PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Faculdade Paulista de Direito Pedro Ivo Vieira Silva A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO COMO VERDADEIRO AXIOMA DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO SÃO PAULO 2009 Pedro Ivo Vieira Silva A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO COMO VERDADEIRO AXIOMA DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO Trabalho de monografia jurídica apresentada ao Curso de Graduação, como parte dos requisitos para obtenção do título de bacharel em Direito, na área Constitucional-Administrativo sob orientação da Professora-Orientadora Christianne de Carvalho Stroppa. SÃO PAULO Setembro de 2009 Ao meu pai, Nathanael, maior responsável pelos valores e virtudes pilares de minha formação; à minha querida mãe, Rita Maris, por todo carinho, afeto e suporte psicológico; ao meu irmão, João Vitor, por todo estímulo e compreensão. AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer, primeiramente, à minha querida Professora Christianne Stroppa, que diante de suas mais ricas e cativantes exposições em sala de aula, me despertou um interesse todo especial pela disciplina de Direito Administrativo, e que resultou na elaboração deste trabalho sob sua orientação. Ao meu grande amigo Julio, que me indicou a leitura do livro que ensejou o tema para o presente estudo; vale dizer, mais uma de suas preciosas dicas que se tornou motivo fundamental na produção deste desafio, ao despertar minha curiosidade sobre um tema tão presente e atual, mas ao mesmo tempo, amplamente divergente e complexo. Aos meus amigos-irmão: Felipe Danilo, Gastão, Daniel, Labruna, Beda, Spinola, Mineiro, Cassito, Molina, (e alguns outros que ficaram ao longo da faculdade), que com a mais bem humorada e positiva convivência, fazem parte daquela que considero a fase mais importante de toda minha vida. Aos meus queridos amigos e companheiros do dia-a-dia: Antônio, Diego, Saber, Caio e Fábio, por toda paciência, apoio e consideração de uma verdadeira família. Aos meus amigos e comparsas de longas horas de estudos: Hugo, Alexandre, Jean, Léo, Elton e Sofia, por todo aprendizado espontâneo e descontraído, garantindo que a rotina nunca se torne algo monótono. À minha inesquecível e insubstituível Universidade – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – grande responsável pela minha formação, não só como jurista, mas também como pessoa, a qual passou a respeitar mais as diferenças e ver as coisas de forma mais crítica, mas ao mesmo tempo, mais humana. Por fim, à minha amiga, companheira e amada Sophia, que tanto acreditou na concretização deste trabalho. Eram nos momentos de maiores angústias e crises de ansiedade, que surgia ela, com toda sua serenidade e complacência, restabelecendo a paz e a harmonia, que só um grande e único amor tem o condão de conceber. “O de que mais se precisa no preparo dos juristas de hoje é fazê-los conhecer bem as instituições e os problemas da sociedade contemporânea, levando-os a compreender o papel que representam na atuação daqueles e aprenderem as técnicas requeridas para a solução destes”. Edgar Bodenheimer NOTA DO AUTOR Antes da produção do presente estudo, quando do surgimento do tema, muitos não só ficaram surpresos como me alertaram acerca do campo em que estava pretendendo me aventurar. A verdade é que diante de uma primeira reflexão, não dei tanta importância, mas após as leituras preliminares percebi que realmente o assunto era extremamente árido. Ocorre que, com base na contemporaneidade e pertinência do tema, juntamente com as advertências vieram os incentivos. Fato é, que o assunto desperta as mais diferentes curiosidades. Além disso, sendo a teimosia um de meus principais defeitos, optei, finalmente, pela produção do presente estudo. Contudo, isso não significa que as dificuldades e a complexidade foram afastadas. Pelo contrário, este é exatamente o motivo da presente nota. Nunca me deparei com um tema que pudesse envolver tantos outros. Foi esta a minha maior dificuldade, e que, com absoluta certeza, também será a do eventual leitor. Não restou outra alternativa senão tomar algumas teses majoritárias de diversas áreas (filosofia, sociologia, antropologia, etc) como premissas maiores, que possibilitaram desencadear raciocínios lógicos imprescindíveis para se chegar ao fim almejado. Com o intuito de propor uma fiel apresentação do estudo, insta salientar, que muitas destas teses não são de domínio do autor1 (além de não guardarem pertinência direta com objeto em estudo). Assim, far-se-ão constantes observações nas notas de rodapé sobre assuntos que não são unânimes nas respectivas áreas. Por outro lado – como disse – o assunto desperta as mais diversas curiosidades, guardando estreita ligação com fatos atuais do cotidiano. Assim, tentei expor ao máximo o estudo de forma prática, sem me afastar, contudo, do conteúdo jurídico e da técnica científica. 1 Já dizia José Souto Maior Borges: “Só quem não pensa está imune à contradição e ao erro (...) é até preferível um erro que decorra de uma tentativa ousada e comprometida com uma construção teórica grandiosa, a uma verdade elementar e até superficial”. RESUMO O presente trabalho está genuinamente ligado a um atual debate doutrinário, com a assunção de uma nova corrente que questiona o tradicional paradigma do Direito Administrativo, qual seja: a existência de uma Supremacia do Interesse Público sobre o Privado. Coincidência ou não, fato é que, ao lado desta nova dialética, novos e intrigantes casos concretos surgem trazendo pontos de extrema relevância e complexidade que necessitam ser diretamente enfrentados, principalmente quando em colidência com direitos fundamentais da pessoa humana. Baseado na aceitação da supremacia do interesse público como um verdadeiro axioma2, insculpido no direito positivo, alicerce do regime jurídico-administrativo, espalhado por todo o ordenamento brasileiro como princípio elementar do Estado Democrático de Direito, o trabalho visa contrapor doutrinas que defendem desde uma simples reconsideração até uma verdadeira desconstrução do princípio em tela3. Sob a égide de sua evolução histórica, juntamente com uma breve análise de conceitos preliminares, o primeiro passo será evidenciar que os mais importantes institutos do atual regime Constitucional-Administrativo estão intimamente ligados com o princípio em tela. Assim, ao contrário daqueles que defendem uma primazia de interesses privados, em absoluto descompasso com a atual dinâmica social, não se pode negar a noção de supremacia do interesse público como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, sob pena de se gerar grave instabilidade, desordem e insegurança social. O trabalho visa, a todo o momento, demonstrar que não se pode confundir o princípio com eventuais manipulações e desvirtuamentos. O ponto de questionamento não é a existência ou a inexistência do princípio em tela, mas sim, sua aplicação prática e a busca de formas mais eficientes e efetivas de se combater sua usurpação, delimitando ao máximo a atuação de seu executor, impedindo assim abusos e desvios de sua finalidade. 2 “Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.66. 3 SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007. SUMÁRIO Nota do Autor ...........................................................................................................................................5 Resumo ...........................................................................................................................................6 Introdução .......................................................................................................................................... 9 PARTE I – Evolução Histórica Capítulo I – Evolução Histórica à luz do Direito Administrativo .........................................................................................................................................12 Capítulo II – Evolução Histórica à luz das Cartas Constitucionais .........................................................................................................................................17 PARTE II – Conceitos Preliminares Capítulo III – Valor Normativo de Princípio ........................................................................................................................................ 22 Capítulo IV – Princípios (Não-Institucionais) versus Normas (Institucionais) ........................................................................................................................................ 28 Capítulo V – Interesse Público Primário e Interesse Público Secundário ........................................................................................................................................ 30 PARTE III – Principais Mecanismos que agem sob o Manto da Supremacia Capítulo VI – Supremacia Geral e Supremacia Especial ........................................................................................................................................ 34 Capítulo VII – Poder de Polícia da Administração Pública ........................................................................................................................................ 38 Capítulo VIII – Intervenções no Domínio Econômico e na Propriedade Privada ........................................................................................................................................ 41 PARTE IV – Interesses Públicos versus Interesses Privados Capítulo IX – Razões de Estado? ........................................................................................................................................ 45 Capítulo X – “Pré-Ponderação” (“Entronização”) versus Direitos Fundamentais ........................................................................................................................................ 49 Capítulo XI – Desconstrução? ........................................................................................................................................ 55 CONCLUSÃO Capítulo XII – Evitando Abusos e Desvios ........................................................................................................................................ 61 Capítulo XIII – Implicações Práticas .........................................................................................................................................62 BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................................................66 INTRODUÇÃO Inúmeros são os casos, na atualidade, envolvendo influentes ações afirmativas do Estado que, não raras às vezes, interferem de maneira substancial nos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, no direito de propriedade, e até mesmo, no desenvolvimento econômico de toda uma nação. Fato é que quanto maior o poder e a autonomia de interferência de um instituto legal – como é o caso de ações afirmativas do Estado fundadas no princípio da supremacia do interesse público – maior é o papel do cientista do direito em estabelecer caminhos para uma melhor interpretação do instituto, sempre com o intuito de assegurar sua aplicação em consonância com a Carta Magna, base hierárquica de todo o ordenamento jurídico. Conforme apontado por Luís Roberto Barroso, quando prefaciou a obra organizada por Daniel Sarmento, in verbis: “O Estado moderno, o direito constitucional e o direito administrativo passaram nas últimas décadas por transformações profundas, que superaram idéias tradicionais, introduziram conceitos novos e suscitaram perplexidades ainda não inteiramente equacionadas. Nesse contexto, surgem questões que desafiam a criatividade dos autores, dos legisladores e dos tribunais (...)”.4 Nesse sentido, nunca foi tão importante e necessária uma análise mais cautelosa e aprofundada acerca da atuação do Estado perante a sociedade, suas repectivas limitações e as implicações na hipótese de usurpação de seu dever-poder. Diga-se importante, pois são imprescindíveis as reflexões acerca da problemática posta, com o intuito de se desenvolver modelos mais eficazes que impossibilitem o uso arbitrário e indiscriminado de tal prerrogativa que, não raras às vezes, leva a desvios e abusos. Diga-se necessária, porque estes desvios e abusos já fazem parte da realidade com inúmeros casos empíricos estampados em capas de revistas e jornais, principalmente quando em colidência com direitos e garantias constitucionais. Como se não bastasse, nos últimos tempos, muitos temas de extrema complexidade vieram à tona ser objeto de profundos e complexos debates, fomentando ainda mais a questão da atuação Estatal. Entre eles, podemos citar: (i) as novas vertentes de proteção e garantias dos 4 BARROSO, Luís Roberto, Prefácio – O Estado Contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da Supremacia do Interesse Público, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. vii. 9 direitos fundamentais; (ii) nova hermenêutica constitucional; (iii) maximização dos direitos humanos por meio de tratados e convenções internacionais; entre outros. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso tece breves considerações trazendo uma noção de que o princípio da supremacia do interesse público não ficou imune às alterações dentro desta nova sistemática de: “(...) superação do caráter axiomático e absoluto do princípio da supremacia do interesse público, em um universo jurídico no qual se verificou a ascensão dos direitos fundamentais e foram desenvolvidas novas fórmulas doutrinárias, como a teoria dos princípios. Direitos e princípios passam, assim, a ser valorados à vista do caso concreto, de acordo com sua dimensão de peso específico, à luz de critérios como o da razoabilidade-proporcionalidade e o da dignidade da pessoa humana”.5 Ocorre que, se por um lado, há a maximização de preceitos ligados ao indivíduo como centro do ordenamento jurídico (homocêntrismo), por outro, nunca foi tão necessária a presença de um Estado atuante e onipresente, dotado de poderes conferidos pela própria ordem jurídica, para o efetivo exercício de suas atribuições, entre elas a própria garantia e proteção dos direitos individuais. Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em seu curso de Direito Administrativo: “Trata-se de uma limitação à liberdade individual mas tem por fim assegurar esta própria liberdade e os direitos essenciais ao homem”.6 A fim de ilustrar a temática posta, pode-se citar a grave crise econômica que assolou o mundo no último trimestre de 2008. Estima-se que o rombo provocado por uma crise na liquidez dos créditos deve ter ultrapassado os cinco trilhões de dólares. Não obstante, é do conhecimento de todos que com uma série de intervenções estatais, principalmente conduzidas pelos Estados Unidos e União Européia, o ordenamento econômico internacional evitou aquela, que muitos acreditavam, que seria a maior depressão de todos os tempos, superando até mesmo a quebra da bolsa de Nova York em 1929 com a crise do petróleo. Enfim, o que nos interessa no exemplo exposto e, em muitos outros que nos deparamos diariamente, é verificar o que legitimaria intervenções e condutas tão audaciosas do Estado. Em outras palavras, como o Governo Bush/Obama poderia injetar mais de dois trilhões de dólares na economia norte-americana com o intuito de evitar inúmeros “bankrupts” de instituições 5 6 Ob. cit., p. ix. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p. 61. 10 financeiras e seguradoras? Qual seria o limite do poder discricionário do governante? E caso este limite fosse transgredido, quais seriam os meios de controle e proteção? Em meio a tantas indagações, seria de extrema petulância buscar explicações a todas elas, sugerindo uma solução universal para todos os respectivos conflitos. Portanto, o presente trabalho visa fomentar os atuais debates e, principalmente, contrapor a nova corrente doutrinária7, que levada pelas mais recentes exposições acerca da constitucionalização dos direitos fundamentais (mais especificamente pela defesa de sua eficácia e efetividade), encarou tal princípio como sendo um verdadeiro mecanismo de autoritarismo reacionário do Direito Administrativo brasileiro, o que desde logo discordo e acredito ser uma visão distorcida da atual dinâmica sócio-política nacional. Ocorre que, não se trata de uma “desconstrução” do princípio que considero ser o pilar de todo o ordenamento constitucional-administrativo brasileiro, verdadeiro alicerce das atuais estruturas democráticas. Ao contrário, diria ser preciso integrá-lo cada vez mais aos novos anseios sociais que tanto carecem em determinadas áreas e camadas populacionais8. Pois como mesmo disse Daniel Sarmento 9: “a desvalorização total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos geral, inviabilizando qualquer possibilidade de regulação coativa da vida humana em comum”. Por tal fim é que o Estado detém, por exemplo, o monopólio da coação no que se refere à distribuição da justiça. Nas palavras de Miguel Reale: “O Estado, como ordenação do poder, disciplina as formas e os processos de execução coercitiva do Direito”.10 Finalmente, nas palavras do ilustre doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello (autor da tese que o presente trabalho irá se socorrer a todo o momento), ex positis: “Trata-se de um verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados”.11 7 SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007. 8 No mesmo sentido: BORGES, Alice Gonzáles, Supremacia do Interesse Público: Desconstrução ou Reconstrução?, Salvador, Revista Diálogo Jurídico, 2007. 9 Ob. cit., p. 24. 10 REALE, Miguel, Lições Preliminares do Direito. 27ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 76. 11 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, p. 66. 11 PARTE I – Evolução Histórica Capítulo I – Evolução Histórica à luz do Direito Administrativo A bem da verdade, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado encontra-se genuinamente ligado ao Direito Administrativo ao conquistar seu status de ramo autônomo do Direito12. Assim, é de suma importância a análise da evolução histórica do regime jurídico-administrativo para uma correta compreensão do princípio em tela e suas respectivas implicações no ordenamento jurídico atual. Apesar das raízes do Direito Administrativo serem oriundas de tempos mais remotos, ele realmente tem seu surgimento juntamente com o Estado de Direito. Ocorre que, anteriormente o que havia era uma espécie de Estado de Polícia13, no qual o poder estatal era ilimitado e concentrado na figura de um único governante, ou seja, uma supremacia do Soberano que não era submetido a qualquer tipo de contrapeso de interesses. Tratava-se de uma absoluta sujeição dos indivíduos ao seu poder absoluto. Assim de nada adiantaria uma disciplina voltado ao estudo das relações entre Administração Pública e administrados. Com a evolução econômica, e o conseqüente acúmulo de riquezas, novos pensadores, como o inglês John Locke, buscou limitar e distribuir as funções de Estado. Verifica-se, assim, que o primeiro passo na história foi uma espécie de movimento descentralizador, que buscou mitigar o poder do Monarca em prol da coletividade, o que resultou na queda do Regime Absolutista que deu lugar a organização de uma máquina Estatal de caráter representativo. Este episódio ensejou o início da produção de leis gerais e abstratas que deveriam ser seguidas por qualquer um do povo e, pela primeira vez na história, pelo próprio Estado14. Foi justamente essa idéia que implicou na concepção de Estado de Direito no qual a sociedade, por 12 “O sistema de Direito Administrativo Brasileiro se constrói sobre os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público pela Administração”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 52/54. 