Responsabilidade tributária pelo ICMS sobre vendas interestaduais celebradas com cláusula FOB em caso de desvio de mercadoria* Frederico Menezes Breyner** 1. Introdução A atividade de comércio é um dos principais meios utilizados para circular e trocar bens e serviços. Sua diversificação aumenta na mesma medida em que os processos econômicos contemporâneos se tornam mais complexos e intensos, demandando maior regulamentação jurídica. Nesse contexto se inserem diversos institutos jurídico-contratuais concebidos com o objetivo de uniformizar práticas empresariais e limitar a responsabilidade daqueles que atuam no mercado contraindo, exigindo e garantindo o adimplemento de obrigações. Por ser ínsito à gestão empresarial a redução de custos e riscos, a limitação da responsabilidade contratual por meio desses mecanismos passou a ter especial relevância. Pela grande notoriedade em que alcançaram, os INCOTERMS (International Commerce Terms) são mecanismos de fixação de responsabilidades contratuais elaborados pela Câmara de Comércio Internacional (CCI). Dentre eles, a cláusula FOB (free on board) é utilizada para fixar e limitar a responsabilidade do vendedor em contratos de transferência de bens, como a compra e venda. As atividades negociais também sempre receberam a atenção do legislador tributário em razão de sua expressão econômica, motivo pelo qual os atos jurídicos praticados no comércio compõem hipóteses de incidência tributárias, como no caso de ICMS. A responsabilidade contratual e a responsabilidade tributária podem se relacionar e se influenciar mutuamente, pois, principalmente no caso do ICMS, ambas tocam diretamente ao negócio jurídico celebrado. O objetivo do presente escrito é analisar em que medida a limitação da responsabilidade contratual pela cláusula FOB pode influenciar a responsabilidade tributária, frisando desde já que o principal caso suscitador de controvérsias se dá quando da circulação interestadual de mercadorias. 2. Da cláusula FOB. Através desta cláusula limita-se a responsabilidade do vendedor pelo transporte da mercadoria, pois este a entrega dentro do seu próprio estabelecimento, ou então em local de onde a mesma será transportada ao estabelecimento do comprador * O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil e originalmente publicado na Revista Dialética de Direito Tributário nº 154. Referência bibliográfica: BREYNER, Frederico Menezes. Responsabilidade tributária pelo ICMS sobre vendas interestaduais celebradas com cláusula FOB em caso de desvio de mercadoria, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 154. Jul/2004. p. 25. São Paulo: Dialética, 2008. ** Professor de Direito Tributário da UNIFENAS – Campus de Belo Horizonte. Advogado. Mestrando em Direito Tributário pela UFMG. (um veículo ou um porto, por exemplo), sendo esse transporte sempre por conta e ordem desse último. A partir da retirada da mercadoria pelo comprador (ou transportador por ele indicado à sua conta e ordem), cessa qualquer responsabilidade do vendedor, que executa e exaure sua obrigação contratual, pois, nesse momento, transmite-se ao comprador a propriedade, responsabilidade, riscos e ônus sobre a coisa. Sua finalidade é claramente a segurança jurídica, pois permite ao vendedor prever de antemão as conseqüências de seus atos praticados no bojo do contrato, afastando riscos advindos do transporte e transferência da coisa ao patrimônio do comprador. Nesse sentido é didática a ementa de acórdão do TJRJ, a seguir transcrita: COBRANÇA. COMPRA E VENDA MERCANTIL. CLÁUSULA FOB. RISCOS A CARGO DO COMPRADOR. O contexto probatório dos autos revela que o contrato de compra e venda mercantil foi engendrado sob o signo da cláusula “Free On Board” (FOB). Sua presença altera a responsabilidade das partes no que diz respeito aos riscos do traslado das mercadorias, repassando-os do vendedor para o comprador, com as ressalvas que lhe são características. Assim, a transferência da propriedade operou-se quando de sua entrega ao transportador. O posterior desaparecimento das mercadorias não tem o condão de afastar a responsabilidade do Apelante pelo cumprimento da contraprestação acordada. (TJRJ, 15ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 2006.001.16499. Rel. Des. Ricardo Rodrigues Cardozo. Julgado em 07.06.2006) A partir da premissa assentada sobre a estrutura e função da cláusula FOB, passamos a analisar a hipótese de incidência do ICMS, de forma a relacioná-los e colocar o problema que tentaremos responder: a exigência do ICMS em operações interestaduais realizadas sob a cláusula FOB. 3. Da hipótese de incidência do ICMS. Embora o ICMS seja um tributo composto por diversas hipóteses de incidência, interessa para este estudo os aspectos1 daquela consistente em operações relativas à circulação de mercadorias (art. 155, II da CF). Para a compreensão do aspecto material dessa hipótese de incidência, será necessário construir o conteúdo dos termos operações, circulação e mercadoria. A regra matriz de incidência requer que o fato jurídico tenha origem em operações, que “são atos jurídicos; atos regulados pelo Direito como produtores de determinada eficácia jurídica; são atos juridicamente relevantes; circulação e mercadoria são, nesse sentido, adjetivos que restringem o conceito substantivo de operações”.2 1 Adotamos aqui a estrutura da norma tributária tal como apresentada pelo Prof. Sacha Calmon Navarro Coêlho em sua obra Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária. São Paulo: Dialética, 2003. 2 ATALIBA, Geraldo e GIARDINO, Cléber. Núcleo da definição constitucional do ICMS. RDT vol. 25/26, pag. 105 A circulação é conceituada pela doutrina3 e jurisprudência4 como “circulação jurídica”, ou seja, a mudança de domínio da mercadoria. E mercadoria5 é categoria especial de bens econômicos: bens móveis6 postos à venda, ou seja, colocados no comércio. Conclui-se então que, como visto, a circulação da mercadoria deve ter por base uma operação apta a promovê-la, conforme lição da Profa. Misabel Derzi: “A palavra operação, utilizada no Texto Constitucional, garante, assim, que a circulação de mercadoria é adjetivação, conseqüência. Somente terá relevância jurídica aquela operação mercantil que acarrete a circulação da mercadoria, como meio e forma de transferir-lhe a titularidade.”7 O aspecto pessoal do ICMS é a pessoa que impulsiona a circulação de mercadoria, é aquele apto a celebrar a operação, no caso analisado, o vendedor. Embora a conclusão seja diretamente extraída do art. 4º da LC 87/96, a questão tem raiz constitucional, uma vez que, ao delimitar a competência tributária pela descrição de uma materialidade, a regra constitucional já indica, por decorrência, a pessoa a ela relacionada8 e que consequentemente9 deve suportar o ônus do tributo10, chamado por Geraldo Ataliba, com apoio em Villegas, de destinatário constitucional tributário11. 