UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Faculdade de Veterinária
Departamento de Patologia Clínica Veterinária
Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121)
http://www.ufrgs.br/favet/bioquimica
Relatório de Caso Clínico
IDENTIFICAÇÃO
Caso: 2001/1/05 Procedência: Estância Capané
No da ficha original:
Espécie: bovina
Raça: Shorthorn
Idade: 8 anos
Sexo: fêmea
Peso: 380 kg
Alunos(as): Dalton Greco, Dimas Rocha, Renata Ferlini e Willian Smiderle
Ano/semestre: 2001/1
Residentes/Plantonistas:
Médico(a) Veterinário(a) responsável: Maximiliano Fontoura
ANAMNESE
O proprietário relatou que após o parto a vaca apresentou uma grande perda da condição corporal,
reduzindo de 3,5 para 2,0 (escala 1-5) e que nos últimos dias estava apática.
A vaca era de dupla aptidão (corte/leite), mantida em sistema de criação extensiva (campo nativo), na
região central do RS, sem suplementação mineral. Estava na quarta lactação e no presente momento estava
no 30o dia de puerpério.
O contole de verminoses era realizado duas vezes ao ano sendo que a última dose ocorreu em abril.
Vacinas utilizadas pela propriedade: brucelose, clostridioses, carbúnculo hemático.
EXAME CLÍNICO
Porte grande, condição corporal 2,0 , delgada, com perda de peso progressiva. Extrema apatia, desidratação
leve (olhos no fundo), mucosas rosa-claro. Apresentava aumento bilateral da mandíbula, fezes pastosas,
temperatura de 38,8oC, respiração ofegante (estresse), freqüência cardíaca e movimentos ruminais não
aferidos, suspeita de desmineralização crônica, com agravamento no pós-parto.
EXAMES COMPLEMENTARES
Determinação de magnésio no soro: 2,5 mg/dl (normal 1,8-2,3 mg/dl)
Determinação de beta-hidroxibutirato no soro: 2 mmol/l (normal: 1 mmol/l)
Fita reagente para glicose e corpos cetônicos (Gluketur-test): positivo para corpos cetônicos (++) na urina.
URINÁLISE
Método de coleta: micção natural Obs.:
Exame físico
cor
consistência
odor
aspecto
amarelo claro
fluida
suis generis
límpido
Exame químico
pH (7,4-8,4)
corpos cetônicos glicose pigmentos biliares proteína
6,5
++
+
Sedimento urinário (no médio de elementos por campo de 400 x)
Células epiteliais:
Tipo:
Cilindros:
Tipo:
Outros:
Tipo:
densidade específica
1,029
hemoglobina
-
(1,025-1,045)
sangue
-
nitritos
+
Hemácias:
Leucócitos:
Bacteriúria: ausente
n.d.: não determinado
BIOQUÍMICA SANGÜÍNEA
Tipo de amostra: soro
Proteínas totais: 75,0 g/L (66-75)
Albumina: 31,7 g/L (27-38)
Globulinas: 43,0 g/L (30-52)
BT: 1,50 mg/dL (0,01-0,5)
BL: 0,69 mg/dL (0-0,03)
BC: 0,81 mg/dL (0,04-0,44)
Anticoagulante:
Glicose: 65 mg/dL (45-75)
Colesterol total: 162 mg/dL (80-120)
Uréia: 34 mg/dL (23-58)
Creatinina: 1,9 mg/dL (1,0-2,0)
Cálcio: 9,0 mg/dL (8,0-12,4)
Fósforo: 2,5 mg/dL (3,4-7,1)
BT: bilirrubina total
Hemólise da amostra: moderada
ALP:
U/L (0-196)
AST: 6 U/L (0-132)
CPK:
U/L (0-94)
:
(
)
:
(
)
:
(
)
BL: bilirrubina livre (indireta)
BC: bilirrubina conjugada (direta)
Caso clínico 2001/1/05
HEMOGRAMA
Leucócitos
Quantidade: 4.280/µL (4.000-12.000)
Tipo
Quantidade/µL
Mielócitos
0 (0)
Metamielócitos
0 (0)
Bastonados
43 (0-120)
Segmentados
668 (600-4.000)
Basófilos
0 (0-200)
Eosinófilos
129 (0-2.400)
Monócitos
301 (25-840)
Linfócitos
3139 (2.500-7.500)
Plasmócitos
0 (0)
Morfologia:
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%
0 (0)
0 (0)
1 (0-2)
16 (15-45)
0 (0-2)
3 (0-20)
7 (2-7)
73 (45-75)
0 (0)
Eritrócitos
Quantidade: 7,20 milhões/µL (5-10)
Hematócrito: 36,0 % (24-46)
Hemoglobina: 17,0 g/dL (8-15)
VCM (Vol. Corpuscular Médio): 50 fL (40-60)
CHCM (Conc. Hb Corp. Média): 47,0 % (30-36)
Morfologia:
Plaquetas
Quantidade:
Observações:
/µL
(100.000-800.000)
TRATAMENTO E EVOLUÇÃO
Tratamento:
• 1 L de glicose 50% EV diluída em solução fisiológica (2 L);
• propilenoglicol (oral): 300 mL diluídos em 15 L de água morna, com adição de 150 g de suplemento
mineral;
• aconselhada a suplementação mineral no cocho e o desmame definitivo para posterior descarte.
Evolução: a vaca apresentou melhora e progressivo ganho de peso.