13 “No chamado Estado de Polícia, em que a finalidade é apenas a de assegurar a ordem pública, o objeto do Direito Administrativo é bem menos amplo, porque menor é a interferência estatal no domínio da atividade privada”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.03. 14 “Um dos princípio básicos do Estado Democrático de Direito é precisamente o da legalidade, em consonância com o qual o próprio Estado se submete às leis por ele mesmo postas”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p. 102/109. 12 meio de seus representantes, produz o direito e automaticamente a ele se vincula, sem qualquer espécie de exceção ou circunstância privilegiada. Ora, com a descentralização do poder e a conseqüente equiparação do Estado com o indivíduo no que tange sua subordinação às leis, num primeiro momento, o que mais se buscava era garantir este status conquistado, com o intuito de impedir a interferência do Poder Público na esfera da liberdade individual dos cidadãos. Afastou-se ao máximo a idéia de sobreposição dos interesses do Estado sobre o indivíduo, ao passo que todos deviam obediência às mesmas regras. Preleciona Maria Sylvia Zanella di Pietro15, que a formação do Direito Administrativo, como ramo autônomo do direito, teve início justamente com o direito constitucional e outros ramos do direito público16, a partir do momento em que começou a desenvolver-se o conceito de Estado de Direito, estruturado sobre o princípio da legalidade e sobre o princípio da separação de poderes. Percebe-se que tanto o Direito Constitucional como o Direito Administrativo surgem conjuntamente com o conceito de Estado de Direito, que por sua vez, decorre da estruturação de dois princípios de suma importância, quais sejam: o da legalidade e da tripartição dos poderes. O primeiro, desenvolvido pelo primado do filósofo francês Jean Jacques Rousseau17, dizia que as pessoas viviam em sociedade a partir de uma espécie de contrato social. Assim, a lei deveria ser basicamente uma expressão da vontade coletiva, a qual revelaria indiretamente o próprio interesse público. Conseqüentemente, o princípio da legalidade passou a assegurar a submissão geral e absoluta à lei fundamental; inclusive o Estado sendo submisso às suas próprias leis outorgadas18. Já a tripartição dos Poderes, tem sua origem na Grécia Antiga com o renomado filósofo, Aristóteles, em sua obra “Política”, quando identificou funções distintas exercidas pelo Poder Soberano, quais sejam: (i) editar normas gerais a serem observadas por todos; (ii) aplicá-las ao caso concreto, e; (iii) dirimir conflitos oriundos de sua aplicação, julgando-os. 15 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.02. Neste mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello: “(...) os títulos fundamentais do Direito Administrativo se alojam no Direito Constitucional. Assim, o Direito Administrativo de cada país possui feição que lhe confere o respectivo Direito Constitucional”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 28. 17 WEFFORT, Francisco C. (org.). Os Clássicos da Política. 11ª Ed., 1º Vol. São Paulo, Ática, 1999, p. 187. 18 Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que: “O Direito Administrativo só se plasmou como disciplina autônoma quando se prescreveu processo jurídico para atuação do Estado-poder, através de programas e comportas na realização das suas funções”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 42. 16 13 Mas tal teoria, viu sua maior evolução com o pensador francês, Barão de Montesquieu, em sua obra “Do Espírito das Leis”, quando, ao contrário do filósofo grego, passou a analisar não só a separação das funções, como também a pluralidade de Soberanos19. Dizia basicamente que a concentração de Poderes nas mãos de um só Soberano leva à tirania. Assim, os respectivos Poderes deveriam ser fracionados entre mais de um Soberano, mesmo porque apenas um Poder tem o condão de controlar outro Poder. Estes Soberanos deveriam ser autônomos e independentes entre si, podendo exercer apenas as funções inerentes às suas atribuições20. O raciocínio empregado por Montesquieu repercutiu inúmeras conseqüências, entre elas, uma de suma importância chamada de Teoria dos Freios e Contrapesos (mais conhecida como "Checks and Balances"). Esta teoria, basicamente a lógica do Estado Democrático de Direito, prega a independência e a harmonia entre os Poderes do Estado, fazendo com que o Poder Executivo disponha de meios para agir no caso concreto, limitados sempre às regras gerais e abstratas do Poder Legislativo e fiscalizados pelo Poder Judiciário. Ausentes, portanto, o surgimento, a fiel execução e o devido controle das leis (princípios da tripartição juntamente ao da legalidade) não há como se invocar a supremacia do interesse público para realizar absolutamente nenhum ato de Estado. Asseguram-se assim as garantias individuais entre particulares e o próprio Estado, protegendo os cidadãos contra qualquer tipo de abuso na atuação normativa e material do Estado. Instaurado o Estado Democrático de Direito, este não permaneceu imutável, sendo que sua evolução foi marcada por uma verdadeira alternância de ideologias21. Nesse sentido, ensina Luis Roberto Barroso: “Ao longo do século XX, o Estado percorreu uma trajetória pendular. Começou liberal, com funções mínimas, em uma era de afirmação dos direitos políticos e individuais. Tornou-se social (...) assumindo encargos na superação das desigualdades e na promoção dos direitos sociais. (...) Neoliberal, concentrando-se na atividade de regulação, abdicando da intervenção econômica direta, em um movimento de desjudicização de determinadas conquistas sociais. E assim chegou ao novo século e ao novo milênio. O Estado contemporâneo (...)”.22 19 WEFFORT, Francisco C. (org.). Os Clássicos da Política. 11ª Ed., 1º Vol. São Paulo, Ática, 1999, p. 121. Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 31. 21 “Na realidade, o conteúdo do Direito Administrativo varia no tempo e no espaço, conforme o tipo de Estado adotado”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.03. 22 BARROSO, Luís Roberto, Prefácio – O Estado Contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da Supremacia do Interesse Público, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. xi. 20 14 Como se percebe, a pendular alternância tem seu início na Europa do século XVIII, com o surgimento da famigerada Teoria Liberal, baseada na liberdade de iniciativa e na autonomia moral e econômica da sociedade em oposição à concentração do poder político. Seus principais representantes foram: Adam Smith com sua obra “O Capital” e John Locke com sua obra “Dois Tratados sobre o Governo”. Influenciados pelos princípios do Iluminismo e do Utilitarismo, pregavam a afirmação dos direitos políticos e individuais, entre eles a noção de propriedade privada. Além disso, defendiam a desnecessária intervenção estatal na economia, que seria regulada naturalmente pelas leis naturais do próprio mercado, qual seja a lei da oferta e procura na livre concorrência. Note que a ideologia buscou a intervenção mínima do Estado, tendo caráter meramente excepcional uma possível interferência ou controle estatal. A sociedade buscava a afirmação de seus direitos políticos e individuais, depois de um longo tempo suprimidos pelo Absolutismo. Esse movimento ficou conhecido como direitos fundamentais de primeira geração (ações negativas impostas ao Estado). Nesse sentido, podia-se cogitar em limitar o exercício dos direitos individuais apenas para assegurar um bem maior, qual seja: a ordem pública. De acordo com Romeu Felipe23, no Estado Liberal, percebe-se um esforço concentrado em divisar as fronteiras entre Direito Público e Privado. Tratava-se de delimitar as esferas de atuação do Estado e do particular, a fim de resguardar a liberdade diante do exercício da autoridade. Nas palavras de Luis Barroso, o liberalismo cunhava uma dualidade que contrapunha Estado e Sociedade. Entretanto, restou comprovado não serem suficientes tais direitos. Apesar de a sociedade ter visto garantido seus direitos mínimos, necessário se fez ampliar as prerrogativas do Poder Público, até mesmo com a previsão de limitações aos direitos individuais, a fim de viabilizar o exercício de seus deveres, atribuídos pelos próprios administrados: “Até um certo ponto da História havia a nítida e correta impressão de que os homens eram esmagados pelos detentores do Poder político. A partir de um certo instante começou-se a perceber que eram vergados, sacrificados ou espoliados não apenas pelos detentores do poder político, mas também pelos que o manejavam: os detentores do Poder econômico. Incorporou-se, então ao ideário do Estado de Direito o ideário social, surgindo o Estado Social de Direito, também conhecido como Estado de Bem-estar (Welfare State) e Estado-Providência”.24 23 24 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe, Direito Público x Direito Privado. Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 49. 15 É nesse contexto que surge a figura do Estado Social25, no qual de forma contraposta, buscou basicamente a igualdade e promoção dos direitos sociais, por meio da reintrodução da atuação Estatal (caráter de interesse público e coletivo sobre o privado). É o chamado de direitos fundamentais de segunda geração (“Welfare State”). De acordo com Daniel Sarmento26, este movimento ensejou a crescente intervenção do Estado nos mais diversos domínios, multiplicação de normas de ordem pública e uma nova principologia dos códigos nacionais. Podemos dizer que este foi o momento de apogeu da supremacia do interesse público27. O Estado era demasiadamente intervencionista, principalmente na órbita da livre iniciativa. Não bastava um simples desenvolvimento econômico. Este deveria ser seguido por melhores condições de vida aos administrados, além de maior participação da coletividade. Conforme ensinamentos de Maria Sylvia Zanella di Pietro28: “O Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do individuo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem-estar coletivo”; e traz as respectivas repercussões no âmbito da supremacia do interesse público: “(...) ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender às necessidades coletivas (...) o mesmo ocorreu com o poder de polícia do Estado, que deixou de impor obrigações apenas negativas (não fazer) visando resguardar a ordem pública, e passou a impor obrigações positivas (...) surgem novos preceitos que revelam a interferência crescente do Estado na vida econômica e no direito de propriedade (...) cresce a preocupação com os interesses difusos”. A Constituição Brasileira de 1988 representa perfeitamente este ideário, ensina Celso Antônio Bandeira de Mello29; mas complementa, todavia, que este bem-estar social jamais passou do papel para a realidade, conforme melhor exposto no próximo capítulo. 25 “O Estado do Bem-estar é um Estado mais atuante; ele não se limita a manter a ordem pública, mas desenvolve inúmeras atividades na área da saúde, educação assistência e previdência social, cultura, sempre com o objetivo de promover o bem-estar coletivo. Nesse caso o Direito Administrativo amplia o seu conteúdo, porque cresce a máquina estatal e o campo de incidência da burocracia administrativa. O próprio conceito de serviço público amplia-se, pois o Estado assume e submete a regime jurídico publicístico atividades antes reservadas a particulares”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.03. 26 Ob. cit., p. 25. 27 “O Estado Social de Direito representou, até a presente fase histórica, o modelo mais avançado de progresso, a exibir a própria evolução espiritual da espécie humana”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 49. 28 Ob. cit., p. 60. 29 Exemplos: art. 1º, III e IV, § 3º, I, III e IV, § 7º, II e IV, art. 170, caput, e incs. III, VII e VIII entre outros. Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 49. 16 Capítulo II – Evolução Histórica à luz das Cartas Constitucionais A fim de compreender os moldes da atual Constituição Federal, considera-se de suma importância fazer um breve apanhado histórico daquelas que a antecederam. Foram basicamente oito constituições ao todo, o que significa quantidade elevada quando comparado a outros regimes que mantiveram uma única constituição ao longo de toda sua história, como é o caso dos Estados Unidos. Acerca das duas primeiras cartas constitucionais de 1824 e de 1891, insta salientar, que ambas são características de um regime em transição, vale dizer, do império para a república. A primeira tem como característica mais marcante a concentração de poderes nas mãos do imperador que exercia o cargo de Poder Moderador. Espelhada nas grandes revoluções que se passavam no continente europeu, ela resultou em inúmeros direitos individuais. Mas estes não eram aplicados de maneira homogênea tendo em vista que à época ainda vigorava o regime da escravidão. Já a segunda Carta Constitucional de 1891 consistiu na primeira Constituição Republicana do Brasil. Foi marcada pelas considerações de Rui Barbosa, que por ser profundo conhecedor do constitucionalismo norte americano, importou inúmeros modelos do mesmo, como, por exemplo, a grande autonomia dos Estados-membro da federação. Pode-se dizer, que foi a partir de 1934 que grandes transformações no sistema jurídicoconstitucional brasileiro realmente ocorreram. Amplamente influenciada pela Constituição de Weimar de 1919, que tratou pela primeira vez dos direitos sociais, a Constituição 1934 previu a existência digna da pessoa humana, a proteção social do trabalhador e a necessidade da vida nacional como limites à garantia da liberdade econômica e da atuação estatal.30 A Carta de 1937 foi marcada pelo golpe militar de Getulio Vargas, que institui o regime da ditadura. Assim, a autonomia dos Estados concedida pelo ordenamento anterior foi amplamente retirada. Além disso, voltou a possibilidade de intervenção estatal no domínio 30 Para o presente estudo, esta carta constitucional foi de suma importância, tendo em vista que possuía um inovador conteúdo intervencionista, o qual introduziu os princípios da justiça social e das necessidades da vida nacional, de modo a possibilitar a todos uma existência digna, além de garantir a liberdade econômica dentro de tais limites, como elementos fundamentais para a organização da ordem econômica. Com pequenas variações, como será percebido ao longo das exposições das demais cartas constitucionais subseqüentes, pode-se dizer que, no essencial, esse tem sido o modelo de constituição econômica adotada dentro do ordenamento jurídico pátrio. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 1405. 17 econômico visando suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores de produção. Após a renúncia de Getúlio Vargas, o Brasil passou por um processo de redemocratização, o que gerou a primeira constituição promulgada e democrática do país em 1946. Voltou-se a conceder maior autonomia aos Estados e, calcada no princípio da justiça social, garantiu diversos direitos individuais como a liberdade de iniciativa e a valoração do trabalho. Em seguida, caracterizada como uma constituição antidemocrática e centralizadora, retirando novamente a liberdade dada aos Estados, a Carta Constitucional de 1967 foi marcada pelo AI-5, no qual ao presidente eram conferidos poderes como: decretar o recesso do congresso nacional, legislar sobre todas as matérias, decretar intervenção de estados e municípios, suspender direitos políticos, entre outros. Na mesma linha foi a Carta de 1969, havendo autores que defendem que ela não passou de uma mera emenda. Outorgada pelo regime militar, concentrou ainda mais os poderes nas mãos da União, o que culminou em um exacerbado autoritarismo, marcada pela intensa restrição das liberdades individuais. Percebe-se uma absoluta alternância das características adotadas ao longo da história constitucional brasileira que culminou, por fim, na atual Constituição Federal de 1988. Conhecida como a “Constituição Cidadã”31, restabeleceu a federação, devolvendo definitivamente aos Estados e Municípios suas competências que haviam sido suprimidas pelo último regime que a precedeu. Baseada em preceitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, não se limitou às regras clássicas do constitucionalismo, trazendo imensurável rol de direitos e garantias fundamentais, sendo considerada, por muitos, até mais avançada que tratados e convenções internacionais de direitos humanos. Sua extensa e detalhista redação tem suas razões de ser. Promulgada em uma época de grande instabilidade política, buscou ser uma síntese das conquistas feitas por setores da sociedade que buscavam assegurar o máximo de garantias possíveis, a fim de evitar futuras 31 Nesse sentido Nelson Nazar: “Constituição Cidadã - como toda constituição, é uma síntese das conquistas feitas por setores da sociedade no momento em que produzida. Portanto, importante salientar que a CF/88 nasce no período pós-ditadura de 1964 sendo muito pródiga em criar direito e mecanismos para evitar que os direitos fossem violados pelas atuações estatais (ações administrativas). Assim, chamada de ‘constituição cidadã’ ela consagrou inúmeros direitos fundamentais individuais e limitou ao máximo o poder público”. NAZAR, Nelson, Direito Econômico, 1ª Ed., Bauru, Edipro, 2004, p. 60. 18 intervenções autoritárias.32 Insta salientar, que este extenso e detalhista rol de direitos e garantias, acarreta grandes dificuldades aos Tribunais e, principalmente, à Suprema Corte, encarregada de fiscalizar a observância dos preceitos expressos no texto constitucional. Entretanto, caracterizada como uma espécie de “constituição dirigente”33, nas lições de Canotilho, busca determinar tarefas ao Estado visando alcançar, através do direito, a plena mudança da sociedade. No mesmo sentido, Oscar Vilhena explica que ela não traz apenas instrumentos de limitação ao poder do Estado ou simples organizadoras do governo, mas também buscam criar condições de realização de uma justiça social e econômica.34 Ocorre que, este fenômeno provoca um vasto bloco de normas diretivas e programáticas, de complexa aplicabilidade e sem o mínimo de regulamentação, que dificulta muito o tradicional controle de constitucionalidade. Como se não bastasse, prejudica também a própria eficácia das normas constitucionais, ao passo que, sob essa tradicional classificação quanto à sua executoriedade (operativas versus programáticas)35, definem objetivos cuja concretização depende de providências situadas fora ou além do texto constitucional, o que as torna um conveniente mecanismo de inaplicabilidade e ineficácia do respectivo valor normativo. Segundo Rui Barbosa, realmente as disposições constitucionais, em sua maioria, não são auto-aplicáveis, mesmo porque a Constituição não se executa em si mesma, antes impõe ou requer a ação legislativa, para lhe tornar efetivos os preceitos, o que não quer dizer, entretanto, que a Lei Maior possua cláusulas ou preceitos a que deve atribuir o valor moral de simples conselhos, avisos ou lições, até porque todos têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou populacional aos seus órgãos.36 Diante da mencionada problemática, a meu ver, a idéia do legislador constituinte, não foi de criar um conjunto de normas simplesmente programáticas, ou seja, normas que apenas na “medida do possível” devem ser devidamente cumpridas. Ao contrário, buscou confiar à responsabilidade do Estado, inúmeros anseios de curto, médio e longo prazo, talvez, a fim de garantir vida longa à nova carta constitucional. Assim, explicitou ao máximo todo conteúdo dos 32 Conseqüentemente, um dos resultados foi um grande número de normas pragmáticas (normas de eficácia limitada) que até hoje se encontram sem regulamentação. 