3 Seguindo o mesmo caminho doutrinário, entre outros, Souto Maior Borges, (cf. O Fato Gerador do ICM e os Estabelecimentos Autônomos, in Revista de Direito Administrativo, São Paulo, vol. 103, pp. 33-48; Geraldo Ataliba (cf. ICM sobre a Importação de Bens de Capital para uso do Importador, Revista Forense, vol. 250, pp. 114-120); Paulo de Barros Carvalho (Hipótese de incidência do ICM, in Revista de Direito Tributário, jan/jun de 1980 nº 11-12p. 256. São Paulo: RT, 1980, p.257-262); José Eduardo Soares de Melo (cf. ICMS. Teoria e Prática. São Paulo. Dialética. 1995); Roque Antonio Carraza (cf. ICMS. São Paulo. Malheiros Ed. 1994); Alberto Xavier (cf. Direito Tributário e Empresarial - Pareceres. Rio de Janeiro, Forense, 1982, p. 294. 4 Ver Súmula 166 do STJ e 573 do STF. 5 Sobre o conceito de mercadoria, assim se expressou Paulo de Barros Carvalho: “A natureza mercantil do produto não está absolutamente, entre os requisitos que lhe são intrínsecos, mas na destinação que se lhe dê. É mercadoria a caneta exposta à venda entre outras adquiridas para esse fim. Não o será aquela que mantenho em meu bolso e se destina a meu uso pessoal. Não se operou a menor modificação na índole do objeto referido. Apenas sua destinação veio a conferir-lhe atributos de mercadorias”. (Hipótese de incidência do ICM, in Revista de Direito Tributário, jan/jun de 1980nº 11-12. São Paulo: RT, 1980, p. 256. 6 Humberto Ávila, com esforço em tese sobre a repartição constitucional de competência tributária, chega à mesma conclusão: “A reserva constitucional material é estabelecida indiretamente nos casos em que a Constituição, implementando a sua divisão de competências no Estado Federal, ao atribuir poder para uma entidade política tributar um fato, implicitamente atribui poder para outra entidade política tributar fato diverso. Como o poder para tributar as operações com imóveis foi atribuído aos Municípios pela competência para instituir o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis, a palavra ‘mercadoria’, na regra de competência para tributar a circulação de mercadorias, só pode ser conceituada como bem móvel” (Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 202). 7 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Nota de atualização à BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 375 8 JARACH, Dino. El hecho imponible. 2ª ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1971, p. 168 e 178. 9 Sem prejuízo da possibilidade de se atribuir o dever tributário a outra pessoa, o responsável tributário, desde que a lei lhe ofereça mecanismos para que faça com que o realizador do fato gerador seja onerado, conforme se verá mais adiante – art. 121, II c/c art. 128 do CTN, cf. art. 145, §1º da CF. 10 É enfática a lição de Geraldo ATALIBA (Sistema Constitucional Tributário, in Revista de Direito Tributário nº 51. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 148): “A Constituição também designa implicitamente todos os sujeitos passivos de todos os tributos. (...) no desígnio constitucional já estão as pessoas que poderão e deverão responder pela carga tributária em cada hipótese”. 11 Hipótese de Incidência Tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 86 e ss. Nesse sentido é que o STF, antes da EC 33/2001, julgou pela inexigibilidade do ICMS na importação de bens por pessoa que não tinha natureza mercantil (física – RE 203.07512 ou jurídica – RE 185.78913), pois somente pessoa ligada à atividade de mercancia, envolvida de forma organizada (habitualidade) na atividade empresária (intuito mercantil) de circulação de mercadorias é apta a concretizar a hipótese de incidência do ICMS. Confirmando a limitação à eleição do contribuinte do imposto, a já citada EC 33/2001 veio autorizar a ampliação14 do aspecto pessoal da hipótese de incidência do ICMS na importação, para nela incluir pessoas que não exercem atividades mercantis (empresariais), como é o caso da pessoa não empresarial que adquire bem para uso próprio por meio de importação. O aspecto temporal da hipótese de incidência enquadra o fato descrito em coordenadas de tempo. No caso do ICMS, sendo o fato gerador a operação relativa à circulação da mercadoria, o legislador elegeu momentos de execução dessa operação como sendo o tempo de sua ocorrência, especificados no art. 12 da LC 87/9615, conforme será desenvolvido à frente. Por fim, quanto ao aspecto espacial, é este o local em que a operação se realiza juridicamente. Fora poucas exceções, este aspecto resume-se ao estabelecimento16 que celebrou juridicamente a operação, conforme art. 11, I da LC 87/96 e 155, IX, a da Constituição. A conclusão encontra respaldo na jurisprudência do STF17 e do STJ18 que, versando sobre identificação do sujeito ativo nos casos de importação, entendeu que o imposto cabe ao Estado onde estabelecido o contribuinte que celebrou juridicamente a operação de importação (que consequentemente é o local da incidência), e não no Estado onde se deu o desembaraço aduaneiro ou para o qual foi destinada fisicamente a mercadoria. 12 STF, 1ª Turma. RE 203075/DF. Relator Min. Ilmar Galvão. Relator p/ Acórdão Min. Maurício Corrêa. DJ 29.10.1999, p. 18. 13 STF, Pleno. RE 185789/SP. Relator Min. Ilmar Galvão. Relator p/ Acórdão Min. Maurício Corrêa. DJ 19.05.2000 p. 20 14 A nosso ver, além do aspecto pessoal, a EC 33/2001 apenas ampliou o aspecto material da hipótese de incidência do ICMS para autorizar sua incidência sobre qualquer bem importado. Contudo, a necessidade de uma operação que promova a transferência de domínio ainda subsiste, conforme entendimento do STF (Pleno. RE 461968/SP. Relator Min. Eros Grau. Julgamento: 30.05.2007. Publicação DJ 24.08.2007, p. 56), STJ (1ª Turma, REsp 908325/RJ, DJ 16.08.2007 p. 300) e TJMG (5ª Câmara Cível. Apelação Cível/Reexame Necessário nº 1.0024.06.045971-6/001. Publicação: 20.03.2007) 15 Note-se que esses momentos (a exemplo da saída da mercadoria) não são o fato gerador do ICMS, mas somente momentos eleitos pelo legislador como os átimos de tempo em que ele ocorre, momento este juridicamente irrelevante sem que se agreguem os outros aspectos (material, pessoal e espacial). Nesse sentido: CARVALHO, Paulo de Barros. Hipótese de incidência do ICM, in Revista de Direito Tributário, jan/jun de 1980 nº 11-12. São Paulo: RT, 1980, p. 264-8. 16 MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 7ª ed. São Paulo: Dialética, 2004, p. 21-23. 