PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Faculdade Paulista de Direito
Pedro Ivo Vieira Silva
A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO COMO VERDADEIRO
AXIOMA DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
SÃO PAULO
2009
Pedro Ivo Vieira Silva
A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO COMO VERDADEIRO
AXIOMA DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
Trabalho
de
monografia
jurídica
apresentada ao Curso de Graduação,
como parte dos requisitos para obtenção
do título de bacharel em Direito, na área
Constitucional-Administrativo
sob
orientação da Professora-Orientadora
Christianne de Carvalho Stroppa.
SÃO PAULO
Setembro de 2009
Ao meu pai, Nathanael, maior responsável pelos valores e virtudes pilares de minha formação;
à minha querida mãe, Rita Maris, por todo carinho, afeto e suporte psicológico;
ao meu irmão, João Vitor, por todo estímulo e compreensão.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer, primeiramente, à minha querida Professora Christianne Stroppa,
que diante de suas mais ricas e cativantes exposições em sala de aula, me despertou um interesse
todo especial pela disciplina de Direito Administrativo, e que resultou na elaboração deste
trabalho sob sua orientação.
Ao meu grande amigo Julio, que me indicou a leitura do livro que ensejou o tema para o
presente estudo; vale dizer, mais uma de suas preciosas dicas que se tornou motivo fundamental
na produção deste desafio, ao despertar minha curiosidade sobre um tema tão presente e atual,
mas ao mesmo tempo, amplamente divergente e complexo.
Aos meus amigos-irmão: Felipe Danilo, Gastão, Daniel, Labruna, Beda, Spinola,
Mineiro, Cassito, Molina, (e alguns outros que ficaram ao longo da faculdade), que com a mais
bem humorada e positiva convivência, fazem parte daquela que considero a fase mais importante
de toda minha vida.
Aos meus queridos amigos e companheiros do dia-a-dia: Antônio, Diego, Saber, Caio e
Fábio, por toda paciência, apoio e consideração de uma verdadeira família. Aos meus amigos e
comparsas de longas horas de estudos: Hugo, Alexandre, Jean, Léo, Elton e Sofia, por todo
aprendizado espontâneo e descontraído, garantindo que a rotina nunca se torne algo monótono.
À minha inesquecível e insubstituível Universidade – Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – grande responsável pela minha formação, não só como jurista, mas também como
pessoa, a qual passou a respeitar mais as diferenças e ver as coisas de forma mais crítica, mas ao
mesmo tempo, mais humana.
Por fim, à minha amiga, companheira e amada Sophia, que tanto acreditou na
concretização deste trabalho. Eram nos momentos de maiores angústias e crises de ansiedade, que
surgia ela, com toda sua serenidade e complacência, restabelecendo a paz e a harmonia, que só
um grande e único amor tem o condão de conceber.
“O de que mais se precisa no preparo dos juristas de hoje é fazê-los conhecer bem as instituições
e os problemas da sociedade contemporânea, levando-os a compreender o papel que representam
na atuação daqueles e aprenderem as técnicas requeridas para a solução destes”.
Edgar Bodenheimer
NOTA DO AUTOR
Antes da produção do presente estudo, quando do surgimento do tema, muitos não só
ficaram surpresos como me alertaram acerca do campo em que estava pretendendo me aventurar.
A verdade é que diante de uma primeira reflexão, não dei tanta importância, mas após as leituras
preliminares percebi que realmente o assunto era extremamente árido.
Ocorre que, com base na contemporaneidade e pertinência do tema, juntamente com as
advertências vieram os incentivos. Fato é, que o assunto desperta as mais diferentes curiosidades.
Além disso, sendo a teimosia um de meus principais defeitos, optei, finalmente, pela produção do
presente estudo.
Contudo, isso não significa que as dificuldades e a complexidade foram afastadas. Pelo
contrário, este é exatamente o motivo da presente nota. Nunca me deparei com um tema que
pudesse envolver tantos outros. Foi esta a minha maior dificuldade, e que, com absoluta certeza,
também será a do eventual leitor.
Não restou outra alternativa senão tomar algumas teses majoritárias de diversas áreas
(filosofia, sociologia, antropologia, etc) como premissas maiores, que possibilitaram desencadear
raciocínios lógicos imprescindíveis para se chegar ao fim almejado.
Com o intuito de propor uma fiel apresentação do estudo, insta salientar, que muitas
destas teses não são de domínio do autor1 (além de não guardarem pertinência direta com objeto
em estudo). Assim, far-se-ão constantes observações nas notas de rodapé sobre assuntos que não
são unânimes nas respectivas áreas.
Por outro lado – como disse – o assunto desperta as mais diversas curiosidades,
guardando estreita ligação com fatos atuais do cotidiano. Assim, tentei expor ao máximo o estudo
de forma prática, sem me afastar, contudo, do conteúdo jurídico e da técnica científica.
1
Já dizia José Souto Maior Borges: “Só quem não pensa está imune à contradição e ao erro (...) é até preferível um
erro que decorra de uma tentativa ousada e comprometida com uma construção teórica grandiosa, a uma verdade
elementar e até superficial”.
RESUMO
O presente trabalho está genuinamente ligado a um atual debate doutrinário, com a
assunção de uma nova corrente que questiona o tradicional paradigma do Direito Administrativo,
qual seja: a existência de uma Supremacia do Interesse Público sobre o Privado.
Coincidência ou não, fato é que, ao lado desta nova dialética, novos e intrigantes casos
concretos surgem trazendo pontos de extrema relevância e complexidade que necessitam ser
diretamente enfrentados, principalmente quando em colidência com direitos fundamentais da
pessoa humana.
Baseado na aceitação da supremacia do interesse público como um verdadeiro axioma2,
insculpido no direito positivo, alicerce do regime jurídico-administrativo, espalhado por todo o
ordenamento brasileiro como princípio elementar do Estado Democrático de Direito, o trabalho
visa contrapor doutrinas que defendem desde uma simples reconsideração até uma verdadeira
desconstrução do princípio em tela3.
Sob a égide de sua evolução histórica, juntamente com uma breve análise de conceitos
preliminares, o primeiro passo será evidenciar que os mais importantes institutos do atual regime
Constitucional-Administrativo estão intimamente ligados com o princípio em tela.
Assim, ao contrário daqueles que defendem uma primazia de interesses privados, em
absoluto descompasso com a atual dinâmica social, não se pode negar a noção de supremacia do
interesse público como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, sob pena de se gerar
grave instabilidade, desordem e insegurança social.
O trabalho visa, a todo o momento, demonstrar que não se pode confundir o princípio
com eventuais manipulações e desvirtuamentos. O ponto de questionamento não é a existência ou
a inexistência do princípio em tela, mas sim, sua aplicação prática e a busca de formas mais
eficientes e efetivas de se combater sua usurpação, delimitando ao máximo a atuação de seu
executor, impedindo assim abusos e desvios de sua finalidade.
2
“Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da
coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e
asseguramento deste último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se
garantidos e resguardados”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São
Paulo, Malheiros, 2007, p.66.
3
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de
Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007.
SUMÁRIO
Nota do Autor
...........................................................................................................................................5
Resumo
...........................................................................................................................................6
Introdução
.......................................................................................................................................... 9
PARTE I – Evolução Histórica
Capítulo I – Evolução Histórica à luz do Direito Administrativo
.........................................................................................................................................12
Capítulo II – Evolução Histórica à luz das Cartas Constitucionais
.........................................................................................................................................17
PARTE II – Conceitos Preliminares
Capítulo III – Valor Normativo de Princípio
........................................................................................................................................ 22
Capítulo IV – Princípios (Não-Institucionais) versus Normas (Institucionais)
........................................................................................................................................ 28
Capítulo V – Interesse Público Primário e Interesse Público Secundário
........................................................................................................................................ 30
PARTE III – Principais Mecanismos que agem sob o Manto da Supremacia
Capítulo VI – Supremacia Geral e Supremacia Especial
........................................................................................................................................ 34
Capítulo VII – Poder de Polícia da Administração Pública
........................................................................................................................................ 38
Capítulo VIII – Intervenções no Domínio Econômico e na Propriedade Privada
........................................................................................................................................ 41
PARTE IV – Interesses Públicos versus Interesses Privados
Capítulo IX – Razões de Estado?
........................................................................................................................................ 45
Capítulo X – “Pré-Ponderação” (“Entronização”) versus Direitos Fundamentais
........................................................................................................................................ 49
Capítulo XI – Desconstrução?
........................................................................................................................................ 55
CONCLUSÃO
Capítulo XII – Evitando Abusos e Desvios
........................................................................................................................................ 61
Capítulo XIII – Implicações Práticas
.........................................................................................................................................62
BIBLIOGRAFIA
.........................................................................................................................................66
INTRODUÇÃO
Inúmeros são os casos, na atualidade, envolvendo influentes ações afirmativas do Estado
que, não raras às vezes, interferem de maneira substancial nos direitos e garantias fundamentais
do indivíduo, no direito de propriedade, e até mesmo, no desenvolvimento econômico de toda
uma nação.
Fato é que quanto maior o poder e a autonomia de interferência de um instituto legal –
como é o caso de ações afirmativas do Estado fundadas no princípio da supremacia do interesse
público – maior é o papel do cientista do direito em estabelecer caminhos para uma melhor
interpretação do instituto, sempre com o intuito de assegurar sua aplicação em consonância com a
Carta Magna, base hierárquica de todo o ordenamento jurídico.
Conforme apontado por Luís Roberto Barroso, quando prefaciou a obra organizada por
Daniel Sarmento, in verbis:
“O Estado moderno, o direito constitucional e o direito administrativo passaram nas
últimas décadas por transformações profundas, que superaram idéias tradicionais,
introduziram conceitos novos e suscitaram perplexidades ainda não inteiramente
equacionadas. Nesse contexto, surgem questões que desafiam a criatividade dos
autores, dos legisladores e dos tribunais (...)”.4
Nesse sentido, nunca foi tão importante e necessária uma análise mais cautelosa e
aprofundada acerca da atuação do Estado perante a sociedade, suas repectivas limitações e as
implicações na hipótese de usurpação de seu dever-poder.
Diga-se importante, pois são imprescindíveis as reflexões acerca da problemática posta,
com o intuito de se desenvolver modelos mais eficazes que impossibilitem o uso arbitrário e
indiscriminado de tal prerrogativa que, não raras às vezes, leva a desvios e abusos.
Diga-se necessária, porque estes desvios e abusos já fazem parte da realidade com
inúmeros casos empíricos estampados em capas de revistas e jornais, principalmente quando em
colidência com direitos e garantias constitucionais.
Como se não bastasse, nos últimos tempos, muitos temas de extrema complexidade
vieram à tona ser objeto de profundos e complexos debates, fomentando ainda mais a questão da
atuação Estatal. Entre eles, podemos citar: (i) as novas vertentes de proteção e garantias dos
4
BARROSO, Luís Roberto, Prefácio – O Estado Contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da
Supremacia do Interesse Público, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. vii.
9
direitos fundamentais; (ii) nova hermenêutica constitucional; (iii) maximização dos direitos
humanos por meio de tratados e convenções internacionais; entre outros.
Nesse sentido, Luís Roberto Barroso tece breves considerações trazendo uma noção de
que o princípio da supremacia do interesse público não ficou imune às alterações dentro desta
nova sistemática de:
“(...) superação do caráter axiomático e absoluto do princípio da supremacia do
interesse público, em um universo jurídico no qual se verificou a ascensão dos direitos
fundamentais e foram desenvolvidas novas fórmulas doutrinárias, como a teoria dos
princípios. Direitos e princípios passam, assim, a ser valorados à vista do caso concreto,
de acordo com sua dimensão de peso específico, à luz de critérios como o da
razoabilidade-proporcionalidade e o da dignidade da pessoa humana”.5
Ocorre que, se por um lado, há a maximização de preceitos ligados ao indivíduo como
centro do ordenamento jurídico (homocêntrismo), por outro, nunca foi tão necessária a presença
de um Estado atuante e onipresente, dotado de poderes conferidos pela própria ordem jurídica,
para o efetivo exercício de suas atribuições, entre elas a própria garantia e proteção dos direitos
individuais.
Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em seu curso de Direito Administrativo:
“Trata-se de uma limitação à liberdade individual mas tem por fim assegurar esta própria
liberdade e os direitos essenciais ao homem”.6
A fim de ilustrar a temática posta, pode-se citar a grave crise econômica que assolou o
mundo no último trimestre de 2008. Estima-se que o rombo provocado por uma crise na liquidez
dos créditos deve ter ultrapassado os cinco trilhões de dólares. Não obstante, é do conhecimento
de todos que com uma série de intervenções estatais, principalmente conduzidas pelos Estados
Unidos e União Européia, o ordenamento econômico internacional evitou aquela, que muitos
acreditavam, que seria a maior depressão de todos os tempos, superando até mesmo a quebra da
bolsa de Nova York em 1929 com a crise do petróleo.