33 CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Ed., Coimbra, 1983, p. 457. 34 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal – Jurisprudência Política, 2ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 35. 35 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 49. 36 Ob. supracitada, p. 50. 19 deveres do Estado, com intuito de cercear uma eventual fuga de seu cumprimento. Corroborando o exposto acima é que, se por um lado, ela impôs uma série de deveres, por outro, ela reconheceu artifícios para que o Estado pudesse exercer suas respectivas atribuições37. É o caso dos princípios da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e da Indisponibilidade do Interesse Público. Acontece, porém, que juntamente com a promulgação da respectiva constituição adveio a corrente do neoliberalismo, que pregava a livre iniciativa absoluta e o desenvolvimento econômico a qualquer preço. Assim, grande parte daquelas prerrogativas garantidas ao Governo pela própria Carta Magna, com o intuito de exercer suas atribuições frente aos anseios sociais, foram indevidamente cedidas a uma minoria empresarial, e os direitos sociais do povo foram gradualmente mitigados. Vale dizer, este afastamento do Estado acarretou um verdadeiro retrocesso na qualidade de vida dos indivíduos. Celso Antônio Bandeira de Mello chega a falar em uma espécie de “darwinismo” social e político38, ao passo que restabeleceram um ilimitado domínio dos interesses econômicos dos mais fortes. Ainda de acordo com o autor, com a queda do socialismo russo, aquele modelo mundial bipolarizado caiu, dando lugar a uma expansão desenfreada do modelo capitalista, já que não mais havia qualquer contraponto ideológico. “O Estado Social de Direito emerge, encerrando o ciclo do liberalismo, quando emerge o comunismo. Tão logo fracassa o comunismo, renascem, de imediato, com vigor máximo as idéias liberais, agora ‘recautchutadas’ com o rótulo de ‘néo’, propondo liminarmente a eliminação ou sangramento das conquistas trabalhistas e direitos sociais, do mesmo passo em que revive o imperialismo pleno e incontestado, sob a designação aparentemente técnica de ‘globalização’. Não há nisto, como é óbvio, coincidência alguma. O que há é disseminação de idéias políticas, de interesse dos países dominantes e das camadas sociais mais favorecidas. Livres, uns e outros, dos temores e percalços que lhes impuseram as concessões feitas no curso do século presente, empenham-se, agora, ao final dele, em retomar as posições anteriores. Trata-se, como se vê, de um retorno ao mesmo esquema de poder, nos planos interno e internacional, vigente no final do século passado e início deste”.39 37 “(...) os dois aspectos fundamentais que o caracterizam (regime jurídico a que se submete a Administração Pública) são resumidos nos vocábulos prerrogativas e sujeições, as primeiras concedidas à Administração, para oferecer-lhe meios para assegurar o exercício de suas atividades, e as segundas como limites opostos à atuação administrativa em beneficio dos direitos dos cidadãos (...) dois aspectos opostos: a autoridade da Administração Pública e a liberdade individual”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p. 102/109. 38 Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 49. 39 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. A democracia e suas dificuldades contemporâneas. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 51, out. 2001. 20 Ocorre que este modelo exacerbado mostrou rapidamente sua face mais perversa. Fundadas em falsas premissas que invocavam reformas seguidas de reformas, o Estado conseguiu reduzir sua atuação ao mínimo. Assim, foi possível viabilizar uma série de: “(...) ‘privatização’, para passar a mãos privadas a titularidade ou meramente a prestação de serviços públicos; ‘flexibilização’ da legislação protetora economicamente hipossuficiente e irrestrita abertura dos mercados”.40 Contudo, esta campanha foi rapidamente dissipada, não passando de um breve “soluço”41 na história. Diferente não poderia ser. A população pôde vivenciar um período nitidamente de completa abstenção do exercício dos deveres do Poder Público apregoados na Constituição Federal, como: direito à saúde, educação, transporte, entre outros. Apesar de todos os problemas que circundam a atuação Estatal na sociedade, após esta passagem, restou comprovada sua importância. Enquanto prevalecer o atual modelo político, tais intervenções estatais devem se protrair no tempo, a fim de se garantir a estabilidade e o mínimo do bem-estar da coletividade. Por bem ou por mal, não há (ainda) outra instituição capaz de zelar por tais ônus, senão o Estado. Não se pode negar que a iniciativa privada tem como seu objetivo maior a aferição de lucros. Assim, entre buscar o bem-estar da coletividade ou cifras cada vez maiores, estas estarão sempre em primeiro plano. Os últimos acontecimentos permitem constatar que para se garantir a liberdade individual e o mínimo de dignidade humana, o exercício dos deveres do Estado deve ser mantido. Para que isso seja possível, prerrogativas devem ser concedidas. E estas são fundadas diretamente na própria supremacia de um interesse público sobre o particular. Basicamente, seria esta a nova vertente da conjectura atual, estancada em nossa Constituição Federal, base de um futuro, ao menos, próximo42. 40 Ob. supra cit., p. 49/50. Ob. supra cit., p. 50. 42 “Podemos afirmar que, em nossos dias, o Estado contínua sendo a entidade detentora por excelência da sansão organizada e garantida”. REALE, Miguel, Lições Preliminares do Direito. 27ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p 76/77 41 21 PARTE II – Conceitos Preliminares Capítulo III – Valor Normativo de Princípio Apesar de não ser o cerne do presente estudo, este é talvez um dos argumentos mais contundentes da doutrina oposta, que merece especial destaque. Sob a égide das mais recentes doutrinas acerca do valor normativo de princípio dentro do ordenamento jurídico, imprescindível se faz verificar as peculiaridades da estrutura lógica-normativa dos princípios em geral. Além disso, para esclarecer as relações jurídicas que deles se originam, principalmente quando ligadas aos direitos fundamentais, insta verificar seus elementos básicos de norma jurídica e os reflexos que incidem sobre o instituto quando em colidência com as demais regras jurídicas de mesma hierarquia43. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello44: “Para quem se ocupa do estudo do Direito, assim como para quaisquer que o operem, nada mais interessa senão saber que princípios e que regras se aplicam perante tais ou quais situações”; mas adverto, contudo, evitar ao máximo transcender à teoria pura do direito, na qual se objetiva tão somente conhecer suas normas jurídicas, evitando prescrevê-las ou até mesmo explicá-las45. Roque Antônio Carraza salienta desde o início: “Registramos, desde logo, que os princípios constitucionais têm caráter normativo”. E segue com sua exposição, dizendo que: “Princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam (...) se apresenta sempre relacionado com outros princípios e normas, que lhe dão equilíbrio e proporção e lhe reafirmam a importância”.46 43 Cf. exposto por Alexandre Santos na ob. cit. p. 9/10: “A mais moderna hermenêutica constitucional tem formulado critérios de identificação e categorização dos argumentos jurídicos, partindo, então, em um segundo momento, para a enumeração de que espécies de argumentos devem ser consideradas prioritárias sobre as outras (...) os argumentos jurídicos ligados diretamente ao texto da regra específica a ser aplicada devem prevalecer sobre os argumentos metajurídicos ou mais genéricos e subjetivos”. 44 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, p. 27. 45 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 2ª Ed., vol.II, Coimbra, Sucessor, 1962, p.2, trad. João Baptista Machado 46 Curso de Direito Constitucional Tributário, 23ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 36/40. 22 Mas a questão não é tão simples assim. A concepção de princípio foi introduzida, primeiramente, por Anaximandro já na Grécia antiga. Posteriormente, foi utilizado por Platão, no sentido de fundamento do raciocínio; depois, por Aristóteles, como a premissa maior de uma demonstração, e; séculos mais tarde, por Kant, como preposição geral que pode servir de premissa maior de um silogismo. Basicamente, o sentido etimológico do vocábulo princípio sugere a idéia de começo, origem, base, ponto de partida. Traz uma noção de diretrizes, nortes, patamar privilegiado47. A doutrina mais tradicional, como a seguida por Noberto Bobbio, em seu primado “O Positivismo Jurídico”, trabalha com a visão de uma abertura entre o direito e a moral. Assim, não haveria na verdade uma ruptura do positivismo, mas sua mera releitura. Indo mais a fundo, de acordo com Canotilho e Vital Moreira, os princípios seriam núcleos de condensações nos quais confluem valores e bens constitucionais, verdadeiras ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas. Assim, por serem bases de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional. Percebe-se uma clara tendência de positivação dos princípios48, o que os aproxima da forma disjuntiva das regras de direito no momento de sua aplicação aos casos concretos. Com efeito, em razão de sua estrutura normativo-material, se comportariam igualmente às regras: “Em se tratando de regras de direito, sempre que a sua previsão se verificar numa dada situação de fato concreta, valerá para essa situação exclusivamente a sua conseqüência jurídica, com o afastamento de quaisquer outras que dispuserem de maneira mais diversa, porque no sistema não podem coexistir normas incompatíveis. Se, ao contrário, aqueles mesmos fatos constituírem hipóteses de incidência de outras regras de direito, estas e não as primeiras é que regerão a espécie, também integralmente e com exclusividade, afastando-se – por incompatíveis – as conseqüências jurídicas previstas em quaisquer outras regras pertencentes ao mesmo sistema jurídico”.49 A doutrina mais atual, denominada de pós-positivista ou principialista, desenvolvendo ainda mais a questão, tende a superar o estrito legalismo sem se aproximar por demais do 47 Cf. Roque Carraza, ob. supra cit., p. 36. Com mais detalhes anota Karl Larenz: “os princípios não são – ou ainda não são – regras suscetíveis de aplicação direta e imediata, mas apenas pontos de partida ou pensamentos diretores, que sinalizam – aí se detém o legislador – para a norma ser descoberta ou formulada por quem irá aplicá-la conforme as exigências do caso”. 48 Nesse sentido é o critério adotado por Ronald Dworking ao dizer que a diferença entre regras e princípios é de natureza lógica e que decorre dos respectivos modos de aplicação. 49 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 53. 23 jusnaturalismo50. Trabalha com a idéia de que princípio é uma regra de conduta assim como as normas positivadas, porém mais abstrata e geral. Assim, os principialistas acreditam na existência de uma verdadeira ruptura entre o campo da moral e o campo do direito. Neste momento é que o princípio surgiria regulando lacunas e integrando as normas postas, sendo equiparado à parte integrante do direito positivo (atribuição de normatividade). Depreende-se da obra de Gilmar Mendes, que neste campo de aplicação dos princípios, não se faz necessária a formulação de regras de colisão, porque essas espécies normativas: “Parece não se prestarem provocar conflitos, criando apenas momentâneos estados de tensão ou de mal-estar hermenêutico, que o operador jurídico prima facie verifica serem passageiros e plenamente superáveis no curso do processo de aplicação do Direito (...) por isso é que, diante das antinomias de princípios, quando em tese mais de uma pauta lhe parecer aplicável à mesma situação de fato, em vez de se sentir obrigado a escolher este ou aquele princípio, com exclusão de outros que, prima facie, repute igualmente utilizáveis como norma de decisão, o intérprete fará uma ponderação entre os standards 51 concorrentes”. Percebe-se, diante desta inovadora doutrina, verdadeiro status de norma concebido às regras e aos princípios, de modo que a distinção entre eles passou a ser meramente a de duas espécies dentro do gênero norma52, e não um gênero distinto como alguns juristas vem afirmando. Além disso, seria fiel representação do espírito e intenção do legislador, representante da própria sociedade. Trata-se de normas gerais de comando que nem sempre são positivadas, mas nem por isso merecem menor consideração a que normas positivadas. 53 Passa a ser visto como um mandamento nuclear do sistema, base e origem de todo o ordenamento jurídico constitucional. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello54: “(...) verdadeiro alicerce de um sistema, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere tônica e lhe dá sentido harmônico”. Entretanto, tal posicionamento não é unânime. Há uma corrente minoritária que defende basicamente a inexistência de uma norma-princípio da supremacia do interesse público sobre o particular no ordenamento jurídico pátrio55. 50 BARROSO, Luís Roberto, Prefácio – O Estado Contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da Supremacia do Interesse Público, Lumen Júris, 2007, p. xiii. 51 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 55. 52 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2005, p. 92. 53 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p. 57. 54 Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 923. 24 Além disso, a Administração não poderia de maneira alguma exigir um comportamento do particular com base nesse princípio. Este não pode ser considerado nem princípio-jurídico nem norma-princípio, seja conceitualmente ou normativamente analisado. Não é sequer um postulado explicativo do Direito Administrativo, o que mostra um posicionamento exageradamente legalista e fora dos parâmetros atuais. Com efeito, argumentam dizendo que se assim não fosse, não apenas os princípios, mas também as regras, seriam “mandatos de otimização” 56, tendo em vista que não só as regras, mas também os princípios, podem entrar em colisão total, de tal sorte que, nem no caso concreto, a aplicação de determinado princípio afastaria os outros eventualmente colidentes.57 Alega que a atividade administrativa não pode ser exercida sob o influxo deste princípio e que o interesse público pode até possuir significado jurídico, mas não pode ser descrito como prevalente quando contraposto aos interesses particulares. Outrossim, busca com toda a exposição, diminuir a equivocidade que a descrição e a aplicação deste princípio em tese proporcionam. De acordo com esta doutrina, a única idéia apta a explicar a relação entre interesses públicos e particulares, ou entre Estado e o cidadão, seria o sugerido postulado da unidade da reciprocidade de interesses, o qual implica uma principal ponderação entre interesses reciprocamente relacionados (interligados) fundamentada na sistematização das normas constitucionais. E acrescenta: “(...) a ponderação deve, primeiro, determinar quais os bens jurídicos envolvidos e as normas a eles aplicáveis e, segundo, procurar preservar e proteger, ao máximo, esses mesmo bens. Caminho bem diverso, portanto, do que direcionar, de antemão, a interpretação das regras administrativas em favor do interesse público, o que quer que isso possa vir a significar (...) mesmo nos casos em que ele legitima uma atuação estatal restritiva especifica, deve haver uma ponderação relativamente aos interesses privados e à medida de sua restrição. É essa ponderação para atribuir a máxima realização aos direitos envolvidos o critério decisivo para a atuação administrativa. E antes que este critério seja delimitado, não há cogitar sobre a referida supremacia do interesse público sobre o particular”.58 55 ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 171. 56 Termo sugerido pelo doutrinador alemão: ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, 2ª Ed., São Paulo, Landy, 2001, p. 86. 57 Gilmar Mendes na ob. cit. p. 59, desenvolvendo a doutrina exposta de Humberto Ávila. 58 ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 192/193. 25 Igualmente, o princípio jurídico não seria uma regra de direito positivada, contendo uma natureza amplamente aberta, indeterminada e plurissignificativa, como um verdadeiro mandato de otimização, vale dizer nas palavras de Gilmar Mendes, um tipo de norma que se opera gradualmente e dentro do possível (não se implementa em termos absolutos a ponto de excluírem a aplicação de outras). Noutras palavras, ao invés de buscar a finalidade a que foi desenvolvido o instituto do mandato de otimização, qual seja, de fundamento para uma diferença qualitativa entre regras e princípios, acabaria como uma mera técnica de argumentação, utilizável não somente na aplicação dos princípios, como também a toda e qualquer regra de direito. Visão esta que acredito ser distorcida e equivocada. Realmente os princípios não trazem modelos deônticos claros – como também é o caso do princípio da supremacia do interesse público – o que muitas vezes dificulta bastante sua aplicação ao caso concreto. Entretanto,como se não bastasse servirem como uma diretriz geral para a interpretação e aplicação dos enunciados normativos, consistem muitas vezes na ratio legis para justificar e esclarecer, total ou parcialmente, as finalidades de um texto legislativo. Remetendo-se novamente à doutrina principialista anteriormente vista, verifica-se que ao contrário das normas positivadas, os princípios podem coexistir com outros princípios de sentido diverso. Seria o fenômeno principiológico que o doutrinador germânico, Robert Alexy, chama de harmonização dos princípios: “Resolve-se esse conflito estabelecendo, entre os princípios concorrentes, uma relação de precedência condicionada, na qual se diz, sempre diante das peculiaridades do caso, em que condições um princípio prevalece sobre o outro, sendo certo que, noutras circunstâncias, a questão da precedência poderá resolver-se de maneira inversa”.59 Assim, não podemos nos valer das técnicas ordinárias aplicadas ao mundo fenomênico das regras, que por sua própria natureza, são mais rígidas no sentido de haver apenas uma única regra aplicável para cada caso específico. Trazem modelos disjuntivos de aplicação aos conflitos, ou seja, valem ou não valem, incidem ou não incidem, umas afastando e anulando a aplicação das demais, impondo uma verdadeira conseqüência jurídica antinômica, reciprocamente excludentes. Para melhor entender a tese, o próprio Alexy diz que: “O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios reside em que os princípios são normas ordenadoras de que algo se realize na maior medida possível, dentro das 59 Cf. Gilmar Mendes ob. cit. p. 58. 26 possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandatos de otimização, caracterizados pelo fato de poderem ser cumpridos em diferentes graus, e a medida do seu cumprimento não depende apenas das possibilidades reais, mas também das possibilidades jurídicas”.60 Enquanto as regras devem ser aplicadas diante de uma situação prática, os princípios devem ser aplicados na medida do possível. São de extrema valia em razão da abertura moral que possuem, mesmo porque são considerados cânones de interpretação do sistema jurídico. Alexy entende que não há uma diferença quantitativa entre regras e princípios e sim qualitativa, no sentido de que os princípios são mandados de otimização, ao passo que as regras são mandados de realização. Destarte, ser obra do Ministro, atual Presidente da Suprema Corte Pátria, a meu ver o modelo de “mandato de otimização” não visa trazer a idéia de um mecanismo, que por causa de sua falta de precisão, ampla generalização e indeterminação, pode ser usado indiscriminadamente sem critério algum, o que facilita seu emprego exacerbado, e dificulta muito seu controle jurisdicional, senão vejamos: “O âmbito dessas possibilidades jurídicas é determinado pelo princípios e regras opostos. As regras, ao contrário, só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então há de se fazer exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos. Por conseguinte, as regras contêm determinações no âmbito do que é fática e juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma ou é uma regra, ou é um princípio”. 