17 “O sujeito ativo da relação jurídico-tributária do ICMS é o Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário jurídico da mercadoria (alínea ‘a’ do inciso IX do § 2º do art. 155 da Carta de Outubro); pouco importando se o desembaraço aduaneiro ocorreu por meio de ente federativo diverso." (RE 299.079, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 30-6-04, DJ de 16-6-06) 18 “Tributário. ICMS. Importação de álcool carburante. Entrada da mercadoria em Estado diverso daquele do estabelecimento do importador. Sujeito ativo. Estado em que localizado o adquirente importador. Lei Complementar 87/96, art. 11, inc. I, alíneas d e. Embargos de declaração. Contradição. Omissão. Inexistência. O sujeito ativo do ICMS é o Estado onde estiver situado o estabelecimento importador, sendo irrelevante se o produto ingressou em Estado diverso ou se a empresa do destino final do produto esteja localizada no Estado em que houve o desembaraço aduaneiro. (...) Embargos de declaração rejeitados.” (STJ, 1ª Turma, EDcl. no A-gRg no REsp. nº 282.262/RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 08.04.2002, p. 133) 4. A questão proposta. Pois bem, aplicando as premissas acima às operações interestaduais, podemos vislumbrar nessas hipóteses (que não raro acontecem no mundo fático) situações em que o comprador, contribuinte de ICMS19, estabelecido no Estado X, ao adquirir a mercadoria do vendedor estabelecido no Estado Y por negócio celebrado com cláusula FOB, destine-a (por meio próprio ou por transportador) a outro estabelecimento de sua titularidade, diverso daquele que celebrou a compra e venda. Caso esse estabelecimento para o qual foi desviada a mercadoria seja situado no mesmo Estado Y, terá havido recolhimento a menor de ICMS. Isso porque, como a mercadoria objeto da operação contratada se destinava a estabelecimento de outro Estado, o vendedor, ao dar saída à mercadoria, recolhe ao Estado Y o ICMS pela alíquota interestadual20. Mas, como a operação efetivamente ocorrida foi interna, essa seria a alíquota aplicável, daí o recolhimento a menor. Em face dessa situação, poderia o vendedor ser responsabilizado pela diferença entre as alíquotas21 a ser recolhida ao Estado Y? Caso negativo, como o Estado Y buscará o seu crédito tributário, decorrente da operação interna efetivamente ocorrida? A resposta, a nosso ver, dependerá, num primeiro momento, da existência ou não de simulação. O fato de o vendedor saber que a mercadoria por ele vendida será efetivamente destinada ao mesmo Estado de seu estabelecimento importará em simulação e possibilidade de exigência do imposto de ambas as partes contratantes. Não havendo simulação, o Estado Y encontrará óbices jurídicos na responsabilização do vendedor pela diferença do imposto, conforme se verá. A análise deve ser centrada na hipótese de incidência do ICMS, principalmente em seus aspectos material e temporal, que permitem relacionar o fato jurídico tributário à pessoa do vendedor (aspecto pessoal)22, o que não foi feito de maneira clara pela doutrina, que termina por aplicar o art. 110 do CTN no intuito de atrelar a responsabilidade tributária à responsabilidade contratual advinda da cláusula FOB. Em sede jurisprudencial, o entendimento que prevalece merece críticas. Por exemplo, no REsp 37.033/SP23, o STJ centrou sua análise no art. 123 do CTN24, norma 19 Caso o comprador não seja contribuinte, a alíquota será sempre a interna (art. 155, §2º, VII, alínea b da Constituição). Restaria a discussão então somente quanto a possíveis penalidades, mas nunca quanto à diferença de imposto a pagar. 20 Em regra menor do que a alíquota interna (art. 155, §2º, VI da Constituição). 21 Que não deve ser confundido com o “diferencial de alíquotas” previsto no art. 155, §2º, VII da Constituição, mas sem regulamentação na LC 87/96, que não é objeto desse trabalho. 22 Importante destacar a lição de Geraldo Ataliba que, com razão, diz que o aspecto material traz implicações a todos os outros aspectos da norma tributária, que devem necessariamente refleti-lo (Hipótese de Incidência Tributária. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 106 e ss.) 23 STJ, 2ª Turma. REsp 37033/SP, Rel. Min. Peçanha Martins, Rel. p/ Acórdão Ministro Ari Pargendler. Julgado em 06.08.1998, DJ 31.08.1998 p. 53. 24 O entendimento reflete julgamentos de segunda instância, a exemplo dos seguintes julgados do TJSP: Apelação Cível nº 347.223.5/7-00, 8ª Câmara de Direito Público. Relator Des. Paulo Dimas Mascaretti; Apelação Cível nº 302.239-5/0-00, 9ª Câmara de Direito Público. Relator Des. João Carlos Garcia; em tudo estranha à situação ora analisada. Também como a doutrina, o STJ não apreciou o caso com fulcro na hipótese de incidência do ICMS, que ora propomos como o principal ponto de análise para o deslinde da questão. 5. A cláusula FOB e o fato gerador do ICMS. O art. 116, I do CTN, determina que se considera ocorrido o fato gerador quando, “tratando-se de situação de fato, desde que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios”. Conforme leciona a Profa. Misabel Derzi25, a hipótese de incidência da norma tributária, ao oferecer os critérios para a verificação da ocorrência do fato gerador, possibilita ao intérprete atribuir-lhe contornos jurídicos, ou seja, o fato gerador será sempre um fato jurídico, relevante para o direito, e não simplesmente uma “situação de fato”. Assim compreendido, o que dispõe o art. 116, I do CTN é que, para considerar-se ocorrido o fato gerador de alguns tributos, não é relevante o ato jurídico em si mesmo considerado, com as características que lhe são inerentes. Relevantes serão os atos materiais ou os efeitos concretos dele decorrentes, que importem em sua execução. É o caso do tributo em análise, pois, “na operação jurídica que configura a hipótese de incidência do ICMS, do IPI e do ISS, não basta a formalização contratual para se realizar a transferência da propriedade ou a prestação do serviço. Interessam antes os atos de execução das referidas obrigações, situações de fato que foram eleitas pelo legislador tributário como marco temporal ou aspecto temporal da hipótese”26. No caso do ICMS, o legislador parte de uma operação, um negócio jurídico dotado de eficácia, que consiste justamente na aptidão para promover a transferência de titularidade da mercadoria, para tomar os atos de execução desse negócio como o momento ensejador do gravame. O negócio jurídico não é dispensável, mas sim necessário para a configuração do fato gerador do ICMS. Porém, não é suficiente em si, e o legislador toma sua execução como a “situação de fato” que enseja a imposição. Pois bem, a execução do contrato de compra e venda realizado com cláusula FOB se dá com a entrega da mercadoria ao comprador, representada pela “saída da mercadoria”, que pode se dar de duas maneiras: a) pela retirada da mercadoria, pelo comprador ou transportador, do estabelecimento do vendedor, ou; Apelação Cível nº 360.585-5/3-00, 13ª Câmara de Direito Púbico. Relator Des. Rui Stoco. O julgado influenciou a jurisprudência administrativa, que se reporta expressamente ao acórdão do REsp 37.033/SP, a exemplo do seguinte julgado do TIT-SP: Processo DRTC-II-9001727/02 - Recurso Ordinário - Sétima Câmara Efetiva - Relator: Juiz Antonio Carlos de Moura Campos - Julgado em 22 de outubro de 2002 Decisão unânime 25 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Notas à atualização de BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 711. 