Enfim, o que nos interessa no exemplo exposto e, em muitos outros que nos deparamos
diariamente, é verificar o que legitimaria intervenções e condutas tão audaciosas do Estado. Em
outras palavras, como o Governo Bush/Obama poderia injetar mais de dois trilhões de dólares na
economia norte-americana com o intuito de evitar inúmeros “bankrupts” de instituições
5
6
Ob. cit., p. ix.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p. 61.
10
financeiras e seguradoras? Qual seria o limite do poder discricionário do governante? E caso este
limite fosse transgredido, quais seriam os meios de controle e proteção?
Em meio a tantas indagações, seria de extrema petulância buscar explicações a todas
elas, sugerindo uma solução universal para todos os respectivos conflitos. Portanto, o presente
trabalho visa fomentar os atuais debates e, principalmente, contrapor a nova corrente doutrinária7,
que levada pelas mais recentes exposições acerca da constitucionalização dos direitos
fundamentais (mais especificamente pela defesa de sua eficácia e efetividade), encarou tal
princípio como sendo um verdadeiro mecanismo de autoritarismo reacionário do Direito
Administrativo brasileiro, o que desde logo discordo e acredito ser uma visão distorcida da atual
dinâmica sócio-política nacional.
Ocorre que, não se trata de uma “desconstrução” do princípio que considero ser o pilar
de todo o ordenamento constitucional-administrativo brasileiro, verdadeiro alicerce das atuais
estruturas democráticas. Ao contrário, diria ser preciso integrá-lo cada vez mais aos novos
anseios sociais que tanto carecem em determinadas áreas e camadas populacionais8.
Pois como mesmo disse Daniel Sarmento 9: “a desvalorização total dos interesses
públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos geral, inviabilizando qualquer
possibilidade de regulação coativa da vida humana em comum”.
Por tal fim é que o Estado detém, por exemplo, o monopólio da coação no que se refere
à distribuição da justiça. Nas palavras de Miguel Reale: “O Estado, como ordenação do poder,
disciplina as formas e os processos de execução coercitiva do Direito”.10
Finalmente, nas palavras do ilustre doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello (autor
da tese que o presente trabalho irá se socorrer a todo o momento), ex positis:
“Trata-se de um verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama
a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do
particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último.
É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se
garantidos e resguardados”.11
7
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de
Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007.
8
No mesmo sentido: BORGES, Alice Gonzáles, Supremacia do Interesse Público: Desconstrução ou
Reconstrução?, Salvador, Revista Diálogo Jurídico, 2007.
9
Ob. cit., p. 24.
10
REALE, Miguel, Lições Preliminares do Direito. 27ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 76.
11
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, p. 66.
11
PARTE I – Evolução Histórica
Capítulo I – Evolução Histórica à luz do Direito Administrativo
A bem da verdade, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado
encontra-se genuinamente ligado ao Direito Administrativo ao conquistar seu status de ramo
autônomo do Direito12. Assim, é de suma importância a análise da evolução histórica do regime
jurídico-administrativo para uma correta compreensão do princípio em tela e suas respectivas
implicações no ordenamento jurídico atual.
Apesar das raízes do Direito Administrativo serem oriundas de tempos mais remotos, ele
realmente tem seu surgimento juntamente com o Estado de Direito. Ocorre que, anteriormente o
que havia era uma espécie de Estado de Polícia13, no qual o poder estatal era ilimitado e
concentrado na figura de um único governante, ou seja, uma supremacia do Soberano que não era
submetido a qualquer tipo de contrapeso de interesses. Tratava-se de uma absoluta sujeição dos
indivíduos ao seu poder absoluto. Assim de nada adiantaria uma disciplina voltado ao estudo das
relações entre Administração Pública e administrados.
Com a evolução econômica, e o conseqüente acúmulo de riquezas, novos pensadores,
como o inglês John Locke, buscou limitar e distribuir as funções de Estado. Verifica-se, assim,
que o primeiro passo na história foi uma espécie de movimento descentralizador, que buscou
mitigar o poder do Monarca em prol da coletividade, o que resultou na queda do Regime
Absolutista que deu lugar a organização de uma máquina Estatal de caráter representativo.
Este episódio ensejou o início da produção de leis gerais e abstratas que deveriam ser
seguidas por qualquer um do povo e, pela primeira vez na história, pelo próprio Estado14. Foi
justamente essa idéia que implicou na concepção de Estado de Direito no qual a sociedade, por
12
“O sistema de Direito Administrativo Brasileiro se constrói sobre os princípios da supremacia do interesse público
sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público pela Administração”. BANDEIRA DE MELLO, Celso
Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 52/54.
13
“No chamado Estado de Polícia, em que a finalidade é apenas a de assegurar a ordem pública, o objeto do Direito
Administrativo é bem menos amplo, porque menor é a interferência estatal no domínio da atividade privada”. DI
PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.03.
14
“Um dos princípio básicos do Estado Democrático de Direito é precisamente o da legalidade, em consonância com
o qual o próprio Estado se submete às leis por ele mesmo postas”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito
Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p. 102/109.
12
meio de seus representantes, produz o direito e automaticamente a ele se vincula, sem qualquer
espécie de exceção ou circunstância privilegiada.
Ora, com a descentralização do poder e a conseqüente equiparação do Estado com o
indivíduo no que tange sua subordinação às leis, num primeiro momento, o que mais se buscava
era garantir este status conquistado, com o intuito de impedir a interferência do Poder Público na
esfera da liberdade individual dos cidadãos. Afastou-se ao máximo a idéia de sobreposição dos
interesses do Estado sobre o indivíduo, ao passo que todos deviam obediência às mesmas regras.
Preleciona Maria Sylvia Zanella di Pietro15, que a formação do Direito Administrativo,
como ramo autônomo do direito, teve início justamente com o direito constitucional e outros
ramos do direito público16, a partir do momento em que começou a desenvolver-se o conceito de
Estado de Direito, estruturado sobre o princípio da legalidade e sobre o princípio da separação de
poderes.
Percebe-se que tanto o Direito Constitucional como o Direito Administrativo surgem
conjuntamente com o conceito de Estado de Direito, que por sua vez, decorre da estruturação de
dois princípios de suma importância, quais sejam: o da legalidade e da tripartição dos poderes.
O primeiro, desenvolvido pelo primado do filósofo francês Jean Jacques Rousseau17,
dizia que as pessoas viviam em sociedade a partir de uma espécie de contrato social. Assim, a lei
deveria ser basicamente uma expressão da vontade coletiva, a qual revelaria indiretamente o
próprio interesse público. Conseqüentemente, o princípio da legalidade passou a assegurar a
submissão geral e absoluta à lei fundamental; inclusive o Estado sendo submisso às suas próprias
leis outorgadas18.
Já a tripartição dos Poderes, tem sua origem na Grécia Antiga com o renomado filósofo,
Aristóteles, em sua obra “Política”, quando identificou funções distintas exercidas pelo Poder
Soberano, quais sejam: (i) editar normas gerais a serem observadas por todos; (ii) aplicá-las ao
caso concreto, e; (iii) dirimir conflitos oriundos de sua aplicação, julgando-os.
15
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.02.
Neste mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello: “(...) os títulos fundamentais do Direito Administrativo
se alojam no Direito Constitucional. Assim, o Direito Administrativo de cada país possui feição que lhe confere o
respectivo Direito Constitucional”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª
Ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 28.
17
WEFFORT, Francisco C. (org.). Os Clássicos da Política. 11ª Ed., 1º Vol. São Paulo, Ática, 1999, p. 187.
18
Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que: “O Direito Administrativo só se plasmou como disciplina autônoma
quando se prescreveu processo jurídico para atuação do Estado-poder, através de programas e comportas na
realização das suas funções”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed.,
São Paulo, Malheiros, 2007, p. 42.
16
13
Mas tal teoria, viu sua maior evolução com o pensador francês, Barão de Montesquieu,
em sua obra “Do Espírito das Leis”, quando, ao contrário do filósofo grego, passou a analisar não
só a separação das funções, como também a pluralidade de Soberanos19.
Dizia basicamente que a concentração de Poderes nas mãos de um só Soberano leva à
tirania. Assim, os respectivos Poderes deveriam ser fracionados entre mais de um Soberano,
mesmo porque apenas um Poder tem o condão de controlar outro Poder. Estes Soberanos
deveriam ser autônomos e independentes entre si, podendo exercer apenas as funções inerentes às
suas atribuições20.
O raciocínio empregado por Montesquieu repercutiu inúmeras conseqüências, entre elas,
uma de suma importância chamada de Teoria dos Freios e Contrapesos (mais conhecida como
"Checks and Balances"). Esta teoria, basicamente a lógica do Estado Democrático de Direito,
prega a independência e a harmonia entre os Poderes do Estado, fazendo com que o Poder
Executivo disponha de meios para agir no caso concreto, limitados sempre às regras gerais e
abstratas do Poder Legislativo e fiscalizados pelo Poder Judiciário.
Ausentes, portanto, o surgimento, a fiel execução e o devido controle das leis (princípios
da tripartição juntamente ao da legalidade) não há como se invocar a supremacia do interesse
público para realizar absolutamente nenhum ato de Estado. Asseguram-se assim as garantias
individuais entre particulares e o próprio Estado, protegendo os cidadãos contra qualquer tipo de
abuso na atuação normativa e material do Estado.
Instaurado o Estado Democrático de Direito, este não permaneceu imutável, sendo que
sua evolução foi marcada por uma verdadeira alternância de ideologias21. Nesse sentido, ensina
Luis Roberto Barroso:
“Ao longo do século XX, o Estado percorreu uma trajetória pendular. Começou liberal,
com funções mínimas, em uma era de afirmação dos direitos políticos e individuais.
Tornou-se social (...) assumindo encargos na superação das desigualdades e na
promoção dos direitos sociais. (...) Neoliberal, concentrando-se na atividade de
regulação, abdicando da intervenção econômica direta, em um movimento de
desjudicização de determinadas conquistas sociais. E assim chegou ao novo século e ao
novo milênio. O Estado contemporâneo (...)”.22
19
WEFFORT, Francisco C. (org.). Os Clássicos da Política. 11ª Ed., 1º Vol. São Paulo, Ática, 1999, p. 121.
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 31.
21
“Na realidade, o conteúdo do Direito Administrativo varia no tempo e no espaço, conforme o tipo de Estado
adotado”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.03.
22
BARROSO, Luís Roberto, Prefácio – O Estado Contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da
Supremacia do Interesse Público, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. xi.
20
14
Como se percebe, a pendular alternância tem seu início na Europa do século XVIII, com
o surgimento da famigerada Teoria Liberal, baseada na liberdade de iniciativa e na autonomia
moral e econômica da sociedade em oposição à concentração do poder político.
Seus principais representantes foram: Adam Smith com sua obra “O Capital” e John
Locke com sua obra “Dois Tratados sobre o Governo”. Influenciados pelos princípios do
Iluminismo e do Utilitarismo, pregavam a afirmação dos direitos políticos e individuais, entre
eles a noção de propriedade privada. Além disso, defendiam a desnecessária intervenção estatal
na economia, que seria regulada naturalmente pelas leis naturais do próprio mercado, qual seja a
lei da oferta e procura na livre concorrência.
Note que a ideologia buscou a intervenção mínima do Estado, tendo caráter meramente
excepcional uma possível interferência ou controle estatal. A sociedade buscava a afirmação de
seus direitos políticos e individuais, depois de um longo tempo suprimidos pelo Absolutismo.
Esse movimento ficou conhecido como direitos fundamentais de primeira geração (ações
negativas impostas ao Estado).
Nesse sentido, podia-se cogitar em limitar o exercício dos direitos individuais apenas
para assegurar um bem maior, qual seja: a ordem pública. De acordo com Romeu Felipe23, no
Estado Liberal, percebe-se um esforço concentrado em divisar as fronteiras entre Direito Público
e Privado. Tratava-se de delimitar as esferas de atuação do Estado e do particular, a fim de
resguardar a liberdade diante do exercício da autoridade. Nas palavras de Luis Barroso, o
liberalismo cunhava uma dualidade que contrapunha Estado e Sociedade.