61 Esta técnica consiste na maximização de suas respectivas aplicações na esfera de cada um dos princípios conflitantes. A bem da verdade, a teoria de Alexy não afasta a possibilidade de análise ao caso concreto. Sempre que a harmonização dos princípios não for possível, necessário se faz à análise do caso concreto para então verificar qual deverá prevalecer. Em outras palavras, não se trata de um juízo apriorístico universal sobre qual princípio deve prevalecer, pois em cada caso demandará um juízo de valor diferente, variando assim qual será o princípio mais pertinente para aquele respectivo caso concreto. 60 61 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, 2ª Ed., São Paulo, Landy, 2001, p. 86. Ob. cit., p. 87. 27 Capítulo IV – Princípios (Não-institucionais) versus Normas (Institucionais) Alexandre Santos62, visando demonstrar uma suposta fragilidade dos argumentos nãoinstitucionais (leia-se princípio) frente aos argumentos institucionais (normas positivadas), argumenta que cidadãos e investidores não podem ficar sujeitos à permanente ameaça da invocação da supremacia do interesse público, pois isso iria contra a concepção de uma sociedade democrática, na qual deve prevalecer a segurança jurídica. Assim, os argumentos jurídicos ligados diretamente ao texto da regra específica a ser aplicada, devem sempre prevalecer sobre os argumentos metajurídicos ou mais genéricos e subjetivos, como é o caso da mera invocação do “interesse público” ou de seus derivativos. Em idêntico teor, Daniel Sarmento63 defende que em um conflito entre regra e princípio de mesma hierarquia normativa, deve prevalecer aquela. Prosseguem dizendo que no Estado de Direito o papel de sopesar os valores em jogo é primordialmente atribuído ao Legislador ou ao Constituinte e não ao Judiciário ou ao Executivo64. Trabalham com a idéia de incompletude da Constituição Federal, ou seja, a inviabilidade do legislador disciplinar todos os temas de conteúdo limitado previstos constitucionalemente, restando assim uma instituição desordenada de princípios absolutamente abstratos e não delineados. Isso ensejaria, em tese, uma exacerbada discricionariedade na atuação do Executivo. Como exemplo, infere-se nos argumentos da Suprema Corte Americana no caso de “David x Virginia”: “As leis que podem restringir direitos fundamentais submetem-se a uma necessidade suplementar de prévia previsão constitucional explícita (...) programas constitucionais dos direitos fundamentais não podem ser preenchidos por normas infraconstitucionais”. Por isso, não seria possível instituir por lei, nem muito menos reconhecer, à falta dela, a existência de uma cláusula geral de limitação dos direitos fundamentais baseada na Supremacia do Interesse Público. Uma restrição desta ordem debilitaria em excesso os direitos fundamentais, 62 Alexandre Santos de Aragão na ob. cit., p. 1/22. SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Lumen Júris, 2007, p. 30. 64 De acordo com Gilmar Mendes: “Pode-se dizer que os princípios jurídicos se produzem necessariamente em dois tempos e quatro mãos: primeiro são formulados genérica e abstratamente pelo legislador; depois se concretizam, naturalmente, como normas do caso ou norma de decisão, pelos intérpretes e aplicadores do Direito”. Ob. cit., p. 56. 63 28 tornando-os reféns de valorações altamente subjetivas e refratárias à parametrização por parte dos aplicadores do Direito. Acontece, porém, que de acordo com a Teoria Kelseniana, o ordenamento jurídico é compreendido como um conjunto de normas hierarquicamente dispostas, no qual normas inferiores devem sempre ser compatíveis frente às normas superiores, sob pena de não serem válidas: “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra”.65 Outrossim, de acordo com Roque Antônio Carrazza66, conhecida a estrutura hierárquica do ordenamento jurídico, o aplicador do Direito dirime, com certa facilidade, qualquer conflito interno de normas. Tratando-se de normas de hierarquia diversa, prevalecerá sempre a superior. Todavia, não basta ser manifesto o patamar mais elevado ocupado pela Constituição Federal, tendo em vista que em seu próprio bojo há diferentes medidas de relevância normativa. Normas que veiculam simples regras e outras que veiculam verdadeiros princípios, o que dificulta muito a resolução de conflitos. Sob este prisma, está certa a doutrina oposta, no sentido de buscar uma resolução lógiconormativa para os conflitos entre princípios e as demais regras também previstas na Carta Maior. Entretanto, adianto desde já não ser uma tarefa fácil.67 Trazendo à baila daquilo que mais interessa, insta salientar, que a noção de supremacia do interesse público está, não só, inserida na Carta Magna brasileira, como espalhada por toda e qualquer sociedade, conforme os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello68: “(...) é principio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. Assim, não se radica em dispositivo especifico algum da Constituição, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações concretas dele (...) Afinal, o principio em causa é um pressuposto lógico do convívio social (...) Exemplos cabais na própria Constituição Federal: institutos da desapropriação e da requisição, nos quais é evidente a aplicação do princípio da supremacia do interesse público”. Entretanto, permanece a questão de como dirimir os respectivos conflitos envolvendo o princípio em tela e as normas previstas na Constituição. Para tanto, imperiosa lição de Roque Carrazza69: 65 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 2ª Ed., vol.II, Coimbra, Sucessor, 1962, p.2, trad. João Baptista Machado Cf. Roque Carraza, ob. supra cit., p. 34. 67 De acordo com Gilmar Mendes: “Apesar dos louváveis esforços que têm feito para densificar a eficácia das normas constitucionais (...) forçoso é reconhecer que pouco avançaram nesse árduo empreendimento (...) acabam por afirmar, em linguagem rebuscada, que são auto-aplicáveis as normas que não dependem de outras para a sua aplicação”. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 51. 68 Ob. cit., p. 93. 66 29 “Em razão de seu caráter normativo, os princípios constitucionais demandam estrita observância, até porque, tendo amplitude maior, sua obediência acarreta conseqüências muito mais danosas ao sistema jurídico que o descumprimento de uma simples regra, ainda que constitucional. São eles que estabelecem aquilo que chamamos de pontos de apoio normativos para a boa aplicação do Direito”. E conclui Celso Antônio Bandeira de Mello: “Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer (...) implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade (...) porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélis irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra (...) Isso porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada”.70 Por fim, diante de todo o exposto, conclui-se nos ditames do próprio Ministro, Gilmar Mendes: “Embora existam expressivas diferenças entre os preceitos constitucionais e as demais normas do ordenamento jurídico, a demandarem um tratamento hermenêutico diferenciado, nem por isso deveremos imaginar esses preceitos fora do sistema a que igualmente pertencem, até porque a unidade desse sistema e a validade das suas normas começam e terminam na Constituição”.71 Capítulo V – Interesse Público Primário e Interesse Público Secundário Primeiramente, insta salientar a extrema dificuldade que tanto a doutrina como a jurisprudência têm de conceituar e delimitar a abrangência da terminologia: “interesse público”. De acordo com conceito apregoado pelo ilustríssimo doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello: “O interesse público é uma forma específica, qualificada, de manifestação dos interesses pessoais: a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade”.72 69 Ob. cit., p. 41. Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 923. 71 Gilmar Mendes na ob. cit., p. 61. 72 Ob. supra cit., p. 56. 70 30 Conforme explica Alice Gonzales73, esta dificuldade ocorre pois “é objeto das mais solertes manipulações, sempre tendo sido invocado, através dos tempos, a torto e a direito, para acobertar as ‘razões de Estado’, quando não interesses menos nobres e, até, inconfessáveis”. Ocorre que, o instituto em tela, seja pela sua difícil delimitação, ou por seu elevado potencial coercitivo, acaba sendo manipulado por algumas Administrações Públicas como artifício de proteção, com o intuito de se abster das mais variadas críticas ou até mesmo controles Judiciais. A questão é que na maior parte das vezes não passam de posições autoritárias, as quais não poderiam receber a atribuição de “interesse público”74. Nesse sentido, Daniel Sarmento75 diz que se caso houvesse ampla subordinação dos direitos individuais ao interesse coletivo, viveríamos em um verdadeiro regime de totalitarismo. Por outro lado, de houvesse uma acentuada desvalorização dos interesses públicos diante dos particulares, o que se teria seria um completo anarquismo. O primeiro e imprescindível passo para averiguar a legitimidade da invocação da supremacia do interesse público, é a distinção entre o interesse que tem o Estado de buscar os anseios gerais da coletividade, e o interesse na manutenção e proteção de seus direitos e deveres particulares. O primeiro interesse trata-se de um verdadeiro dever; uma atribuição conferida à Administração como exteriorização da vontade e da necessidade coletiva. Tem sua origem em toda a teoria do contrato social de Rosseau, na qual os indivíduos reservam parte de sua liberdade individual a fim de ver o restante da liberdade assegurada pelo ente representativo que concentra os poderes, qual seja o Estado. Conforme sintética exposição de Diógenes Gasparini76, em seu curso de Direito Administrativo: “É o interesse do todo social, da comunidade considerada por inteiro. Nesse sentido é a lição de De Plácido e Silva (Vocabulário jurídico, 10 ed., Rio de Janeiro, Forense, v.2, p. 498): ‘o contrário do particular, é o que se assenta em fato ou direito de proveito coletivo ou geral. Está, pois adstrito a todos os fatos ou a todas as coisas que se entendam de benefício comum ou para proveito geral, ou que se imponham para uma necessidade coletiva”. 73 BORGES, Alice Gonzáles, Supremacia do Interesse Público: Desconstrução ou Reconstrução?, Salvador, Revista Diálogo Jurídico, 2007. 74 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 2ª Ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 1998, p. 96. 75 SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007. 76 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, 11ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 15. 31 Por outro lado, há aquele segundo interesse, do qual o Estado atua na esfera de proteção e manutenção de seus próprios direitos e deveres. Trata-se, portanto, de um verdadeiro interesse “individual” da Administração. Em outras palavras, corresponde aos interesses particulares do Estado representado por sua própria pessoa jurídica. Nesse sentido, interessante observar as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello: “(...) independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito. Similares, mas não iguais. Isto porque a generalidade de tais sujeitos pode defender estes interesses individuais, ao passo que o Estado, concebido que é para realização de interesses (...) só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam coma realização deles”.77 Assim, tendo como um “interesse individual” ou um “interesse particular” da administração, ela não se exaltaria em protegê-lo com todas as suas forças, esgotando todas as possibilidades, seja contra quem for, inclusive o próprio cidadão. Aqui, há uma interessante divergência doutrinária. Há quem defenda que de certa forma esta conduta se justifica, pois protegendo diretamente seus interesses (de não ressarcir o lesado, por exemplo, ou pelo menos buscar o menor valor possível de indenização), indiretamente, estaria zelando pelo interesse da própria coletividade, que é justamente reverter o maior percentual possível de todo o recolhido pela Fazenda Pública para melhorias na área pública78. Apesar de parecer o melhor entendimento, este não é unânime. Há autores que defendem não ser possível a Administração Pública buscar seu interesse particular (secundário) quando não coincidente com o interesse coletivo (primário).79 Dessarte tal divergência, diante de todo o exposto, verifica-se claramente que o interesse público que tem direta pertinência com o regime jurídico administrativo, é o primário. Apenas este teria o condão de invocar a supremacia do interesse público quando devidamente motivada, conforme defende Alice Gonzáles: “O interesse público que serve de base ao direito administrativo é o interesse primário, que corresponde à realização dos superiores interesses de toda a coletividade e dos 77 Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 63. Deste posicionamento podemos citar: Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, José Dos Santos Carvalho Filho. 79 GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo, 11ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 16. 78 32 valores fundamentais consagrados na Constituição (...) Esse interesse é público, não porque sirva de base para as atividades próprias do Estado, ou porque este o invoque como razão de agir: mas, sim, na exata medida em que coincida com o querer majoritário de toda a comunidade, servindo de elo, como queria Rousseau, para a congregação das vontades individuais em torno dos objetivos comuns de uma sociedade democrática organizada”. 80 Assim, em momento algum quando se faz menção à supremacia do interesse público, intenta-se invocar o interesse público secundário. Este deve ser contraposto em juízo, sendo o Poder Judiciário competente para julgar conforme o disposto em lei e conforme o caso trazido em concreto. É incabível sobrepor o interesse da administração (interesse secundário) sobre qualquer outro interesse individual invocando para tanto o princípio da supremacia do interesse público. Por fim, insta salientar, quem determina a qualificação do interesse público é a própria Constituição Federal. A partir dela é que o Estado atua nos casos e nos limites da discricionariedade que a lei lhe haja conferido.81 Além disso, interessante observar consideração feita por Marçal Justen Filho: “Afirmar sua supremacia corresponde a reconhecer natureza instrumental aos poderes titularizados pelo Estado e agentes públicos. O exercício das competências públicas se orienta necessariamente à realização do referido interesse público. Isso significa que a interpretação de todas as normas atributivas de poder funda-se em diretriz hermenêutica fundamental, afetando todas as relações jurídicas contidas no âmbito do Direito Administrativo. A construção doutrinária que privilegia o interesse público representa uma evolução marcante em direção à democratização do poder político”.82 80 BORGES, Alice Gonzáles, Supremacia do Interesse Público: Desconstrução ou Reconstrução?, Salvador, Revista Diálogo Jurídico, 2007. 81 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, p. 65. 82 JUSTEN FILHO, Marçal. “Conceito de Interesse Público e a ‘Personalização’ do Direito Administrativo”. In: Revista Trimestral de Direito Público, nº 26, São Paulo: Malheiros, pp. 115-116. 33 PARTE III – Principais Mecanismos que agem sob o Manto da Supremacia Antes de mais nada, cumpre reiterar que esta dissertação não comporta examinar a fundo cada instituto elencado nos capítulos seguintes, razão pela qual far-se-á apenas uma breve contextualização de cada tema, sempre com o intuito de alcançar os pontos mais polêmicos com freqüente incidência na atualidade. O objetivo de cada capítulo é trazer à tona os campos de atuação de cada instituto, cada qual em sua respectiva esfera legal e de finalidade, mas sempre com o ponto em comum de agirem sob o manto da supremacia do interesse público. Insta esclarecer ainda os termos utilizados no título. Ocorre que, como observado no capítulo anterior, delimitar o conceito de interesse público é uma tarefa extremamente árdua. Isso dificulta muito buscar artifícios que restrinjam ao máximo a utilização indevida e ilegítima destas formas de exteriorização fundados diretamente no princípio da supremacia do interesse público. A par das dificuldades, os principais objetivos serão apontar as seguintes questões: (i) Supremacia Especial e o respeito as suas condicionantes positivas e negativas; (ii) Poder de Polícia em conformidade com a atual hermenêutica principiológica; (iii) Intervenção no domínio econômico em consonância com os preceitos da “Constituição Cidadã”; (iv) Intervenção na propriedade privada e a flagrante inconstitucionalidade da desapropriação indireta. Capítulo V – Supremacia Geral e Supremacia Especial O instituto da Supremacia Especial do Interesse Público trata, basicamente, de uma releitura do princípio da legalidade intimamente ligada ao princípio da supremacia do interesse público. Foi importada do direito comparado alemão, tendo como seu principal pensador o jurista Otto Mayer, tendo repercussão também nos direitos italiano (Renato Alessi) e espanhol (Alfredo Gallego Anabiarte). 34 No âmbito nacional, o instituto foi trazido, primordialmente, por Celso Antônio Bandeira de Mello83, e desenvolvido também por Maria Sylvia Zanella Di Pietro nas últimas edições de seu Curso de Direito Administrativo. O cerne da questão (objeto do presente capítulo) é que a Administração, para que veja garantido sua supremacia e atue sob seu manto, deve em tese, exercer suas prerrogativas nos estritos moldes e limites da lei. Ocorre, entretanto, que em certas relações há uma peculiar relação entre Administração e o particular, quando este ingressa na esfera particular daquela; diga-se num espaço físico “doméstico”, no qual o indivíduo tem de se submeter a algumas normas não previstas previamente na norma posta. “Os vínculos que se constituíram são, para além de qualquer dúvida ou entredúvida, exigentes de uma certa disciplina interna para funcionamento dos estabelecimentos em apreço, a qual, de um lado, faz presumir certas regras, certas imposições restritivas, assim como, eventualmente, certas disposições benéficas, isto é, favorecedoras, umas e outras tendo em vista regular a situação dos que não tem como deixar de ser parcialmente estabelecidas pela própria intimidade delas, como condição elementar de funcionamento das sobreditas atividades”.84 É o que ocorre, por exemplo, quando o indivíduo ingressa em escolas, faculdades ou bibliotecas públicas. Não se pode comparar tais situações com a relação que a Administração trava com o administrado no momento em que cassa o alvará de funcionamento de um estabelecimento comercial que esteja descumprindo regras de vigilância sanitária, ou; aplica multa em uma infração de trânsito, ou; desapropria uma propriedade particular por não estar cumprindo sua função social. Naquela o indivíduo tem de se adequar à disciplina interna, subordinando-se para tanto a certas imposições restritivas. Só assim tem se garantido o funcionamento ordenado do local nos mais diversos sentidos como: higiene, segurança, entre outros. Já nas demais hipóteses, o que ocorre é que o Estado possui meios próprios de coerção para impor seus determinados poderes sob cada caso concreto. O indivíduo, apoiado em seu direito de liberdade, continua a ter o livre arbítrio de obedecer ou não. Caso opte pela desobediência, o Estado necessariamente irá impor sanções a fim de atingir a respectiva finalidade, sob pena de violação ao princípio da indisponibilidade. Contudo, a Administração tem de basear suas condutas nos mais estritos moldes previamente estabelecidos 83 84 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, p. 790. Ob. cit., p. 792. 