As simples
afirmações do tipo “é claro que você sabe”, “diga-me assim mesmo” ou
“você logo se lembrará” não nos levam muito longe. Mesmo com
pacientes num estado de “concentração”, o fio da meada se quebra
após algumas frases. Não se deve esquecer, entretanto, que se trata
sempre aqui de uma comparação quantitativa, de uma luta entre forças
motivacionais de diferentes graus de vigor ou intensidade. A insistência
por parte de um médico estranho, não familiarizado com o que está
acontecendo, não é poderosa o bastante para lidar com a resistência à
associação nos casos graves de histeria. Devemos pensar em meios
mais vigorosos.
Nessas circunstâncias, valho-me em primeiro lugar de um pequeno
artifício técnico. Informo ao paciente que, um momento depois, farei
pressão sobre sua testa, e lhe asseguro que, enquanto a pressão
durar, ele verá diante de si uma recordação sob a forma de um quadro,
ou a terá em seus pensamentos sob a forma de uma idéia que lhe
ocorra; e lhe peço encarecidamente que me comunique esse quadro
ou idéia, quaisquer que sejam. Não deve guardá-los para si se acaso
achar que não é o que se quer, ou não são a coisa certa, nem por
ser-lhe desagradável demais contá-lo. Não deve haver nenhuma
crítica, nenhuma reticência, quer por motivos emocionais, quer porque
os julgue sem importância. Só assim podemos encontrar aquilo que
estamos procurando, mas assim o encontraremos infalivelmente.
Depois de dizer isso, pressiono por alguns segundos a testa do
paciente deitado diante de mim; em seguida, relaxo a pressão e
pergunto calmamente, como se não houvesse nenhuma hipótese de
decepção: “que você viu?”, ou “que lhe ocorreu?”
Esse método muito me ensinou e também nunca deixou de alcançar
sua finalidade. Hoje, não posso mais passar sem ele. Naturalmente,
estou ciente de que a pressão na testa poderia ser substituída por
qualquer outro sinal, ou por algum outro exercício de influência física
sobre o paciente, mas, já que o paciente está deitado diante de mim,
pressionar sua testa ou tomar-lhe a cabeça entre minhas mãos parece
ser o modo mais conveniente de empregar a sugestão para a
finalidade que tenho em vista. Ser-me-ia possível dizer, para explicar a
eficácia desse artifício, que ele corresponde a uma “hipnose
momentaneamente intensificada”, mas o mecanismo da hipnose me é
tão enigmático que eu preferiria não utilizá-lo como explicação. Sou,
antes, de opinião que a vantagem do processo reside no fato de que,
por meio dele, desvio a atenção do paciente de sua busca e reflexão
conscientes — de tudo, em suma, em que ele possa empregar sua
vontade — do mesmo modo que isso é feito quando se olha fixamente
para uma bola de cristal, e assim por diante. A conclusão que tiro do
fato de que o que estou procurando sempre aparece sob a pressão de
minha mão é a seguinte: a representação patogênica aparentemente
esquecida está sempre “à mão” e pode ser alcançada por associações
facilmente acessíveis. É uma simples questão de retirar algum
obstáculo do caminho. Este obstáculo parece, mais uma vez, ser a
vontade do sujeito, e diferentes pessoas podem aprender, com
diferentes graus de facilidade, a se liberar de seu pensamento
intencional e a adotar uma atitude de observação inteiramente objetiva
dos processos psíquicos que nelas se verificam.
O que emerge sob a pressão de minha mão nem sempre é uma
lembrança “esquecida”; apenas nos casos mais raros é que as
lembranças patogênicas reais acham-se tão facilmente à mão na
superfície. É muito mais freqüente o surgimento de uma representação
que é um elo intermediário na cadeia de associações entre a
representação da qual partimos e a representação patogênica que
procuramos; ou pode ser uma representação que constitui o ponto de
partida de uma nova série de pensamentos e lembranças, ao fim da
qual a representação patogênica será encontrada. É verdade que,
quando isso acontece, minha pressão não revela a representação
patogênica — que, de qualquer modo, seria incompreensível,
arrancada de seu contexto e sem que se fosse levado até ela — mas
aponta o caminho para ela e indica o sentido em que se devem fazer
maiores pesquisas. A representação provocada em primeiro lugar pela
pressão nesses casos pode ser uma lembrança familiar que nunca foi
recalcada. Quando em nosso caminho para a representação
patogênica o fio se interrompe mais uma vez, é necessária apenas
uma repetição do processo, da pressão, para nos dar novas
orientações e um novo ponto de partida.
Ainda em outras ocasiões a pressão da mão provoca uma lembrança
que é em si mesma familiar ao paciente, mas cujo surgimento o
surpreende por ele ter-se esquecido de sua relação com a
representação de que partimos. Essa relação é então confirmada no
desenvolvimento subseqüente da análise. Todas essas conseqüências
da pressão dão-nos uma impressão ilusória de haver uma inteligência
superior fora da consciência do paciente, que mantém um grande
volume de material psíquico organizado para fins específicos e fixou
uma ordem planejada para seu retorno à consciência. Suspeito, porém,
de que essa segunda inteligência inconsciente nada mais seja do que
uma aparência.
Em toda análise mais ou menos complicada, o trabalho é efetuado pelo
uso repetido, na verdade contínuo, desse método de pressão sobre a
testa. Algumas vezes, partindo de onde a retrospectiva de vigília do
paciente se interrompe, esse procedimento aponta o outro caminho a
seguir através das lembranças das quais o paciente permaneceu
consciente; por vezes, chama a atenção para ligações que foram
esquecidas; noutras, evoca e organizalembranças que foram retiradas
das associações por muitos anos, mas que ainda podem ser
reconhecidas como lembranças; e às vezes, por fim, como auge de
sua realização em termos do pensamento reprodutivo, ele faz com que
emerjam pensamentos que o paciente jamais reconhece como seus,
dos quais nunca se recorda, embora admita que o contexto os exige
inexoravelmente e se convença de que são precisamente essas idéias
que levam à conclusão da análise e à eliminação de seus sintomas.
Tentarei enumerar alguns exemplos dos excelentes resultados obtidos
com esse procedimento técnico.
Tratei de uma moça que sofria de intolerável tussis nervosa que se
arrastava por seis anos. Sua tosse obviamente se alimentava de
qualquer catarro comum, mas, não obstante, devia ter fortes
motivações psíquicas. Todos os outros tipos de terapia há muito se
haviam mostrado impotentes contra ela. Portanto, tentei eliminar o
sintoma por meio da análise psíquica. Tudo o que a jovem sabia era
que sua tosse nervosa começara quando, na idade de quatorze anos,
ela estava morando com uma tia. Ela sustentava não saber de
quaisquer agitações mentais naquela época, e não acreditava que
houvesse nenhum motivo para sua queixa. Sob a pressão de minha
mão, ela se lembrou, em primeiro lugar, de um grande cachorro. Em
seguida, reconheceu o quadro em sua memória: era um cão de sua tia
que ficara afeiçoado à paciente, acompanhava-a por toda parte, e
assim por diante. E então lhe ocorreu, sem maior instigação, que esse
cão havia morrido, que as crianças o enterraram com solenidade e que
a tosse havia começado na volta do enterro. Perguntei-lhe por que,
mas tive mais uma vez que recorrer à ajuda da pressão. Veio-lhe então
o seguinte pensamento: “Agora estou inteiramente só no mundo.
Ninguém aqui me ama. Esse animal era meu único amigo, e agora eu
o perdi.” Prosseguiu com sua história: “A tosse desapareceu quando
deixei a casa de minha tia, mas voltou dezoito meses depois.” “Por
quê?” “Não sei.” Usei novamente a pressão. Ela se lembrou da notícia
da morte do tio, quando a tosse começara de novo, e também se
lembrou de ter tido uma cadeia de pensamentos semelhante. O tio
parece ter sido o único membro da família que mostrara qualquer
afeição por ela, que a havia amado. Ali estava, portanto, a
representação patogênica. Ninguém a amava, preferiam qualquer outro
a ela, ela não merecia ser amada, e assim por diante. Mas havia
alguma coisa vinculada à representação de “amor” que ela mostrava
forte resistência em me contar. A análise foi interrompida antes que
isso fosse esclarecido.
Há algum tempo pediram-me que aliviasse uma senhora idosa de seus
ataques de angústia, embora, a julgar por seus traços de caráter, ela
dificilmente se prestasse a um tratamento dessa espécie. Desde a
menopausa ela ficara excessivamente devota, e em cada visita
costumava receber-me armada de um pequeno crucifixo de marfim
oculto em sua mão, como se eu fosse o Demônio. Seus ataques de
angústia, que eram de natureza histérica, remontavam aos primeiros
anos da juventude e, de acordo com a paciente, haviam-se originado
do uso de um preparado de iodo destinado a reduzir um discreto
crescimento de sua tireóide. Naturalmente, rejeitei essa origem e tentei
encontrar outra que se harmonizasse melhor com meus pontos de
vista sobre a etiologia das neuroses. Pedi-lhe primeiro que me desse
alguma impressão de sua juventude que tivesse uma relação causal
com seus ataques de angústia e, sob a pressão de minha mão, surgiu
a lembrança de ela ter lido o que é chamado de livro “edificante”, no
qual se fazia uma menção, em tom suficientemente respeitoso, aos
processos sexuais. O trecho em questão causara na moça uma
impressão inteiramente oposta à intenção do autor: ela irrompera em
lágrimas e arremessara o livro para longe. Isso foi antes de seu
primeiro ataque de angústia. Uma segunda pressão sobre a testa da
paciente evocou outra reminiscência — a lembrança de um tutor de
seus irmãos que havia manifestado grande admiração por ela, e por
quem ela própria nutrira sentimentos um tanto calorosos. Essa
lembrança culminou com a reconstituição de uma noite na casa de
seus pais, quando todos se haviam sentado em torno da mesa com o
rapaz e se haviam divertido imensamente numa animada conversa. Na
madrugada seguinte a essa noite, ela foi despertada por seu primeiro
ataque de angústia, que, pode-se afirmar com segurança, teve mais a
ver com o repúdio de um impulso sensual do que com quaisquer doses
concomitantes de iodo. — Que perspectiva teria eu tido, com qualquer
outro método, de revelar tal ligação, contra suas próprias opiniões e
asserções, nessa paciente recalcitrante que tinha tantos preconceitos
contra mim e contra qualquer forma de terapia comum?