Entretanto, restou comprovado não serem suficientes tais direitos. Apesar de a sociedade
ter visto garantido seus direitos mínimos, necessário se fez ampliar as prerrogativas do Poder
Público, até mesmo com a previsão de limitações aos direitos individuais, a fim de viabilizar o
exercício de seus deveres, atribuídos pelos próprios administrados:
“Até um certo ponto da História havia a nítida e correta impressão de que os homens
eram esmagados pelos detentores do Poder político. A partir de um certo instante
começou-se a perceber que eram vergados, sacrificados ou espoliados não apenas pelos
detentores do poder político, mas também pelos que o manejavam: os detentores do
Poder econômico. Incorporou-se, então ao ideário do Estado de Direito o ideário social,
surgindo o Estado Social de Direito, também conhecido como Estado de Bem-estar
(Welfare State) e Estado-Providência”.24
23
24
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe, Direito Público x Direito Privado.
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 49.
15
É nesse contexto que surge a figura do Estado Social25, no qual de forma contraposta,
buscou basicamente a igualdade e promoção dos direitos sociais, por meio da reintrodução da
atuação Estatal (caráter de interesse público e coletivo sobre o privado). É o chamado de direitos
fundamentais de segunda geração (“Welfare State”). De acordo com Daniel Sarmento26, este
movimento ensejou a crescente intervenção do Estado nos mais diversos domínios, multiplicação
de normas de ordem pública e uma nova principologia dos códigos nacionais.
Podemos dizer que este foi o momento de apogeu da supremacia do interesse público27.
O Estado era demasiadamente intervencionista, principalmente na órbita da livre iniciativa. Não
bastava um simples desenvolvimento econômico. Este deveria ser seguido por melhores
condições de vida aos administrados, além de maior participação da coletividade.
Conforme ensinamentos de Maria Sylvia Zanella di Pietro28: “O Direito deixou de ser
apenas instrumento de garantia dos direitos do individuo e passou a ser visto como meio para
consecução da justiça social, do bem comum, do bem-estar coletivo”; e traz as respectivas
repercussões no âmbito da supremacia do interesse público:
“(...) ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender às necessidades
coletivas (...) o mesmo ocorreu com o poder de polícia do Estado, que deixou de impor
obrigações apenas negativas (não fazer) visando resguardar a ordem pública, e passou a
impor obrigações positivas (...) surgem novos preceitos que revelam a interferência
crescente do Estado na vida econômica e no direito de propriedade (...) cresce a
preocupação com os interesses difusos”.
A Constituição Brasileira de 1988 representa perfeitamente este ideário, ensina Celso
Antônio Bandeira de Mello29; mas complementa, todavia, que este bem-estar social jamais
passou do papel para a realidade, conforme melhor exposto no próximo capítulo.
25
“O Estado do Bem-estar é um Estado mais atuante; ele não se limita a manter a ordem pública, mas desenvolve
inúmeras atividades na área da saúde, educação assistência e previdência social, cultura, sempre com o objetivo de
promover o bem-estar coletivo. Nesse caso o Direito Administrativo amplia o seu conteúdo, porque cresce a máquina
estatal e o campo de incidência da burocracia administrativa. O próprio conceito de serviço público amplia-se, pois o
Estado assume e submete a regime jurídico publicístico atividades antes reservadas a particulares”. DI PIETRO,
Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.03.
26
Ob. cit., p. 25.
27
“O Estado Social de Direito representou, até a presente fase histórica, o modelo mais avançado de progresso, a
exibir a própria evolução espiritual da espécie humana”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito
Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 49.
28
Ob. cit., p. 60.
29
Exemplos: art. 1º, III e IV, § 3º, I, III e IV, § 7º, II e IV, art. 170, caput, e incs. III, VII e VIII entre outros. Cf.
Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 49.
16
Capítulo II – Evolução Histórica à luz das Cartas Constitucionais
A fim de compreender os moldes da atual Constituição Federal, considera-se de suma
importância fazer um breve apanhado histórico daquelas que a antecederam. Foram basicamente
oito constituições ao todo, o que significa quantidade elevada quando comparado a outros
regimes que mantiveram uma única constituição ao longo de toda sua história, como é o caso dos
Estados Unidos.
Acerca das duas primeiras cartas constitucionais de 1824 e de 1891, insta salientar, que
ambas são características de um regime em transição, vale dizer, do império para a república. A
primeira tem como característica mais marcante a concentração de poderes nas mãos do
imperador que exercia o cargo de Poder Moderador. Espelhada nas grandes revoluções que se
passavam no continente europeu, ela resultou em inúmeros direitos individuais. Mas estes não
eram aplicados de maneira homogênea tendo em vista que à época ainda vigorava o regime da
escravidão.
Já a segunda Carta Constitucional de 1891 consistiu na primeira Constituição
Republicana do Brasil. Foi marcada pelas considerações de Rui Barbosa, que por ser profundo
conhecedor do constitucionalismo norte americano, importou inúmeros modelos do mesmo,
como, por exemplo, a grande autonomia dos Estados-membro da federação.
Pode-se dizer, que foi a partir de 1934 que grandes transformações no sistema jurídicoconstitucional brasileiro realmente ocorreram. Amplamente influenciada pela Constituição de
Weimar de 1919, que tratou pela primeira vez dos direitos sociais, a Constituição 1934 previu a
existência digna da pessoa humana, a proteção social do trabalhador e a necessidade da vida
nacional como limites à garantia da liberdade econômica e da atuação estatal.30
A Carta de 1937 foi marcada pelo golpe militar de Getulio Vargas, que institui o regime
da ditadura. Assim, a autonomia dos Estados concedida pelo ordenamento anterior foi
amplamente retirada. Além disso, voltou a possibilidade de intervenção estatal no domínio
30
Para o presente estudo, esta carta constitucional foi de suma importância, tendo em vista que possuía um inovador
conteúdo intervencionista, o qual introduziu os princípios da justiça social e das necessidades da vida nacional, de
modo a possibilitar a todos uma existência digna, além de garantir a liberdade econômica dentro de tais limites,
como elementos fundamentais para a organização da ordem econômica. Com pequenas variações, como será
percebido ao longo das exposições das demais cartas constitucionais subseqüentes, pode-se dizer que, no essencial,
esse tem sido o modelo de constituição econômica adotada dentro do ordenamento jurídico pátrio. MENDES, Gilmar
Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 1405.
17
econômico visando suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores de
produção.
Após a renúncia de Getúlio Vargas, o Brasil passou por um processo de
redemocratização, o que gerou a primeira constituição promulgada e democrática do país em
1946. Voltou-se a conceder maior autonomia aos Estados e, calcada no princípio da justiça social,
garantiu diversos direitos individuais como a liberdade de iniciativa e a valoração do trabalho.
Em seguida, caracterizada como uma constituição antidemocrática e centralizadora,
retirando novamente a liberdade dada aos Estados, a Carta Constitucional de 1967 foi marcada
pelo AI-5, no qual ao presidente eram conferidos poderes como: decretar o recesso do congresso
nacional, legislar sobre todas as matérias, decretar intervenção de estados e municípios,
suspender direitos políticos, entre outros.
Na mesma linha foi a Carta de 1969, havendo autores que defendem que ela não passou
de uma mera emenda. Outorgada pelo regime militar, concentrou ainda mais os poderes nas mãos
da União, o que culminou em um exacerbado autoritarismo, marcada pela intensa restrição das
liberdades individuais.
Percebe-se uma absoluta alternância das características adotadas ao longo da história
constitucional brasileira que culminou, por fim, na atual Constituição Federal de 1988. Conhecida
como a “Constituição Cidadã”31, restabeleceu a federação, devolvendo definitivamente aos
Estados e Municípios suas competências que haviam sido suprimidas pelo último regime que a
precedeu.
Baseada em preceitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, não se limitou
às regras clássicas do constitucionalismo, trazendo imensurável rol de direitos e garantias
fundamentais, sendo considerada, por muitos, até mais avançada que tratados e convenções
internacionais de direitos humanos.
Sua extensa e detalhista redação tem suas razões de ser. Promulgada em uma época de
grande instabilidade política, buscou ser uma síntese das conquistas feitas por setores da
sociedade que buscavam assegurar o máximo de garantias possíveis, a fim de evitar futuras
31
Nesse sentido Nelson Nazar: “Constituição Cidadã - como toda constituição, é uma síntese das conquistas feitas
por setores da sociedade no momento em que produzida. Portanto, importante salientar que a CF/88 nasce no período
pós-ditadura de 1964 sendo muito pródiga em criar direito e mecanismos para evitar que os direitos fossem violados
pelas atuações estatais (ações administrativas). Assim, chamada de ‘constituição cidadã’ ela consagrou inúmeros
direitos fundamentais individuais e limitou ao máximo o poder público”. NAZAR, Nelson, Direito Econômico, 1ª
Ed., Bauru, Edipro, 2004, p. 60.
18
intervenções autoritárias.32
Insta salientar, que este extenso e detalhista rol de direitos e garantias, acarreta grandes
dificuldades aos Tribunais e, principalmente, à Suprema Corte, encarregada de fiscalizar a
observância dos preceitos expressos no texto constitucional. Entretanto, caracterizada como uma
espécie de “constituição dirigente”33, nas lições de Canotilho, busca determinar tarefas ao Estado
visando alcançar, através do direito, a plena mudança da sociedade. No mesmo sentido, Oscar
Vilhena explica que ela não traz apenas instrumentos de limitação ao poder do Estado ou simples
organizadoras do governo, mas também buscam criar condições de realização de uma justiça
social e econômica.34
Ocorre que, este fenômeno provoca um vasto bloco de normas diretivas e programáticas,
de complexa aplicabilidade e sem o mínimo de regulamentação, que dificulta muito o tradicional
controle de constitucionalidade. Como se não bastasse, prejudica também a própria eficácia das
normas constitucionais, ao passo que, sob essa tradicional classificação quanto à sua
executoriedade
(operativas versus programáticas)35, definem objetivos cuja concretização
depende de providências situadas fora ou além do texto constitucional, o que as torna um
conveniente mecanismo de inaplicabilidade e ineficácia do respectivo valor normativo.
Segundo Rui Barbosa, realmente as disposições constitucionais, em sua maioria, não são
auto-aplicáveis, mesmo porque a Constituição não se executa em si mesma, antes impõe ou
requer a ação legislativa, para lhe tornar efetivos os preceitos, o que não quer dizer, entretanto,
que a Lei Maior possua cláusulas ou preceitos a que deve atribuir o valor moral de simples
conselhos, avisos ou lições, até porque todos têm a força imperativa de regras, ditadas pela
soberania nacional ou populacional aos seus órgãos.36
Diante da mencionada problemática, a meu ver, a idéia do legislador constituinte, não
foi de criar um conjunto de normas simplesmente programáticas, ou seja, normas que apenas na
“medida do possível” devem ser devidamente cumpridas. Ao contrário, buscou confiar à
responsabilidade do Estado, inúmeros anseios de curto, médio e longo prazo, talvez, a fim de
garantir vida longa à nova carta constitucional. Assim, explicitou ao máximo todo conteúdo dos
32
Conseqüentemente, um dos resultados foi um grande número de normas pragmáticas (normas de eficácia limitada)
que até hoje se encontram sem regulamentação.
33
CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Ed., Coimbra, 1983, p. 457.
34
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal – Jurisprudência Política, 2ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2002,
p. 35.
35
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 49.
36
Ob. supracitada, p. 50.
19
deveres do Estado, com intuito de cercear uma eventual fuga de seu cumprimento.
Corroborando o exposto acima é que, se por um lado, ela impôs uma série de deveres,
por outro, ela reconheceu artifícios para que o Estado pudesse exercer suas respectivas
atribuições37. É o caso dos princípios da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e da
Indisponibilidade do Interesse Público.
Acontece, porém, que juntamente com a promulgação da respectiva constituição adveio
a corrente do neoliberalismo, que pregava a livre iniciativa absoluta e o desenvolvimento
econômico a qualquer preço.
Assim, grande parte daquelas prerrogativas garantidas ao Governo pela própria Carta
Magna, com o intuito de exercer suas atribuições frente aos anseios sociais, foram indevidamente
cedidas a uma minoria empresarial, e os direitos sociais do povo foram gradualmente mitigados.
Vale dizer, este afastamento do Estado acarretou um verdadeiro retrocesso na qualidade de vida
dos indivíduos.
Celso Antônio Bandeira de Mello chega a falar em uma espécie de “darwinismo” social
e político38, ao passo que restabeleceram um ilimitado domínio dos interesses econômicos dos
mais fortes. Ainda de acordo com o autor, com a queda do socialismo russo, aquele modelo
mundial bipolarizado caiu, dando lugar a uma expansão desenfreada do modelo capitalista, já que
não mais havia qualquer contraponto ideológico.