35 em lei em sentido estrito85. A primeira relação, à primeira vista, pode dar a impressão de uma verdadeira afronta ao princípio da legalidade, o que tornaria o instituto da supremacia do interesse público invocado completamente viciado e, conseqüentemente, nulo de pleno direito. Mas de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, no capítulo que dedica exclusivaente ao princípio da legalidade, ressalta que mesmo diante de todas as considerações feitas não se exclui a “possibilidade de normas produzidas no próprio âmbito da Administração, e que, ao contrário dos regulamentos, não haurem diretamente na lei (e sim indiretamente) suas possibilidades reguladoras”.86 Nesse sentido, não se pode mais deixar de considerar a existência de um especial vínculo da supremacia do interesse público com o particular. Haveria, assim, duas espécies de relação jurídica entre a Administração e o Particular, quais sejam: a comum e a especial. 87 A primeira refere-se a eventuais deveres e proibições que emanam necessariamente de lei em sentido estrito. A Administração, nesses casos, só poderia agir nos limites de suas prerrogativas sempre com fundamento na lei geral e abstrata (princípio da reserva legal). Já na segunda, existe uma maior aproximação entre particular e administração, ao passo que esta se encontra dentro de sua esfera íntima. Conseqüentemente, não sendo possível o legislador prever todas as eventuais circunstancias abstratamente, poderia a Administração expedir normas e regras não apenas por meio de lei, como também por aquilo que chamamos de atos normativos independentes88. “Seria impossível, impróprio e inadequado que todas as convenientes disposições a serem expedidas devessem ou mesmo pudessem estar previamente assentadas em lei e unicamente em lei, com exclusão de qualquer outra fonte normativa. Exigência dessa ordem simplesmente estaria a pretender do Legislativo uma tarefa inviável (...)”.89 85 “A utilização de meios coativos por parte da administração é uma necessidade imposta em nome da defesa dos interesses públicos. Encontra seu limite no atingimento da finalidade a que foi instituída”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo. 22ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 809. 86 Ob. cit., p. 335. 87 “Além dos casos em que o administrado voluntariamente se inclui sob o estatuto das instituições cujo serviço demanda, há uma pletora de situações que revelam a necessidade de se reconhecer a figura da supremacia especial”. Ob. cit., p. 791. 88 Sob o tópico, insta salientar, que a doutrina não é unânime sobre a possibilidade de o Executivo editar os denominados atos normativos independentes ou também conhecido como Regulamentos Autônomos. No sentido de admitir sua existência como sendo inerente aos poderes implícitos da Administração, encontram-se Hely Lopes Meirelles, Sérgio de Andréa Ferreira e Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Em sentido contrário, sob a alegação de que tais atos não são admitidos no ordenamento jurídico pátrio, encontram-se Geraldo Ataliba (“República e Constituição”), Cretella Júnior, Diógenes Gasparini, Maria Sylvia Zanella di Pietro, entre outros. 89 Conforme exposto por Celso Antônio Bandeira de Mello. Ob. cit., p. 792. 36 Em outras palavras a Administração poderia submeter particulares a deveres e obrigações não previstas em lei. Depreende-se das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello: “(...) é inequivocamente reconhecível a existência de relações específicas intercorrendo entre o Estado e um círculo de pessoas que nelas se inserem, de maneira a compor situação jurídica muito diversa do que atina à generalidade das pessoas, e que demandam poderes específicos, exercitáveis, dentro de certos limites”.90 Esta seria a mais recente e uma importante forma de exteriorização da supremacia do interesse público sobre o particular, em um verdadeiro vínculo especial de subordinação. Verifica-se, portanto, que falar em Supremacia do Interesse Público é colocar o Estado acima do indivíduo, mesmo quando se trata de um modelo especial mais brando. Em outras palavras, seria estabelecer uma relação vertical entre o indivíduo e aquele que o “controla” sob uma perspectiva de subordinação. Entretanto, insta salientar, que esta forma de exteriorização da supremacia do interesse público, mais do que qualquer outra forma, deve necessariamente respeitar os estritos limites impostos pelo ordenamento. Para enumerar tais limites, imperioso se faz recorrer às lições da maior autoridade do presente instituto, Celso Antônio Bandeira de Mello. De acordo com o autor, a supremacia especial obedecerá às seguintes condicionantes positivas91: (i) encontrar fundamento último em lei; (ii) que tenha fundamento imediato nas relações de sujeição especial; (iii) que seja essencialmente necessário para o cumprimento das finalidades que presidem tais relações especiais; (iv) sejam rigorosamente afinadas com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, de sorte a que todo excesso se configure como inválido; (v) que conserve o objeto atrelado ao que for relacionado tematicamente a relação especial instalada. Por outro lado, ainda de acordo com o autor, terá como condicionantes negativas: (i) não podem infirmar qualquer direito ou dever; (ii) não podem extravasar; (iii) não podem exceder em absolutamente nada; (iv) não podem produzir conseqüências que restrinjam ou elidam interesses de terceiros ou os coloque em situação de dever, pois tal supremacia pressupõe uma íntima vinculação entre a Administração e quem nela se encontre internado. 90 91 Ob. cit., p. 793. Ob. cit., p. 794. 37 Capítulo VII – Poder de Polícia da Administração Pública Pode-se dizer que é o instituto que reflete mais incisivamente o princípio da supremacia do interesse público, com fundamento direto no mesmo. Isso ocorre, porque falar em fiscalização pressupõe um sujeito no mínimo de hierarquia igual ou superior, sob pena de se frustrar respectiva função. Além disso, nada justificaria a Administração aplicar medidas coercitivas contra a vontade do particular, senão em virtude de uma sobreposição de seu interesse, o qual representa o próprio interesse da coletividade. Nesse sentido, preconiza Maria Sylvia Zanella Di Pietro92: “O fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que confere à Administração posição de supremacia sobre os administrados”. Ainda de acordo com a autora, a terminologia polícia advém do grego “politeia” que não tem relação alguma com seu atual emprego. Na Idade Média, durante o período feudal, havia duas ordens: (i) uma ligada à sociedade civil de responsabilidade do príncipe; (ii) e outra ligada à moral e a religião de competência exclusiva da autoridade eclesiástica. A partir do século XV, a atividade do Estado foi desmembrada em direito de polícia do príncipe e outra da justiça. A primeira foi sofrendo restrições em seu conteúdo até chegar a ponto de abranger apenas as atividades internas da Administração. Com o advento do Estado de Direito e a afirmação do princípio da legalidade, desenvolveu-se, primeiramente, o liberalismo, no qual a regra era o livre exercício dos direitos individuais tendo a interferência estatal caráter amplamente excepcional, só podendo limitar o exercício dos direitos individuais para assegurar a ordem pública. Em um segundo momento, este Estado liberal passa a transformar-se em intervencionista, não limitando sua atuação apenas à segurança, mas também à ordem econômica e social93. A bem da verdade, afastou-se a idéia de assegurar o direito individual como fim último (imposição contra o Estado de obrigações de não-fazer), e passou a contextualizá-lo dentro dos moldes da sociedade em que ele encontrava-se inserido (obrigações de fazer impostas ao Estado), conforme explica Maria Sylvia: 92 Ob. cit., p. 102. Note-se interessante passagem na obra citada de Gilmar Mendes: “Fruto desse aparente ‘desinteresse’ jurídico pelo fato econômico, de que se nutriu o Estado Liberal, foram a exacerbação do capitalismo e a sua conseqüente confrontação com o operariado, dando origem à questão social”. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 1406. 93 38 “O Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direito do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem-estar coletivo (...) houve uma ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender às necessidades coletivas (...) o mesmo ocorreu com o poder de polícia do Estado, que deixou de impor obrigações apenas negativas (não fazer) visando resguardar a ordem pública, e passou a impor obrigações positivas (...) Surgem no plano constitucional, novos preceitos que revelam a interferência crescente do Estado na vida econômica e no direito de propriedade (...) cresce a preocupação com os interesses difusos (...)”.94 Sob este prisma, é que José dos Santos95 conceitua Poder de Polícia como sendo: “a prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade”. Interessante notar, que assim como o autor supra citado, outras importantes autoridades no âmbito do Direito Administrativo também colocam sempre em evidência a questão do interesse público. Exemplo disso é Celso Antônio96, ao dizer que “a atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos designa-se poder de polícia”; ou ainda de acordo com Maria Sylvia ao dizer que “o fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração posição de supremacia sobre os administrados”.97 Independentemente de tratar-se de obrigações positivas ou negativas impostas ao Estado (ou até mesmo ao indivíduo), o que se percebe é uma forte tendência de aproximação às cargas principiológicas e valorativas inseridas no bojo das regras dentro do atual contexto do ordenamento jurídico pátrio. Poder-se-ia tomar como exemplo o advento do Código Civil de 2002 e a assunção de novos princípios que passaram a regular e fazer parte das mais diversas relações jurídicas entre os particulares. Deles pode-se destacar três principais: (i) socialidade, no qual o interesse público e coletivo se sobrepõem ao interesse particular e individual; (ii) eticidade, aquele que exige ética e boa-fé objetiva e subjetiva em toda e qualquer relação jurídica, devendo o julgador perseguir no caso concreto muito mais a vontade desejada do que a vontade declarada; 94 Ob. cit. p. 60. CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 22ª Ed., Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2009, p. 73. 96 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo. 22ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 788. 97 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p. 102/109. 95 39 (iii) operabilidade, que traduz a idéia de eficiência ou efetividade. Em suma, hoje não basta mais a simples formação de um contrato ou a posse de uma propriedade, por exemplo. Estas devem vir acompanhadas de sua respectiva função social, ou seja, o contrato ou a propriedade não devem ser vistos mais apenas sob a perspectiva exclusiva de suas partes ou proprietário; suas verificações devem transcender ao bem maior da coletividade. Trazendo tais ideais mais próximo ao âmbito do Direito Administrativo, preleciona Celso Antônio Bandeira de Mello: “Através da Constituição e das leis os cidadãos recebem uma série de direitos. Cumpre, todavia, que o seu exercício seja compatível com o bem-estar social. Em suma, é necessário que o uso da liberdade e da propriedade esteja entrosado com a utilidade coletiva, de tal modo que não implique uma barreira capaz de obstar à realização dos objetivos públicos”.98 Com efeito, diante de leis auto-aplicáveis, os direitos individuais já se encontram perfeitamente delineados. Entretanto, há casos em que é imprescindível a Administração perfilhar, dentro dos contornos legais, a verdadeira extensão de cada direito, a fim de assegurar seu exercício dentro dos ditames sociais. Assim, não tratar-se-ia de uma espécie de restrição ou limitação ao direito do indivíduo, mas sim o cumprimento de um dever estabelecido por determinação legal, qual seja, promover por ato próprio, a compatibilizarão do direito frente ao bem-estar social, e delimitar as fronteiras de suas expressões. Independentemente de serem vinculadas ou discricionárias não deve a Administração buscar outro fim, senão o fiel cumprimento da lei. Ocorre que, esta majoração da função social em contraposição ao direito de liberdade e de propriedade privada, não raras às vezes, pode suscitar profundas controversas. Nesse sentido, o Ministro Gilmar Mendes, tomando como exemplo o direito de propriedade e sua respectiva função social, ensaia a seguinte solução aos casos de conflito existentes: “Não tendo a Constituição de 1988 estabelecido nenhuma hierarquia entre os valores consubstanciados no direito de propriedade e na sua função social, resta ao intérprete/aplicador resolver eventuais ‘conflitos’ à luz do caso concreto, mediante judiciosa ponderação, optando, afinal, por aquele cuja prevalência, nas circunstâncias, conduzir a uma decisão correta e justa e, assim, realizar a justiça em sentido material como referente fundamental da idéia de direito”.99 98 99 Ob. cit., p. 784. Cf. Gilmar Mendes, ob. cit., p. 1409. 40 Capítulo VIII – Intervenções no Domínio Econômico e na Propriedade Privada Cumpre primordialmente ao Direito Administrativo regular a aplicação dos comandos correspondentes ao domínio econômico elencados na Constituição Federal100. Esta estabeleceu uma clara divisão em dois diferentes campos de atuação. O primeiro refere-se à atividade econômica exercida pelo particular, chamada de domínio econômico. O segundo refere-se ao campo de atuação do próprio Estado, chamado de serviços públicos. Como regra, tem-se que um não pode invadir a esfera alheia. Ocorre que, como toda regra, há exceções. Trata-se, por um lado, da possibilidade do particular atuar na esfera estatal por meio de delegações (concessão e permissão de serviços públicos), e por outro, da possibilidade do Estado invadir a atuação reservada à inciatica privada, atuando além de seus deveres, nos casos de segurança nacional e relevante interesse público, elencados de forma taxativa no artigo 173 da Constituição Federal. Conforme apregoado por Celso Antônio Bandeira de Mello101, há três modalidades de intervenção do Estado no domínio econômico: (i) Poder de Polícia, como agente regulador do sistema econômico, quando age por meio de leis e atos administrativos, como um fiscal da ordem econômica, estabelecendo regras e impondo restrições aos particulares; (ii) atividades de fomento, por meio de incentivos concedidos a determinados setores privados; (iii) exploração direta de atividade econômica; vale dizer, como agente executor, quando exerce as atividades econômicas propriamente ditas, se submetendo as mesmas normas da iniciativa privada, se aproximando muito à atuação das empresas privadas. Traçados os conceitos básicos, insta salientar, dois pontos de extrema relevância: quem determina esta diferenciação de campos de atuação é a Constituição ou a lei, ou seja, é competência exclusiva do Poder Legislativo, sem interferência de critérios pré-modulados; outrossim, em qualquer uma das funções exercidas pelo Estado, este deve sempre buscar o 100 Para melhor compreensão do presente capítulo, vide exposição feita acerca da evolução histórica das Cartas Constitucionais brasileiras no capítulo II do presente trabalho, principalmente a partir de 1934. 101 José dos Santos Carvalho Pinto é mais restrito ao dividir a atuação estatal em apenas duas espécies: (i) agente normativo e regulador; (ii) agente executor. No outro pólo, Hely Lopes Meirelles vai mais além e divide em cinco espécies: (i) monopólio; (ii) repressão ao abuso; (iii) controle do abastecimento; (iv) tabelamento de preços; (v) criação de empresas estatais. 41 interesse público da coletividade102. Questão que desperta maior atenção, seria o caráter estritamente excepcional da atuação do Estado como explorador de atividade econômica, reservada às situações mais inóspitas e que tenha fundamento direto no interesse público da população. Vale dizer, que a lei que autoriza a respectiva atuação deve indicar especificamente o objeto, o motivo e a finalidade da atividade a ser exercida. Interessante exemplo, seria o Restaurante Popular subordinado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Governo do Estado de São Paulo, destinado a propiciar à população carente alimentação a preços mais acessíveis103. Convém, entretanto, analisar com maior profundidade aquela primeira forma de atuação que guarda maior pertinência com o presente estudo, qual seja a atuação reguladora do Estado, pois é através dela que se age diretamente sob o manto da supremacia do interesse público, conforme exposto no capítulo anterior. Estado Regulador, nas palavras de José dos Santos104, “é aquele que por meio do regime interventivo, se incumbe de estabelecer as regras disciplinadoras da ordem econômica com o objetivo de ajustá-la aos ditames da justiça social”. Mas, a bem da verdade, a expressão “justiça social” empregada no conceito supracitado deve ser interpretada de maneira ampliativa, ao passo que a Constituição Federal traz em seu artigo 170 dois postulados básicos em que a ordem econômica deve se fundar: (i) valorização do trabalho humano, e; (ii) livre iniciativa. Ainda de acordo com o autor105, “ao estabelecer esses dois postulados como fundamento da ordem econômica, a Constituição pretendeu indicar que todas as atividades econômicas, independentemente de quem possa exercê-las, devem com eles compatibilizar-se”. Além destes fundamentos basilares da ordem econômica, a Constituição contemplou ainda alguns princípios que devem nortear o sistema econômico pátrio: (i) proteção à soberania nacional; (ii) função social da propriedade privada; (iii) livre concorrência em conformidade com a defesa do consumidor; (iv) defesa do meio ambiente; (v) redução das desigualdades sociais; entre outros esparsos. 102 Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello: “Em todos os casos, necessariamente, a interferência estatal terá que estar envolvida à satisfação dos fins dantes aludidos como sendo os caracterizadores do Estado brasileiro; e jamais – sob pena de nulidade – poderá expressar tendência ou diretriz antinômica ou gravosa àqueles valores”. Ob. cit. p. 765. 103 Decreto nº 45.547, de 26 de Dezembro de 2000. 104 Ob. cit., p. 867. 105 Cf. José dos Santos na ob. cit., p. 864. 42 Por fim, percebe-se uma especial preocupação do legislador em garantir o desenvolvimento econômico sempre assegurando a todos a existência digna. Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, “tão forte é a preocupação constitucional com alguns destes bens jurídicos, que os mencionou em diferentes qualidades ou funções, conferindo-lhes, dessarte, uma acentuada ênfase”.106 Sob este tópico, interessante notar o julgamento proferido pelo Ministro Relator Moreira Alves, na ADI 319/DF, quando tratou de conciliar os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência com a defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em face da Constituição Federal e sob os moldes dos ditames da justiça social. Restou assentado, neste julgamento, que o Estado poderia regular, por via legislativa, a política de preços de bens e de serviços, nos casos de abusivo poder econômico que visava o aumento arbitrário dos lucros. Contudo, o Poder Público poderá interferir na iniciativa privada, de acordo com Hely Lopes107, somente como exceção à liberdade individual, nos casos expressamente permitidos pela Constituição e na forma que a lei estabelecer, podendo variar segundo o objeto, o motivo e o interesse público a ser amparado. E complementa o professor Nelson Nazar108 que: “a atividade reguladora encontra limites estruturais nos princípios que ensejam comandos positivos sancionadores da atuação do governo. Essas normas estruturais quando feridas, ensejam correção”. Ocorre que, como mesmo salientou Celso Antônio Bandeira de Mello, a Constituição Federal de 1988 é uma clara antítese do neoliberalismo, ao passo que não entrega a satisfatória organização da vida econômica e social a uma suposta eficiência da iniciativa privada, e ao mesmo tempo, atribui explicitamente inúmeros compromissos ao Estado brasileiro, que os encara como meras normas programáticas. Em outras palavras, alega buscar na medida do possível o cumprimento de tais compromissos, o que os tornam metas absolutamente intangíveis. A fim de ilustrar o exposto acima, remete-se ao texto literal do desconhecido artigo 219 da Carta Maior, in verbis: “O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos da lei federal”. 106 Ob. cit., p. 762. Ob. cit., p. 647. 108 Ob. cit., p. 061. 107 43 Outro ponto de extrema relevância, referente ao instituto da intervenção estatal na propriedade privada, alvo de duras e acertadas críticas, seria uma das possibilidades de intervenção estatal na esfera da propriedade privada, mais especificamente a chamada Desapropriação Indireta. Saliento desde já, dividir a posição majoritária da doutrina, acerca da flagrante inconstitucionalidade do instituto em tela. Nas palavras de José dos Santos: “Trata-se de situação que causa tamanho repúdio que, como regra, os estudiosos a têm considerado verdadeiro esbulho possessório”.109 Com suposto fundamento direto na supremacia do interesse público, a Desapropriação Indireta consiste no apossamento de imóvel particular, pelo Poder Público, de forma manifestamente abusiva e irregular. Diria em outras palavras, tratar-se de um verdadeiro esbulho, que se ocorrido no âmbito do direito privado, poderia ser imediatamente afastado mediante ação possessória com possibilidade de pedido de liminar. Entretanto, no âmbito do Direito Administrativo, tal ação possessória é vedada, pelo fato de uma vez despojado o imóvel particular em face da Administração, este passa a ser reconhecido como bem público, o que significa dizer que ele passa a ser indisponível nos termos do artigo 35 da Lei das Desapropriações n.º 4.132 de 1962: “Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos”. Como se não bastasse, anteriormente, entendia-se que o prazo prescricional para o ajuizamento de ação indenizatória era de quinze anos, tendo em vista ser o prazo de usucapião extraordinário. Todavia, a inconstitucional Medida Provisória n.º 1.774 de 1999, promulgada sem qualquer pressuposto de urgência ou relevância, alterou o parágrafo único do artigo 10 do Decreto-lei n.º 3.365 diminuindo tal prazo para cinco anos, ex vi: “Extingue-se em 5 (cinco) anos o direito de propor ação que vise a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público”. Verifica-se, portanto, com base em todo o exposto, que este respectivo mecanismo, não guarda qualquer pertinência com os termos referentes à desapropriação elencados na Carta Maior e nas leis esparsas, representando assim absoluto abuso de direito. 109 Ob. cit., p. 823. 44 PARTE IV – Interesses Públicos versus Interesses Privados Capítulo VIII – Razões de Estado? Paulo Ricardo Shier110, em seu trabalho “Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime Jurídico dos Direitos Fundamentais”, parte da idéia de que são os direitos fundamentais, fundados na noção da pessoa humana, que justificam a existência do Estado e suas diversas formas de atuação. Assim, ele (o Estado) não é, e nem pode ser um fim em si mesmo: “(...) o Estado legitima-se e justifica-se a partir dos direitos fundamentais e não estes a partir daquele. O Estado gira em torno do núcleo gravitacional dos direitos fundamentais. Devem integrar a própria noção do que seja o interesse público e este somente se legitima na medida em que nele estejam presentes aqueles”. Na mesma linha de pensamento, prescreve Luis Barroso111: “Em um Estado Democrático de Direito, não subsiste a dualidade cunhada pelo liberalismo, contrapondo Estado e Sociedade. O Estado é formado pela sociedade e deve perseguir os valores e anseios que ela mesma aponta”. E complementa Daniel Sarmento112: “(...) incompatível com o Leitmovit do Estado Democrático de Direito, de que as pessoas não existem para servir aos poderes públicos ou à sociedade política, mas, ao contrário, estes é que se justificam como meios para a proteção e promoção dos direito humanos” . Posto que a razão de ser do Estado e a finalidade de sua atuação perante seus administrados seria justamente os direitos fundamentais, o autor traz à baila a idéia de que não há dois ordenamentos distintos correspondentes ao direito público a ao direito privado, mas uma única ordem jurídica, que tem no seu cimo uma Constituição, cujos princípios e valores devem informar a resolução dos conflitos surgidos em qualquer seara. 110 SHIER, Paulo Ricardo, Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime Jurídico dos Direitos Fundamentais, Lumen Júris, 2007, p. 218. 111 BARROSO, Luís Roberto, O Estado Contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da Supremacia do Interesse Público, Lumen Júris, 2007, p. xiii. 112 SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 28. 45 Observa Alexandre Santos113 que, na verdade, o que há não é uma relação vertical de hierarquia, mas sim uma relação horizontal que visa a máxima satisfação dos interesses sociais: “O Interesse Público e o interesse dos cidadãos passam a ser vistos como reciprocamente identificáveis (máxima satisfação dos interesses sociais). Passa de uma concepção de autoridade (relação vertical) para uma de Direito Administrativo voltado a garantir em prol dos cidadãos a melhor satisfação possível dos seus direitos fundamentais (relação horizontal)”. Concluem, em suma, que a aplicação de tal princípio é mero artifício empregado para justificar uma série de prerrogativas detidas pela Administração Pública, na qualidade de tutora e guardiã dos supostos interesses da coletividade (verticalidade das relações travadas entre Administração e administrados, caracterizada pelo desequilíbrio, sempre em favor do Estado). Interessante salientar, que neste mesmo diapasão é que surgiu a corrente jurisprudencial, desenvolvida pelo Ministro Celso de Mello, conhecida como “Razões de Estado”, idealizada em seu voto proferido no julgamento do Recurso Extraordinário nº 204.769-4/RS de 1996, ex vi: LEIS DE ORDEM PÚBLICA – RAZÕES DE ESTADO – MOTIVOS QUE NÃO JUSTIFICAM O DESRESPEITO ESTATAL À CONSTITUIÇÃO – PREVALÊNCIA DA NORMA INSCRITA NO ART. 5º, XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO. A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Motivos de ordem pública ou Razões de Estado – que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo que frustrem a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade – não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição, que, em tema de produção normativa, impõe ao Poder Público limites inultrapassáveis (...) As normas de ordem pública – que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5, XXXVI, da Carta Política – não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade (grifo meu). Assim, “Razões de Estado” seria um mecanismo, fundado no princípio da supremacia do interesse público, que serviria para buscar a realização de interesses próprios dos Administradores, em uma verdadeira forma de usurpação da prerrogativa a ele conferido. Conforme explica Alice Gonzales114, isso ocorre porque “o interesse público é objeto das mais solertes manipulações, sempre tendo sido invocado, através dos tempos, a torto e a 113 ARAGÃO, Alexandre Santos de, A “Supremacia do Interesse Público” no Advento do Estado Democrático de Direito e na Hermenêutica do Direito Público Contemporâneo. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 05. 114 BORGES, Alice Gonzáles, Supremacia do Interesse Público: Desconstrução ou Reconstrução?, Salvador, Revista Diálogo Jurídico, 2007. 46 direito, para acobertar as “Razões de Estado”, quando não interesses menos nobres e, até, inconfessáveis”. De acordo com Odete Medauar, o fenômeno exposto encontra-se presente nas condutas de diversas Administrações, que se utilizam da indeterminação e dificuldade da definição do interesse público, e sua difícil e incerta avaliação e hierarquização, o que gera crise na sua própria objetividade. Entretanto, conforme preleciona Celso Antônio Bandeira de Mello: “Quem exerce “função administrativa” está adstrito a satisfazer os interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das prerrogativas da administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento dos interesses públicos; vale dizer, do povo, porquanto nos Estados Democráticos o poder emana do povo e em seu proveito terá de ser exercido”.115 Ora, o que ocorre reiteradamente nas Administrações Públicas espalhadas pelo território nacional é justamente o fato de gestores esquecerem que não são eles os detentores do Poder. Nunca foram e jamais serão. O que se vincula é sempre a idéia de poder aos agentes governamentais e nunca seus respectivos deveres perante a sociedade. Equivocadamente, quando se fala em Administração Pública pressupõe-se, automaticamente, Poder. A verdade é que esta idéia vai contra aos princípios basilares do Direito Administrativo e, principalmente, contra os preceitos fundamentais da Carta Magna, tendo em vista que o detentor do Poder é una e exclusivamente o povo. Este apenas outorga uma parcela de concentração de poderes nas mãos do Estado para que possa motivadamente, nos estritos limites legais, invadir esferas de outros sujeitos de direito, a fim de cumprir devidamente com suas atribuições.116 Fato é, que as prerrogativas que advém do princípio da supremacia do interesse público só podem ser invocadas legitimamente para o alcance dos respectivos interesses públicos, e jamais para satisfazer apenas interesses ou conveniências tão-só do aparelho estatal, e muito menos de seus respectivos administradores. 115 Celso Antônio, ob. cit., p. 66/67. “A própria maneira de apresentar o Direito Administrativo concorre para engendrar uma apreensão de seu conteúdo mais vincada pela idéia de “poderes”, que comandam os administrados, ao invés de sublinhar os “deveres”, que se impõem aos administradores (...) em rigor, os atos de quem gere negócio de terceiro, ou seja, os expedidos por quem apenas apresenta o titular do Poder – que é o povo, segundo a dicção do art. 1º, par. único do texto constitucional – são, acima de tudo, atos que manifestam e que cumprem deveres: os deveres de implementar a finalidade legal que os justifica (...) Assim, o Poder, no direito público atual, só aparece, só tem lugar, como algo ancilar (subsidiário), rigorosamente instrumental e na medida estrita em que é requerido como via necessária e indispensável para tornar possível o cumprimento do dever de atingir a finalidade legal”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros 2007, p. 43. 116 47 Este conjunto de deveres atribuídos a Administração, recebe o nome de Função Pública e consiste basicamente, nas palavras do professor Celso Antônio, na atividade exercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica. Também conhecido como Finalidade Pública, de acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, está presente até mesmo no momento da elaboração da lei, inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação117. Assim, mais que uma simples atribuição outorgada ao Poder Público, trata-se de um dever que afasta qualquer manifestação de vontade do gestor governamental: “Direito público se ocupa de interesses da sociedade como um todo, interesses públicos, cujo atendimento não é um problema pessoal de quem os esteja a curar, mas um dever jurídico inescusável. Assim não há espaço para a autonomia da vontade, que é substituída pela idéia de função, de dever de atendimento do interesse público. É o Estado quem, por definição, juridicamente encarna os interesses públicos”.118 Estas funções consistem, a bem da verdade, no dever jurídico inescusável do Estado de atendimento do interesse público. Não se trata de uma simples faculdade do Estado, e sim uma obrigação a ele atribuída, que decorre justamente da relação de dever-poder instaurado ao longo da história119. Assim, só há poder conferido ao Estado, porque a ele foram atribuído deveres inescusáveis e que necessitam de uma relação vertical frente ao particular a fim de viabilizar seus respectivos exercícios. Isso significa que, ao contrário do exposto por Daniel Sarmento e sua legião, a verticalidade das relações entre o indivíduo e o Estado são indispensáveis para garantir o cumprimento dos deveres impostos à própria Administração. A fim de corroborar o exposto, se a Administração Pública pode ser condenada quando omissa, a contrário senso, deve ser prestigiada por ações que garantam os direitos essenciais inerentes ao homem isento de qualquer vício ou irregularidade. Não seria uma faculdade e sim um dever da Administração exercer com excelência todas as funções a ela atribuídas pelo ordenamento legal, que nada mais representa que os próprios interesses da coletividade: 117 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.59. Celso Antônio, ob. cit., p. 27. 119 Duguit – serviços prestados à coletividade pelo Estado, por serem indispensáveis à coexistência social (visão sociologística). Entretanto, há a doutrina que prega que o estudo do Direito Administrativo não se concentra apenas no âmbito do dever servir do Estado e sim no seu poder de impor, o que acarreta inexoravelmente a análise de temas como controle do poder, limitações à autoridade e fiscalização dos atos da Administração. 118 48 “A administração exerce função: a função administrativa. Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, ‘deveres-poderes’, no interesse alheio”.120 O autor deixa claro que o titular do poder não é o Estado em si, e sim a própria coletividade que cede parcela de seu direito individual a fim de ver resguardado sua segurança e bem estar social. E para isso, a junção de cada parcela de renúncia da liberdade é que viabiliza o Estado de deter o dever-poder da função pública. Ocorre que muitas vezes: “Existe uma impressão (...) que o Direito Administrativo é um Direito concebido em favor do Poder, a fim de que ele possa vergar os administrados (...) visto como um ramo do direito aglutinador de poderes desfrutáveis pelo Estado (...) ao invés de ser considerado, como efetivamente é, como um conjunto de limitações aos poderes do Estado ou, muito mais acertadamente, como um conjunto de deveres da Administração em face dos administrados (...) a idéia base inicialmente considerada como o fator de desencadeamento do Direito Administrativo e pólo aglutinador de seus vários institutos foi a idéia de “puissance publique”, isto é, da existência de poderes de autoridade detidos pelo Estado e exercitáveis em relação aos administrados (...) A própria maneira de apresentar o Direito Administrativo concorre para engendrar uma apreensão de seu conteúdo mais vincada pela idéia de ‘poderes’, que comandam os administrados, ao invés de sublinhar os ‘deveres’, que se impõem aos administradores”.121 E conclui o autor dizendo que: “Tendo em vista este caráter de assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no interesse de todos – e não da pessoa exercente do poder – as prerrogativas da administração não devem ser vistas ou denominadas como’poderes’ ou ‘poderesdeveres’. Ocorre, não raras às vezes, todos estes conceitos que deveriam ser seguidos à risca para evitar qualquer tipo de abuso ou desvio de poder, são violados”. Capítulo X – “Pré-Ponderação” (“Entronização”) versus Direitos Fundamentais Alexandre Santos de Aragão122 defende que em nenhum momento se deve invocar o interesse público para se sobrepor a qualquer necessidade individual. Não pode haver qualquer 120 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo. 22ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 66. Ob. cit. p. 42. 122 ARAGÃO, Alexandre Santos de, A “Supremacia do Interesse Público” no Advento do Estado Democrático de Direito e na Hermenêutica do Direito Público Contemporâneo. Lumen Júris, 2007, p. 07. 121 49 pré-ponderação123 com qualquer outro valor envolvido, de maneira prematura e arbitrária: “A prevalência só existiria após a ponderação concreta entre os princípios colidentes. Não haveria, pois, a supremacia antecipada e automática, mas posterior e fundamentada”. Assim, na eventual colidência entre um interesse da Administração e um outro do particular, num primeiro momento, não prevaleceria nenhum dos dois124; eles estariam absolutamente nivelados, em um verdadeiro “pé de igualdade”. Só então, num segundo momento, sob a mais cautelosa análise das circunstâncias concretas, é que, possivelmente, poderia verificarse a eventual necessidade de uma sobreposição do interesse da Administração, caso não houvesse qualquer outro meio alternativo. Tratar-se-ia de uma verdadeira forma secundária (subsidiária) de solução de conflitos entre interesses antagônicos. Abre-se aqui um parênteses, a fim de se observar, que a própria corrente doutrinária trabalha com a eventual possibilidade de uma sobreposição do princípio da supremacia do interesse público sobre um interesse que verse sobre direitos individuais125. Assim, a questão já oportunamente analisada, que versa sobre a impossibilidade de um argumento não-institucional amplamente abstrato jamais poder prevalecer sobre um argumento institucional aplicável ao caso concreto, restaria prejudicada. Entretanto, Gustavo Binenbojm126 diz que, tendo em vista que a restrição dos direitos fundamentais é dada por uma norma de proporção e preservação recíproca dos interesses em conflito, por razões de ordem normativa e lógica, o conhecimento do direito não se submete a uma condição que mande prevalecer, aprioristicamente, o interesse público em detrimento do privado (não-prevalência a priori do coletivo sobre o individual). Isso ocorre, porque é a própria Constituição que, explícita ou implicitamente, estabelece quando e em que medida os direitos individuais podem ser restringidos. 123 Esta “pré-ponderação” a que se refere Alexandre Santos é equiparado ao conceito subseqüente de “entronização” explorado por Paulo Ricardo. 124 Em sentido oposto Hely Lopes: “(...) sempre que entrarem em conflito o direito do indivíduo e o interesse da comunidade, há de prevalecer este, uma vez que o objetivo principal da administração é o bem comum”. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p. 54. 125 No sentido da doutrina majoritária: “(...) em caso de colisão, deve preponderar a vontade geral legítima sobre a vontade egoisticamente articulada (...) princípio do interesse público exige a simultânea subordinação das ações administrativas à dignidade da pessoa humana e o fiel respeito aos direito fundamentais”. FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais. 3ª Ed., Malheiros, São Paulo, 2004, p. 34-36. 