Outro exemplo diz respeito a uma mulher jovem e bem-casada. Ainda
nos primeiros anos de sua adolescência, ela costumava por algum
tempo ser encontrada todas as manhãs num estado de estupor, com
os membros rígidos, a boca aberta e a língua para fora; e agora, mais
uma vez, estava sofrendo, ao despertar, de acessos que eram
semelhantes, embora não tão graves. Como a hipnose profunda se
revelou inobtenível, comecei a investigar enquanto ela estava num
estado de concentração. À primeira pressão, assegurei-lhe que ela
veria algo que estava diretamente relacionado com as causas de seu
estado na infância. Ela era tranqüila e cooperativa. Viu mais uma vez a
casa em que passara os primeiros anos de sua juventude, seu próprio
quarto, a posição de sua cama, a avó, que morava com eles naquela
época, e uma de suasgovernantas, de quem gostava muito. Algumas
pequenas cenas, todas sem importância, ocorridas nesses aposentos
e em meio a essas pessoas, sucederam-se umas às outras;
terminaram com a partida da governanta, que fora embora para se
casar. Não pude depreender absolutamente nada dessas
reminiscências; não consegui estabelecer nenhuma relação entre elas
e a etiologia dos ataques. Várias circunstâncias mostravam, contudo,
que elas pertenciam ao mesmo período em que os ataques haviam
surgido. Mas antes que eu pudesse prosseguir na análise, tive
oportunidade de conversar com um colega que, anos antes, fora o
médico da família dos pais de minha paciente. Ele me deu a seguinte
informação: na época em que tratara da menina por causa de seus
primeiros ataques, ela se aproximava da maturidade e já era muito
desenvolvida fisicamente, e ele ficara surpreso com a excessiva
afetuosidade que havia na relação entre ela e a governanta que estava
na casa na ocasião. Ficara desconfiado e induziu a avó a manter
vigilância sobre aquele relacionamento. Após um curto período, a
senhora pôde informá-lo de que a governanta tinha o hábito de visitar a
menina na cama à noite e que, após essas noites, a criança era
invariavelmente encontrada na manhã seguinte presa de um ataque.
Depois disso, não hesitaram em providenciar o discreto afastamento
dessa corruptora de jovens. As crianças e até mesmo a mãe foram
levadas a crer que a governanta partira a fim de se casar. — Minha
terapia, que teve sucesso imediato, consistiu em transmitir à jovem
senhora as informações que eu recebera.
Às vezes, as revelações que se obtêm através do método da pressão
aparecem de forma muito marcante e em circunstâncias que tornam
ainda mais tentadora a suposição de haver uma inteligência
inconsciente. Assim, lembro-me de uma senhora que sofrera durante
muitos anos de obsessões e fobias e que me indicou a infância como
gênese de sua moléstia, mas que era também totalmente incapaz de
dizer a que se poderia atribuir a culpa por esta última. Ela era franca e
inteligente e opunha apenas uma resistência consciente notavelmente
pequena. (Posso observar entre parênteses que o mecanismo psíquico
das obsessões tem uma afinidade interna muito grande com os
sintomas histéricos, e que a técnica de análise é a mesma para
ambos.) Quando perguntei a essa senhora se vira alguma coisa ou
recordara algo sob a pressão de minha mão, ela respondeu: “Nem uma
coisa nem outra, mas de repente uma palavra me ocorreu.” “Uma única
palavra?” “Sim, mas parece tola demais.” “De qualquer maneira,
diga-a.” “Porteiro.” “Nada mais?” “Não.” Pressionei uma segunda vez e
de novo uma palavra isolada lhe atravessou a mente: “Camisola.” Vi
então que essa era uma nova espécie de método de resposta e,
pressionando repetidas vezes, trouxe à tona o queparecia ser uma
série de palavras sem sentido: “Porteiro” … “camisola” … “cama” …
“carroça”. “O que significa tudo isso?”, perguntei. Ela refletiu um
momento e a seguinte idéia lhe ocorreu: “Deve ser a história que acaba
de me vir à mente. Quando eu tinha dez anos, e minha irmã mais
velha, doze, certa noite ela enlouqueceu e teve que ser amarrada e
levada para a cidade numa carroça. Lembro perfeitamente que foi o
porteiro que a dominou e depois também foi com ela ao hospício.”
Seguimos esse método de investigação e nosso oráculo produziu outra
série de palavras que, embora não fôssemos capazes de interpretar
todas, tornaram possível continuar essa história e passar para outra.
Além disso, o significado dessa reminiscência ficou logo claro. A
doença da irmã causara nela essa impressão tão profunda porque as
duas partilhavam um segredo; dormiam no mesmo quarto e, uma noite,
ambas sofreram as investidas sexuais de certo homem. A menção
desse trauma sexual na infância da paciente revelou não apenas a
origem de suas primeiras obsessões como também o trauma que em
seguida produziu os efeitos patogênicos.
A peculiaridade desse caso estava apenas na emergência de
palavras-chave isoladas, que tivemos de elaborar em frases, pois a
aparente incoerência e impropriedade que caracterizavam as palavras
enunciadas dessa forma oracular aplicam-se tanto às representações
quanto às cenas completas que são normalmente produzidas sob
minha pressão. Quando estas são acompanhadas, nunca se deixa de
constatar que as reminiscências aparentemente desconexas se acham
ligadas de modo estreito no pensamento e conduzem de forma
bastante direta ao fator patogênico que estamos buscando. Por essa
razão, apraz-me recordar um caso de análise no qual minha confiança
nos produtos da pressão foi, de início, submetida a um rigoroso teste,
mas depois brilhantemente justificada.
Uma jovem mulher casada, muito inteligente e aparentemente feliz,
consultara-me sobre uma dor persistente no abdome, que resistia ao
tratamento. Vi que a dor estava situada na parede abdominal e devia
relacionar-se com indurações musculares palpáveis, e prescrevi um
tratamento local. Alguns meses depois, tornei a examinar a paciente, e
ela me disse: “A dor que eu sentia desapareceu após o tratamento que
o senhor recomendou, e permaneceu assim por muito tempo. Mas
agora ela voltou sob uma forma nervosa. Sei que é nervosa porque
não é mais como eu costumava senti-la, ao fazer certos movimentos,
mas só em certas ocasiões — por exemplo, quando acordo de manhã
e quando fico agitada de certas maneiras.” O diagnóstico dessa jovem
senhora estava certo. Tratava-se agora de descobrir a causa da dor, e
ela não conseguiu ajudar-me nisso enquanto se achava numestado de
consciência não influenciado. Quando lhe perguntei, em concentração
e sob a pressão de minha mão, se algo lhe ocorria ou se via alguma
coisa, ela me disse estar vendo e começou a descrever suas imagens
visuais. Viu algo como um sol cheio de raios, que naturalmente tomei
como um fosfeno produzido pela pressão nos olhos. Eu esperava que
algo mais útil se seguisse. Mas ela prosseguiu: “Estrelas de uma
curiosa luz azul-pálido, como o luar” e assim por diante, que julguei
não serem mais do que cintilações, clarões e pontos brilhantes diante
dos seus olhos. Já estava preparado para considerar a experiência
como um fracasso e imaginava como poderia fazer uma retirada
discreta do caso, quando minha atenção foi atraída por um dos
fenômenos que ela descreveu. Viu uma grande cruz negra, inclinada,
que tinha em volta de seus contornos o mesmo brilho luminoso com
que todos os seus outros quadros haviam brilhado, e em cuja viga
transversal bruxuleava uma pequena chama. Era claro que não podia
mais tratar-se de um fosfeno. Passei então a escutar com atenção.
Inúmeros quadros apareceram banhados na mesma luz, sinais
curiosos que se pareciam muito com o sânscrito; figuras como
triângulos, entre elas um grande triângulo; de novo a cruz… Dessa
vez, suspeitei de um significado alegórico e perguntei o que poderia
ser a cruz. “Provavelmente significa sofrimento”, respondeu. Objetei
que por “cruz” em geral se quer dizer responsabilidade moral. Que
estaria oculto por trás do sofrimento? Ela não soube dizer e prosseguiu
com suas visões: um sol com raios dourados. E a isso também pôde
interpretar: “É Deus, a força primeva.” Surgiu então um lagarto
gigantesco que a contemplava de maneira inquisidora, mas não
alarmante. A seguir, um grande número de cobras. Depois, mais uma
vez, um sol, mas de raios suaves e prateados, e à sua frente, entre ela
e essa fonte de luz, uma grade que escondia dela o centro do sol. Eu
já sabia há algum tempo que estava lidando com alegorias e de
imediato perguntei qual o sentido dessa última imagem. Ela respondeu
sem hesitar: “O sol é a perfeição, o ideal, e a grade representa minhas
fraquezas e falhas, que se interpõem entre mim e o ideal.” “A senhora
está então se recriminando? Está insatisfeita consigo mesma?” “Na
verdade, estou.” “Desde quando?” “Desde que passei a ser membro da
Sociedade Teosófica e tenho lido suas publicações. Sempre me tive
em baixa conta.” “O que lhe causou a mais forte impressão
recentemente?” “Uma tradução do sânscrito que agora mesmo está
saindo em fascículos.” Um momento depois eu era introduzido em
suas lutas mentais e suas auto-recriminações e ouvia o relato de um
episódio insignificante que dera margem à autocensura — uma
ocasião na qual o que antes fora uma dor orgânica surgiu pela primeira
vez como conseqüência da conversão de uma excitação. Os quadros
que eu a princípiotomara por fosfenos eram símbolos de seqüências
de representações influenciadas pelas ciências ocultas e, na verdade,
talvez fossem emblemas provenientes das páginas de frontispício de
livros de ocultismo.
Até aqui, tenho sido tão entusiasmado em meus louvores aos
resultados da pressão como método auxiliar, e durante todo o tempo
tenho negligenciado de tal maneira o aspecto da defesa ou resistência
que, sem dúvida, deve ter dado a impressão de que esse pequeno
artifício nos deixou em condições de dominar os obstáculos psíquicos
a um tratamento catártico. Mas acreditar nisso seria cometer um grave
erro. Êxitos dessa espécie, pelo que sei, não devem ser procurados no
tratamento. Aqui, com em tudo o mais, uma grande mudança exige um
grande volume de trabalho. A técnica da pressão nada mais é do que
um truque para apanhar temporariamente desprevenido um ego
ansioso por defender-se. Em todos os casos mais ou menos graves o
ego torna a relembrar seus objetivos e oferece resistência.
Preciso mencionar as diferentes formas em que surge essa resistência.
Uma delas é que, em geral, a técnica da pressão falha na primeira ou
segunda ocasião. O paciente então declara, com grande
desapontamento: “Esperava que alguma coisa me ocorresse, mas tudo
em que pensei foi no grau de tensão com que estava esperando por
isso. Não surgiu nada.” O fato de o paciente pôr-se assim em guarda
ainda não chega a constituir um obstáculo. Podemos dizer em
resposta: “é precisamente porque você estava curioso demais: da
próxima vez dará resultado.” E de fato dá. É notável a freqüência com
que os pacientes, mesmo os mais dóceis e inteligentes, conseguem
esquecer-se por completo de seu compromisso, embora tenham
concordado com ele de antemão. Uns prometem dizer o que quer que
lhes ocorra sob a pressão de minha mão, independentemente de lhes
parecer pertinente ou não e de lhes ser ou não agradável dizê-lo —
isto é, prometem dizê-lo sem selecionar e sem serem influenciados
pela crítica ou pelo afeto. Mas não cumprem essa promessa;
evidentemente, fazê-lo está além de suas forças. O trabalho torna a
ser paralisado, e eles continuam a dizer que dessa vez nada lhes
ocorreu. Não devemos crer no que dizem; devemos sempre presumir,
e dizer-lhes também, que eles retiveram algo porque o julgaram sem
importância ou o acharam aflitivo. Devemos insistir nisso, devemos
repetir a pressão e representar o papel de infalíveis, até que afinal nos
contem alguma coisa. O paciente então acrescenta: “Eu poderia ter-lhe
dito isso desde a primeira vez.” “Por que não disse?” “Não consegui
acreditar que pudesse ser isso. Foi só quando continuou voltando
todas as vezes que resolvi dizê-lo.” Ou então: “Esperava que não fosse
logo isso. Eu poderia muito bem passar sem dizê-lo.Foi só quando isso
se recusou a ser repelido que vi que não devia desprezá-lo.” Assim, a
posteriori, o paciente trai os motivos de uma resistência que, de início,
se recusava a admitir. É evidente que ele é incapaz de fazer outra
coisa senão opor resistência.