“O Estado Social de Direito emerge, encerrando o ciclo do liberalismo, quando emerge
o comunismo. Tão logo fracassa o comunismo, renascem, de imediato, com vigor
máximo as idéias liberais, agora ‘recautchutadas’ com o rótulo de ‘néo’, propondo
liminarmente a eliminação ou sangramento das conquistas trabalhistas e direitos sociais,
do mesmo passo em que revive o imperialismo pleno e incontestado, sob a designação
aparentemente técnica de ‘globalização’. Não há nisto, como é óbvio, coincidência
alguma. O que há é disseminação de idéias políticas, de interesse dos países dominantes
e das camadas sociais mais favorecidas. Livres, uns e outros, dos temores e percalços
que lhes impuseram as concessões feitas no curso do século presente, empenham-se,
agora, ao final dele, em retomar as posições anteriores. Trata-se, como se vê, de um
retorno ao mesmo esquema de poder, nos planos interno e internacional, vigente no
final do século passado e início deste”.39
37
“(...) os dois aspectos fundamentais que o caracterizam (regime jurídico a que se submete a Administração
Pública) são resumidos nos vocábulos prerrogativas e sujeições, as primeiras concedidas à Administração, para
oferecer-lhe meios para assegurar o exercício de suas atividades, e as segundas como limites opostos à atuação
administrativa em beneficio dos direitos dos cidadãos (...) dois aspectos opostos: a autoridade da Administração
Pública e a liberdade individual”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo,
Atlas, 2007, p. 102/109.
38
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 49.
39
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. A democracia e suas dificuldades contemporâneas. Jus Navigandi,
Teresina, ano 5, n. 51, out. 2001.
20
Ocorre que este modelo exacerbado mostrou rapidamente sua face mais perversa.
Fundadas em falsas premissas que invocavam reformas seguidas de reformas, o Estado conseguiu
reduzir sua atuação ao mínimo. Assim, foi possível viabilizar uma série de: “(...) ‘privatização’,
para passar a mãos privadas a titularidade ou meramente a prestação de serviços públicos;
‘flexibilização’ da legislação protetora economicamente hipossuficiente e irrestrita abertura dos
mercados”.40
Contudo, esta campanha foi rapidamente dissipada, não passando de um breve
“soluço”41 na história. Diferente não poderia ser. A população pôde vivenciar um período
nitidamente de completa abstenção do exercício dos deveres do Poder Público apregoados na
Constituição Federal, como: direito à saúde, educação, transporte, entre outros.
Apesar de todos os problemas que circundam a atuação Estatal na sociedade, após esta
passagem, restou comprovada sua importância. Enquanto prevalecer o atual modelo político, tais
intervenções estatais devem se protrair no tempo, a fim de se garantir a estabilidade e o mínimo
do bem-estar da coletividade. Por bem ou por mal, não há (ainda) outra instituição capaz de zelar
por tais ônus, senão o Estado. Não se pode negar que a iniciativa privada tem como seu objetivo
maior a aferição de lucros. Assim, entre buscar o bem-estar da coletividade ou cifras cada vez
maiores, estas estarão sempre em primeiro plano.
Os últimos acontecimentos permitem constatar que para se garantir a liberdade
individual e o mínimo de dignidade humana, o exercício dos deveres do Estado deve ser mantido.
Para que isso seja possível, prerrogativas devem ser concedidas. E estas são fundadas diretamente
na própria supremacia de um interesse público sobre o particular. Basicamente, seria esta a nova
vertente da conjectura atual, estancada em nossa Constituição Federal, base de um futuro, ao
menos, próximo42.
40
Ob. supra cit., p. 49/50.
Ob. supra cit., p. 50.
42
“Podemos afirmar que, em nossos dias, o Estado contínua sendo a entidade detentora por excelência da sansão
organizada e garantida”. REALE, Miguel, Lições Preliminares do Direito. 27ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p 76/77
41
21
PARTE II – Conceitos Preliminares
Capítulo III – Valor Normativo de Princípio
Apesar de não ser o cerne do presente estudo, este é talvez um dos argumentos mais
contundentes da doutrina oposta, que merece especial destaque. Sob a égide das mais recentes
doutrinas acerca do valor normativo de princípio dentro do ordenamento jurídico, imprescindível
se faz verificar as peculiaridades da estrutura lógica-normativa dos princípios em geral.
Além disso, para esclarecer as relações jurídicas que deles se originam, principalmente
quando ligadas aos direitos fundamentais, insta verificar seus elementos básicos de norma
jurídica e os reflexos que incidem sobre o instituto quando em colidência com as demais regras
jurídicas de mesma hierarquia43.
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello44: “Para quem se ocupa do estudo do
Direito, assim como para quaisquer que o operem, nada mais interessa senão saber que princípios
e que regras se aplicam perante tais ou quais situações”; mas adverto, contudo, evitar ao máximo
transcender à teoria pura do direito, na qual se objetiva tão somente conhecer suas normas
jurídicas, evitando prescrevê-las ou até mesmo explicá-las45.
Roque Antônio Carraza salienta desde o início: “Registramos, desde logo, que os
princípios constitucionais têm caráter normativo”. E segue com sua exposição, dizendo que:
“Princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande
generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por
isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas
jurídicas que com ele se conectam (...) se apresenta sempre relacionado com outros
princípios e normas, que lhe dão equilíbrio e proporção e lhe reafirmam a
importância”.46
43
Cf. exposto por Alexandre Santos na ob. cit. p. 9/10: “A mais moderna hermenêutica constitucional tem formulado
critérios de identificação e categorização dos argumentos jurídicos, partindo, então, em um segundo momento, para a
enumeração de que espécies de argumentos devem ser consideradas prioritárias sobre as outras (...) os argumentos
jurídicos ligados diretamente ao texto da regra específica a ser aplicada devem prevalecer sobre os argumentos
metajurídicos ou mais genéricos e subjetivos”.
44
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, p. 27.
45
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 2ª Ed., vol.II, Coimbra, Sucessor, 1962, p.2, trad. João Baptista Machado
46
Curso de Direito Constitucional Tributário, 23ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 36/40.
22
Mas a questão não é tão simples assim. A concepção de princípio foi introduzida,
primeiramente, por Anaximandro já na Grécia antiga. Posteriormente, foi utilizado por Platão, no
sentido de fundamento do raciocínio; depois, por Aristóteles, como a premissa maior de uma
demonstração, e; séculos mais tarde, por Kant, como preposição geral que pode servir de
premissa maior de um silogismo. Basicamente, o sentido etimológico do vocábulo princípio
sugere a idéia de começo, origem, base, ponto de partida. Traz uma noção de diretrizes, nortes,
patamar privilegiado47.
A doutrina mais tradicional, como a seguida por Noberto Bobbio, em seu primado “O
Positivismo Jurídico”, trabalha com a visão de uma abertura entre o direito e a moral. Assim, não
haveria na verdade uma ruptura do positivismo, mas sua mera releitura. Indo mais a fundo, de
acordo com Canotilho e Vital Moreira, os princípios seriam núcleos de condensações nos quais
confluem valores e bens constitucionais, verdadeiras ordenações que se irradiam e imantam os
sistemas de normas. Assim, por serem bases de normas jurídicas, podem estar positivamente
incorporados, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos da
organização constitucional.
Percebe-se uma clara tendência de positivação dos princípios48, o que os aproxima da
forma disjuntiva das regras de direito no momento de sua aplicação aos casos concretos. Com
efeito, em razão de sua estrutura normativo-material, se comportariam igualmente às regras:
“Em se tratando de regras de direito, sempre que a sua previsão se verificar numa dada
situação de fato concreta, valerá para essa situação exclusivamente a sua conseqüência
jurídica, com o afastamento de quaisquer outras que dispuserem de maneira mais
diversa, porque no sistema não podem coexistir normas incompatíveis. Se, ao contrário,
aqueles mesmos fatos constituírem hipóteses de incidência de outras regras de direito,
estas e não as primeiras é que regerão a espécie, também integralmente e com
exclusividade, afastando-se – por incompatíveis – as conseqüências jurídicas previstas
em quaisquer outras regras pertencentes ao mesmo sistema jurídico”.49
A doutrina mais atual, denominada de pós-positivista ou principialista, desenvolvendo
ainda mais a questão, tende a superar o estrito legalismo sem se aproximar por demais do
47
Cf. Roque Carraza, ob. supra cit., p. 36. Com mais detalhes anota Karl Larenz: “os princípios não são – ou ainda
não são – regras suscetíveis de aplicação direta e imediata, mas apenas pontos de partida ou pensamentos diretores,
que sinalizam – aí se detém o legislador – para a norma ser descoberta ou formulada por quem irá aplicá-la conforme
as exigências do caso”.
48
Nesse sentido é o critério adotado por Ronald Dworking ao dizer que a diferença entre regras e princípios é de
natureza lógica e que decorre dos respectivos modos de aplicação.
49
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 53.
23
jusnaturalismo50. Trabalha com a idéia de que princípio é uma regra de conduta assim como as
normas positivadas, porém mais abstrata e geral. Assim, os principialistas acreditam na existência
de uma verdadeira ruptura entre o campo da moral e o campo do direito. Neste momento é que o
princípio surgiria regulando lacunas e integrando as normas postas, sendo equiparado à parte
integrante do direito positivo (atribuição de normatividade).
Depreende-se da obra de Gilmar Mendes, que neste campo de aplicação dos princípios,
não se faz necessária a formulação de regras de colisão, porque essas espécies normativas:
“Parece não se prestarem provocar conflitos, criando apenas momentâneos estados de
tensão ou de mal-estar hermenêutico, que o operador jurídico prima facie verifica serem
passageiros e plenamente superáveis no curso do processo de aplicação do Direito (...)
por isso é que, diante das antinomias de princípios, quando em tese mais de uma pauta
lhe parecer aplicável à mesma situação de fato, em vez de se sentir obrigado a escolher
este ou aquele princípio, com exclusão de outros que, prima facie, repute igualmente
utilizáveis como norma de decisão, o intérprete fará uma ponderação entre os standards
51
concorrentes”.
Percebe-se, diante desta inovadora doutrina, verdadeiro status de norma concebido às
regras e aos princípios, de modo que a distinção entre eles passou a ser meramente a de duas
espécies dentro do gênero norma52, e não um gênero distinto como alguns juristas vem
afirmando. Além disso, seria fiel representação do espírito e intenção do legislador, representante
da própria sociedade. Trata-se de normas gerais de comando que nem sempre são positivadas,
mas nem por isso merecem menor consideração a que normas positivadas. 53
Passa a ser visto como um mandamento nuclear do sistema, base e origem de todo o
ordenamento jurídico constitucional. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello54:
“(...) verdadeiro alicerce de um sistema, disposição fundamental que se irradia sobre
diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema
normativo, no que lhe confere tônica e lhe dá sentido harmônico”.
Entretanto, tal posicionamento não é unânime. Há uma corrente minoritária que defende
basicamente a inexistência de uma norma-princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular no ordenamento jurídico pátrio55.
50
BARROSO, Luís Roberto, Prefácio – O Estado Contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da
Supremacia do Interesse Público, Lumen Júris, 2007, p. xiii.
51
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 55.
52
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2005, p. 92.
53
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p. 57.
54
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 923.
24
Além disso, a Administração não poderia de maneira alguma exigir um comportamento
do particular com base nesse princípio. Este não pode ser considerado nem princípio-jurídico
nem norma-princípio, seja conceitualmente ou normativamente analisado. Não é sequer um
postulado explicativo do Direito Administrativo, o que mostra um posicionamento
exageradamente legalista e fora dos parâmetros atuais.
Com efeito, argumentam dizendo que se assim não fosse, não apenas os princípios, mas
também as regras, seriam “mandatos de otimização” 56, tendo em vista que não só as regras, mas
também os princípios, podem entrar em colisão total, de tal sorte que, nem no caso concreto, a
aplicação de determinado princípio afastaria os outros eventualmente colidentes.57
Alega que a atividade administrativa não pode ser exercida sob o influxo deste princípio
e que o interesse público pode até possuir significado jurídico, mas não pode ser descrito como
prevalente quando contraposto aos interesses particulares. Outrossim, busca com toda a
exposição, diminuir a equivocidade que a descrição e a aplicação deste princípio em tese
proporcionam.
De acordo com esta doutrina, a única idéia apta a explicar a relação entre interesses
públicos e particulares, ou entre Estado e o cidadão, seria o sugerido postulado da unidade da
reciprocidade de interesses, o qual implica uma principal ponderação entre interesses
reciprocamente relacionados (interligados) fundamentada na sistematização das normas
constitucionais. E acrescenta:
“(...) a ponderação deve, primeiro, determinar quais os bens jurídicos envolvidos e as
normas a eles aplicáveis e, segundo, procurar preservar e proteger, ao máximo, esses
mesmo bens. Caminho bem diverso, portanto, do que direcionar, de antemão, a
interpretação das regras administrativas em favor do interesse público, o que quer que
isso possa vir a significar (...) mesmo nos casos em que ele legitima uma atuação estatal
restritiva especifica, deve haver uma ponderação relativamente aos interesses privados e
à medida de sua restrição. É essa ponderação para atribuir a máxima realização aos
direitos envolvidos o critério decisivo para a atuação administrativa. E antes que este
critério seja delimitado, não há cogitar sobre a referida supremacia do interesse público
sobre o particular”.58
55
ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, Rio de
Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 171.