26 DERZI, Ob. e loc. cit., p. 711. b) pela retirada da mercadoria, pelo comprador ou transportador, no local contratado (porto ou armazém, p. ex.), obrigando-se pelo transporte e destinação da mercadoria. Logo, a operação de circulação da mercadoria, componente do aspecto material da hipótese de incidência do ICMS, ocorre (aspecto temporal) quando o comprador recebe a mercadoria em um dos locais acima indicados (execução do contrato), pois aí há a transferência de domínio. O fato gerador do ICMS em operação FOB, em qualquer caso, somente ocorre quando o vendedor dispõe da mercadoria, transferindo-a ao comprador ou ao terceiro por ele indicado, estes responsáveis por destinar a mercadoria ao estabelecimento que celebrou o negócio jurídico, e que consequentemente consta do documento fiscal emitido pelo vendedor de boa-fé. Ou seja, o fato gerador ocorre quando se executa o contrato de transferência da mercadoria: a “situação de fato” consistente em sua execução é o momento, o átimo em que se dá a incidência da norma tributária, pois assomados todos os seus aspectos. E aqui reside a resposta ao questionamento proposto, pois é a partir dessa premissa que analisaremos a responsabilidade do vendedor. 6. Da responsabilidade do vendedor. Em nossa situação hipotética, o fato gerador realizado pelo vendedor é a operação interestadual (cujo local da celebração é o aspecto espacial). Esse o contrato executado, e sobre esse fato recai o imposto. Entregue a mercadoria, os aspectos material e temporal da hipótese de incidência vinculados ao vendedor (aspecto pessoal) são: a) a operação interestadual de circulação de mercadoria e b) o momento da saída da mercadoria ou ainda sua entrega, a terceiro, em armazém, porto ou local similar. Ocorridos esses aspectos, há incidência da norma tributária, encerrando a imputação normativa do imposto em relação ao vendedor. Qualquer outro dado, como o desvio da mercadoria, é irrelevante para a aferição da obrigação tributária que o vendedor deve adimplir, pois estranho ao fato gerador por ele realizado: execução do contrato (operação) de venda interestadual. Em suma, o vendedor é contribuinte do ICMS (art. 121, I do CTN) pela operação interestadual, pois é este o fato que realiza e com o qual tem relação pessoal e direta, ou nas palavras do Prof. Sacha Calmon, é a este fato (operação interestadual) que o vendedor está “ligado”, atribuindo-lhe “textura e especificidade”27. 27 COÊLHO. Sacha Calmon Navarro Coelho. Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária. São Paulo: Dialética, 2003, p. 96. Julgando questão envolvendo a cláusula FOB, referente à hipótese de incidência de ICMS consistente na prestação de serviços, o TJSP julgou pela impossibilidade de responsabilização do vendedor pelo imposto, uma vez que o contrato de transporte foi celebrado pelo comprador e pelo transportador, sendo o vendedor completamente estranho ao fato gerador. Eis a ementa: Tributário – execução fiscal – ICMS e acessórios – transporte de mercadoria: ‘na prestação de serviço de transporte de mercadoria, incluso o ICMS no preço desta e regrada a operação pela cláusula ‘FOB’, o vendedor não tem vínculo algum com o respectivo fato gerador, que envolve transportador e adquirente (Apelação Cível nº 040.281.5/2-00, 6ª Câmara de Direito Público, Relator Des. Vallim Bellocchi). O julgado ilustra a posição aqui defendida, de que contribuinte do imposto somente pode ser aquela pessoa à qual se possa imputar a materialidade do fato ocorrido. De extrema valia para finalizar a análise é a lição de Luciano Amaro, que se propõe a desvendar o significado da expressão “relação pessoal e direta” com o fato gerador, constante do art. 121, I do CTN28: “Ao falar em relação pessoal, o que se pretendeu foi sublinhar a presença do contribuinte na situação que constitui o fato gerador. Ele deve participar pessoalmente do acontecimento fático que realiza o fato gerador. (...) Ademais, quer o Código que essa relação seja direta. Em linguagem figurada, podemos dizer que o contribuinte há de ser o personagem de relevo no acontecimento, o personagem principal, e não mero coadjuvante.”29 Dessa forma, o vendedor, no caso, somente está presente na operação interestadual, onde é o personagem principal, que dá origem ao fato gerador. Já a operação interna, decorrente do desvio da mercadoria, é protagonizada unicamente pelo comprador e/ou transportador que agem em contrariedade à operação contratada, da qual o vendedor sequer tem conhecimento (ressalvados os casos de simulação), não podendo ser dela contribuinte. Também é juridicamente impossível que a lei estadual coloque o vendedor em situação de responsável tributário, quer solidário, quer subsidiário, pela diferença de alíquotas não recolhida. Isso porque, não tendo o vendedor qualquer vinculação com a operação interestadual, não pode ser incluído no pólo passivo da relação tributária. Tal conclusão advém do art. 128 do CTN, dispositivo cuja função é especificar os princípios constitucionais da legalidade e da capacidade contributiva, que impõe que o responsável tenha assegurada a possibilidade de se ressarcir imediatamente junto àquele que realizou o fato gerador (o destinatário constitucional tributário de ATALIBA). Nesse sentido a lição de Sacha Calmon: “Vale dizer, a ‘vinculação ao fato gerador’, no que tange ao responsável, é para garantir-lhe o ressarcimento do ônus tributário. (...) De um lado, asseguram-se ao Fisco, ao Estado, condições de eficácia e funcionalidade. De outro, garante-se ao cidadão-contribuinte o ressarcimento, de modo a evitar desfalque em seu patrimônio econômico e jurídico. (...) O regresso é econômico e deve dar-se de imediato (...). O tema é tributário. Está no CTN. Petição, ação e processo são desnecessários. O próprio mecanismo dos negócios encarrega-se de recompor a situação.”30 Em outra obra, o autor é ainda mais minucioso na análise do dispositivo: “A razão de ser dessa prescrição, inafastável pressuposto para a instituição objetiva de ‘responsáveis legais’, deve ser assimilada pelo intérprete obrigatoriamente. O Direito não contém determinações inúteis. Ora, dita prescrição existe para: 28 Repita-se aqui que a relação com a materialidade do fato gerador tem sede constitucional, conforme citado acima com base na doutrina de Jarach, Carrazza e Ataliba (v. notas de rodapé 10 e 11 supra), sendo somente “esclarecida” pelo art. 121, I do CTN. 29 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 302. 