Essa resistência muitas vezes se oculta por trás de notáveis
desculpas. “Minha cabeça hoje está distraída; o relógio (ou o piano da
sala ao lado) está me perturbando.” Aprendi a responder a tais
observações: “De modo algum. Neste momento você esbarrou em
alguma coisa que preferiria não dizer. Isso não lhe fará nenhum bem.
Continue a pensar nela.” Quanto mais longa a pausa entre a pressão
de minha mão e o momento em que o paciente começa a falar, mais
desconfiado fico e mais se deve temer que o paciente esteja
reorganizando o que lhe surgiu e o esteja mutilando em sua
reprodução. Uma informação importantíssima é muitas vezes
anunciada como sendo um acessório redundante, como um príncipe
de ópera disfarçado de mendigo. “Agora me ocorreu uma coisa, mas
não tem nada a ver com o assunto. Só estou lhe dizendo porque o
senhor quer saber de tudo.” Palavras como essas em geral introduzem
a solução há muito procurada. Sempre aguço os ouvidos quando ouço
um paciente falar de forma tão depreciativa de algo que lhe ocorreu,
pois é sinal de que a defesa foi bem-sucedida se as representações
patogênicas parecem ter tão pouca importância ao reemergiram. Disso
podemos inferir em que consistiu o processo de defesa: consistiu em
transformar uma representação forte numa representação fraca, em
roubá-la de seu afeto.
Portanto, uma lembrança patogênica é reconhecível, entre outras
coisas, pelo fato de o paciente a descrever como sem importância e,
não obstante, só enunciá-la sob resistência. Também existem casos
em que o paciente tenta renegá-la mesmo após seu retorno. “Agora
me ocorreu uma coisa, mas é óbvio que foi o senhor que a pôs em
minha cabeça.” Ou então: “Sei o que o senhor espera que eu
responda. É claro que acredita que pensei nisto ou naquilo.” Um
método particularmente hábil de recusa está em dizer: “Agora me
ocorreu uma coisa, é verdade, mas é como se eu a tivesse provocado
de propósito. Não parece de modo algum ser um pensamento
reproduzido.” Em todos esses casos, permaneço inabalavelmente
firme. Evito entrar em qualquer uma dessas distinções, mas explico ao
paciente que elas são apenas formas de sua resistência e pretextos
por ela levantados contra a reprodução dessa lembrança em particular,
que devemos reconhecer apesar de tudo isso.
Quando as lembranças retornam sob a forma de imagens, nossa tarefa
costuma ser mais fácil do que quando voltam como pensamentos. Os
pacientes histéricos, que em geral são do tipo “visual”, não oferecem
tantas dificuldades ao analista quanto aqueles que têm obsessões.
Uma vez surgida uma imagem na memória do paciente, podemos
ouvi-lo dizer que ela vai se tornando fragmentada e obscura à medida
que ele continua a descrevê-la. O paciente está, por assim dizer,
livrando-se dela ao transformá-la em palavras. Passamos a examinar a
própria imagem lembrada para descobrir a direção em que nosso
trabalho deve prosseguir. “Olhe para a imagem mais uma vez. Ela
desapareceu?” “A maior parte, sim, mas ainda vejo um detalhe.” “Então
esse resíduo ainda deve significar alguma coisa. Ou você verá alguma
coisa nova além dele, ou algo lhe ocorrerá em ligação com ele.”
Realizado esse trabalho, o campo de visão do paciente volta a ficar
limpo e podemos evocar outro quadro. Em outras ocasiões, porém,
uma dessas imagens permanece obstinadamente diante da visão
interior do paciente, apesar de ele a ter descrito; para mim, isso é um
indício de que ele ainda tem algo importante a me dizer sobre o tema
da imagem. Tão logo isso é feito, a imagem desaparece, como um
fantasma que fosse exorcizado.
Naturalmente, é de grande importância para o progresso da análise
que o analista sempre mostre ter razão diante do paciente, caso
contrário ficará sempre na dependência do que este resolver contar.
Assim, é reconfortante saber que a técnica da pressão na verdade
nunca falha, afora um único caso, que terei de examinar depois | ver
em [1] e segs.|, mas do qual posso dizer desde logo que corresponde a
um motivo particular para a resistência. Pode acontecer, é claro, que
se faça uso do método em circunstâncias em que ele nada tenha a
revelar. Por exemplo, podemos procurar a etiologia adicional de um
sintoma quando já o temos por completo diante de nós, ou podemos
investigar a genealogia psíquica de um sintoma, como uma dor, que de
fato seja somático. Nesses casos, o paciente também afirmará que
nada lhe ocorreu, e dessa vez terá razão. Podemos evitar cometer
injustiças contra o paciente se nos habituarmos, como norma geral
durante toda a análise, a observar-lhe a expressão facial quando ele
estiver deitado em silêncio diante de nós. Assim poderemos aprender a
distinguir sem dificuldade o sereno estado de ânimo que acompanha a
verdadeira ausência de lembranças, da tensão e dos sinais de emoção
com que ele tenta recusar a lembrança emergente, em obediência à
defesa. Além disso, experiências como essa também possibilitam o
uso da técnica da pressão para fins de diagnóstico diferencial.
Assim, mesmo com a assistência da técnica da pressão, de maneira
alguma o trabalho é fácil. A vantagem que obtemos é descobrir, pelos
resultados desse método, a direção em que temos de conduzir nossas
indagações e as coisas em que temos de insistir junto ao paciente. Em
alguns casos isso basta. O ponto principal é que devo adivinhar o
segredo e dizê-lo diretamente ao paciente, sendo ele, em geral,
obrigado a não mais rejeitá-lo.Em outros casos, mais alguma coisa é
necessária. A persistente resistência do paciente é indicada pelo fato
de que as ligações se interrompem, as soluções não aparecem e as
imagens são recordadas de forma indistinta e incompleta. Voltando a
olhar de um período posterior para um período anterior da análise,
muitas vezes ficamos atônitos diante da maneira mutilada com que
surgiram todas as idéias e cenas que extraímos do paciente pelo
método da pressão. Precisamente os elementos essenciais do quadro
estavam faltando — a relação do quadro com o próprio paciente ou
com os principais conteúdos de seus pensamentos — e eis por que ele
permanecia ininteligível.
Darei um ou dois exemplos da forma pela qual uma censura dessa
espécie atua quando surgem pela primeira vez as lembranças
patogênicas. Por exemplo, o paciente vê a parte superior de um corpo
de mulher com o vestido mal fechado — por descuido, parece. Só
muito depois é que ele coloca uma cabeça nesse tronco e assim revela
uma determinada pessoa e sua relação com ela. Ou ele evoca de sua
infância uma reminiscência sobre dois meninos. A aparência deles lhe
é inteiramente obscura, mas ele diz que são culpados de algum
malfeito. Só muitos meses depois, após a análise ter feito grandes
progressos, é que ele revê essa reminiscência e se reconhece numa
das crianças, e seu irmão na outra.
De que meios dispomos para superar essa resistência contínua?
Poucos, mas abrangem quase todos pelos quais um homem pode
comumente exercer uma influência psíquica sobre outro. Em primeiro
lugar, devemos refletir que a resistência psíquica, em especial uma
que esteja em vigor há muito tempo, só pode ser dissipada com
lentidão, passo a passo, e devemos esperar com paciência. Em
segundo lugar, podemos contar com o interesse intelectual que o
paciente começa a sentir após trabalhar por um curto espaço de
tempo. Explicando-lhe as coisas, dando-lhe informações sobre o
mundo maravilhoso dos processos psíquicos que nós mesmos só
começamos a discernir através dessas análises, nós o transformamos
num colaborador, induzimo-lo a encarar a si mesmo com o interesse
objetivo de um pesquisador e assim afastamos sua resistência, que
repousa, de fato, numa base afetiva. Mas por último — e essa continua
a ser a alavanca mais poderosa — devemos nos esforçar, depois de
descobrirmos os motivos de sua defesa, por despojá-los de seu valor
ou mesmo substituí-los por outros mais poderosos. É aqui, sem dúvida,
que deixa de ser possível enunciar a atividade psicoterapêutica em
fórmulas. Trabalha-se com o melhor da própria capacidade, como
elucidador (ali onde a ignorância deu origem ao medo), como
professor, como representante de um visão mais livre ou superior do
mundo, como um padre confessor que ministra a absolvição, por assim
dizer, pela permanência desua compreensão e de seu respeito depois
de feita a confissão. Tenta-se dar ao paciente assistência humana, até
o ponto em que isso é permitido pela capacidade da própria
personalidade de cada um e pela dose de compreensão que se possa
sentir por cada caso específico. É uma precondição essencial para tal
atividade psíquica que tenhamos mais ou menos adivinhando a
natureza do caso e os motivos da defesa que nele atuam, e felizmente
a técnica da insistência e da pressão nos leva até esse ponto. Quanto
mais tenhamos solucionado tais enigmas, mais fácil achamos decifrar
um novo enigma e mais cedo podemos iniciar o trabalho psíquico
verdadeiramente curativo. Pois é bom reconhecer uma coisa com
clareza: o paciente só se livra do sintoma histérico ao reproduzir as
impressões patogênicas que o causaram e ao verbalizá-las com uma
expressão de afeto; e assim a tarefa terapêutica consiste unicamente
em induzi-lo a agir dessa maneira; uma vez realizada essa tarefa, nada
resta ao médico para corrigir ou eliminar. O que quer que se faça
necessário para esse fim em termos de contra-sugestões já terá sido
despendido durante a luta contra a resistência. A situação pode ser
comparada ao destrancamento de uma porta trancada, depois de sua
abertura girando a maçaneta, não oferece nenhuma outra dificuldade.
Além das motivações intelectuais que mobilizamos para superar a
resistência, há um fator afetivo, a influência pessoal do médico, que
raramente podemos dispensar, e em diversos casos só este último
fator está em condições de eliminar a resistência. A situação aqui não
é diferente da que se pode encontrar em qualquer setor da medicina,
não havendo processo terapêutico sobre o qual possamos dizer que
dispensa por completo a cooperação desse fator pessoal.
(3)
Em vista do que disse na seção precedente sobre as dificuldades de
minha técnica, que expus extensamente (reuni-as, aliás, a partir dos
casos mais graves; as coisas muitas vezes se passam de maneira
muito mais conveniente) — em vista de tudo isso, portanto, sem
dúvida, todos hão de sentir-se inclinados a perguntar se não seria mais
vantajoso, em vez de enfrentar todas essas complicações, fazer uso
mais enérgico da hipnose ou restringir o emprego do método catártico
a pacientes que possam ser colocados em hipnose profunda. Quanto à
segunda proposta, eu teria de responder que, nesse caso, o número
de pacientes apropriados, até onde vai minha habilidade, seria por
demais reduzido; e quanto ao primeiro conselho,desconfio de que a
imposição forçada da hipnose não nos pouparia de muita resistência.