56
Termo sugerido pelo doutrinador alemão: ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, 2ª Ed., São Paulo,
Landy, 2001, p. 86.
57
Gilmar Mendes na ob. cit. p. 59, desenvolvendo a doutrina exposta de Humberto Ávila.
58
ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, Rio de
Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 192/193.
25
Igualmente, o princípio jurídico não seria uma regra de direito positivada, contendo uma
natureza amplamente aberta, indeterminada e plurissignificativa, como um verdadeiro mandato
de otimização, vale dizer nas palavras de Gilmar Mendes, um tipo de norma que se opera
gradualmente e dentro do possível (não se implementa em termos absolutos a ponto de excluírem
a aplicação de outras).
Noutras palavras, ao invés de buscar a finalidade a que foi desenvolvido o instituto do
mandato de otimização, qual seja, de fundamento para uma diferença qualitativa entre regras e
princípios, acabaria como uma mera técnica de argumentação, utilizável não somente na
aplicação dos princípios, como também a toda e qualquer regra de direito.
Visão esta que acredito ser distorcida e equivocada. Realmente os princípios não trazem
modelos deônticos claros – como também é o caso do princípio da supremacia do interesse
público – o que muitas vezes dificulta bastante sua aplicação ao caso concreto.
Entretanto,como se não bastasse servirem como uma diretriz geral para a interpretação e
aplicação dos enunciados normativos, consistem muitas vezes na ratio legis para justificar e
esclarecer, total ou parcialmente, as finalidades de um texto legislativo.
Remetendo-se novamente à doutrina principialista anteriormente vista, verifica-se que
ao contrário das normas positivadas, os princípios podem coexistir com outros princípios de
sentido diverso. Seria o fenômeno principiológico que o doutrinador germânico, Robert Alexy,
chama de harmonização dos princípios:
“Resolve-se esse conflito estabelecendo, entre os princípios concorrentes, uma relação
de precedência condicionada, na qual se diz, sempre diante das peculiaridades do caso,
em que condições um princípio prevalece sobre o outro, sendo certo que, noutras
circunstâncias, a questão da precedência poderá resolver-se de maneira inversa”.59
Assim, não podemos nos valer das técnicas ordinárias aplicadas ao mundo fenomênico
das regras, que por sua própria natureza, são mais rígidas no sentido de haver apenas uma única
regra aplicável para cada caso específico. Trazem modelos disjuntivos de aplicação aos conflitos,
ou seja, valem ou não valem, incidem ou não incidem, umas afastando e anulando a aplicação
das demais, impondo uma verdadeira conseqüência jurídica antinômica, reciprocamente
excludentes. Para melhor entender a tese, o próprio Alexy diz que:
“O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios reside em que os princípios
são normas ordenadoras de que algo se realize na maior medida possível, dentro das
59
Cf. Gilmar Mendes ob. cit. p. 58.
26
possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandatos de
otimização, caracterizados pelo fato de poderem ser cumpridos em diferentes graus, e a
medida do seu cumprimento não depende apenas das possibilidades reais, mas também
das possibilidades jurídicas”.60
Enquanto as regras devem ser aplicadas diante de uma situação prática, os princípios
devem ser aplicados na medida do possível. São de extrema valia em razão da abertura moral que
possuem, mesmo porque são considerados cânones de interpretação do sistema jurídico. Alexy
entende que não há uma diferença quantitativa entre regras e princípios e sim qualitativa, no
sentido de que os princípios são mandados de otimização, ao passo que as regras são mandados
de realização.
Destarte, ser obra do Ministro, atual Presidente da Suprema Corte Pátria, a meu ver o
modelo de “mandato de otimização” não visa trazer a idéia de um mecanismo, que por causa de
sua falta de precisão, ampla generalização e indeterminação, pode ser usado indiscriminadamente
sem critério algum, o que facilita seu emprego exacerbado, e dificulta muito seu controle
jurisdicional, senão vejamos:
“O âmbito dessas possibilidades jurídicas é determinado pelo princípios e regras
opostos. As regras, ao contrário, só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida,
então há de se fazer exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos. Por
conseguinte, as regras contêm determinações no âmbito do que é fática e juridicamente
possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de
grau. Toda norma ou é uma regra, ou é um princípio”. 61
Esta técnica consiste na maximização de suas respectivas aplicações na esfera de cada
um dos princípios conflitantes. A bem da verdade, a teoria de Alexy não afasta a possibilidade de
análise ao caso concreto. Sempre que a harmonização dos princípios não for possível, necessário
se faz à análise do caso concreto para então verificar qual deverá prevalecer. Em outras palavras,
não se trata de um juízo apriorístico universal sobre qual princípio deve prevalecer, pois em cada
caso demandará um juízo de valor diferente, variando assim qual será o princípio mais pertinente
para aquele respectivo caso concreto.
60
61
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, 2ª Ed., São Paulo, Landy, 2001, p. 86.
Ob. cit., p. 87.
27
Capítulo IV – Princípios (Não-institucionais) versus Normas (Institucionais)
Alexandre Santos62, visando demonstrar uma suposta fragilidade dos argumentos nãoinstitucionais (leia-se princípio) frente aos argumentos institucionais (normas positivadas),
argumenta que cidadãos e investidores não podem ficar sujeitos à permanente ameaça da
invocação da supremacia do interesse público, pois isso iria contra a concepção de uma sociedade
democrática, na qual deve prevalecer a segurança jurídica.
Assim, os argumentos jurídicos ligados diretamente ao texto da regra específica a ser
aplicada, devem sempre prevalecer sobre os argumentos metajurídicos ou mais genéricos e
subjetivos, como é o caso da mera invocação do “interesse público” ou de seus derivativos. Em
idêntico teor, Daniel Sarmento63 defende que em um conflito entre regra e princípio de mesma
hierarquia normativa, deve prevalecer aquela.
Prosseguem dizendo que no Estado de Direito o papel de sopesar os valores em jogo é
primordialmente atribuído ao Legislador ou ao Constituinte e não ao Judiciário ou ao
Executivo64. Trabalham com a idéia de incompletude da Constituição Federal, ou seja, a
inviabilidade do legislador disciplinar todos os temas de conteúdo limitado previstos
constitucionalemente, restando assim uma instituição desordenada de princípios absolutamente
abstratos e não delineados.
Isso ensejaria, em tese, uma exacerbada discricionariedade na atuação do Executivo.
Como exemplo, infere-se nos argumentos da Suprema Corte Americana no caso de “David x
Virginia”:
“As leis que podem restringir direitos fundamentais submetem-se a uma necessidade
suplementar de prévia previsão constitucional explícita (...) programas constitucionais
dos direitos fundamentais não podem ser preenchidos por normas infraconstitucionais”.
Por isso, não seria possível instituir por lei, nem muito menos reconhecer, à falta dela, a
existência de uma cláusula geral de limitação dos direitos fundamentais baseada na Supremacia
do Interesse Público. Uma restrição desta ordem debilitaria em excesso os direitos fundamentais,
62
Alexandre Santos de Aragão na ob. cit., p. 1/22.
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de
Supremacia do Interesse Público. Lumen Júris, 2007, p. 30.
64
De acordo com Gilmar Mendes: “Pode-se dizer que os princípios jurídicos se produzem necessariamente em dois
tempos e quatro mãos: primeiro são formulados genérica e abstratamente pelo legislador; depois se concretizam,
naturalmente, como normas do caso ou norma de decisão, pelos intérpretes e aplicadores do Direito”. Ob. cit., p. 56.
63
28
tornando-os reféns de valorações altamente subjetivas e refratárias à parametrização por parte dos
aplicadores do Direito.
Acontece, porém, que de acordo com a Teoria Kelseniana, o ordenamento jurídico é
compreendido como um conjunto de normas hierarquicamente dispostas, no qual normas
inferiores devem sempre ser compatíveis frente às normas superiores, sob pena de não serem
válidas: “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra”.65
Outrossim, de acordo com Roque Antônio Carrazza66, conhecida a estrutura hierárquica
do ordenamento jurídico, o aplicador do Direito dirime, com certa facilidade, qualquer conflito
interno de normas. Tratando-se de normas de hierarquia diversa, prevalecerá sempre a superior.
Todavia, não basta ser manifesto o patamar mais elevado ocupado pela Constituição
Federal, tendo em vista que em seu próprio bojo há diferentes medidas de relevância normativa.
Normas que veiculam simples regras e outras que veiculam verdadeiros princípios, o que
dificulta muito a resolução de conflitos.
Sob este prisma, está certa a doutrina oposta, no sentido de buscar uma resolução lógiconormativa para os conflitos entre princípios e as demais regras também previstas na Carta Maior.
Entretanto, adianto desde já não ser uma tarefa fácil.67
Trazendo à baila daquilo que mais interessa, insta salientar, que a noção de supremacia
do interesse público está, não só, inserida na Carta Magna brasileira, como espalhada por toda e
qualquer sociedade, conforme os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello68:
“(...) é principio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de
sua existência. Assim, não se radica em dispositivo especifico algum da Constituição,
ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações concretas dele (...) Afinal, o
principio em causa é um pressuposto lógico do convívio social (...) Exemplos cabais na
própria Constituição Federal: institutos da desapropriação e da requisição, nos quais é
evidente a aplicação do princípio da supremacia do interesse público”.
Entretanto, permanece a questão de como dirimir os respectivos conflitos envolvendo o
princípio em tela e as normas previstas na Constituição. Para tanto, imperiosa lição de Roque
Carrazza69:
65
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 2ª Ed., vol.II, Coimbra, Sucessor, 1962, p.2, trad. João Baptista Machado
Cf. Roque Carraza, ob. supra cit., p. 34.
67
De acordo com Gilmar Mendes: “Apesar dos louváveis esforços que têm feito para densificar a eficácia das
normas constitucionais (...) forçoso é reconhecer que pouco avançaram nesse árduo empreendimento (...) acabam por
afirmar, em linguagem rebuscada, que são auto-aplicáveis as normas que não dependem de outras para a sua
aplicação”. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 51.
68
Ob. cit., p. 93.
66
29
“Em razão de seu caráter normativo, os princípios constitucionais demandam estrita
observância, até porque, tendo amplitude maior, sua obediência acarreta conseqüências
muito mais danosas ao sistema jurídico que o descumprimento de uma simples regra,
ainda que constitucional. São eles que estabelecem aquilo que chamamos de pontos de
apoio normativos para a boa aplicação do Direito”.
E conclui Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer (...)
implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o
sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade (...)
porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais, contumélis irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua
estrutura mestra (...) Isso porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e
alui-se toda a estrutura nelas esforçada”.70
Por fim, diante de todo o exposto, conclui-se nos ditames do próprio Ministro, Gilmar
Mendes: “Embora existam expressivas diferenças entre os preceitos constitucionais e as demais
normas do ordenamento jurídico, a demandarem um tratamento hermenêutico diferenciado, nem
por isso deveremos imaginar esses preceitos fora do sistema a que igualmente pertencem, até
porque a unidade desse sistema e a validade das suas normas começam e terminam na
Constituição”.71
Capítulo V – Interesse Público Primário e Interesse Público Secundário
Primeiramente, insta salientar a extrema dificuldade que tanto a doutrina como a
jurisprudência têm de conceituar e delimitar a abrangência da terminologia: “interesse público”.
De acordo com conceito apregoado pelo ilustríssimo doutrinador Celso Antônio
Bandeira de Mello: “O interesse público é uma forma específica, qualificada, de manifestação
dos interesses pessoais: a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de
cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade”.72
69
Ob. cit., p. 41.
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 923.
71
Gilmar Mendes na ob. cit., p. 61.
72
Ob. supra cit., p. 56.
70
30
Conforme explica Alice Gonzales73, esta dificuldade ocorre pois “é objeto das mais
solertes manipulações, sempre tendo sido invocado, através dos tempos, a torto e a direito, para
acobertar as ‘razões de Estado’, quando não interesses menos nobres e, até, inconfessáveis”.
Ocorre que, o instituto em tela, seja pela sua difícil delimitação, ou por seu elevado
potencial coercitivo, acaba sendo manipulado por algumas Administrações Públicas como
artifício de proteção, com o intuito de se abster das mais variadas críticas ou até mesmo controles
Judiciais. A questão é que na maior parte das vezes não passam de posições autoritárias, as quais
não poderiam receber a atribuição de “interesse público”74.