30 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária. São Paulo: Dialética, 2003, p. 258-260. a) Subordinar à lei a imputação de dever legal tributário a quem não tenha praticado o fato gerador (sempre um fato econômico, demonstrativo de capacidade contributiva, a que a lei atribui relevância jurídica). b) Permitir ao devedor legal tributário a possibilidade de recuperar o dispêndio feito em razão de fato gerador de terceiro, este detentor da ‘capacidade contributiva’. O art. 128 é de uma densidade axiológica pouco suspeitada pela maioria de nossos estudiosos luminares. Ante o exposto, nas hipóteses fáticas em que não for possível o exercício do ‘direito de recuperação externa’ do dispêndio tributário, algo que há de ocorrer fora da relação jurídica tributária, o legislador não pode instituir responsabilidade direta por fato gerador alheio e, se o fizer, o judiciário deve considerá-la ilegal, à falta de pressuposto jurídico (desrespeito ao princípio do art. 128 do CTN).”31 Podemos então concluir, com Luciano Amaro que (...) o ônus do tributo não pode ser deslocado arbitrariamente pela lei para qualquer pessoa (como responsável por substituição, por solidariedade ou por subsidiariedade), ainda que vinculada ao fato gerador, se essa pessoa não puder agir no sentido de evitar esse ônus nem tiver como diligenciar no sentido de que o tributo seja recolhido à conta do indivíduo que, dado o fato gerador seria elegível como contribuinte.”32 Como o contrato executado foi o de uma operação interestadual, o vendedor somente teria condições de impedir sua própria oneração por essa operação. Não há como diligenciar para não ser onerado pela ocorrência de uma operação interna decorrente do desvio da mercadoria, pois desse fato o vendedor sequer cogita, sendo totalmente estranho à sua esfera jurídica. Logo, não pode ser eleito como responsável tributário. Portanto, tendo recolhido o ICMS com base na alíquota interestadual, o vendedor cumpriu devidamente sua obrigação tributária, e nada mais lhe poderá ser exigido, ressalvada a hipótese de simulação, analisada à frente. Note-se que o exame objetivo das normas pertinentes pela teoria da norma tributária (verificação dos seus aspectos) permite a solução da questão, sem a necessidade de se perquirir elementos estranhos à hipótese de incidência do tributo. Quanto ao art. 110 do CTN, invocado por doutrina e jurisprudência para tentar solucionar a questão, deve-se salientar que a importância da cláusula FOB na compreensão da incidência do ICMS não está na delimitação da competência (tema ao qual se refere o dispositivo), mas sim no fato de que ela determina o momento em que se dá a execução do contrato, relevante para a compreensão do fato gerador do ICMS. Nesse ponto há uma confluência entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade tributária. Como a cláusula FOB condiciona a ocorrência do fato gerador com total respeito aos limites da lei tributária, termina por afastar o vendedor de 31 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. ICM – Competência exonerativa (convênios de Estados, imunidades, isenções, reduções e diferimento). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1982, p. 128-9. 32 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 312-3. atos relevantes para o direito tributário, mas alheios à sua esfera jurídica, impedindo sua responsabilização decorrente do desvio da mercadoria. Conclui-se que, ao menos de maneira reflexa (pois não é essa sua finalidade) a cláusula FOB atribui ao vendedor segurança jurídica também quanto às conseqüências de seus atos na seara tributária. Por fim, também o entendimento do STJ no REsp 37.033/SP é equivocado, pois centra sua análise no art. 123 do CTN, que é inaplicável à espécie. A convenção referente à cláusula FOB não altera o sujeito passivo da obrigação tributária, muito menos sua responsabilidade em adimpli-la: o vendedor continua sendo sujeito passivo. A questão que se coloca é: o vendedor responde por qual fato gerador? E a resposta a essa questão é: pela operação interestadual por ele realizada, conforme vimos acima com esforço na análise da hipótese de incidência do ICMS, que não foi feita pelo STJ no julgado sob comento. Surge então o segundo questionamento: se ocorrida a operação interna pelo desvio da mercadoria pelo comprador, e não tendo o vendedor qualquer responsabilidade sobre o conseqüente recolhimento a menor, como o Estado exigirá seu crédito tributário, por imposto que é efetivamente devido? 7. Da responsabilidade do comprador e do transportador pela diferença de alíquotas resultante do desvio da mercadoria. Pois bem, como a circulação efetivamente ocorrida se deu dentro do Estado, não pode este deixar de recolher o respectivo tributo devido. Embora a exigência não possa ser dirigida ao vendedor da mercadoria, pode o comprador ser o responsável pela diferença de alíquotas. Como primeira hipótese, temos que o procedimento a ser seguido pelo Fisco decorre do art. 5º da LC 87/9633, que dispõe que “lei poderá atribuir a terceiros a responsabilidade pelo pagamento do imposto e acréscimos devidos pelo contribuinte ou responsável, quando os atos ou omissões daqueles concorrerem para o não recolhimento do tributo”. Aplicando o mandamento do art. 5º da LC 87/96 ao caso ora analisado, desde que haja previsão na lei estadual, o comprador poderá ser responsabilizado pela diferença de alíquotas entre a operação interestadual (contratada) e a operação interna (efetivamente ocorrida). Isso porque por um ato seu (desvio da mercadoria), o houve recolhimento a menor do imposto, pois feito com base na alíquota interestadual, conforme contratado. Vinculando-se à operação interestadual, o comprador poderá ser responsabilizado pela diferença entre as alíquotas. Quanto ao transportador (se houver), também é possível sua responsabilização, senão vejamos. O vendedor de boa-fé (ressalvamos a hipótese de 33 Primeiramente é de se afastar a alegação de inconstitucionalidade do dispositivo, feita por parte da doutrina, segundo a qual resta violado o art. 155, §2º, XII c/c art. 68, §1º