Minhas experiências nesse aspecto, curiosamente, não têm sido
numerosas, e não posso, portanto, ir além de uma suspeita. Mas nas
situações em que apliquei um tratamento catártico sob hipnose, em
vez de concentração, não achei que isso diminuísse o trabalho que eu
tinha a executar. Não faz muito tempo, concluí um tratamento dessa
espécie, e em seu decorrer fiz com que uma paralisia histérica das
pernas desaparecesse. A paciente passava para um estado muito
diferente, psiquicamente, do de vigília, e que no aspecto físico se
caracterizava pelo fato de que lhe era impossível abrir os olhos ou
levantar-se até que eu lhe dissesse em voz alta: “Agora, acorde!” Não
obstante, jamais me defrontei com maior resistência do que nesse
caso. Eu não atribuía nenhuma importância a esses sinais físicos e, ao
aproximar-se o final do tratamento, que durou dez meses, eles haviam
deixado de ser dignos de nota. Mas, apesar disso, o estado da
paciente enquanto trabalhávamos não perdeu nenhuma de suas
características psíquicas — a capacidade que possuía de lembrar-se
de material inconsciente e sua relação toda especial com a figura do
médico. Por outro lado, dei um exemplo, no relato do caso da Sra.
Emmy von N., de um tratamento catártico no mais profundo
sonambulismo, no qual a resistência mal chegou a desempenhar
qualquer papel. Mas também é verdade que nada ouvi dessa senhora
cujo relato pudesse ter exigido qualquer superação especial de
objeções, nada que ela não me pudesse ter dito mesmo em estado de
vigília, supondo-se que nos conhecêssemos há algum tempo e que ela
me tivesse razoavelmente em boa conta. Nunca cheguei às
verdadeiras causas de sua doença, que sem dúvida foram idênticas às
causas de sua recaída após meu tratamento (pois essa foi minha
primeira tentativa com esse método); e na única ocasião em que me
aconteceu pedir-lhe uma reminiscência que envolvesse um elemento
erótico | ver em [1]|, achei-a tão relutante e indigna de confiança no
que me dizia quanto o foram, mais tarde, quaisquer de meus pacientes
não sonambúlicos. Já me referi, no relato do caso dessa senhora, à
resistência que ela opunha, mesmo durante o sonambulismo, a outras
solicitações e sugestões minhas. Tornei-me inteiramente cético quanto
ao valor da hipnose na facilitação dos tratamentos catárticos, visto ter
vivenciado situações em que, durante o sonambulismo profundo,
houve absoluta recalcitrância terapêutica, ao passo que em outros
aspectos o paciente era perfeitamente obediente. Relatei casos, de
modo resumido, em [1] e poderia acrescentar outros. Posso também
admitir que essa experiência correspondeu bastante bem ao requisito
em que insisto, no sentido de que deve haver uma relação quantitativa
entre causa e efeito também no campo psíquico |assim como no físico|.
No que afirmei até agora, a idéia de resistência se impôs no primeiro
plano. Demonstrei como, no curso de nosso trabalho terapêutico,
fomos levados à visão de que a histeria se origina por meio do
recalcamento de uma idéia incompatível, de uma motivação de defesa.
Segundo esse ponto de vista, a idéia recalcada persistiria como um
traço mnêmico fraco (de pouca intensidade), enquanto o afeto dela
arrancado seria utilizado para uma inervação somática. (Em outras
palavras, a excitação é “convertida”.) Ao que parece, portanto, é
precisamente por meio de seu recalcamento que a idéia se transforma
na causa de sintomas mórbidos — ou seja, torna-se patogênica.
Pode-se dar a designação de “histeria de defesa” à histeria que exiba
esse mecanismo psíquico.
Ora, tanto eu como Breuer temo-nos referido muitas vezes a duas
outras espécies de histeria, para as quais introduzimos as expressões
“histeria hipnóide” e “histeria de retenção”. Foi a histeria hipnóide a
primeira de todas a entrar em nosso campo de estudo. Eu não poderia,
de fato, encontrar melhor exemplo dessa histeria do que no primeiro
caso de Breuer, que encabeça a exposição de nossos casos clínicos.
Breuer propôs para esses casos de histeria hipnóide um mecanismo
psíquico substancialmente diferente do de defesa por conversão.
Segundo a visão de Breuer, o que acontece na histeria hipnóide é que
uma idéia se torna patogênica por ter sido recebida durante um estado
psíquico especial e permanecido desde o início fora do ego. Portanto,
não foi necessária nenhuma força psíquica para mantê-la fora do ego,
e nenhuma resistência precisa ser despertada quando a induzimos no
ego com a ajuda da atividade mental durante o sonambulismo. E o
caso de Anna O. de fato não mostra nenhum sinal de uma resistência
dessa natureza.
Considero de tal importância essa distinção que, com base nela,
alio-me de bom grado a essa hipótese da existência de uma histeria
hipnóide. Estranhamente, em minha própria experiência, nunca deparei
com uma histeria hipnóide autêntica. Todas as que aceitei para
tratamento transformaram-se em histerias de defesa. A rigor, não é
que eu jamais tenha tido de lidar com sintomas que comprovadamente
emergiram durante estados dissociados de consciência, sendo
obrigados, por esse motivo, a ficar excluídos do ego. Isso também
aconteceu algumas vezes em meus casos, mas pude demonstrar,
mais tarde, que o chamado estado hipnóide devia sua separação ao
fato de nele haver entrado em vigor um grupo psíquico que antes fora
dividido pela defesa. Em suma, é-me impossível reprimir a suspeita de
que em algum ponto as raízes da histeria hipnóide e da histeria de
defesa se reúnem, e que seu fator primário é a defesa. Mas nada
posso dizer a esse respeito.
Meu julgamento é, no momento, igualmente incerto quanto à “histeria
de retenção”, na qual se supõe que o trabalho terapêutico também se
processe sem resistência. Tive um caso que encarei como uma típica
histeria de retenção e exultei com a perspectiva de um êxito fácil e
certo. Mas esse êxito não ocorreu, embora o trabalho fosse
efetivamente fácil. Suspeito, portanto, embora mais uma vez com todas
as ressalvas próprias da ignorância, de que também na base da
histeria de retenção também haja um elemento de defesa que tenha
forçado todo o processo na direção da histeria. É de se esperar que
novas observações logo venham decidir se estou correndo o risco de
incidir em parcialidade e erro ao favorecer assim a extensão do
conceito de defesa para toda a histeria.
Tratei até agora das dificuldades e da técnica do método catártico e
gostaria de acrescentar algumas indicações quanto à forma assumida
pela análise quando essa técnica é adotada. Para mim, isto é um
assunto altamente interessante, mas não posso esperar que desperte
interesse semelhante em outros, que ainda não efetuaram uma análise
dessa espécie. Estarei, é verdade, referindo-me mais uma vez à
técnica, mas desta vez falarei das dificuldades inerentes pelas quais
não podemos responsabilizar os pacientes e que, em parte, devem ser
as mesmas tanto numa histeria hipnóide ou de retenção quanto nas
histerias de defesa que tenho diante dos olhos como modelo. Abordo
esta última parte de minha exposição na expectativa de que as
características psíquicas a serem nela reveladas possam um dia
adquirir certo valor como matéria-prima para a dinâmica da
representação.
A primeira e mais poderosa impressão causada numa dessas análises
é com certeza a de que o material psíquico patogênico aparentemente
esquecido, que não se acha à disposição do ego e não desempenha
nenhum papel na associação e na memória, não obstante está de
algum modo à mão, e em ordem correta e adequada. Trata-se apenas
de remover as resistências que barram o caminho para o material. Em
outros sentidos esse material é conhecido, da mesma forma como
somos capazes de conhecer qualquer coisa; as ligações corretas entre
as representações separadas e entre elas e as não-patogênicas, que
são lembradas com freqüência, existem, foram completadas em
alguma época e estão armazenadas na memória. O material psíquico
patogênico parece constituir o patrimônio de uma inteligência não
necessariamente inferior à de um ego normal. A aparência de uma
segunda personalidade é muitas vezes apresentada da maneira mais
enganosa.
Se essa impressão é justificada, ou se, ao pensar nela, estamos
atribuindo ao período da doença um arranjo do material psíquico que
na verdade foi feito após a recuperação — essas são perguntas que eu
preferiria não discutir ainda, e não nestas páginas. De qualquer modo,
as observações feitas durante tais análises serão descritas de modo
mais claro e convincente se as considerarmos a partir da posição que
nos é possível assumir após a recuperação, com a finalidade de
examinar o caso como um todo.
Em geral, de fato, a situação não é tão simples como a representamos
nos casos específicos — por exemplo, quando existe apenas um
sintoma surgido de um trauma principal. Não costumamos encontrar
um sintoma histérico único, mas muitos deles, em parte independentes
uns dos outros e em parte ligados. Não devemos esperar encontrar
uma lembrança traumática única e uma idéia patogênica única como
seu núcleo; devemos estar preparados para sucessões de traumas
parciais e concatenações de cadeias patogênicas de idéias. A histeria
traumática monossintomática é, por assim dizer, um organismo
elementar, uma criatura unicelular, em comparação com a estrutura
complexa de tais neuroses relativamente graves com que costumamos
deparar.
O material psíquico nesses casos de histeria apresenta-se como uma
estrutura em várias dimensões, estratificada de pelo menos três
maneiras diferentes. (Espero logo poder justificar essa forma pictórica
de expressão.) Para começar, há um núcleo que consiste em
lembranças de eventos ou seqüências de idéias em que o fator
traumático culminou, ou onde a idéia patogênica encontrou sua
manifestação mais pura. Em torno desse núcleo encontramos o que é
muitas vezes uma quantidade incrivelmente grande de outro material
mnêmico que tem de ser elaborado na análise e que está, como
dissemos, arranjado numa ordem tríplice.
Em primeiro lugar, há uma inconfundível ordem cronológica linear
quevigora em cada tema isolado. Como exemplo disso, apenas citarei
o arranjo do material na análise de Anna O. por Breuer. Tomemos o
tema do ensurdecimento, do não ouvir. Este se diferenciou de acordo
com sete conjuntos de determinantes, e em cada um desses sete
tópicos foram coletadas em seqüência cronológica dez a mais de cem
lembranças individuais (ver em [1]-[2]). Foi como se estivéssemos
examinando um arquivo que fosse mantido em perfeita ordem. A
análise de minha paciente Emmy von N. continha arquivos
semelhantes de lembranças, embora não fossem enumerados e
descritos de forma tão completa. Esses arquivos são um traço bastante
geral de cada análise, e seu conteúdo sempre emerge numa ordem
cronológica tão infalivelmente fidedigna quanto a sucessão dos dias da
semana ou dos meses numa pessoa mentalmente normal. Eles
dificultam o trabalho da análise pela peculiaridade de que, ao
reproduzirem as lembranças, invertem a ordem em que estas se
originaram. A experiência mais recente e mais nova do arquivo
aparece em primeiro lugar, como uma capa externa, e por último vem a
experiência com a qual a seqüência de fatos realmente começou.
Descrevi esses agrupamentos de lembranças semelhantes, em
coleções dispostas em seqüências lineares (como um arquivo de
documentos, um maço de papéis, etc.) como constituindo “temas”.
Esses temas exibem um segundo tipo de arranjo. Cada um deles está
— não sei expressá-lo de outra forma — concentricamente
estratificado em torno do núcleo patogênico. Não é difícil dizer o que
produz essa estratificação, qual a magnitude decrescente ou crescente
que é a base desse arranjo. O conteúdo de cada camada
caracteriza-se por um grau igual de resistência, e esse grau aumenta
na proporção em que as camadas se acham mais perto do núcleo.