Nesse sentido, Daniel Sarmento75 diz que se caso houvesse ampla subordinação dos
direitos individuais ao interesse coletivo, viveríamos em um verdadeiro regime de totalitarismo.
Por outro lado, de houvesse uma acentuada desvalorização dos interesses públicos diante dos
particulares, o que se teria seria um completo anarquismo.
O primeiro e imprescindível passo para averiguar a legitimidade da invocação da
supremacia do interesse público, é a distinção entre o interesse que tem o Estado de buscar os
anseios gerais da coletividade, e o interesse na manutenção e proteção de seus direitos e deveres
particulares.
O primeiro interesse trata-se de um verdadeiro dever; uma atribuição conferida à
Administração como exteriorização da vontade e da necessidade coletiva. Tem sua origem em
toda a teoria do contrato social de Rosseau, na qual os indivíduos reservam parte de sua liberdade
individual a fim de ver o restante da liberdade assegurada pelo ente representativo que concentra
os poderes, qual seja o Estado. Conforme sintética exposição de Diógenes Gasparini76, em seu
curso de Direito Administrativo:
“É o interesse do todo social, da comunidade considerada por inteiro. Nesse sentido é a
lição de De Plácido e Silva (Vocabulário jurídico, 10 ed., Rio de Janeiro, Forense, v.2,
p. 498): ‘o contrário do particular, é o que se assenta em fato ou direito de proveito
coletivo ou geral. Está, pois adstrito a todos os fatos ou a todas as coisas que se
entendam de benefício comum ou para proveito geral, ou que se imponham para uma
necessidade coletiva”.
73
BORGES, Alice Gonzáles, Supremacia do Interesse Público: Desconstrução ou Reconstrução?, Salvador, Revista
Diálogo Jurídico, 2007.
74
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 2ª Ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 1998, p. 96.
75
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de
Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007.
76
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, 11ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 15.
31
Por outro lado, há aquele segundo interesse, do qual o Estado atua na esfera de proteção
e manutenção de seus próprios direitos e deveres. Trata-se, portanto, de um verdadeiro interesse
“individual” da Administração. Em outras palavras, corresponde aos interesses particulares do
Estado representado por sua própria pessoa jurídica. Nesse sentido, interessante observar as
lições de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“(...) independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses
públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são
particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras
individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são
interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma
extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito. Similares, mas não iguais. Isto
porque a generalidade de tais sujeitos pode defender estes interesses individuais, ao
passo que o Estado, concebido que é para realização de interesses (...) só poderá
defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os
interesses públicos propriamente ditos, coincidam coma realização deles”.77
Assim, tendo como um “interesse individual” ou um “interesse particular” da
administração, ela não se exaltaria em protegê-lo com todas as suas forças, esgotando todas as
possibilidades, seja contra quem for, inclusive o próprio cidadão.
Aqui, há uma interessante divergência doutrinária. Há quem defenda que de certa forma
esta conduta se justifica, pois protegendo diretamente seus interesses (de não ressarcir o lesado,
por exemplo, ou pelo menos buscar o menor valor possível de indenização), indiretamente,
estaria zelando pelo interesse da própria coletividade, que é justamente reverter o maior
percentual possível de todo o recolhido pela Fazenda Pública para melhorias na área pública78.
Apesar de parecer o melhor entendimento, este não é unânime. Há autores que defendem
não ser possível a Administração Pública buscar seu interesse particular (secundário) quando não
coincidente com o interesse coletivo (primário).79
Dessarte tal divergência, diante de todo o exposto, verifica-se claramente que o interesse
público que tem direta pertinência com o regime jurídico administrativo, é o primário. Apenas
este teria o condão de invocar a supremacia do interesse público quando devidamente motivada,
conforme defende Alice Gonzáles:
“O interesse público que serve de base ao direito administrativo é o interesse primário,
que corresponde à realização dos superiores interesses de toda a coletividade e dos
77
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello na ob. cit., p. 63.
Deste posicionamento podemos citar: Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, José Dos
Santos Carvalho Filho.
79
GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo, 11ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 16.
78
32
valores fundamentais consagrados na Constituição (...) Esse interesse é público, não
porque sirva de base para as atividades próprias do Estado, ou porque este o invoque
como razão de agir: mas, sim, na exata medida em que coincida com o querer
majoritário de toda a comunidade, servindo de elo, como queria Rousseau, para a
congregação das vontades individuais em torno dos objetivos comuns de uma sociedade
democrática organizada”. 80
Assim, em momento algum quando se faz menção à supremacia do interesse público,
intenta-se invocar o interesse público secundário. Este deve ser contraposto em juízo, sendo o
Poder Judiciário competente para julgar conforme o disposto em lei e conforme o caso trazido em
concreto. É incabível sobrepor o interesse da administração (interesse secundário) sobre qualquer
outro interesse individual invocando para tanto o princípio da supremacia do interesse público.
Por fim, insta salientar, quem determina a qualificação do interesse público é a própria
Constituição Federal. A partir dela é que o Estado atua nos casos e nos limites da
discricionariedade que a lei lhe haja conferido.81 Além disso, interessante observar consideração
feita por Marçal Justen Filho:
“Afirmar sua supremacia corresponde a reconhecer natureza instrumental aos poderes
titularizados pelo Estado e agentes públicos. O exercício das competências públicas se
orienta necessariamente à realização do referido interesse público. Isso significa que a
interpretação de todas as normas atributivas de poder funda-se em diretriz hermenêutica
fundamental, afetando todas as relações jurídicas contidas no âmbito do Direito
Administrativo. A construção doutrinária que privilegia o interesse público representa
uma evolução marcante em direção à democratização do poder político”.82
80
BORGES, Alice Gonzáles, Supremacia do Interesse Público: Desconstrução ou Reconstrução?, Salvador, Revista
Diálogo Jurídico, 2007.
81
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, p. 65.
82
JUSTEN FILHO, Marçal. “Conceito de Interesse Público e a ‘Personalização’ do Direito Administrativo”. In:
Revista Trimestral de Direito Público, nº 26, São Paulo: Malheiros, pp. 115-116.
33
PARTE III – Principais Mecanismos que agem sob o Manto da Supremacia
Antes de mais nada, cumpre reiterar que esta dissertação não comporta examinar a fundo
cada instituto elencado nos capítulos seguintes, razão pela qual far-se-á apenas uma breve
contextualização de cada tema, sempre com o intuito de alcançar os pontos mais polêmicos com
freqüente incidência na atualidade. O objetivo de cada capítulo é trazer à tona os campos de
atuação de cada instituto, cada qual em sua respectiva esfera legal e de finalidade, mas sempre
com o ponto em comum de agirem sob o manto da supremacia do interesse público.
Insta esclarecer ainda os termos utilizados no título. Ocorre que, como observado no
capítulo anterior, delimitar o conceito de interesse público é uma tarefa extremamente árdua. Isso
dificulta muito buscar artifícios que restrinjam ao máximo a utilização indevida e ilegítima destas
formas de exteriorização fundados diretamente no princípio da supremacia do interesse público.
A par das dificuldades, os principais objetivos serão apontar as seguintes questões:
(i)
Supremacia Especial e o respeito as suas condicionantes positivas e negativas;
(ii)
Poder de Polícia em conformidade com a atual hermenêutica principiológica;
(iii) Intervenção no domínio econômico em consonância com os preceitos da
“Constituição Cidadã”;
(iv) Intervenção na propriedade privada e a flagrante inconstitucionalidade da
desapropriação indireta.
Capítulo V – Supremacia Geral e Supremacia Especial
O instituto da Supremacia Especial do Interesse Público trata, basicamente, de uma
releitura do princípio da legalidade intimamente ligada ao princípio da supremacia do interesse
público. Foi importada do direito comparado alemão, tendo como seu principal pensador o jurista
Otto Mayer, tendo repercussão também nos direitos italiano (Renato Alessi) e espanhol (Alfredo
Gallego Anabiarte).
34
No âmbito nacional, o instituto foi trazido, primordialmente, por Celso Antônio
Bandeira de Mello83, e desenvolvido também por Maria Sylvia Zanella Di Pietro nas últimas
edições de seu Curso de Direito Administrativo. O cerne da questão (objeto do presente capítulo)
é que a Administração, para que veja garantido sua supremacia e atue sob seu manto, deve em
tese, exercer suas prerrogativas nos estritos moldes e limites da lei.
Ocorre, entretanto, que em certas relações há uma peculiar relação entre Administração
e o particular, quando este ingressa na esfera particular daquela; diga-se num espaço físico
“doméstico”, no qual o indivíduo tem de se submeter a algumas normas não previstas
previamente na norma posta.
“Os vínculos que se constituíram são, para além de qualquer dúvida ou entredúvida,
exigentes de uma certa disciplina interna para funcionamento dos estabelecimentos em
apreço, a qual, de um lado, faz presumir certas regras, certas imposições restritivas,
assim como, eventualmente, certas disposições benéficas, isto é, favorecedoras, umas e
outras tendo em vista regular a situação dos que não tem como deixar de ser
parcialmente estabelecidas pela própria intimidade delas, como condição elementar de
funcionamento das sobreditas atividades”.84
É o que ocorre, por exemplo, quando o indivíduo ingressa em escolas, faculdades ou
bibliotecas públicas. Não se pode comparar tais situações com a relação que a Administração
trava com o administrado no momento em que cassa o alvará de funcionamento de um
estabelecimento comercial que esteja descumprindo regras de vigilância sanitária, ou; aplica
multa em uma infração de trânsito, ou; desapropria uma propriedade particular por não estar
cumprindo sua função social.
Naquela o indivíduo tem de se adequar à disciplina interna, subordinando-se para tanto a
certas imposições restritivas. Só assim tem se garantido o funcionamento ordenado do local nos
mais diversos sentidos como: higiene, segurança, entre outros.
Já nas demais hipóteses, o que ocorre é que o Estado possui meios próprios de coerção
para impor seus determinados poderes sob cada caso concreto. O indivíduo, apoiado em seu
direito de liberdade, continua a ter o livre arbítrio de obedecer ou não.
Caso opte pela desobediência, o Estado necessariamente irá impor sanções a fim de
atingir a respectiva finalidade, sob pena de violação ao princípio da indisponibilidade. Contudo, a
Administração tem de basear suas condutas nos mais estritos moldes previamente estabelecidos
83
84
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, p. 790.
Ob. cit., p. 792.
35
em lei em sentido estrito85.
A primeira relação, à primeira vista, pode dar a impressão de uma verdadeira afronta ao
princípio da legalidade, o que tornaria o instituto da supremacia do interesse público invocado
completamente viciado e, conseqüentemente, nulo de pleno direito.
Mas de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, no capítulo que dedica
exclusivaente ao princípio da legalidade, ressalta que mesmo diante de todas as considerações
feitas não se exclui a “possibilidade de normas produzidas no próprio âmbito da Administração, e
que, ao contrário dos regulamentos, não haurem diretamente na lei (e sim indiretamente) suas
possibilidades reguladoras”.86
Nesse sentido, não se pode mais deixar de considerar a existência de um especial vínculo
da supremacia do interesse público com o particular. Haveria, assim, duas espécies de relação
jurídica entre a Administração e o Particular, quais sejam: a comum e a especial. 87
A primeira refere-se a eventuais deveres e proibições que emanam necessariamente de
lei em sentido estrito. A Administração, nesses casos, só poderia agir nos limites de suas
prerrogativas sempre com fundamento na lei geral e abstrata (princípio da reserva legal).
Já na segunda, existe uma maior aproximação entre particular e administração, ao passo
que esta se encontra dentro de sua esfera íntima. Conseqüentemente, não sendo possível o
legislador prever todas as eventuais circunstancias abstratamente, poderia a Administração
expedir normas e regras não apenas por meio de lei, como também por aquilo que chamamos de
atos normativos independentes88.
“Seria impossível, impróprio e inadequado que todas as convenientes disposições a
serem expedidas devessem ou mesmo pudessem estar previamente assentadas em lei e
unicamente em lei, com exclusão de qualquer outra fonte normativa. Exigência dessa
ordem simplesmente estaria a pretender do Legislativo uma tarefa inviável (...)”.89
85
“A utilização de meios coativos por parte da administração é uma necessidade imposta em nome da defesa dos
interesses públicos. Encontra seu limite no atingimento da finalidade a que foi instituída”. BANDEIRA DE MELLO,
Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo. 22ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 809.
86
Ob. cit., p. 335.
87
“Além dos casos em que o administrado voluntariamente se inclui sob o estatuto das instituições cujo serviço
demanda, há uma pletora de situações que revelam a necessidade de se reconhecer a figura da supremacia especial”.