da Constituição, pois a LC 87/96 estaria delegando à lei ordinária estadual a tarefa de definir os responsáveis pelo ICMS. A nosso ver, a alegação não procede. O art. 5º da LC 87/96 definiu os terceiros responsáveis pelo ICMS, quais sejam, aqueles cujos atos ou omissões implicarem em não recolhimento do tributo. A partir dessa definição, dada pela lei complementar, as leis estaduais poderão instituir essa responsabilidade. Caso ultrapassem os limites da definição posta no art. 5º da LC 87/96, serão inválidas e deverão ser afastadas pelo Judiciário. simulação), ao executar estritamente a operação contratada, emitirá a nota fiscal fazendo constar nela o estabelecimento indicado pelo comprador, situado em outro Estado. O transportador, agindo por conta e ordem do comprador, ao se dirigir ao estabelecimento do vendedor ou ao local onde irá retirar a mercadoria, constatará o estabelecimento constante da nota fiscal, que se situa em outro Estado. Se, mesmo assim, entregar a mercadoria a destinatário diverso, situado no mesmo Estado do vendedor, poderá ser responsável pelo imposto não recolhido. Esta é a previsão, por exemplo, do art. 21, II, a da Lei 6.763/7534 de Minas Gerais e do art. 9º, II, d da Lei nº 6.374/89 de São Paulo35 Podemos responsabilização. encontrar dois fundamentos de validade para tal Primeiramente, se o transportador souber desde o início que a mercadoria será destinada a estabelecimento diverso daquele contratado pelo comprador, haverá conluio entre comprador e transportador. Nesse caso, também o transportador concorre, com um ato seu, para o desvio da mercadoria, ensejando o não recolhimento do tributo devido. Porém, caso o transportador não esteja ciente do desvio pretendido pelo comprador, terá condições de verificar a situação no momento em que receber a nota fiscal emitida pelo vendedor para retratar a operação e acobertar o transporte da mercadoria (o que o vincula ao fato gerador, satisfazendo a regra do art. 128 do CTN). Como o vendedor de boa-fé consignará na nota fiscal o estabelecimento para o qual a mercadoria fora contratada, o transportador saberá para onde a mercadoria deve ser transportada. Se, mesmo assim, cumprindo a ordem do comprador, transportar a mercadoria para local diverso do constante na nota fiscal, poderá ser responsabilizado, pois foi negligente na sua conduta, não lhe socorrendo a teoria da aparência. A responsabilidade tributária em razão de má diligência de terceiro, em princípio alheio ao fato gerador, não é novidade em nosso direito. Assim é, por exemplo, a responsabilidade tributária do tabelião pela sua omissão em não exigir prova de quitação dos tributos devidos sobre o bem imóvel objeto de compra e venda, como o ITBI (art. 134, VI do CTN)36. Caso o tabelião não exija a prova da quitação do ITBI, passando a escritura, a ele é transferida a responsabilidade tributária. 34 Art. 21 - São solidariamente responsáveis pela obrigação tributária: (...) II - os transportadores: a) em relação às mercadorias que entregarem a destinatário diverso do indicado na documentação fiscal 35 Artigo 9º - São responsáveis pelo pagamento do imposto devido (...) II - o transportador: (...) d) solidariamente, em relação à mercadoria entregue a destinatário diverso do indicado na documentação fiscal; 36 A doutrina de Paulo de Barros Carvalho compreende a relação entre esses responsáveis e o Fisco como “uma relação jurídica, de cunho obrigacional, mas de índole sancionatória – sanção administrativa” (Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 224), finalizando com o entendimento de que o legislador declara “extinta a obrigação tributária no mesmo instante em que também se extingue a relação sancionatória” (Ob. cit., p. 224). Desenvolvendo essa mesma doutrina, Luís Cezar Souza de Queiroz denomina a norma que transfere a responsabilidade como “norma primária de natureza punitiva”, que teria como antecedente o descumprimento, pelo adquirente/tabelião, da conduta obrigatória prescrita em uma “norma primária administrativo-fiscal”, qual seja, verificar se os tributos relativos ao bem imóvel foram satisfeitos, e como conseqüência o dever de pagar o tributo não satisfeito. (Sujeição passiva tributária. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 187-8). O Prof. Sacha Calmon também admite a natureza de responsabilização mala fides nesse caso, afirmando porém sua natureza tributária, atestando a existência de “duas normas jurídicas sucessivas”, a primeira que imputa ao sujeito passivo a responsabilidade de pagar o tributo em razão da ocorrência do fato gerador e a segunda que, prevendo um fato (omissão) Aqui o caso é o mesmo: o transportador não diligenciou para que a mercadoria fosse entregue no mesmo local consignado na nota fiscal. Ao proceder à entrega, fará, por uma ação sua, que o imposto tenha sido recolhido a menor, o que lhe atribui a responsabilidade pela diferença de alíquotas, uma vez que tinha a oportunidade de recusar a entrega e não ser onerado. No que toca à teoria da aparência, reforça-se a responsabilidade do transportador. Ora, se a nota fiscal (pressupondo-se emitida validamente pelo vendedor de boa-fé de acordo com o contratado) for clara ao indicar o estabelecimento destinatário da mercadoria, não haverá possibilidade de se alegar a boa-fé do transportador que entrega a mercadoria em local diverso. Nesse mesmo contexto, outra possibilidade para o Fisco perceber seu crédito é a situação que se enquadra no art. 11, I, alínea b da LC 87/96, que assim dispõe: Art. 11. O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é: I - tratando-se de mercadoria ou bem: b) onde se encontre, quando em situação irregular pela falta de documentação fiscal ou quando acompanhado de documentação inidônea, como dispuser a legislação tributária; Apenas para situar a compreensão do dispositivo, noticiamos que há o entendimento de tratar-se de norma de presunção absoluta, ou seja, encontrada a mercadoria em estabelecimento, sem a devida documentação fiscal, não seria admitida prova em contrário de que o fato gerador ali não ocorreu37. Para nós, porém, trata-se de norma de presunção relativa (iuris tantum), admitindo prova em contrário38. A inteligência do dispositivo deve ser firmada de acordo com a teoria das presunções. Segundo a melhor doutrina, as presunções alteram o objeto da prova39, suavizando40 o transfere a responsabilidade fazendo com que o terceiro (tabelião) deva pagar o tributo. (Curso de Direito Tributário. 9ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 698-9 e 721). De qualquer forma, independentemente de se cogitar da natureza sancionatória ou tributária dessa responsabilidade, é condição de validade da regra que o ato ou omissão que enseja a incidência da segunda norma esteja sob o controle do responsável, ou seja, deve a lei oportunizar que ele não o pratique ou não se omita, possibilitando que impeça sua própria oneração. 37 “Com efeito, se o documento não se refere efetivamente à operação para a qual foi emitido, com o fim controlístico desejado pelo Fisco e ensejador das obrigações fiscais e comerciais previstas na legislação, nem precisaria ser considerado inidôneo. Seria sempre inábil, passível de ser desclassificado pela fiscalização, sujeitando o contribuinte às penalidades previstas nas normas reguladoras. Trata-se de uma questão de prova dos fatos. Para o legislador tributário, porém, trata-se de uma presunção absoluta, fundada no princípio da praticidade, tendo em vista a dificuldade operacional para obter-se provas de determinado fato. Procura-se, coibir, mediante presunção absoluta, uma operação que se vislumbra irregular.” (Conselho de Contribuintes de Minas Gerais, 1ª Câmara. Acórdão: 16.440/04/1ª. PTA/AI: 02.000204896-30) 38 Como parecer ser o caso do próprio Conselho de Contribuintes de Minas Gerais (CCMG), que, embora se refira à presunção absoluta, decidiu que cabia o imposto ao Estado de Minas Gerais, onde encontradas as mercadorias acobertadas por documentação inidônea, “exceto se pelas circunstâncias materiais do fato houver comprovação inequívoca de o imposto relativo à mercadoria encontrada desacobertada ter sido cobrado na origem”. (CCMG, 1ª Câmara. Acórdão: 16.435/04/1ª. PTA/AI: 02.000205400-31) 39 PAOLA, Leonardo Sperb de. Presunções e ficções no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 65-6. ônus probatório. No presente caso, o Fisco, ao invés de ter de provar que a operação foi interna (suavização do ônus), deve provar apenas que as mercadorias se encontram em situação irregular pela falta de documentação fiscal ou acompanhada de documentação inidônea (objeto alterado). Não se trata de presunção absoluta, pois, sendo essas verdadeiras normas dispositivas de direito substantivo41, a norma estaria elegendo a situação de irregularidade como fato gerador do ICMS, o que viola a um só tempo a regra de competência (art. 155, II da Constituição) e o conceito de tributo (art. 3º CTN), pois coloca no antecedente da norma tributária uma ilicitude. Além disso, temos que a emissão de documentação fiscal é obrigação acessória, cujo descumprimento não tem o condão de alterar a natureza das coisas, ou seja, não transforma um fato em outro42. Sendo assim, é dado ao contribuinte comprovar a natureza da operação ocorrida para submeter-lhe ao devido tratamento tributário, sem o prejuízo de imputação de multa pelo descumprimento da obrigação acessória, dentro dos limites da legalidade, proporcionalidade43, culpabilidade44, equidade45, boa-fé46 e prejuízo ao erário47. Na situação hipotética ora analisada, caso o Estado fiscalize o estabelecimento do comprador situado no mesmo Estado do vendedor, para o qual fora desviada a mercadoria, ou intercepte a mercadoria em seu curso, certamente a mercadoria terá sido transportada, recebida e escriturada sem base em documentação fiscal regular48. Portanto o Fisco, por meio de procedimento legítimo (devido processo legal), verificará a inidoneidade da documentação e, comprovando-a fundamentadamente, aplicará a presunção relativa posta no dispositivo sob comento, exigindo o imposto como se ocorrido no referido estabelecimento ou no seu caminho (operação interna). 40 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 280 41 Nesse sentido BECKER, Alfredo Augusto, Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 467 e ss e PAOLA, Leonardo Sperb de. Presunções e ficções no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 61-63. 42 Nesse sentido os seguintes excertos jurisprudenciais do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: “o descumprimento de obrigação acessória não legitima a cobrança do imposto, ensejando apenas à multa.” (TJMG, 4ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 000.178.324-0/00. Relator Des. Célio César Paduani. Data do acórdão: 05/10/2000); “O descumprimento de obrigação acessória legitima, tão-somente, a cobrança da penalidade acessória respectiva, sendo vedado ao Fisco pretender receber, em razão de tal fato, os valores principais acobertados pela imunidade constitucional (...)” (TJMG, 1ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 000.184.806-8/00. Relator Des. Páris Peixoto. DJ 22/09/2000). 43 STF, Pleno. ADI 551-MC, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 18.10.91; STF, Pleno. ADI 1.075-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 24.11.2006,p. 59 e STF, 2ª Turma. RE 81550/MG, Relator Min. Xavier de Albuquerque. DJ 13.06.1975 44 STJ, 1ª Turma. REsp 743.839/RS Rel. Ministro Luiz Fux, DJ 30.11.2006 p. 154 45 STF, 1ª Turma. RE 78291/SP,. Relator Min. Aliomar Baleeiro. DJ 10.03.1978 46 STJ, 1ª Turma, REsp. nº 494.080/RJ, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 16.11.2004 p. 188 47 STJ, 1ª Turma, REsp. nº 699.700/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 03.10.2005 p. 140 e STJ, 1ª Turma, REsp 766.004/SE, Rel. Ministro Francisco Falcão, julgado em 25.10.2005, DJ 19.12.2005 p. 263 48 Isso porque, repise-se, o vendedor de boa-fé, ao dar saída à mercadoria de seu estabelecimento, ou ao entregar a terceiro em armazém ou depósito, fará constar na nota fiscal a operação contratada e por ele executada, qual seja, a operação interestadual. Porém, como a operação foi de fato interna (pelo desvio da mercadoria), essa operação não estará retratada (ao menos não sem simulação) na nota fiscal, atestando-se a irregularidade. Nesse caso, apenas comprador e transportador poderão ser responsabilizados, pois o vendedor emitiu a documentação fiscal de acordo com a operação por ele realizada, e a irregularidade decorre unicamente de ato praticado por aqueles, qual seja, o desvio da mercadoria. E é princípio geral do Direito que uma pessoa não pode ter sua situação agravada por ato (ou omissão) praticado por outra: trata-se do princípio constitucional da intranscendência das sanções ou medidas jurídicas restritivas, que “impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator”49. 