126 BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: Um Novo Paradigma para o Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007. 50 De acordo com Paulo Ricardo Shier127, a decorrência desta pré-ponderação sem a análise do fato concreto seria uma espécie de “entronização” do interesse público num pretenso patamar hierárquico superior àquele ocupado pelos direitos e liberdades individuais. Daniel Sarmento128 prossegue dizendo que este pretenso patamar hierárquico implicaria equivocadamente em uma constante queda do interesse individual frente ao público sempre que seu interesse for invocado. “O Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, ao afirmar a superioridade a priori de um dos bens em jogo sobre o outro, elimina qualquer possibilidade de sopesamento, premiando de antemão, com a vitória completa e cabal, o interesse público envolvido, independentemente da nuances do caso concreto, e impondo o conseqüente sacrifício do interesse privado contraposto”. Ainda de acordo com o autor, os direitos fundamentais não são absolutos e pode até haver a necessidade de proteção de outros bens jurídicos de interesses coletivos diversos, também revestidos de envergadura constitucional, o que justificaria eventualmente restrições aos direitos fundamentais. Todavia, a questão das restrições de direitos fundamentais justificadas com base no interesse público exigem um exame mais complexo, o que não vem sendo seguido pelo Poder Público. Assim, em vista do regime jurídico de aplicação, não existiria na colisão e restrição dos direitos fundamentais, um critério universal, válido para todas as situações de colisão, de preferência ou supremacia do interesse público sobre o privado: “A solução da colisão de princípios estabelece uma relação de procedência condicionada, ou seja, apenas as condições efetivas do caso concreto podem determinar qual princípio haverá de prevalecer”. O autor defende basicamente a idéia de que o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular não constitui critério adequado para a resolução de colisões entre interesses públicos e interesses privados, sugerindo uma nova formulação, mais compatível com os direitos fundamentais do administrado e o atual estatuto axiológico do Estado Democrático de Direito. Conseqüentemente, a admissão de cláusulas muito gerais como a do princípio em tela seria uma verdadeira ameaça à liberdade individual. A discricionariedade excessiva conferida aos aplicadores do direito implicaria na violação aos princípios democráticos e da reserva de lei, em 127 SHIER, Paulo Ricardo, Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime Jurídico dos Direitos Fundamentais, Lumen Júris, 2007, p. 219. 128 SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 30. 51 matéria de limitação de direitos, já que transfere para a administração a fixação concreta dos limites ao exercício de cada direito fundamental. Em vez de uma relação de contradição entre os interesses privado e público há, em verdade, uma conexão estrutural. A bem da verdade, tratar-se-ia de uma incorreta identificação do interesse público, ou seja, um conflito ou convergência inexistente. Complementa Alexandre Santos, dizendo acerca da grande necessidade de emprego de uma metodologia mais adequada para limitar a subjetividade do julgador e do administrador na aplicação do Direito Público, que não pode mais ser visto apenas como garantidor do interesse público e sim como o instrumento da garantia dos direitos fundamentais positivos e negativos. O autor, cita como exemplo o caso do nazismo na Alemanha, no qual o Estado só se subordinava ao que ele próprio estabelecia (autolimitação). Era limitado não pelos próprios indivíduos que deveriam se encontrar em igualdade de condições frente ao Estado, mas sim por um direito especial que visava assegurar a supremacia de sua vontade sobre os demais sujeitos da sociedade. Envolvia o dever de proporcionalidade, que impõe ao Estado a obrigação de sempre sopesar os interesses privados legítimos envolvidos em cada caso, ainda que eles não constituam direitos fundamentais. Gustavo Binenbojm129 propõe, ao invés de uma regra de prevalência, impor ao aplicador do Direito um percurso ponderativo para atribuir máxima realização aos direitos envolvidos o critério decisivo para a atuação da administração. De acordo com o autor, na maioria dos casos a Constituição nem a lei realizam o juízo de ponderação, por completo, entre os interesses conflitantes. E complementa: “Aqui, tal como o legislador, incumbirá ao administrador público percorrer as etapas de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito para encontrar o ponto arquimediano de justa ponderação entre direitos individuais e metas coletivas”. Em suma, os autores negam a supremacia do interesse público sobre o particular e buscam afirmar a superioridade prima facie dos direitos fundamentais. O civismo que interessaria é o do “patriotismo constitucional”, que pressupõe a consolidação de uma cultura de direitos humanos. Além disso, a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais não se 129 BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: Um Novo Paradigma para o Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007. 52 compatibiliza com a atribuição de uma primazia dos interesses públicos sobre os direitos fundamentais. Daniel Sarmento prossegue dizendo que o caráter principiológico das normas constitucionais protetivas dos direitos fundamentais permite: (i) ao legislador que, através de uma ponderação constitucional dos interesses em jogo, estabeleça restrições àqueles direitos, sujeitos, no entanto, a uma série de limitações (são os chamados “limites dos limites”); (ii) ao Judiciário, por meio de ponderações de interesses, impor limitações aplicadas ao caso concreto nas hipóteses de conflitos entre princípios não solucionados pelo Legislativo ou quando inconstitucional seu equacionamento. Portanto, a solução para colisões entre eles não é singela. A busca da solução constitucional adequada deve respeitar os chamados “limites dos limites”, quais sejam: os direitos e garantias fundamentais. Sob este prisma, Luis Barroso enaltece a nova hermenêutica constitucional: (i) Constitucionalização do Direito como centro do sistema jurídico, e; (ii) o amplo desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais baseada na dignidade humana, como uma verdadeira reaproximação do Direito e da Ética. Imprescindível trazer à baila da análise do presente tópico, o famoso Caso Luth, julgado este proferido pela Suprema Corte Alemã. Nele conceituou-se de forma singular a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Entendeu-se que as normas do ordenamento jurídico pátrio devem ser interpretados de acordo com os preceitos e valores dos direitos fundamentais. Uma idéia da Constituição como ordem objetiva de valores, que condiciona a leitura e interpretação de todos os ramos do direito. De acordo com Daniel Sarmento130, haveriam três escalas para a solução dos conflitos: (i) hegemonia absoluta do princípio do interesse público desde o princípio propriamente dito, prevalecendo completa e cabalmente, impondo restrições ao interesse privado; (ii) modalidade mais fraca na qual não haveria uma primazia a priori do interesse público, e em circunstancias especiais, com provas fortes e contundentes, prevaleceriam o interesse privado; (iii) o ônus argumentativo passaria para quem defenda o interesse público, tendo como regra a preponderância dos direitos fundamentais. 130 SARMENTO, Daniel, Interesses Públicos Vs. Interesses Privados nas Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 51/79. 53 É preciso lembrar que a Constituição surgiu num momento histórico de superação de uma visão autoritária sobre o Estado e sua relação com os cidadãos, que relegava os direitos fundamentais a um plano secundário e periférico. Assim, a opção do constituinte, que perfilhou a idéia de que os direitos fundamentais não são dádivas do Poder Público, mas sim uma projeção normativa de valores morais superiores ao próprio Estado. Conseqüentemente, foram explicitamente convertidos à condição de cláusulas pétreas, limitando o próprio constituinte derivado. Diante de conflitos entre direitos fundamentais e interesses públicos de estatura constitucional, pode-se falar numa precedência “prima facie” dos primeiros. Assim, o interesse público pode até prevalecer, após um detido exame calcado sobretudo no princípio da proporcionalidade, mas para isso serão necessárias razões mais fortes. Tal idéia vincula tanto legislador como os aplicadores do Direito. E conclui o autor que: “(...) não encontram respaldo numa ordem constitucional como a brasileira, em cujo epicentro axiológico figura o princípio da dignidade da pessoa humana”. Significa muito mais do que o mero tratamento em sede constitucional de matérias anteriormente afetas ao direito civil. Trata-se da imposição de uma releitura das normas e institutos do direito privado filtrados a partir da axiologia constitucional, diante do reconhecimento de que a constituição não representa apenas a norma básica do Estado, tendo se convertido na “ordem jurídico fundamental da comunidade”. Por fim, Gustavo Binnenbojm tenta a todo o momento demonstrar a inconsistência teórica do dito Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular sob uma sistemática cidadã, comprometida com a proteção e promoção dos direitos individuais de maneira ponderada e compatível com a realização das necessidades e aspirações da coletividade como um todo. Para o alcance de tal desiderato, o Direito Administrativo não teria mais como ser explicado a partir de um postulado de supremacia, mas sim de proporcionalidade. Não obstante inúmeras controversas que norteam o princípio da proporcionalidade (tendo em vista que há uma forte corrente doutrinária que defende não se tratar de um princípio, mas sim um método de interpretação), o ilustre Ministro Gilmar Mendes resume que: “(...) tratando-se de um método de ponderação de bens à luz do caso concreto, é intuitivo que a priori não exista uma hierarquia fixa e abstrata entre os diversos princípios, ressalvada apenas a dignidade da pessoa humana como valor-fonte dos demais valores, valor fundante da experiência ética ou, se preferimos, princípio e fim de toda ordem jurídica”.131 131 Ob. cit., p. 58. 54 Capítulo X – Desconstrução? A par de todas as teses e divergências científicas acerca das considerações a seguir expostas, insta salientar não serem estas objetivo do presente trabalho, motivo pelo qual buscarei embasar o bloco de raciocínio nos moldes das posições mais aceitas em suas respectivas áreas – filosofia, sociologia, antropologia e etc – sempre com o intuito de se alcançar os pontos imprescindíveis para a conclusão do objeto, ora sob análise. Enfim, estudos acerca da origem e evolução humana mostram que num primeiro momento o indivíduo vivia isolado, com plena autonomia e independência. Ao perceber maiores benefícios e possibilidades de desenvolvimento, este passou a se reunir em grupos, o que ensejou o início de sua organização social. Ocorre que suas relações tornaram-se cada vez mais complexas, o que gerou importantes implicações. Uma delas foi que sua liberdade já não era mais absoluta. Seu comportamento tinha de se adequar ao meio social como um todo. A liberdade do indivíduo encontrava limite onde começava a liberdade do outro132. Isso gerou conflitos que demandavam soluções, sob pena da regressão ao estado de insociabilidade133. Foi então que o indivíduo, percebendo que viver isolado já não era mais possível, teve de renunciar parte de sua liberdade se quisesse preservar a parte restante134. Assim, juntamente com os demais membros da coletividade, depositou esta parcela de liberdade nas mãos de um Poder uno e indivisível, que passaria a representá-los como um todo. Este Poder recebeu o nome de Estado, e recebeu o encargo de zelar pelos interesses gerais da sociedade, buscar seus respectivos anseios e dirimir os conflitos135. 132 Nesse sentido, são as lições de Kant: “A liberdade tem de se pressupor como a propriedade da vontade de todos os seres racionais. A todo ser racional que tem uma vontade temos que atribuir-lhe necessariamente a idéia de liberdade, sob a qual ele unicamente pode agir”. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1948,. .p. 95- 96, e da Declaração dos Direitos do Homem de 1789: “A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem; assim, a existência dos direitos naturais de cada homem só tem por limites os que assegurem aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Tais limites só podem ser determinados por lei”. 133 “O Direito, porém, não visa a ordenar as relações dos indivíduos, mas, ao contrário, para realizar uma convivência ordenada, o que se traduz na expressão: ‘bem comum’. O bem comum não é a soma dos bens individuais, nem a média do bem de todos; o bem comum, a rigor, é a ordenação daquilo que cada homem pode realizar sem prejuízo do bem alheio, uma composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos”. REALE, Miguel, Lições Preliminares do Direito. 27ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 59. 134 Cf. Teoria do Contrato Social de Rousseau, já devidamente analisada no Capítulo II, p. 13: “(...) desenvolvida pelo primado do filósofo francês Jean Jacques Rousseau134, dizia que as pessoas viviam em sociedade a partir de uma espécie de contrato social. Assim, a lei deveria ser basicamente uma expressão da vontade coletiva, a qual revelaria indiretamente o próprio interesse público”. 135 Acerca do tema, vide preciosa obra de Cessare de Baccaria. 55 Entretanto, essa série de deveres que norteava a noção de Estado, necessitava de um meio eficaz para sua execução. Assim, juntamente com suas atribuições vieram algumas prerrogativas136, que nada mais são, do que mecanismos imprescindíveis para atingir a finalidade específica de cada dever, de utilização geral, imparcial e obrigatória. Em outras palavras, ao Estado é atribuído deveres. Mas, muitas vezes, estes deveres envolvem medidas que invadem a esfera de outros sujeitos de direitos. Assim, ao Estado é conferido Poderes para viabilizar o manejo destas medidas, em uma verdadeira sobreposição de seu interesse sobre aos dos particulares137: “Deste princípio procedem as seguintes conseqüências ou princípios subordinados: (...) a) posição privilegiada do órgão encarregado de zelar pelo interesse público e de exprimi-lo, nas relações com os particulares; (...) Benefícios que a ordem jurídica confere a fim de assegurar conveniente proteção aos interesses públicos instrumentando os órgãos que os representam para um bom, fácil, expedito e resguardado desempenho de sua missão. Traduz-se privilégios que lhe são atribuídos. (....) b) posição de supremacia do órgão nas mesmas relações; (....) Metaforicamente expressada através da afirmação de que vigora a verticalidade nas relações entre administração e particulares; ao contrário da horizontalidade, típica das relações entre estes últimos. Significa que o Poder Público encontra-se em situação de autoridade, de comando, relativamente aos particulares, como indispensável condição para gerir os interesses públicos postos em confronto”.138 Ora, talvez o maior reflexo deste Dever-poder do Estado, vale dizer, deste conjunto de prerrogativas a ele conferidas, é a posição privilegiada e suprema frente aos particulares (verticalidade nas relações). O mesmo não acontece nas relações de direito privado, no qual as partes encontram-se em um mesmo patamar hierárquico (horizontalidade nas relações). Aqui, deve-se buscar sempre a equiparação entre os particulares, ou seja, no mundo privado, quando há situações de desequilíbrio, deve-se dar tratamento diferenciado ao hipossuficiente para que ele fique em “pé de igualdade” com o outro. Com efeito, o interesse público deve se situar em um patamar de privilégios que o direito privado não possui. No Direito Administrativo as relações são verticais. O Estado tem prerrogativas às quais o particular deve se submeter. Nas palavras de Hely Lopes: “é o motivo da desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados (...) dada à prevalência do 136 Preferimos o termo “prerrogativa” a que “privilégio”, tendo em vista que este traz uma idéia de mera vantagem, enquanto aquele, traz a idéia de um mecanismo para atingir um específico fim obrigatório, que caso não houvesse, não poderia ser utilizado. 137 Esta posição não é unânime, havendo notórios doutrinadores que defendem a idéia de um Poder-dever conferido ao Estado e não o Dever-poder conforme exposto. Esse é o caso de Maria Sylvia Zanella di Pietro (ob. cit., p. 77) e José dos Santos Carvalho Filho (ob. cit., p. 41). 138 Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit. p. 66/67. 56 interesse geral sobre os individuais, inúmeros privilégios e prerrogativas são reconhecidos ao Poder Público”.139 Diante de todo o exposto, trazendo os principais conceitos ao plano prático, este seria justamente o primeiro campo de averiguação da aplicabilidade do princípio da supremacia do interesse público ao fato empírico: (i) O ato praticado é de atribuição conferida ao Estado (Dever)?; (ii) O ato praticado confere o uso da prerrogativa utilizada (Poder)?140 Seria o que tomei a liberdade de chamar de “plano amplo de averiguação”, que nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello seria a confirmação de que: “(...) ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para propiciar o cumprimento do dever a que estão jungidos, ou seja, são conferidos como meios impostergáveis ao preenchimento da finalidade que o exercente de função deverá suprir. Segue-se que tais poderes são instrumentais: servientes do dever de bem cumprir a finalidade a que estão indissoluvelmente atrelados (...) Daí a conveniência de inverter os termos deste binômio para melhor vincar sua fisionomia e exibir com clareza que o poder se subordina ao cumprimento, no interesse alheio, de uma dada finalidade. Há adstrição a uma finalidade previamente estabelecida”. Seria a confirmação da existência de uma atribuição que demande a execução de uma prerrogativa, o que garantiria, à primeira vista, a legitimidade do ato e a possibilidade de atuação do Estado. Todo este conjunto de saberes recebe o nome de Função Pública ou também conhecida por alguns como Finalidade Pública141: “Há função sempre que alguém está assujeitado ao dever de buscar, no interesse de outrem, o atendimento de certa finalidade. Para desincumbir-se de tal dever, o sujeito de função necessita manejar poderes, sem os quais não teria como atender à finalidade que deve perseguir para a satisfação do interesse alheio”.142 Esta se encontra subordinada aos efeitos do Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público, que afirma que o administrador não pode dispor livremente do interesse público, só podendo fazê-lo dentro dos estreitos limites impostos pela lei. Nas palavras de José dos Santos143: “Os bens e interesses públicos não pertencem à Administração nem a seus agentes. Cabe-lhes 139 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p.106. “(...) os dois aspectos fundamentais que o caracterizam são resumidos nos vocábulos prerrogativas e sujeições, as primeiras concedidas à Administração, para oferecer-lhe meios para assegurar o exercício de suas atividades, e as segundas como limites opostos à atuação administrativa em beneficio dos direitos dos cidadãos (...) dois aspectos opostos: a autoridade da Administração Pública e a liberdade individual”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.102/109. 141 Cf. Maria Sylvia Zanella di Pietro, ob. cit. p. 483. 