Ob. cit., p. 791.
88
Sob o tópico, insta salientar, que a doutrina não é unânime sobre a possibilidade de o Executivo editar os
denominados atos normativos independentes ou também conhecido como Regulamentos Autônomos. No sentido de
admitir sua existência como sendo inerente aos poderes implícitos da Administração, encontram-se Hely Lopes
Meirelles, Sérgio de Andréa Ferreira e Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Em sentido contrário, sob a alegação de
que tais atos não são admitidos no ordenamento jurídico pátrio, encontram-se Geraldo Ataliba (“República e
Constituição”), Cretella Júnior, Diógenes Gasparini, Maria Sylvia Zanella di Pietro, entre outros.
89
Conforme exposto por Celso Antônio Bandeira de Mello. Ob. cit., p. 792.
36
Em outras palavras a Administração poderia submeter particulares a deveres e
obrigações não previstas em lei. Depreende-se das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“(...) é inequivocamente reconhecível a existência de relações específicas intercorrendo
entre o Estado e um círculo de pessoas que nelas se inserem, de maneira a compor
situação jurídica muito diversa do que atina à generalidade das pessoas, e que
demandam poderes específicos, exercitáveis, dentro de certos limites”.90
Esta seria a mais recente e uma importante forma de exteriorização da supremacia do
interesse público sobre o particular, em um verdadeiro vínculo especial de subordinação.
Verifica-se, portanto, que falar em Supremacia do Interesse Público é colocar o Estado
acima do indivíduo, mesmo quando se trata de um modelo especial mais brando. Em outras
palavras, seria estabelecer uma relação vertical entre o indivíduo e aquele que o “controla” sob
uma perspectiva de subordinação.
Entretanto, insta salientar, que esta forma de exteriorização da supremacia do interesse
público, mais do que qualquer outra forma, deve necessariamente respeitar os estritos limites
impostos pelo ordenamento.
Para enumerar tais limites, imperioso se faz recorrer às lições da maior autoridade do
presente instituto, Celso Antônio Bandeira de Mello. De acordo com o autor, a supremacia
especial obedecerá às seguintes condicionantes positivas91: (i) encontrar fundamento último em
lei; (ii) que tenha fundamento imediato nas relações de sujeição especial; (iii) que seja
essencialmente necessário para o cumprimento das finalidades que presidem tais relações
especiais; (iv) sejam rigorosamente afinadas com os princípios da razoabilidade e
proporcionalidade, de sorte a que todo excesso se configure como inválido; (v) que conserve o
objeto atrelado ao que for relacionado tematicamente a relação especial instalada.
Por outro lado, ainda de acordo com o autor, terá como condicionantes negativas: (i) não
podem infirmar qualquer direito ou dever; (ii) não podem extravasar; (iii) não podem exceder em
absolutamente nada; (iv) não podem produzir conseqüências que restrinjam ou elidam interesses
de terceiros ou os coloque em situação de dever, pois tal supremacia pressupõe uma íntima
vinculação entre a Administração e quem nela se encontre internado.
90
91
Ob. cit., p. 793.
Ob. cit., p. 794.
37
Capítulo VII – Poder de Polícia da Administração Pública
Pode-se dizer que é o instituto que reflete mais incisivamente o princípio da supremacia
do interesse público, com fundamento direto no mesmo. Isso ocorre, porque falar em fiscalização
pressupõe um sujeito no mínimo de hierarquia igual ou superior, sob pena de se frustrar
respectiva função. Além disso, nada justificaria a Administração aplicar medidas coercitivas
contra a vontade do particular, senão em virtude de uma sobreposição de seu interesse, o qual
representa o próprio interesse da coletividade.
Nesse sentido, preconiza Maria Sylvia Zanella Di Pietro92: “O fundamento do poder de
polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que confere à
Administração posição de supremacia sobre os administrados”.
Ainda de acordo com a autora, a terminologia polícia advém do grego “politeia” que não
tem relação alguma com seu atual emprego. Na Idade Média, durante o período feudal, havia
duas ordens: (i) uma ligada à sociedade civil de responsabilidade do príncipe; (ii) e outra ligada à
moral e a religião de competência exclusiva da autoridade eclesiástica. A partir do século XV, a
atividade do Estado foi desmembrada em direito de polícia do príncipe e outra da justiça. A
primeira foi sofrendo restrições em seu conteúdo até chegar a ponto de abranger apenas as
atividades internas da Administração.
Com o advento do Estado de Direito e a afirmação do princípio da legalidade,
desenvolveu-se, primeiramente, o liberalismo, no qual a regra era o livre exercício dos direitos
individuais tendo a interferência estatal caráter amplamente excepcional, só podendo limitar o
exercício dos direitos individuais para assegurar a ordem pública. Em um segundo momento, este
Estado liberal passa a transformar-se em intervencionista, não limitando sua atuação apenas à
segurança, mas também à ordem econômica e social93.
A bem da verdade, afastou-se a idéia de assegurar o direito individual como fim último
(imposição contra o Estado de obrigações de não-fazer), e passou a contextualizá-lo dentro dos
moldes da sociedade em que ele encontrava-se inserido (obrigações de fazer impostas ao Estado),
conforme explica Maria Sylvia:
92
Ob. cit., p. 102.
Note-se interessante passagem na obra citada de Gilmar Mendes: “Fruto desse aparente ‘desinteresse’ jurídico pelo
fato econômico, de que se nutriu o Estado Liberal, foram a exacerbação do capitalismo e a sua conseqüente
confrontação com o operariado, dando origem à questão social”. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito
Constitucional. 4ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 1406.
93
38
“O Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direito do indivíduo e
passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do
bem-estar coletivo (...) houve uma ampliação das atividades assumidas pelo Estado para
atender às necessidades coletivas (...) o mesmo ocorreu com o poder de polícia do
Estado, que deixou de impor obrigações apenas negativas (não fazer) visando
resguardar a ordem pública, e passou a impor obrigações positivas (...) Surgem no plano
constitucional, novos preceitos que revelam a interferência crescente do Estado na vida
econômica e no direito de propriedade (...) cresce a preocupação com os interesses
difusos (...)”.94
Sob este prisma, é que José dos Santos95 conceitua Poder de Polícia como sendo: “a
prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o
uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade”.
Interessante notar, que assim como o autor supra citado, outras importantes autoridades
no âmbito do Direito Administrativo também colocam sempre em evidência a questão do
interesse público. Exemplo disso é Celso Antônio96, ao dizer que “a atividade estatal de
condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos designa-se poder de
polícia”; ou ainda de acordo com Maria Sylvia ao dizer que “o fundamento do poder de polícia é
o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração
posição de supremacia sobre os administrados”.97
Independentemente de tratar-se de obrigações positivas ou negativas impostas ao Estado
(ou até mesmo ao indivíduo), o que se percebe é uma forte tendência de aproximação às cargas
principiológicas e valorativas inseridas no bojo das regras dentro do atual contexto do
ordenamento jurídico pátrio.
Poder-se-ia tomar como exemplo o advento do Código Civil de 2002 e a assunção de
novos princípios que passaram a regular e fazer parte das mais diversas relações jurídicas entre os
particulares. Deles pode-se destacar três principais:
(i)
socialidade, no qual o interesse público e coletivo se sobrepõem ao interesse
particular e individual;
(ii)
eticidade, aquele que exige ética e boa-fé objetiva e subjetiva em toda e qualquer
relação jurídica, devendo o julgador perseguir no caso concreto muito mais a
vontade desejada do que a vontade declarada;
94
Ob. cit. p. 60.
CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 22ª Ed., Rio de Janeiro, Lúmen Júris,
2009, p. 73.
96
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo. 22ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 788.
97
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p. 102/109.
95
39
(iii) operabilidade, que traduz a idéia de eficiência ou efetividade.
Em suma, hoje não basta mais a simples formação de um contrato ou a posse de uma
propriedade, por exemplo. Estas devem vir acompanhadas de sua respectiva função social, ou
seja, o contrato ou a propriedade não devem ser vistos mais apenas sob a perspectiva exclusiva de
suas partes ou proprietário; suas verificações devem transcender ao bem maior da coletividade.
Trazendo tais ideais mais próximo ao âmbito do Direito Administrativo, preleciona Celso
Antônio Bandeira de Mello:
“Através da Constituição e das leis os cidadãos recebem uma série de direitos. Cumpre,
todavia, que o seu exercício seja compatível com o bem-estar social. Em suma, é
necessário que o uso da liberdade e da propriedade esteja entrosado com a utilidade
coletiva, de tal modo que não implique uma barreira capaz de obstar à realização dos
objetivos públicos”.98
Com efeito, diante de leis auto-aplicáveis, os direitos individuais já se encontram
perfeitamente delineados. Entretanto, há casos em que é imprescindível a Administração
perfilhar, dentro dos contornos legais, a verdadeira extensão de cada direito, a fim de assegurar
seu exercício dentro dos ditames sociais.
Assim, não tratar-se-ia de uma espécie de restrição ou limitação ao direito do indivíduo,
mas sim o cumprimento de um dever estabelecido por determinação legal, qual seja, promover
por ato próprio, a compatibilizarão do direito frente ao bem-estar social, e delimitar as fronteiras
de suas expressões. Independentemente de serem vinculadas ou discricionárias não deve a
Administração buscar outro fim, senão o fiel cumprimento da lei.
Ocorre que, esta majoração da função social em contraposição ao direito de liberdade e
de propriedade privada, não raras às vezes, pode suscitar profundas controversas. Nesse sentido,
o Ministro Gilmar Mendes, tomando como exemplo o direito de propriedade e sua respectiva
função social, ensaia a seguinte solução aos casos de conflito existentes:
“Não tendo a Constituição de 1988 estabelecido nenhuma hierarquia entre os valores
consubstanciados no direito de propriedade e na sua função social, resta ao
intérprete/aplicador resolver eventuais ‘conflitos’ à luz do caso concreto, mediante
judiciosa ponderação, optando, afinal, por aquele cuja prevalência, nas circunstâncias,
conduzir a uma decisão correta e justa e, assim, realizar a justiça em sentido material
como referente fundamental da idéia de direito”.99
98
99
Ob. cit., p. 784.
Cf. Gilmar Mendes, ob. cit., p. 1409.
40
Capítulo VIII – Intervenções no Domínio Econômico e na Propriedade Privada
Cumpre primordialmente ao Direito Administrativo regular a aplicação dos comandos
correspondentes ao domínio econômico elencados na Constituição Federal100. Esta estabeleceu
uma clara divisão em dois diferentes campos de atuação. O primeiro refere-se à atividade
econômica exercida pelo particular, chamada de domínio econômico. O segundo refere-se ao
campo de atuação do próprio Estado, chamado de serviços públicos.
Como regra, tem-se que um não pode invadir a esfera alheia. Ocorre que, como toda
regra, há exceções. Trata-se, por um lado, da possibilidade do particular atuar na esfera estatal
por meio de delegações (concessão e permissão de serviços públicos), e por outro, da
possibilidade do Estado invadir a atuação reservada à inciatica privada, atuando além de seus
deveres, nos casos de segurança nacional e relevante interesse público, elencados de forma
taxativa no artigo 173 da Constituição Federal.
Conforme apregoado por Celso Antônio Bandeira de Mello101, há três modalidades de
intervenção do Estado no domínio econômico: (i) Poder de Polícia, como agente regulador do
sistema econômico, quando age por meio de leis e atos administrativos, como um fiscal da ordem
econômica, estabelecendo regras e impondo restrições aos particulares; (ii) atividades de
fomento, por meio de incentivos concedidos a determinados setores privados; (iii) exploração
direta de atividade econômica; vale dizer, como agente executor, quando exerce as atividades
econômicas propriamente ditas, se submetendo as mesmas normas da iniciativa privada, se
aproximando muito à atuação das empresas privadas.
Traçados os conceitos básicos, insta salientar, dois pontos de extrema relevância: quem
determina esta diferenciação de campos de atuação é a Constituição ou a lei, ou seja, é
competência exclusiva do Poder Legislativo, sem interferência de critérios pré-modulados;
outrossim, em qualquer uma das funções exercidas pelo Estado, este deve sempre buscar o
100
Para melhor compreensão do presente capítulo, vide exposição feita acerca da evolução histórica das Cartas
Constitucionais brasileiras no capítulo II do presente trabalho, principalmente a partir de 1934.
101
José dos Santos Carvalho Pinto é mais restrito ao dividir a atuação estatal em apenas duas espécies: (i) agente
normativo e regulador; (ii) agente executor. No outro pólo, Hely Lopes Meirelles vai mais além e divide em cinco
espécies: (i) monopólio; (ii) repressão ao abuso; (iii) controle do abastecimento; (iv) tabelamento de preços; (v)
criação de empresas estatais.