Assim, há zonas dentro das quais existe um grau idêntico de
modificação da consciência, e os diferentes temas estendem-se
através dessas zonas. As camadas mais periféricas contêm as
lembranças (ou arquivos), as quais, pertencendo a temas diferentes,
são recordados com facilidade e sempre estiveram claramente
conscientes. Quanto mais nos aprofundamos, mais difícil se torna o
reconhecimento das lembranças emergentes, até que, perto do núcleo,
esbarramos em lembranças que o paciente renega até mesmo ao
reproduzi-las.
É essa peculiaridade da estratificação concêntrica do material psíquico
patogênico que, como veremos, confere ao decorrer dessas análises
seus traços característicos. É preciso mencionar ainda uma terceira
espécie de arranjo — a mais importante, porém aquela sobre a qual é
menos fácil fazer qualquer afirmação genérica. O que tenho em mente
é um arranjo de acordo com o conteúdo do pensamento, a ligação feita
por um fio lógico que chega até o núcleo e tende a seguir um caminho
irregular e sinuoso, diferente emcada caso. Esse arranjo possui um
caráter dinâmico, em contraste com o caráter morfológico das duas
estratificações mencionadas acima. Enquanto estas seriam
representadas num diagrama espacial por uma linha contínua, curva
ou reta, o curso da cadeia lógica teria de ser indicado por uma linha
interrompida, que passaria pelos caminhos mais indiretos, indo e vindo
da superfície até as camadas mais profundas, e contudo, de modo
geral, avançaria da periferia para o núcleo central, tocando em cada
ponto de parada intermediário — uma linha semelhante à linha em
ziguezague na solução de um problema do lance do cavalo, que
atravessa os quadrados do diagrama no tabuleiro de xadrez.
Devo demorar-me um pouco mais neste último símile para enfatizar um
ponto em que ele não faz justiça às características do objeto da
comparação. A cadeia lógica corresponde não apenas a uma linha
retorcida, em ziguezague, mas antes a um sistema de linhas em
ramificação e, mais particulamente, a um sistema convergente. Ele
contém pontos nodais em que dois ou mais fios se juntam e, a partir
daí, continuam como um só; e em geral diversos fios que se estendem
de forma independente, ou não, ligados em vários pontos por vias
laterais, desembocam no núcleo. Em outras palavras, é notável a
freqüência com que um sintoma é determinado de vários modos, é
“sobredeterminado”.
Minha tentativa de demonstrar a organização do material psíquico
patogênico ficará completa quando eu tiver introduzido mais uma
complexidade. Pois é possível que haja mais de um único núcleo no
material patogênico — quando, por exemplo, temos de analisar uma
segunda irrupção da histeria que possui uma etiologia própria, mas,
apesar disso, está ligada a uma primeira irrupção de histeria aguda
superada anos antes. É fácil imaginar, quando é esse o caso, quantos
acréscimos deve haver nas camadas e linhas de pensamento para
estabelecer uma ligação entre os dois núcleos patogênicos.
Farei agora um ou dois comentários adicionais sobre o quadro da
organização do material patogênico a que acabamos de chegar.
Dissemos que esse material se comporta como um corpo estranho, e
que também o tratamento atua como a remoção de um corpo estranho
do tecido vivo. Estamos agora em condições de ver onde essa
comparação fracassa. Um corpo estranho não entra em qualquer
relação com as camadas de tecido que o circundam, embora as
modifique e exija delas uma inflamação reativa. Nosso grupo psíquico
patogênico, por outro lado, não admite ser radicalmente extirpado do
ego. Suas camadas externas passam em todas as direções para
partes do ego normal; e, na realidade, pertencem tanto a este quanto a
organização patogênica. Na análise, a fronteira entre os dois é fixada
de maneira puramente convencional, ora num ponto, ora em outro,
sendo que em alguns lugares não pode em absoluto ser estabelecida.
As camadas internas da organização patogênica são cada vez mais
estranhas ao ego, porém mais uma vez sem que haja nenhuma
fronteira visível em que se inicie o material patogênico. De fato, o
organização patogênica não se comporta como um corpo estranho,
porém muito mais como um infiltrado. Nesse símile, a resistência deve
ser considerada como aquilo que se infiltra. E o tratamento também
não consiste em extirpar algo — a psicoterapia até agora não é capaz
de fazer isso — mas em fazer com que a resistência se dissolva e
assim permitir que a circulação prossiga para uma região que até
então esteve isolada.
(Estou usando aqui diversos símiles, dos quais todos apresentam
apenas uma semelhança muito limitada com meu assunto e, além
disso, são incompatíveis entre si. Estou ciente disso e não corro o
perigo de superestimar seu valor. Mas meu propósito ao utilizá-los é
lançar luz de diferentes direções sobre um tópico altamente complexo,
que nunca foi representado até hoje. Arriscar-me-ei, portanto, nas
páginas seguintes, a introduzir outros símiles da mesma maneira,
embora saiba que isso não está livre de objeções.)
Se fosse possível, depois de um caso ter sido completamente
elucidado, mostrar o material patogênico a outra pessoa naquilo que
agora sabemos ser organização complexa e multidimensional de tal
caso, com razão nos seria perguntado como foi que um camelo como
esse passou pelo buraco da agulha. Pois há certa justificativa em
falarmos num “desfiladeiro” da consciência. O termo ganha sentido e
vida para um médico que conclua uma análise como essa. Apenas
uma única lembrança de cada vez consegue entrar na consciência do
ego. O paciente que esteja ocupado em elaborar tal lembrança nada vê
daquilo que a está empurrando e se esquece do que já conseguiu
entrar. Quando há dificuldades em dominar essa lembrança patogênica
isolada — como, por exemplo, quando o paciente não relaxa sua
resistência contra ela, quando tenha recalcá-la ou mutilá-la — então o
desfiladeiro fica, por assim dizer, bloqueado. O trabalho fica paralisado,
nada mais consegue aparecer, e a lembrança isolada que está no
processo de atravessar permanece diante do paciente até que ele a
tenha absorvido na amplitude de seu ego. Toda a massa
especialmente ampliada de material psicogênico é assim impelida
através de uma fenda estreita e chega à consciência, por assim dizer,
retalhada em pedaços ou tiras. Cabe ao psicoterapeuta voltar a reunir
estes últimos naorganização que ele presuma ter existido. Qualquer
um que sinta atração por novas analogias poderá pensar, a essa
altura, num quebra-cabeças chinês.
Se tivermos que iniciar uma análise assim, em que tenhamos razões
para esperar uma organização do material patogênico como essa,
seremos ajudados pelo que nos ensinou a experiência, ou seja, que é
inteiramente inútil tentar penetrar direto no núcleo da organização
patogênica. Ainda que nós mesmos pudéssemos adivinhá-lo, o
paciente não saberia o que fazer com a explicação a ele oferecida e
não seria psicologicamente modificado por ela.
Não há nada a fazer senão manter-se, a princípio, na periferia da
estrutura psíquica. Começamos por fazer com que o paciente nos diga
aquilo que sabe e lembra, enquanto, ao mesmo tempo, já vamos
direcionando sua atenção e superando suas resistências mais leves
pelo uso da técnica da pressão. Sempre que tivermos aberto um novo
caminho pressionando-lhe a testa, podemos esperar que ele avance
mais um pouco sem nova resistência.
Depois de trabalharmos assim por algum tempo, em geral, o paciente
começa a cooperar conosco. Muitas reminiscências passam então a
lhe ocorrer sem que tenhamos de fazer-lhe perguntas ou fixar-lhe
tarefas. O que fizemos foi abrir caminho para uma camada interna
dentro da qual o paciente agora dispõe espontaneamente de um
material ligado a um grau idêntico de resistência. O melhor é
permitir-lhe, por algum tempo, reproduzir esse material sem ser
influenciado. É verdade que ele próprio não está em condições de
desvendar ligações importantes, mas se pode deixar que elucide o
material que está dentro da mesma camada. As coisas que ele traz à
tona dessa maneira parecem muitas vezes desconexas, mas fornecem
um material que ganhará sentido quando mais tarde se descobrir uma
ligação.
Nesse ponto, em geral temos de nos prevenir contra duas coisas. Se
interferirmos com o paciente em sua reprodução das idéias que nele
estão jorrando, poderemos “enterrar” coisas que depois terão de ser
liberadas com grande dificuldade. Por outro lado, não devemos
superestimar a “inteligência” inconsciente do paciente e deixar a cargo
dela a direção de todo o trabalho. Se eu quisesse fornecer um quadro
diagramático de nosso modo de operação, diria talvez que nós
mesmos empreendemos a abertura das camadas internas, avançando
radialmente, enquanto o paciente cuida da extensão periférica do
trabalho.
Os progressos são conseguidos, como sabemos, pela superação da
resistência, na forma já assinalada. Mas antes disso temos, em geral,
outra tarefa a executar. Precisamos apoderar-nos de um pedaço do fio
lógico, pois é apenas através de sua orientação que podemos ter
esperança de penetrar nointerior. Não podemos esperar que as
comunicações livres feitas pelo paciente, o material proveniente das
camadas mais superficiais, facilitem ao analista reconhecer em que
pontos o caminho conduz às profundezas ou onde ele irá encontrar os
pontos de partida das ligações de idéias que está procurando. Pelo
contrário. É precisamente isso que é ocultado com cuidado; o relato
feito pelo paciente soa como se fosse completo e auto-suficiente. De
início, é como se estivéssemos diante de um muro que obstrui toda a
perspectiva e nos impede de ter qualquer idéia de haver ou não algo
atrás dele e, em caso afirmativo, o quê.
Mas se examinarmos com visão crítica o relato que o paciente nos fez
sem muito esforço ou resistência, nele descobriremos infalivelmente
lacunas e imperfeições. Em determinado ponto, a seqüência de idéias
será visivelmente interrompida e remendada da melhor forma possível
pelo paciente, com um recurso de linguagem ou uma explicação
inadequada; noutro ponto depararemos com uma motivação que teria
de ser descrita como débil numa pessoa normal. O paciente não
reconhece essas deficiências quando sua atenção é chamada para
elas. Mas o médico terá razão em procurar atrás dos pontos fracos
uma abordagem para o material das camadas mais profundas e em
esperar descobrir precisamente ali os fios de ligação que está
buscando por meio da técnica da pressão. Por conseguinte, dizemos
ao paciente: “Você está enganado; o que você está formulando não
pode ter nada a ver com o assunto atual. Devemos esperar encontrar
aí alguma outra coisa, e isso lhe ocorrerá sob a pressão de minha
mão.”
Pois podemos fazer a um paciente histérico as mesmas exigências de
ligação lógica e motivação suficiente na cadeia de idéias, mesmo que
se estenda até o inconsciente, que faríamos a um individuo normal.
Não está dentro das possibilidades de uma neurose relaxar essas
relações. Se nos pacientes neuróticos, e particularmente nos
histéricos, as cadeias de idéias produzem uma impressão diferente, se
neles a relativa intensidade das diferentes idéias se afigura inexplicável
apenas por determinantes psicológicos,já descobrimos a razão disso e
podemos atribuí-la à existência de motivos inconscientes ocultos.
Podemos assim suspeitar da presença de tais motivos secretos
sempre que esse tipo de interrupção numa cadeia de idéias se torna
evidente, ou quando a força atribuída pelo paciente a seus motivos vai
muito além do normal.