142 Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit. p. 93. 143 Ob. cit., p. 32. 140 57 apenas geri-los, conserva-los e por eles velar em prol da coletividade, esta sim a verdadeira titular dos direitos e interesses públicos”. Reflexo direto deste princípio é a Continuidade do Serviço Administrativo, tendo em vista que os serviços públicos buscam atender diretamente os reclamos dos indivíduos no corpo social, conseqüentemente não podem de forma alguma ser interrompidos. Se por um lado, o princípio da supremacia dá poderes ao administrador público que o mundo privado não tem, por outro, a indisponibilidade impõe limites ao administrador que para o particular não existem. Enquanto ao particular é permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, à Administração é conferido fazer tudo aquilo que a lei permite. Sendo a lei a expressão da vontade do titular do interesse público, o Gestor não tem disposição livre sobre as coisas, simplesmente porque ele não é dono daquilo que está a fazer. “A natureza da administração pública é a de um múnus público para quem a exerce, isto é, a de um encargo de defesa, conservação e aprimoramento dos bens, serviços e interesses da coletividade. Como tal, impõe-se ao administrador público a obrigação de cumprir fielmente os preceitos de Direito e da Moral administrativa que regem a sua atuação”.144 Nas considerações tecidas acerca de Função Pública, Celso Antônio Bandeira de Mello vai mais além, ao dispor sobre o alcance das atribuições e prerrogativas que “não são manejáveis ao sabor da administração, porquanto jamais dispõe de ‘poderes’ e sim ‘deveres-poderes’, pois é mero desempenho de função (apenas uma finalidade justifica o emprego deste poder)”. Mas não é o bastante. O segundo passo está no que chamo de “plano intermediário de averiguação”. Seria o campo que verifica o âmbito de aplicação da sobreposição do interesse público propriamente dito, ou seja, indagar-se-ia a respeito dos seguintes tópicos: (i) legalidade; (ii) impessoalidade; (iii) moralidade; (iv) razoabilidade; (v) proporcionalidade. Os três primeiros encontram-se explícitos no caput do artigo 37 da Constituição Federal, enquanto os outros dois decorrem dos princípios da legalidade. Acerca do princípio da legalidade, indispensável transcrever interessante trecho da exposição de Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do preceito: "Enquanto o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é da essência de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente organizada com fins políticos, o da legalidade é específico do Estado de Direito. É justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a identidade própria. Por isso mesmo é o princípio basilar do 144 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p.86. 58 regime jurídico-administrativo, já que o Direito Administrativo nasce com o Estado de Direito: é uma conseqüência dele. É o fruto da submissão do Estado à lei. É, em suma: a consagração da idéia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei. (...) O princípio da legalidade contrapõe-se, portanto, e visceralmente, a quaisquer tendências de exacerbação personalista dos governantes. Opõe-se a todas as formas de poder autoritário, desde o absolutista, contra o qual irrompeu, até as manifestações caudilhescas ou messiânicas típicas dos países subdesenvolvidos. (...) Michel Stassinopoulos, em fórmula sintética e feliz, esclarece que, além de não poder atuar contra legem ou prater legem, a Administração só pode agir secundum legem. Aliás, no mesmo sentido é a observação de Alessi, ao averbar que a função administrativa se subordina à legislação não apenas porque a lei pode estabelecer proibições e vedações à Administração, mas também porque esta só pode fazer aquilo que a lei antecipadamente autoriza. (...) Logo, a Administração não poderá proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja”.145 Acerca do princípio da impessoalidade, este estabelece que a Administração tem de tratar os administrados sem qualquer discriminação seja qual for a situação. Favoritismos e perseguições devem ser banidos, devendo pregar sempre os princípios da igualdade e isonomia. Já o princípio da moralidade, preconiza que a Administração Pública e seus agentes devem agir sob a mais ilibada conduta ética, segundo os cânones da lealdade e boa-fé. De acordo com José dos Santos, o administrador “deve não só averiguar os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto”.146 Decorrente do princípio da legalidade, a razoabilidade consiste no dever da Administração Pública exercitar suas prerrogativas discricionárias dentro de limites padrões, sem incorrer em condutas desarrazoáveis. Traz a idéia de bom senso ou atuação racional na qual: “Juridicamente, sua dimensão, intensidade e tônica são fornecidas pelo Direito posto, e só por este ângulo é que pode ser considerado e invocado”.147 Por este motivo é que a apreciação do Judiciário acerca do mérito é possível sem se violar a tripartição dos poderes. Outrossim, as condutas administrativas devem sempre se sujeitar aos mais estritos moldes e equilíbrio entre o fim almejado e os meios utilizados. Desdobramento do próprio princípio da razoabilidade, o princípio da proporcionalidade determina a obervância da adequação entre meios e fins, sendo vedada a imposição de sansões ou obrigações em medidas 145 Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit. p. 93 Cf. José dos Santos Carvalho Filho, ob. cit. p. 20. 147 Cf. José dos Santos Carvalho Filho, ob. cit. p. 20. 146 59 superiores ao estritamente necessário para a defesa do interesse público. Assim, quem age sob o fundamento da supremacia do interesse público deve se ater aos seus exatos limites: “Os ‘poderes’ administrativos – na realidade, deveres-poderes – só existirão – e, portanto, só poderão ser validamente exercidos – na extensão e intensidade proporcionais ao que seja irrecusavelmente requerido para o atendimento do escopo legal a que estão vinculados. Todo excesso, em qualquer sentido, é extravasamento de sua configuração jurídica. É, a final, extralimitação da competência, abuso, uso além do permitido, e, como tal, comportamento inválido que o Judiciário deve fulminar a requerimento do interessado”.148 Por fim, o terceiro e último passo está no “plano estrito de averiguação”, qual seja verificar os pressupostos de validade do Ato Administrativo149: (i) sujeito; (ii) objeto; (iii) forma; (iv) motivo; (v) finalidade. Não comentarei cada um dos elementos, mas ressalto, conforme anteriormente aduzido, que para se configurar a finalidade não basta apenas à análise do fim em si mesmo, necessário se faz analisá-la sob a égide de sua correlação social, ou seja, este deve estar amparado pela busca do bem-estar social, sob pena de violar a função social dos atos de governo: “A autonomia da vontade só existe na formação do ato jurídico. Porém, os direitos e deveres relativos à situação jurídica dela resultante, a sua natureza e extensão são regulamentados por ato unilateral do Estado, jamais por disposições criadas pelas partes. Ocorrem, através de processos técnicos de imposição autoritária da sua vontade, nos quais se estabelecem as normas adequadas e se conferem os poderes próprios para atingir o fim estatal que é a realização do bem comum. É a ordem natural do Direito interno, nas relações com outras entidades menores ou com particulares”.150 Além disso, insta relembrar que o elemento motivo é regido pela Teoria dos Motivos Determinantes. Todo ato administrativo é praticado sob o ensejo de certas circunstâncias reais, que passam a integrar o próprio ato, vinculando-o aos motivos justificantes. 148 Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit., p. 96. Dessarte as inúmeras divergências acerca dos elementos e pressupostos do ato administrativo. 150 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha, Conceito de Direito Administrativo. In Revista da Universidade Católica de São Paulo, 1964, v. XXVII, p. 36. 149 60 CONCLUSÃO Capítulo XII – Evitando Abusos e Desvios A bem da verdade, as intenções dos atos de governo com fundamento direto no princípio da supremacia do interesse público podem se vincular, freqüentemente, à vontade subjetiva do gestor público e, conseqüentemente, se sujeitar a um elevado grau de manipulação, deturpando assim os reais interesses sociais diante de um específico fato concreto. Vale dizer que no momento da atuação do agente político, quando se busca a ponderação dos interesses e valores em evidência, há ampla subjetividade para sua decisão, o que pode levar, facilmente, a abusos e desvios da finalidade devida. Talvez estas sejam as claras circunstâncias que ensejaram as mais pertinentes questões levantadas pela doutrina oposta, e que, corretamente, enaltecem uma maior necessidade da releitura dos atuais modelos de motivação, que justifiquem fielmente quando determinadas situações são mais relevantes do que outras para que um princípio, como o da supremacia do interesse público, possa ser considerado, sob a perspectiva de um caso concreto, mais importante do que outro princípio, como nos casos de colidências com os direitos fundamentais. Sob este prisma, considerando: (i) que o princípio da supremacia do interesse público desempenha papel fundamental nos atuais ditames sociais; (ii) que é de suma importância situá-lo devidamente dentro do sistema normativo constitucional; (iii) que sob a perspectiva de sua dimensão ontológica, equivale a normas jurídicas; verifica-se a iminente importância e necessidade do desenvolvimento de um raciocínio prático, o qual, sob certos critérios objetivos, consiga solver conflitos de interesses, dentro de uma sistemática normativa constitucional válida. Diante de todo o exposto, conclui-se que aquele que age sob o manto da supremacia do interesse público deve se ater a mais estrita legalidade e probidade dentro de três campos: Obediência ao dever-poder da Administração Pública (atribuições e prerrogativas da Função Pública; indisponibilidade e continuidade dos Serviços Públicos); Obediência aos requisitos de validade do Princípio propriamente dito (legalidade, 61 impessoalidade, moralidade, razoabilidade e proporcionalidade); Obediência aos pressupostos de validade do Ato Administrativo (sujeito, objeto, forma, motivo e finalidade). Caso algum destes elementos seja violado151, o particular sempre estará resguardado, pela Ação Popular e as Ações Possessórias, além de todos os writs constitucionais, conforme a seguir elencados: “Em todos os casos, a ameaça ou a incorreta utilização de quaisquer destas prerrogativas podem ser judicialmente corrigidas, preventiva ou repressivamente, conforme o caso, por meio do habeas corpus quando envolver ofensas à liberdade de locomoção, os mandados de segurança individual ou coletivo quando houver violação de direito liquido e certo”.152 Capítulo XIII – Implicações Práticas Percebe-se ao longo dos últimos anos, que aquele fenômeno nos apresentado como globalização, não passou de uma ilusão; uma falsa propaganda, que se propagou rapidamente com o advento de novos meios de tecnologia ligados, principalmente, ao transporte e à comunicação. À época, imaginávamos uma verdadeira revolução, na qual haveria uma generalizada disseminação de oportunidades devido ao “encurtamento” das distâncias e a quebra das barreiras de incomunicabilidade. O mundo seria um só; um verdadeiro “vilarejo global”, no qual aquela pequena produtora de pão-de-queijo poderia vendê-los para um consumidor do outro lado do mundo. O que isso sugeria, em tese, era uma ampliação na livre iniciativa e na plena concorrência. Entretanto, não foi o que aconteceu. E não demorou muito para que isso fosse percebido. Hoje constata-se uma crescente concentração de mercados. Não raras às vezes, vamos ao supermercado e aquele produto que se consumia há anos, foi incorporado por uma marca notória 151 Cf. Maria Sylvia: “Se a lei dá à Administração os poderes (...) é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Em conseqüência, se, ao usar tais poderes (...) conseguir vantagens para si ou para terceiros (...) estará se desviando da finalidade pública prevista em lei. Daí o vício do desvio de poder ou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p. 66. Cf. Diógenes Gasparini: “A aplicabilidade desse princípio, por certo, não significa o total desrespeito ao interesse privado, já que a Administração deve obediência ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito (...)”, in Direito Administrativo. 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 20. 152 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo. 22ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 93. 62 de alguma corporação multinacional. Se se verificar as estatísticas no âmbito do mercado de capitais, são poucos os casos de cisão de empresas. O que nos deparamos, diariamente, são mega operações de fusões e aquisições de companhias. Clara prova de como a concentração de mercado se mostra cada vez mais acentuada. E isso traz importantes implicações. Dizer que por detrás de todo poder, encontra-se o dinheiro, é algo muito sério, senão preocupante. Associar poder ao dinheiro, é grave. Principalmente, quando este poder refere-se ao poder representativo de todo um povo. Seria o mesmo que dizer que a soberania de uma nação inteira encontra-se abaixo daqueles que detêm o dinheiro. Muitos fecham os olhos para não ver, mas a verdade é que existe, atualmente, uma legião de transnacionais com lucros que ultrapassam PIB’s de inúmeros países ao redor do mundo, o que faz delas, poderosas instituições capazes de influir das mais diversas maneiras em diferentes regiões. E ainda assim, querem mitigar a supremacia do interesse público sobre o privado? Será que diante da história não restou claro o que isso significa? Voltaríamos ao tempo em que as regras eram feitas pela lei da oferta e da procura, só que desta vez com uma agravante: haveria apenas a procura, ao passo que a oferta estaria concentrada nas mãos de uma poderosa minoria empresarial. Nos submeteríamos ao capricho daqueles que detêm o capital. Esse sim seria o detentor dos Poderes, tendo em vista que é o capital que elege os representantes, os quais fazem as leis; que o executivo simplesmente aplica e o judiciário meramente regula. Fato é, que em uma batalha entre economia e direito, é certo que o primeiro irá prevalecer. Sob este prisma, é que insurge o princípio da supremacia do interesse público a fim de equilibrar e contrabalancear frente aos interesses dos particulares. Nesse sentido, insta salientar as digressões de José dos Santos153: “A ‘desconstrução’ do princípio espelha uma visão distorcida e coloca em risco a própria democracia”, na mesma linha adotada por Alice Gonzáles Borges154: “o princípio, isto sim, suscita ‘reconstrução’, vale dizer, adaptação à dinâmica social”. O fato abordado já na introdução, acerca da crise econômica que assolou o mundo nos últimos dois trimestres de 2008, foi demonstração clara da fragilidade do sistema. Conseqüentemente, provou-se pertinente a atuação estatal no exemplo empírico, que no caso está 153 CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 22ª Ed., Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2009, p. 30. 154 BORGES, Alice Gonzáles, Supremacia do Interesse Público: Desconstrução ou Reconstrução?, Salvador, Revista Diálogo Jurídico, 2007. 63 ligado ao equilíbrio econômico, mas que poderia ter se dado em inúmeros outros campos de incidência. Ocorre que, partindo da premissa de que a partir do instante em que o indivíduo optou por viver em sociedade, sua liberdade individual já não era mais absoluta; para se garantir o convívio em sociedade, impossível deixar de se impor certas limitações às liberdades individuais. Assim, sendo tais prerrogativas imprescindíveis, o melhor seria atribuí-las a um ente que represente da maneira mais isenta e fiel possível os interesses e anseios da coletividade como um todo, que, hodiernamente, pelo atual modelo adotado, é o próprio Estado. A despeito do raciocínio exposto, insta transcrever, interessante passagem da obra de Cesare de Beccaria, que já em seu tempo tinha uma visão, até hoje, modernista: “Nenhum homem entregou gratuitamente parte da sua própria liberdade, mas em contrapartida espera que o restante dela seja devidamente garantida e protegida. Por isso, que a parcela depositada não deve ser mais do que aquele vínculo de estrita necessidade que viabilize a manutenção dos interesses particulares unidos, que, do contrário, se dissolveriam no antigo estado de insociabilidade. Além disso, cada um só quer colocar no depósito público a mínima porção possível, apenas a que baste para induzir os outros a defendê-lo”.155 Logo, para viabilizar e garantir o exercício destas respectivas atribuições, indispensável conferir determinadas prerrogativas. E, finalmente, estas prerrogativas necessitam de um fundamento, que é justamente uma sobreposição da supremacia do interesse público, pois este nada mais é que o direto interesse da coletividade, que por sua vez é o conjunto de um número indeterminado de interesses particulares. Assim, mitigar a supremacia seria o mesmo que destituir o Estado do Poder. Seria privá-lo de poder exercer seus deveres de acordo com o que a ele foi atribuído. “Não é desconhecido o fato de que o Estado deve atuar à sombra do princípio da supremacia do interesse público. Significa dizer que o interesse particular há de se se curvar diante do interesse coletivo. É fácil imaginar que, não fora assim, se implantaria o caos na sociedade”.156 Para o contratualista Rousseau157, uma das maiores ameaças à soberania popular decorre da incessante ação de agentes políticos e suas vontades particulares contra a vontade geral. 155 BECCARIA, Cesare, Dos Delitos e das Penas. 2ª Ed., São Paulo, Martins, 2002, p. 42/45. CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 22ª Ed., Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2009, p. 71. 157 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social, in “Os Clássicos da Política”, 11ª Ed, 1ºVol, São Paulo, Ática, 1999, p. 121. 156 64 Assim, nada mais lógico, que buscar o interesse de uma maioria frente a um interesse individual e minoritário, ou seja, seria a aceitação da vontade da maioria como critério para a imposição homogênea de uma obrigação ao todo. Em suma, o posicionamento e o comportamento do indivíduo, uma vez inserido no meio social, não mais se desvincula do imperativo natural de homem social158, afastando assim sua antiga condição de homem como um ser isolado. Mas, a questão é: como delimitar de forma efetiva e eficiente tal interesse coletivo frente aos direitos fundamentais da pessoa humana a ponto de garantir um bem-estar social e ao mesmo tempo não infringir as liberdades individuais? Tomando como base todo o exposto, e partindo da conclusão proposta no capítulo anterior, esta é a proposta para o próximo desafio! 158 Expressão utilizada por Dalmo de Abreu Dallari em sua ob. cit., p. 18. 65 BIBLIOGRAFIA ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, 2ª Ed., São Paulo, Landy, 2001. ARAGÃO, Alexandre Santos de, A Supremacia do Interesse Público no Advento do Estado de Direito e na Hermenêutica do Direito Contemporâneo. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007. ARISTÓTELES. A Ética, Rio de Janeiro, Tecnoprint, trad. De Cássio M. Fonseca. ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007. BACELLAR FILHO, Romeu Felipe, Direito Público x Direito Privado. Tese de Doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio, Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2007. BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha, Conceito de Direito Administrativo. 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