NECRÓPSIA (e histopatologia)
Patologista responsável:
DISCUSSÃO
A partir dos exames realizados podem ser feitas as seguintes considerações: em relação a urinálise, houve
alterações significativas no pH e corpos cetônicos. Pensamos que essa vaca estava com um baixo aporte de
energia na dieta, situação onde a produção de leite (junto com os outros requerimentos de energia) é maior
que a energia suprida na dieta (equilíbrio energético negativo), havendo mobilização de gordura corporal e
aumento da produção de corpos cetônicos. Esse aumento de corpos cetônicos pode levar a pensar em
cetose, e essa desencadearia uma acidose metabólica, casos em que o bicarbonato do sangue pode cair
para níveis menores que 10 mM (normal 17-25 mM) e o pH para menos de 7,2, o que nos explicaria o valor
do pH na urina (6,5). Após encontrarmos corpos cetônicos elevados, resolvemos realizar um exame
complementar, Gluketur-teste (fita reagente para glicose e corpos cetônicos) que nos apontou duas cruzes
para corpos cetônicos (numa escala que vai de negativo a três cruzes).
Nos exames de bioquímica sangüínea, houve um leve aumento de globulinas provocado pela hemólise
moderada da amostra, que, por sua vez, ocasionou aumento das proteínas totais. Também devido a esta
hemólise, os valores da bilirrubina se apresentaram aumentados.
O valor da uréia no sangue apresentou-se aumentado, indicando uma possível alteração na relação
proteína/energia na dieta. A diminuição do consumo de alimentos energéticos influencia inversamente na
concentração de amônia ruminal devido a redução da síntese protéica microbiana, elevando a concentração
de uréia sangüínea. Há de se considerar que a excreção de nitrogênio representa um gasto de energia para
o animal e, com o incremento na produção de amônia e uréia, reduz o apetite.
O alto valor de colesterol também indica uma mobilização das reservas lipídicas.
O valor de glicose apresentou-se normal, o que era esperado, pois o organismo possui um controle
homeostático hormonal que o mantém constante. O nível de glicose plasmático é o indicador menos
expressivo do perfil para avaliar o status energético, devido à insensibilidade da glicemia a mudanças
nutricionais e a sua sensibilidade ao estresse. Porém, considerando exclusivamente o quadro de cetose
clínica, seria esperardo encontrar valores mais baixos.
Ainda, considerando desequilíbrios metabólicos de energia, foi realizada a determinação do β-hidroxibutirato
(exame complementar) que mostrou um valor alto (2,0 mmol/L, onde o normal na vaca lactante é de ≤1,0
mmol/L). Esse valor é explicado pelo aumento de mobilização lipídica por falta de energia. Assim, os ácidos
graxos de cadeia longa, produzidos na mobilização de reservas de gordura, são convertidos no fígado em
acetoacetato e depois em β-hidroxibutirato, o qual pode ser usado como fonte de energia e síntese de
gordura no leite. Dessa forma, a cetose é produzida quando a formação de corpos cetônicos é maior que a
sua utilização, existindo um déficit de energia (e de oxalacetato), em decorrência da alta demanda de
Caso clínico 2001/1/05
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glicose para produzir lactose.
Com relação ao hemograma, foi observado um aumento nos valores de hemoglobina, valor que não deve
ser considerado devido à hemólise da amostra, o que também causou o aumento do CHCM. No leucograma
houve um aumento de linfócitos, o qual não deve ser considerado em se tratando de um bovino. Também
ocorreu a diminuição de neutrófilos segmentados podendo caracterizar uma endotoxemia (cetose), pelo
seqüestro dos neutrófilos para o compartimento neutrofílico marginal.
Na análise do status mineral, encontraram-se níveis normais ou levemente diminuídos. Isso se explica pois o
sistema endócrino envolvendo a vitamina D3, paratormônio (PTH) e a calcitonina, responsáveis pela
manutenção dos níveis sangüíneos de cálcio, atuam de forma bastante eficiente, para ajustar-se à
quantidade de cálcio disponível no alimento e às perdas, que acontecem principalmente na gestação e
lactação. Foi encontrada uma hipofosfatemia.
CONCLUSÕES
Em conclusão, a partir dos valores obtidos, evidenciamos uma hipofosfatemia, que em animais adultos
produz o aumento da reabsorção óssea, para suprir as necessidades da prenhez, lactação e metabolismo
endógeno, levando a remoção do tecido ósseo maduro bem mineralizado e a sua substituição por matriz
orgânica deficientemente mineralizada. A deficiência foi confirmada com a resposta positiva para a
suplementação mineral (retomada do ganho da condição corporal). Este tipo de deficiência é comum em
nosso estado (RS), sendo agravado, neste caso, com a época do parto (outono-inverno) onde a
concentração de P nas pastagens é menor. Confirmou-se o quadro de cetose, que pode ser relacionado com
a vida reprodutiva e a idade da vaca além da deficiência do aporte energético da dieta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOOD, D.C.; HENDERSON, J.A. Clínica veterinária. 5a ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,1983.
GONZÁLEZ, F.H.D. Perfil metabólico em ruminantes. Porto Alegre: UFRGS, 2000.
GONZÁLEZ, F.H.D. Uso de provas de campo e laboratório em doenças metabólicas e ruminais de
bovinos. Porto Alegre: UFRGS, 2000.
KANEKO, J.J.; HARVEY, J.W.; BRUSS, M.L. (eds.) Clinical biochemistry of domestic animals. 5th ed. San
Diego: Academic Press Inc., 1997.
RIET-CORREA, F. Doenças de ruminantes e eqüinos. Pelotas: UFPel, 1998.
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