8. Da simulação. A simulação consiste em uma discrepância entre a vontade real e a vontade declarada pelas partes no ato jurídico celebrado, não correspondendo esta à intenção dos acordantes, com o intuito de iludir, ludibriar, enganar terceiros. A simulação é declaração bilateral de vontade, e os contratantes devem ter a intenção de encobrir um fato ou realidade (simulação absoluta) ou outro ato jurídico (simulação relativa)50. Portanto, no que toca ao aspecto subjetivo da simulação, o mínimo necessário para sua caracterização é a intenção de uma parte e ciência da outra (conluio), mesmo que a simulação não lhe interesse ou aproveite. Com a ignorância completa de uma das partes acerca da simulação não se lhe caracteriza, pois, conforme visto, a bilateralidade é de sua essência, em razão da sua natureza negocial51. Dessa forma, caso o vendedor não tenha ciência da intenção do comprador em desviar a mercadoria para outro estabelecimento seu situado no mesmo Estado do vendedor, não haverá simulação, ainda que relativa. Isso porque o negócio jurídico efetivamente ocorreu e o vendedor tinha ciência, de boa-fé, que a mercadoria 49 STF, AC-AgR-QO n° 1.033/DF, DJ 16.6.2006, Rel. Ministro Celso de Mello. A guisa de breve esclarecimento, cumpre diferenciar a simulação absoluta da relativa, conforme noticia a Profa. Misabel Derzi, embora também indique a existência de doutrina que prima pelo caráter unitário do fenômeno simulatório: “A simulação absoluta exprime ato jurídico inexistente, ilusório, fictício, ou que não corresponde à realidade, total ou parcialmente, mas a uma declaração de vontade falsa. É o caso de um contribuinte que abate despesas inexistentes relativas a dívidas fictícias. Ela se diz relativa, se atrás do negócio simulado existe outro dissimulado. (...) Por isso, alguns vislumbram na simulação relativa dois aspectos distintos, ‘do ato que se aparentou fazer e o do ato que na realidade foi feito, o fingido e o real, o invólucro e o conteúdo. Desfeito o ato aparente, roto o invólucro, cumpre examinar a validade do que restou, do conteúdo. Se não houver intenção de prejudicar a terceiros, ou de violar disposição de lei, o ato dissimulado é válido (plus valet quod agitur quam quod simulate concipitur); na hipótese contrária, ilícito o conteúdo, será anulável (Cf. Barros Monteiro, op. cit., p. 210). Para a doutrina tradicional ocorrem dois negócios: um real, encoberto, dissimulado, destinado a valer entre as partes; e um outro, ostensivo, aparente, simulado, destinado a operar perante terceiros.” ( DERZI. Misabel de Abreu Machado. A desconsideração dos atos e negócios jurídicos dissimulatórios, segundo a lei complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, in O planejamento tributário e a lei complementar 104. Coord. Valdir de Oliveira Rocha. pp. 207 a 232. São Paulo: Dialética, 2001, p. 214-5.” 51 Sobre a bilateralidade, v. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Parte Geral. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1960. p. 216. A afirmativa se apóia no nosso direito positivo, na medida em que o Código Civil trata da simulação apenas no que toca ao negócio jurídico, incluindo-a entre os vícios nos acordos de vontade (art. 167). Já o encobrimento da vontade real pela vontade declarada, sem que haja o conhecimento do destinatário/contratante é tratada pelo Código Civil como reserva mental (art. 110). Nesta a discrepância entre a vontade real e a declarada se dá para enganar o declaratário (NERY JÚNIOR, Nelson. Vícios do ato jurídico e reserva mental. São Paulo: Revista dos Tribunais,1983. p. 18), ao passo que na simulação há conluio para enganar terceiros (TEPEDINO, Gustavo. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 222) 50 seria transportada para o estabelecimento contratante, ou seja, seria remetida a outro Estado, constante da nota fiscal, e nessas condições entregou-a ao comprador ou transportador. Isso porque a operação consubstanciada na nota fiscal emitida é, na visão do vendedor, àquela que representa a realidade. Sob a cláusula FOB, o comprador recebe a mercadoria e, a partir deste momento, o vendedor não tem qualquer controle ou responsabilidade sobre sua destinação, ou qualquer outra ocorrência sobre a mercadoria. Em suma, a vontade real do vendedor de boa-fé coincide plenamente com sua vontade declarada, documentada na nota fiscal, qual seja, a operação interestadual52. Porém, caso o vendedor saiba de antemão da intenção do comprador, o caso é típico de simulação relativa. Por um negócio jurídico fictício – o contrato de venda interestadual – as partes encobrem outro negócio jurídico, efetivamente ocorrido – o contrato de venda interna. Dessa forma, nos termos do art. 116, parágrafo único do CTN, desde que estatuído o devido procedimento em lei estadual, poderá o Fisco, mediante robusta instrução probatória, desconsiderar o negócio jurídico aparente (a venda interestadual) e tributar o negócio real (a venda interna) exigindo o imposto também do vendedor. Aplicando-se o art. 5º da LC 87/96, pode a lei estadual, no caso de constatada a simulação, responsabilizar tanto vendedor quanto comprador, solidária ou subsidiariamente, pois o ato de ambos (a simulação, que pressupõe a bilateralidade) importou em recolhimento a menor do imposto. 9. Conclusão. Respondendo ao questionamento proposto, conclui-se que o vendedor de boa-fé, na situação ora analisada, não pode ser responsabilizado. Isso porque, como contribuinte do imposto, não tem qualquer vinculação com a operação interna, decorrente do posterior desvio da mercadoria. Os aspectos material e temporal da hipótese de incidência que a ele se relacionam evidenciam que o fato gerador por ele praticado é a operação interestadual. Na ausência dessa vinculação, somada à não-realização, pelo vendedor, do fato gerador consistente na operação interna, não se pode exigir-lhe qualquer diferença a pagar, seja a título de contribuinte ou responsável. O comprador e o transportador poderão ser responsabilizados, pois se enquadram na definição do art. 5º da LC 87/96, ou seja, é aquele terceiro, vinculado ao fato gerador, que, por um seu ato ou omissão (desvio da mercadoria) acarreta o não recolhimento do imposto. Outra possibilidade de exigir-se o imposto do comprador se dá pela fiscalização e descobrimento da mercadoria em seu estabelecimento situado no mesmo Estado do vendedor ou sua intercepção no curso do transporte, presumindo-se aí ocorrido o fato gerador (11, I, alínea b da LC 87/96). 52 Nesse caso, a operação interna não pode ser oposta ao vendedor de boa-fé nem mesmo no âmbito do direito privado, pois, por não conhecer o intuito do comprador/transportador em enviar a mercadoria para local distinto do contratado (reserva mental), subsiste para ele o que foi declarado no contrato, nos termos do art. 110 do Código Civil. O vendedor somente será responsabilizado se tiver ciência da intenção do comprador em desviar a mercadoria, pois restará caracterizada a simulação, a autorizar a desconsideração da operação interestadual e a conseqüente tributação da operação interna.