Ao executarmos esse trabalho, é claro, devemos manter-nos isentos
do preconceito teórico de estarmos lidando com os cérebros anormais
de “dégénérés” e “déséquilibrés”, que estão livres, graças a um
estigma, para lançar por terra as leis psicológicas comuns que regem a
ligação das idéias, e nos quais uma única idéia fortuita pode tornar-se
exageradamente intensa sem nenhum motivo, enquanto outra pode
permanecer indestrutível sem nenhuma razão psicológica. A
experiência demonstra que o contrário se aplica à histeria. Uma vez
que descubramos os motivos ocultos, que muitas vezes permaneceram
inconscientes, e os levemos em conta, nada de enigmático ou contrário
às normas persiste nas ligações de pensamento histéricos, não mais
do que nas normais.
Dessa forma, portanto, detectando lacunas na primeira descrição do
paciente, lacunas muitas vezes encobertas por “falsas ligações” |ver
mais adiante, ver em [1]-[2]|, apoderamo-nos de um pedaço do fio
lógico na periferia e, a partir desse ponto, desobstruímos mais um
caminho pela técnica da pressão.
Ao fazê-lo, é muito raro conseguirmos abrir caminho diretamente para
o interior através de um único fio. Em geral, ele se rompe a meio
caminho: a pressão falha e não produz nenhum resultado, ou então
produz um resultado que não pode ser esclarecido ou levado adiante,
apesar de todos os esforços. Logo aprendemos, quando isso acontece,
a evitar os erros em que poderíamos incorrer. A expressão facial do
paciente deverá determinar se chegamos mesmo ao fim, ou se se trata
de uma situação que não exige nenhuma elucidação psíquica, ou se o
que levou o trabalho a uma paralisação é uma resistência excessiva.
Neste último caso, se não pudermos superar de imediato a resistência,
poderemos presumir que seguimos o fio até uma camada que, por
enquanto, ainda é impenetrável. Abandonamo-lo e tomamos outro fio,
que talvez possamos seguir até a mesma distância. Quando tivermos
atingido essa camada percorrendo todos os fios e tivermos descoberto
os emaranhados em virtude dos quais os fios separados não puderam
ser isoladamente seguidos até mais longe, poderemos pensar em
atacar de novo a resistência diante de nós.
É fácil imaginar até que ponto um trabalho dessa natureza pode
tornar-se complexo. Forçamos nossa entrada nas camadas internas,
superando resistências todo o tempo; travamos conhecimento com os
temas acumulados numa dessas camadas e com os fios que a
atravessam, e experimentamos até que ponto podemos avançar com
nossos meios atuais e os conhecimentos que adqurimos; obtemos
informações preliminares sobre o conteúdo das camadas seguintes por
meio da técnica da pressão; abandonamos fios e os
retomamos;seguimo-los até os pontos nodais; constantemente
voltamos atrás; e toda vez que perseguimos um acervo de lembranças,
somos conduzidos a algum desvio que, não obstante, termina por
confluir para o fio inicial. Por esse método, chegamos afinal a um ponto
em que podemos parar de trabalhar em camadas e podemos penetrar,
por uma trilha principal, diretamente no núcleo da organização
patogênica. Com isso a luta está vencida, embora ainda não esteja
terminada. Devemos retroceder e retomar outros fios e esgotar o
material. Mas agora o paciente nos ajuda vigorosamente. A maior parte
de sua resistência foi quebrada.
Nessas etapas finais do trabalho convém que possamos adivinhar o
modo como as coisas se interligam e dizê-lo ao paciente antes que o
desvendemos. Se tivermos adivinhado certo, o curso da análise será
acelerado; mas até mesmo uma hipótese errada nos ajuda a
prosseguir, compelindo o paciente a tomar partido e induzindo-o a
negativas enérgicas que traem seu indubitável conhecimento.
Disso aprendemos com admiração que não estamos em condições de
impor nada ao paciente sobre as coisas que ele aparentemente ignora,
nem de influenciar os produtos da análise pela provocação de
expectativas. Nem uma só vez consegui, ao prever algo, alterar ou
falsificar a reprodução das lembranças ou a ligação dos
acontecimentos, pois se o tivesse feito, isso inevitavelmente teria sido
traído no final por alguma contradição no material. Quando algo
mostrava ser tal como eu o previra, nunca se deixava de comprovar
por um grande número de reminiscências indiscutíveis que eu não
fizera nada além de adivinhar certo. Não precisamos ter medo,
portanto, de dizer ao paciente qual pensamos que será sua próxima
associação de idéias; isso não causará nenhum dano.
Outra observação, constantemente repetida, relaciona-se com as
reproduções espontâneas do paciente. Pode-se afirmar que toda
reminiscência isolada que emerge durante uma dessas análises tem
importância. A rigor, a intromissão de imagens mnêmicas irrelevantes
(que estejam associadas por acaso, de uma forma ou de outra, às
imagens importantes) jamais ocorre. Uma exceção que não contradiz
essa regra pode ser postulada quanto às lembranças que, apesar de
destituídas de importância em si mesmas, são indispensáveis como
pontes, no sentido de que a associação entre duas lembranças
importantes só pode ser feita através delas.
O prazo durante o qual uma lembrança permanece no estreito
desfiladeiro diante da consciência do paciente está, como já foi
explicado | ver em [1]|, em proporção direta com sua importância. Uma
imagem que se recusa a desaparecer é uma imagem que ainda exige
consideração, um pensamentoque não pode ser afastado é um
pensamento que precisa ser mais explorado. Além disso, uma
lembrança nunca retorna uma segunda vez depois de ter sido
trabalhada; a imagem que foi “eliminada pela fala” não volta a ser vista.
Quando, não obstante, isso de fato acontece, podemos presumir com
segurança que, na segunda vez, a imagem será acompanhada de um
novo grupo de pensamentos, ou a idéia terá novas implicações. Em
outras palavras, estes não foram trabalhados por completo. Além
disso, é freqüente uma imagem ou um pensamento reaparecerem com
diferentes graus de intensidade, primeiro como um indício e depois
com total clareza. Isso, entretanto, não contradiz o que acabo de
afirmar.
Entre as tarefas apresentadas pela análise encontra-se a de eliminar
os sintomas passíveis de aumentar de intensidade ou retornar: dores,
sintomas (como vômitos) causados por estímulos, sensações ou
contraturas. Enquanto trabalhamos num desses sintomas
defrontamo-nos com o fenômeno interessante e não indesejável da
“participação na conversa”. O sintoma problemático reaparece, ou
aparece com maior intensidade, tão logo alcançamos a região da
organização patogênica que contém a etiologia do sintoma, e daí por
diante ele acompanha o trabalho com oscilações características, que
são instrutivas para o médico. A intensidade do sintoma (tomemos
como exemplo o desejo de vomitar) aumenta quanto mais
profundamente penetramos numa das lembranças patogênicas
pertinentes; atinge seu clímax pouco antes de o paciente enunciar
essa lembrança; e, depois que ele termina de fazê-lo, diminui de súbito
ou até desaparece por completo durante algum tempo. Quando, graças
à resistência, o paciente demora muito tempo para dizer algo, a tensão
da sensação — do desejo de vomitar — torna-se insuportável e, se
não conseguirmos forçá-lo a falar, ele começará mesmo a vomitar.
Assim obtemos uma impressão plástica do fato de que o “vomitar”
toma o lugar de um ato psíquico (nesse exemplo, o ato de proferir),
exatamente como sustenta a teoria conversiva da histeria.
Essa oscilação de intensidade do sintoma histérico é repetida toda vez
que nos aproximamos de uma nova lembrança que é patogênica em
relação a ele. O sintoma, poderíamos dizer, está nos planos o tempo
todo. Quando somos obrigados a abandonar temporariamente o fio a
que está ligado, também esse sintoma recua para a obscuridade, para
tornar a emergir num período posterior da análise. Isso continua até
que a elaboração do material patogênico tenha eliminado o sintoma de
uma vez por todas.
Em tudo isso, a rigor, o sintoma histérico de modo algum se comporta
de modo diferente da imagem mnêmica ou da idéia reproduzida que
invocamos sob a pressão da mão. Em ambos os casos encontramos a
mesma recorrência obsessivamente pertinaz na lembrança do
paciente, que tem de ser eliminada. A diferença está apenas no
surgimento aparentemente espontâneo dos sintomas histéricos, ao
passo que, como nos recordamos muito bem, nós mesmos
provocamos as cenas e idéias. De fato, contudo, há uma seqüência
ininterrupta que se estende desde os resíduos mnêmicos não
modificados das experiências e atos de pensamento afetivos até os
sintomas histéricos, que são símbolos mnêmicos dessas experiências
e pensamentos.
O fenômeno dos sintomas histéricos que participam da conversa
durante a análise envolve um inconveniente de ordem prática, com o
qual devemos poder reconciliar o paciente. É inteiramente impossível
efetuar a análise de um sintoma de uma só vez, ou distribuir os
intervalos de nosso trabalho de modo a se ajustarem com precisão às
pausas no processo de lidar com o sintoma. Ao contrário, algumas
interrupções que são prescritas de forma imperativa por circunstâncias
incidentais no tratamento, tais como o adiantado da hora, muitas vezes
ocorrem nos pontos mais inconvenientes, exatamente quando nos
podemos estar aproximando de uma decisão ou quando surge um
novo tópico. Qualquer leitor de jornal tem a mesma desvantagem ao ler
o capítulo diário de sua história seriada, quando, logo após a fala
decisiva da heroína, ou depois de o tiro haver ecoado, ele se defronta
com as palavras: “Continua no próximo número.” Em nosso próprio
caso, o tópico que foi levantado, mas não abordado, o sintoma que
temporariamente se intensificou e ainda não foi explicado, persiste na
mente do paciente e talvez possa perturbá-lo mais do que fazia até
então. Ele terá apenas que lidar com isso da melhor forma possível,
pois não existe outra maneira de organizar as coisas. Há pacientes
que, no curso de uma análise, simplesmente não conseguem livrar-se
de um tópico que tenha sido levantado e ficam obcecados por ele no
intervalo entre duas sessões; visto que, por si mesmos, não podem
tomar nenhuma providência no sentido de se livrarem dele, sofrem
mais, a princípio, do que antes do tratamento. Mas mesmo tais
pacientes acabam aprendendo a esperar pelo médico e a deslocar
todo o interesse que sentem por se livrarem do material patogênico
para os horários das sessões, após as quais começam a se sentir mais
livres nos intervalos.
O estado geral dos pacientes durante essas análises também merece
atenção. Por algum tempo ele não é influenciado pelo tratamento e
continua a ser uma expressão dos fatores que atuavam antes. Mas
depois surge um momento em que o tratamento se apodera do
paciente, capta seu interesse. Daí por diante, seu estado geral se torna
cada vez mais dependente do desenvolvimento do trabalho. Sempre
que uma coisa nova é elucidada ou se atinge um estágio importante do
processo da análise, também o paciente se sente aliviado e desfruta
de um antegozo, por assim dizer, da sua libertação iminente. Todas as
vezes que o trabalho se paralisa e há uma ameaça de confusão,
aumenta o fardo psíquico que oprime o paciente, e seu sentimento de
infelicidade e sua incapacidade para o trabalho se tornam mais
intensos. Mas nenhuma dessas coisas dura mais do que um curto
período, pois a análise continua, sem se vangloriar pelo fato de num
dado momento o paciente sentir-se bem, e prosseguindo
independentemente dos períodos de tristeza do paciente. Ficamos
satisfeitos, em geral, quando substituímos as oscilações espontâneas
de seu estado por oscilações que nós mesmos provocamos e que
compreendemos, da mesma forma que ficamos satisfeitos ao ver a
sucessão espontânea dos sintomas substituída por uma ordem do dia
que corresponde ao estado da análise.
De início, o trabalho torna-se mais obscuro e difícil, em geral, quanto
mais profundamente penetramos na estrutura psíquica estratificada
que descrevi atrás. Porém, uma vez que tenhamos, pelo trabalho,
chegado até o núcleo, a luz aparece, e não precisamos temer que o
estado geral do paciente fique sujeito a nenhum período grave de
depressão. Entretanto, a recompensa de nossos esforços — a
cessação dos sintomas — só pode ser esperada depois de termos
efetuado a análise completa de cada sintoma individual; e a rigor, já
que os sintomas individuais são interligados em numerosos pontos
nodais, nem sequer devemos ser estimulados durante o trabalho pelos
êxitos parciais. Graças às abundantes ligações causais, toda
representação patogênica que ainda não tenha sido eliminada atua
como uma motivação para a totalidade dos produtos da neurose, e é
apenas com a última palavra da análise que todo o quadro clínico
desaparece, tal como ocorre com as lembranças reproduzidas de
forma individual.
Quando uma lembrança patogênica ou uma ligação patogênica antes
retirada da consciência do ego é revelada pelo trabalho da análise e
introduzida no ego, verificamos que a personalidade psíquica assim
enriquecida tem várias maneiras de expressar-se quanto ao que
adquiriu. É particularmente freqüente, depois de havermos imposto
com esforço algum conhecimento aopaciente, ouvi-lo declarar: “Eu
sempre soube disso, poderia ter-lhe dito antes.” Os que são dotados
de certo grau de discernimento reconhecem, mais tarde, que essa é
uma forma de enganarem a si mesmos e se culpam por serem
ingratos. Afora isso, a atitude adotada pelo ego quanto a sua nova
aquisição costuma depender da camada de análise da qual se origina
essa aquisição. As coisas que pertencem às camadas externas são
reconhecidas sem dificuldades; haviam, de fato, permanecido sempre
em poder do ego, e a única novidade para o ego é a ligação delas com
as camadas mais profundas do material patológico. As coisas que são
trazidas à luz dessas camadas mais profundas também são
reconhecidas e admitidas, porém muitas vezes só depois de
consideráveis hesitações e dúvidas. As imagens mnêmicas visuais
são, naturalmente, mais difíceis de ser renegadas do que os traços
mnêmicos de simples cadeias de pensamentos. Não é raro o paciente
começar por dizer: “É possível que eu tenha pensado nisso, mas não
consigo me lembrar.” E não é senão depois de ter-se familiarizado com
a hipótese há algum tempo que ele vem a reconhecê-la também; ele se
recorda — e confirma também esse fato por vínculos secundários —
de que realmente, certa vez, a idéia lhe ocorreu. Durante a análise,
porém, adoto como norma reservar minha avaliação da reminiscência
que surge independente do reconhecimento da mesma pelo paciente.
Jamais me cansei de repetir que somos forçados a aceitar tudo o que
nossa técnica traz à luz. Se houver algo nela que não seja autêntico ou
correto, mas tarde o contexto nos dirá para rejeitá-lo. Mas, posso dizer
de passagem que raramente tive ocasião de renegar, mais tarde, uma
reminiscência aceita de modo provisório. Tudo o que emergiu, a
despeito da mais enganosa aparência de ser contradição gritante,
acabou por revelar-se correto.
As representações que se originam das camadas mais profundas e
que formam o núcleo da organização patogênica são também aquelas
que são reconhecidas com extrema dificuldade como lembranças pelo
paciente. Mesmo quando tudo termina e os pacientes são dominados
pela força da lógica e convencidos pelo efeito terapêutico que
acompanha o surgimento precisamente dessas representações —
quando, digo eu, os próprios pacientes aceitam o fato de terem
pensado isso ou aquilo, muitas vezes acrescentam: “Mas eu não
consigo me lembrar de ter pensado isso.” É fácil chegar a um acordo
com eles dizendo-lhes que os pensamentos estavam inconscientes.
Mas como enquadrar esse estado de coisas em nossas próprias
concepções psicológicas? Devemos desprezar essa negação de
reconhecimento por parte dos pacientes, quando, agora que o trabalho
terminou, não existe mais nenhum motivo para que eles ajam dessa
forma? Ou devemos supor queestamos de fato lidando com
pensamentos que nunca ocorreram, que meramente tiveram uma
possibilidade de existir, de modo que o tratamento consistiria na
realização de um ato psíquico que não se verificou na época? É claro
que é impossível dizer qualquer coisa a esse respeito — isto é, sobre o
estado em que se encontrava o material patogênico antes da análise
— até que tenhamos chegado a uma elucidação completa de nossas
concepções psicológicas básicas, em especial quanto à natureza da
consciência. Resta, penso eu, como elemento digno de séria
consideração, o fato de que em nossas análises podemos seguir uma
cadeia de pensamentos desde o consciente até o inconsciente (isto é,
até algo que de modo algum é reconhecido como uma lembrança), de
que podemos mais uma vez acompanhá-la por certa distância através
da consciência, e de que podemos vê-la terminar de novo no
inconsciente, sem que essa alternância de “revelação psíquica” cause
qualquer modificação na própria cadeia de pensamentos, em sua
coerência lógica e na interligação entre suas várias partes. Uma vez
que essa cadeia de pensamentos se colocasse diante de mim como
um todo, eu não seria capaz de adivinhar qual de suas partes seria
reconhecida pelo paciente como lembrança e qual não o seria. Vejo
apenas, por assim dizer, os cumes da cadeia de pensamentos
mergulhando no inconsciente — o inverso do que foi afirmado quanto a
nossos processos psíquicos normais.
Por fim, tenho de examinar mais outro tópico, que desempenha um
papel indesejavelmente grande na condução de análises catárticas
como essas. Já admiti | ver em [1]| a possibilidade de a técnica de
pressão falhar, de não suscitar nenhuma reminiscência, apesar de toda
a garantia e insistência. Quando isso acontece, disse eu, há duas
possibilidades: ou, no ponto que estamos investigando, não há mesmo
nada mais a ser encontrado — e isso é algo que podemos reconhecer
pela completa serenidade da expressão facial do paciente —, ou
esbarramos numa resistência que só poderá ser superada mais tarde,
estamos diante de uma nova camada em que ainda não podemos
penetrar — e isso, mais uma vez, é algo que podemos inferir da
expressão facial do paciente, que se acha tensa e dá mostras de
esforço mental | ver em [1]|. Mas existe ainda uma terceira
possibilidade que da mesma forma testemunha a presença de
obstáculo, porém um obstáculo externo, e não inerente ao material.
Isso acontece quando a relação entre o paciente e o médico é
perturbada e constitui o pior obstáculo com que podemos deparar. No
entanto, podemos esperar encontrá-lo em qualquer análise
relativamente séria.
Já indiquei | ver em [1]-[2]| o importante papel desempenhado pela
figurado médico na criação de motivos para derrotar a força psíquica
da resistência. Não são poucos os casos, especialmente com as
mulheres e quando se trata de elucidar cadeias de pensamento
eróticas, em que a cooperação do paciente se torna um sacrifício
pessoal, que deve ser compensado por algum substituto do amor. O
empenho do médico e sua cordialidade têm que bastar na condição
desse substituto. Ora, quando essa relação entre a paciente e o
médico é perturbada, a cooperação da primeira também falha; quando
o médico tenta investigar a representação patogênica seguinte, o
paciente é retido pela interposição da consciência das queixas que
nele se acumulam contra o médico. Em minha experiência, esse
obstáculo surge em três casos principais.
(1) Quando há uma desavença pessoal — quando, por exemplo, a
paciente acha que foi negligenciada, muito pouco apreciada ou
insultada, ou quando ouve comentários desfavoráveis sobre o médico
ou sobre o método de tratamento. Esse é o caso menos grave. O
obstáculo pode ser superado com facilidade por meio da discussão e
da explicação, muito embora a sensibilidade e a desconfiança dos
pacientes histéricos possam às vezes atingir dimensões
surpreendentes.
(2) Quando a paciente é tomada pelo pavor de ficar por demais
acostumada com o médico em termos pessoais, de perder sua
independência em relação a ele, e até, quem sabe, de tornar-se
sexualmente dependente dele. Esse é um caso mais importante, pois
seus determinantes são menos individuais. A causa desse obstáculo
reside na especial solicitude que é inerente ao tratamento. A paciente
tem então um novo motivo para a resistência, que se manifesta não só
em relação a alguma reminiscência específica, mas a qualquer
tentativa de tratamento. É muito comum a paciente se queixar de dor
de cabeça ao iniciarmos a técnica da pressão, pois em geral seu novo
motivo para a resistência permanece inconsciente, expressando-se por
meio de um novo sintoma histérico. A dor de cabeça indica que ela não
gosta de se deixar influenciar.
(3) Quando a paciente se assusta ao verificar que está transferindo
para a figura do médico as representações aflitivas que emergem do
conteúdo da análise. Essa é uma ocorrência freqüente e, a rigor, usual
em algumas análises. A transferência para o médico se dá por meio de
uma falsa ligação. Preciso fornecer um exemplo disso. Numa de
minhas pacientes, a origem de um sintoma histérico específico estava
num desejo, que ela tivera muitos anos antes e relegara de imediato ao
inconsciente, de que o homem com quem conversava na ocasião
ousasse tomar a iniciativa de lhe dar um beijo. Numa ocasião, ao fim
de uma sessão, surgiu nela um desejo semelhante a meu respeito. Ela
ficou horrorizada com isso, passou uma noite insone e, na sessão
seguinte, embora não se recusasse a ser tratada, ficou inteiramente
inutilizada para o trabalho. Depois de eu haver descoberto e removido
o obstáculo, o trabalho prosseguiu e, vejam só!, o desejo que tanto
havia assustado a paciente surgiu como sua próxima lembrança
patogênica, aquela que era exigida pelo contexto lógico imediato. O
que aconteceu, portanto, foi isto: o conteúdo do desejo apareceu,
antes de mais nada, na consciência da paciente, sem nenhuma
lembrança das circunstâncias contingentes que o teriam atribuído a
uma época passada. O desejo assim presente foi então, graças à
compulsão a associar que era dominante na consciência da paciente,
ligado a minha pessoa, na qual a paciente estava legitimamente
interessada; e como resultado dessa mésalliance — que descrevo
como uma “falsa ligação” — provocou-se o mesmo afeto que forçara a
paciente, muito tempo antes, a repudiar esse desejo proibido. Desde
que descobri isso, tenho podido, todas as vezes que sou pessoalmente
envolvido de modo semelhante, presumir que uma transferência e uma
falsa ligação tornaram a ocorrer. Curiosamente, a paciente volta a ser
enganada todas as vezes que isso se repete.
É impossível concluir qualquer análise a menos que saibamos como
enfrentar a resistência que surge por essas três maneiras. Mas
podemos encontrar um meio de fazê-lo se resolvermos que esse novo
sintoma, produzido com base no modelo antigo, deve ser tratado da
mesma forma que os sintomas antigos. Nossa primeira tarefa é tornar
o “obstáculo” consciente para o paciente. Numa de minhas pacientes,
por exemplo, de repente a técnica da pressão falhou. Eu tinha razões
para supor que havia uma representação inconsciente do tipo antes
mencionado no item (2), e tentei primeiro lidar com essa representação
pegando a paciente de surpresa. Disse-lhe que deveria ter surgido
algum obstáculo à continuação do tratamento, mas que a técnica da
pressão tinha pelo menos o poder de mostrar-lhe qual era esse
obstáculo; pressionei sua cabeça e ela disse, admirada: “Estou vendo
o senhorsentado aqui na cadeira, mas isso é absurdo. Que pode
significar?” Pude então dar-lhe os esclarecimentos. Numa outra
paciente, o “obstáculo” costumava não aparecer diretamente como
resultado de minha pressão, mas eu sempre conseguia descobri-lo
levando a paciente de volta ao momento em que ele se havia
originado. A técnica da pressão jamais deixou de nos trazer de volta
esse momento. Quando o obstáculo era descoberto e demonstrado, a
primeira dificuldade era removida do caminho. Mas persistia outra
maior, que estava em induzir a paciente a produzir informações que
dissessem respeito a relações aparentemente pessoais e onde a
terceira pessoa coincidisse com a figura do médico.
A princípio, fiquei muito aborrecido com esse aumento de meu trabalho
psicológico, até que percebi que o processo inteiro obedecia a uma lei;
e então notei também que esse tipo de transferência não trazia
nenhum aumento significativo para o que eu tinha de fazer. Para a
paciente, o trabalho continuava a ser o mesmo: ela precisava superar o
afeto aflitivo despertado por ter sido capaz de alimentar aquele desejo
sequer por um momento; e parecia não fazer nenhuma diferença para
o êxito do tratamento que ela fizesse desse repúdio psíquico o tema de
seu trabalho no contexto histórico, ou na recente situação relacionada
comigo. Aos poucos, também os pacientes aprenderam a compreender
que nessas transferências para a figura do médico tratava-se de uma
compulsão e de uma ilusão que se dissipavam com a conclusão da
análise. Creio, porém, que se lhes tivesse deixado de esclarecer a
natureza do “obstáculo”, eu simplesmente lhes teria dado um novo
sintoma histérico — embora, é verdade, mais brando — em troca de
outro que fora espontaneamente gerado.
Já forneci indicações suficientes, penso eu, da maneira pela qual
essas análises foram efetuadas e das observações que fiz no decorrer
das mesmas. O que disse talvez faça com que algumas coisas
pareçam mais complicadas do que são. Muitos problemas se
solucionam quando nos descobrimos empenhados nesse trabalho. Não
enumerei as dificuldades do trabalho para criar a impressão de que,
em vista das exigências que a análise catártica impõe tanto ao médico
como ao paciente, só vale a pena empreendê-la em casos
extremamente raros. Permito que minhas atividades médicas sejam
regidas pela suposição contrária, embora eu não possa, é verdade,
formular as indicações mais definidas para a aplicação do método
terapêutico descrito nestas páginas sem entrar num exame do ponto
mais importante e abrangente do tratamento das neuroses em geral.
Em minha própria mente, tenho muitas vezes comparado a
psicoterapia catártica com a intervenção cirúrgica. Tenho descrito
meus tratamentos como operações psicoterapêuticas e tenho exposto
sua analogia com a abertura de uma cavidade cheia de pus, a
raspagem de um região cariada, etc. Uma analogia como essa
justifica-se menos pela remoção do que é patológico do que pela
criação de condições que tenham maior probabilidade de conduzir o
avanço do processo no sentido de recuperação.
Quando prometo a meus pacientes ajuda ou melhora por meio de um
tratamento catártico, muitas vezes me defronto com a seguinte
objeção: “Ora, o senhor mesmo me diz que minha doença
provavelmente está relacionada com as circunstâncias e os
acontecimentos de minha vida. O senhor, de qualquer maneira, não
pode alterá-los. Como se propõe ajudar-me, então?” E tem-me sido
possível dar esta resposta: “Sem dúvida o destino acharia mais fácil do
que eu aliviá-lo de sua doença. Mas você poderá convencer-se de que
haverá muito a ganhar se conseguirmos transformar seu sofrimento
histérico numa infelicidade comum. Com uma vida mental restituída à
saúde, você estará mais bem armado contra essa infelicidade.”
APÊNDICE A: A CRONOLOGIA DO CASO DA SRA. EMMY VON N.
Existem sérias incoerências nas datas do caso clínico da Sra. Emmy
von N. apresentadas em todas as edições alemãs da obra e
reproduzidas na presente tradução. O início do primeiro período de
tratamento da Sra. Emmy por Freud é atribuído duplamente a maio de
1889 em [1]. Esse período durou cerca de sete semanas (ver em [1]).
Seu segundo período de tratamento começou exatamente um ano
após o primeiro, isto é, em maio de 1890. Tal período durou umas oito
semanas (ver em [1]). Freud visitou a Sra. Emmy em sua propriedade
do Báltico na primavera do ano seguinte (ver em [1]), isto é, 1891. A
primeira contradição dessa cronologia aparece em [1], onde a data
dessa visita é indicada como maio de 1890. Esse novo sistema de
datação é mantido em pontos posteriores. Em [1] Freud atribui um
sintoma surgido no segundo período de tratamento ao ano de 1899, e
por duas vezes atribui sintomas que surgiram no primeiro período de
tratamento ao ano de 1888. No entanto, recorre a seu sistema original
em [1], onde indica a data de sua visita à propriedade do Báltico como
1891.
Há uma evidência em favor da primeira cronologia — isto é, a que
atribui o primeiro tratamento da Sra. Emmy por Freud ao ano de 1888.
Em [1] ele observa que foi enquanto estudava as abulias dessa
paciente que começou pela primeira vez a ter sérias dúvidas sobre a
validade da asserção de Bernheim de que “a sugestão é tudo”.
Externou essas mesmas dúvidas energicamente em seu prefácio a sua
tradução do livro de Bernheim sobre a sugestão (Freud, 1888-9), e
somos informados, numa carta a Fliess de 29 de agosto de 1888
(1950a, Carta 5), de que ele já terminara o prefácio naquela data.
Também nessa carta escreve ele: “Não partilho das opiniões de
Bernheim, que me parecem unilaterais.” Se as dúvidas de Freud foram
indicadas pela primeira vez pelo tratamento da Sra. Emmy, esse
tratamento deve ter tido início, portanto, em maio de 1888, e não de
1889.
A propósito, essa correção esclareceria uma incoerência no relato
aceito de algumas das atividades de Freud após seu retorno a Paris,
na primavera de 1886. Em seu Estudo Autobiográfico (1925d, Capítulo
II) ele observa que, ao utilizar o hipnotismo, empregou-o “desde o
começo” não só para dar sugestões terapêuticas, mas também com a
finalidade de rastrear a história do sintoma até suas origens — desde o
começo, em outras palavras, ele usouo método catártico de Breuer.
Sabemos por uma carta a Fliess, de 28 de dezembro de 1887 (1950a,
Carta 2), que foi em fins daquele ano que ele começou a dedicar-se ao
hipnotismo; já em [1] e [2] do presente volume, ele nos diz que o caso
da Sra. Emmy foi o primeiro em que tentou manejar o procedimento
técnico de Breuer. Se, portanto, esse caso data de maio de 1889,
houve um intervalo de no mínimo dezesseis meses entre os dois fatos,
e, como observa o Dr. Ernest Jones (no Vol. I de sua biografia, 1953,
pág. 63, edição inglesa), a memória de Freud era pouco precisa
quando ele empregava a expressão “desde o começo”. No entanto, se
a data do tratamento da Sra. Emmy fosse antecipada para maio de
1888, essa lacuna ficaria reduzida a apenas uns quatro ou cinco
meses.
A questão se encerraria caso fosse possível demonstrar que Freud
esteve fora de Viena por um período longo o bastante para cobrir uma
visita à Livônia (ou qualquer país que este possa ter representado)
durante o mês de maio de 1890 ou de 1891. Mas, infelizmente, as
cartas que ainda existem daquele período não oferecem qualquer
prova de tal ausência.
A questão torna-se ainda mais obscura em virtude de outra
incoerência. Num nota de rodapé em [1], Freud comenta sobre a
enorme eficácia de algumas de suas sugestões feitas durante o
primeiro período de tratamento (a rigor, em 11 de maio de 1888 ou
1889). A amnésia então produzida por ele, em suas palavras, ainda
estava atuante “dezoito meses depois”. Isso por certo se refere à
época de sua visita à propriedade campestre da Sra. Emmy, pois, em
seu relato dessa visita, ele volta a mencionar tal episódio. Ali, contudo,
fala das sugestões originais como se fossem feitas “dois anos antes”.
Se a visita à propriedade se deu em maio de 1890 ou de 1891, os “dois
anos” devem estar certos e os “dezoito meses” devem ter sido um
lapso.
Mas essas contradições repetidas sugerem outra possibilidade. Há
motivos para crer que Freud alterou o local da residência da Sra.
Emmy. Não terá ele, como uma precaução extra para não trair a
identidade de sua paciente, alterado também a época do tratamento,
mas falhado em manter essas alterações coerentemente até o fim?
Toda essa questão permanece em aberto.
APÊNDICE B: LISTA DE OBRAS DE FREUD QUE TRATAM
PRINCIPALMENTE DA HISTERIA DE CONVERSÃO
|Na lista que se segue, a data no início de cada título é a do ano em
que a obra em questão provavelmente foi escrita. A data no final é a da
publicação; a consulta a essa data na Bibliografia e Índice Remissivo
de Autores fornecerá maiores detalhes sobre a obra em questão. Os
títulos entre colchetes foram publicados postumamente.|
|1886
“Observação de um Caso Grave de Hemianestesia num
Homem Histérico.” (1886d)|
1888
“Histeria”, em Handwoerterbuch, de Villaret. (1888b)
1892
“Carta a Josef Breuer.” (1941a)
|1892
“Sobre a Teoria dos Ataques Histéricos.” (Com Breuer.)
(1940d)|
|1892
“Rascunho III”. (1941b)|
1892
“Um Caso de Cura pelo Hipnotismo.” (1892-93)
1892
“Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos
Histéricos: Comunicação Preliminar.” (Com Breuer.)
(1893a)
1893
“Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos
Histéricos: Uma Conferência.” (1893h)
1893
“Considerações para um Estudo Comparativo das
Paralisias Motoras Histéricas e Orgânicas.” (1893c)
1894
“As Neuropsicoses de Defesa”, Seção I. (1894a)
1895
Estudos sobre a Histeria. (Com Breuer.) (1895d).
|1895
“Projeto para uma Psicologia Científica”, Parte II. (1950a)|
|1896
“Rascunho K”, última Seção, (1950a)|
1896
“Observações Adicionais sobre as Neuropsicoses de
Defesa”. (1896b)
1896
“A Etiologia da Histeria.” (1896c)
1901-5
“Fragmento da Análise de um Caso de Histeria.” (1905e)
1908
“As Fantasias Histéricas e sua Relação com a
Bissexualidade.” (1908a)
1909
“Algumas Observações Gerais sobre os Ataques
Histéricos.” (1909a)
1909
Cinco Lições de Psicanálise, Lições I e II. (1910a)
1910
“A Concepção Psicanalítica do Distúrbio Psicogênico da
Visão.” (1910i)
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Histeria vol. 2