41
interesse público da coletividade102.
Questão que desperta maior atenção, seria o caráter estritamente excepcional da atuação
do Estado como explorador de atividade econômica, reservada às situações mais inóspitas e que
tenha fundamento direto no interesse público da população. Vale dizer, que a lei que autoriza a
respectiva atuação deve indicar especificamente o objeto, o motivo e a finalidade da atividade a
ser exercida. Interessante exemplo, seria o Restaurante Popular subordinado à Secretaria de
Agricultura e Abastecimento do Governo do Estado de São Paulo, destinado a propiciar à
população carente alimentação a preços mais acessíveis103.
Convém, entretanto, analisar com maior profundidade aquela primeira forma de atuação
que guarda maior pertinência com o presente estudo, qual seja a atuação reguladora do Estado,
pois é através dela que se age diretamente sob o manto da supremacia do interesse público,
conforme exposto no capítulo anterior.
Estado Regulador, nas palavras de José dos Santos104, “é aquele que por meio do regime
interventivo, se incumbe de estabelecer as regras disciplinadoras da ordem econômica com o
objetivo de ajustá-la aos ditames da justiça social”.
Mas, a bem da verdade, a expressão “justiça social” empregada no conceito supracitado
deve ser interpretada de maneira ampliativa, ao passo que a Constituição Federal traz em seu
artigo 170 dois postulados básicos em que a ordem econômica deve se fundar: (i) valorização do
trabalho humano, e; (ii) livre iniciativa. Ainda de acordo com o autor105, “ao estabelecer esses
dois postulados como fundamento da ordem econômica, a Constituição pretendeu indicar que
todas as atividades econômicas, independentemente de quem possa exercê-las, devem com eles
compatibilizar-se”.
Além destes fundamentos basilares da ordem econômica, a Constituição contemplou
ainda alguns princípios que devem nortear o sistema econômico pátrio: (i) proteção à soberania
nacional; (ii) função social da propriedade privada; (iii) livre concorrência em conformidade com
a defesa do consumidor; (iv) defesa do meio ambiente; (v) redução das desigualdades sociais;
entre outros esparsos.
102
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello: “Em todos os casos, necessariamente, a interferência estatal terá que estar
envolvida à satisfação dos fins dantes aludidos como sendo os caracterizadores do Estado brasileiro; e jamais – sob
pena de nulidade – poderá expressar tendência ou diretriz antinômica ou gravosa àqueles valores”. Ob. cit. p. 765.
103
Decreto nº 45.547, de 26 de Dezembro de 2000.
104
Ob. cit., p. 867.
105
Cf. José dos Santos na ob. cit., p. 864.
42
Por fim, percebe-se uma especial preocupação do legislador em garantir o
desenvolvimento econômico sempre assegurando a todos a existência digna. Conforme Celso
Antônio Bandeira de Mello, “tão forte é a preocupação constitucional com alguns destes bens
jurídicos, que os mencionou em diferentes qualidades ou funções, conferindo-lhes, dessarte, uma
acentuada ênfase”.106
Sob este tópico, interessante notar o julgamento proferido pelo Ministro Relator Moreira
Alves, na ADI 319/DF, quando tratou de conciliar os princípios da livre iniciativa e da livre
concorrência com a defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em face da
Constituição Federal e sob os moldes dos ditames da justiça social. Restou assentado, neste
julgamento, que o Estado poderia regular, por via legislativa, a política de preços de bens e de
serviços, nos casos de abusivo poder econômico que visava o aumento arbitrário dos lucros.
Contudo, o Poder Público poderá interferir na iniciativa privada, de acordo com Hely
Lopes107, somente como exceção à liberdade individual, nos casos expressamente permitidos pela
Constituição e na forma que a lei estabelecer, podendo variar segundo o objeto, o motivo e o
interesse público a ser amparado. E complementa o professor Nelson Nazar108 que: “a atividade
reguladora encontra limites estruturais nos princípios que ensejam comandos positivos
sancionadores da atuação do governo. Essas normas estruturais quando feridas, ensejam
correção”.
Ocorre que, como mesmo salientou Celso Antônio Bandeira de Mello, a Constituição
Federal de 1988 é uma clara antítese do neoliberalismo, ao passo que não entrega a satisfatória
organização da vida econômica e social a uma suposta eficiência da iniciativa privada, e ao
mesmo tempo, atribui explicitamente inúmeros compromissos ao Estado brasileiro, que os encara
como meras normas programáticas. Em outras palavras, alega buscar na medida do possível o
cumprimento de tais compromissos, o que os tornam metas absolutamente intangíveis.
A fim de ilustrar o exposto acima, remete-se ao texto literal do desconhecido artigo 219
da Carta Maior, in verbis: “O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado
de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e
a autonomia tecnológica do País, nos termos da lei federal”.
106
Ob. cit., p. 762.
Ob. cit., p. 647.
108
Ob. cit., p. 061.
107
43
Outro ponto de extrema relevância, referente ao instituto da intervenção estatal na
propriedade privada, alvo de duras e acertadas críticas, seria uma das possibilidades de
intervenção estatal na esfera da propriedade privada, mais especificamente a chamada
Desapropriação Indireta. Saliento desde já, dividir a posição majoritária da doutrina, acerca da
flagrante inconstitucionalidade do instituto em tela. Nas palavras de José dos Santos: “Trata-se de
situação que causa tamanho repúdio que, como regra, os estudiosos a têm considerado verdadeiro
esbulho possessório”.109
Com suposto fundamento direto na supremacia do interesse público, a Desapropriação
Indireta consiste no apossamento de imóvel particular, pelo Poder Público, de forma
manifestamente abusiva e irregular. Diria em outras palavras, tratar-se de um verdadeiro esbulho,
que se ocorrido no âmbito do direito privado, poderia ser imediatamente afastado mediante ação
possessória com possibilidade de pedido de liminar.
Entretanto, no âmbito do Direito Administrativo, tal ação possessória é vedada, pelo fato
de uma vez despojado o imóvel particular em face da Administração, este passa a ser reconhecido
como bem público, o que significa dizer que ele passa a ser indisponível nos termos do artigo 35
da Lei das Desapropriações n.º 4.132 de 1962: “Os bens expropriados, uma vez incorporados à
Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do
processo de desapropriação. Qualquer ação julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos”.
Como se não bastasse, anteriormente, entendia-se que o prazo prescricional para o
ajuizamento de ação indenizatória era de quinze anos, tendo em vista ser o prazo de usucapião
extraordinário. Todavia, a inconstitucional Medida Provisória n.º 1.774 de 1999, promulgada sem
qualquer pressuposto de urgência ou relevância, alterou o parágrafo único do artigo 10 do
Decreto-lei n.º 3.365 diminuindo tal prazo para cinco anos, ex vi: “Extingue-se em 5 (cinco) anos
o direito de propor ação que vise a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder
Público”.
Verifica-se, portanto, com base em todo o exposto, que este respectivo mecanismo, não
guarda qualquer pertinência com os termos referentes à desapropriação elencados na Carta Maior
e nas leis esparsas, representando assim absoluto abuso de direito.
109
Ob. cit., p. 823.
44
PARTE IV – Interesses Públicos versus Interesses Privados
Capítulo VIII – Razões de Estado?
Paulo Ricardo Shier110, em seu trabalho “Ensaio sobre a Supremacia do Interesse
Público sobre o Privado e o Regime Jurídico dos Direitos Fundamentais”, parte da idéia de que
são os direitos fundamentais, fundados na noção da pessoa humana, que justificam a existência
do Estado e suas diversas formas de atuação. Assim, ele (o Estado) não é, e nem pode ser um fim
em si mesmo:
“(...) o Estado legitima-se e justifica-se a partir dos direitos fundamentais e não estes a
partir daquele. O Estado gira em torno do núcleo gravitacional dos direitos
fundamentais. Devem integrar a própria noção do que seja o interesse público e este
somente se legitima na medida em que nele estejam presentes aqueles”.
Na mesma linha de pensamento, prescreve Luis Barroso111: “Em um Estado
Democrático de Direito, não subsiste a dualidade cunhada pelo liberalismo, contrapondo Estado e
Sociedade. O Estado é formado pela sociedade e deve perseguir os valores e anseios que ela
mesma aponta”. E complementa Daniel Sarmento112:
“(...) incompatível com o Leitmovit do Estado Democrático de Direito, de que as
pessoas não existem para servir aos poderes públicos ou à sociedade política, mas, ao
contrário, estes é que se justificam como meios para a proteção e promoção dos direito
humanos” .
Posto que a razão de ser do Estado e a finalidade de sua atuação perante seus
administrados seria justamente os direitos fundamentais, o autor traz à baila a idéia de que não há
dois ordenamentos distintos correspondentes ao direito público a ao direito privado, mas uma
única ordem jurídica, que tem no seu cimo uma Constituição, cujos princípios e valores devem
informar a resolução dos conflitos surgidos em qualquer seara.
110
SHIER, Paulo Ricardo, Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime Jurídico dos
Direitos Fundamentais, Lumen Júris, 2007, p. 218.
111
BARROSO, Luís Roberto, O Estado Contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da Supremacia
do Interesse Público, Lumen Júris, 2007, p. xiii.
112
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de
Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 28.
45
Observa Alexandre Santos113 que, na verdade, o que há não é uma relação vertical de
hierarquia, mas sim uma relação horizontal que visa a máxima satisfação dos interesses sociais:
“O Interesse Público e o interesse dos cidadãos passam a ser vistos como
reciprocamente identificáveis (máxima satisfação dos interesses sociais). Passa de uma
concepção de autoridade (relação vertical) para uma de Direito Administrativo voltado
a garantir em prol dos cidadãos a melhor satisfação possível dos seus direitos
fundamentais (relação horizontal)”.
Concluem, em suma, que a aplicação de tal princípio é mero artifício empregado para
justificar uma série de prerrogativas detidas pela Administração Pública, na qualidade de tutora e
guardiã dos supostos interesses da coletividade (verticalidade das relações travadas entre
Administração e administrados, caracterizada pelo desequilíbrio, sempre em favor do Estado).
Interessante salientar, que neste mesmo diapasão é que surgiu a corrente jurisprudencial,
desenvolvida pelo Ministro Celso de Mello, conhecida como “Razões de Estado”, idealizada em
seu voto proferido no julgamento do Recurso Extraordinário nº 204.769-4/RS de 1996, ex vi:
LEIS DE ORDEM PÚBLICA – RAZÕES DE ESTADO – MOTIVOS QUE NÃO
JUSTIFICAM O DESRESPEITO ESTATAL À CONSTITUIÇÃO – PREVALÊNCIA
DA NORMA INSCRITA NO ART. 5º, XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO. A
possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder
Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento
constitucional brasileiro. Motivos de ordem pública ou Razões de Estado – que muitas
vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex
parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo que frustrem a
plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e
desrespeitando-a em sua autoridade – não podem ser invocadas para viabilizar o
descumprimento da própria Constituição, que, em tema de produção normativa, impõe
ao Poder Público limites inultrapassáveis (...) As normas de ordem pública – que
também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5, XXXVI, da Carta Política – não podem
frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade
e desrespeitando-a em sua autoridade (grifo meu).
Assim, “Razões de Estado” seria um mecanismo, fundado no princípio da supremacia do
interesse público, que serviria para buscar a realização de interesses próprios dos
Administradores, em uma verdadeira forma de usurpação da prerrogativa a ele conferido.
Conforme explica Alice Gonzales114, isso ocorre porque “o interesse público é objeto
das mais solertes manipulações, sempre tendo sido invocado, através dos tempos, a torto e a
113
ARAGÃO, Alexandre Santos de, A “Supremacia do Interesse Público” no Advento do Estado Democrático de
Direito e na Hermenêutica do Direito Público Contemporâneo. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 05.
114
BORGES, Alice Gonzáles, Supremacia do Interesse Público: Desconstrução ou Reconstrução?, Salvador,
Revista Diálogo Jurídico, 2007.
46
direito, para acobertar as “Razões de Estado”, quando não interesses menos nobres e, até,
inconfessáveis”.
De acordo com Odete Medauar, o fenômeno exposto encontra-se presente nas condutas
de diversas Administrações, que se utilizam da indeterminação e dificuldade da definição do
interesse público, e sua difícil e incerta avaliação e hierarquização, o que gera crise na sua própria
objetividade. Entretanto, conforme preleciona Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Quem exerce “função administrativa” está adstrito a satisfazer os interesses públicos,
ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das prerrogativas da
administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento dos
interesses públicos; vale dizer, do povo, porquanto nos Estados Democráticos o poder
emana do povo e em seu proveito terá de ser exercido”.115
Ora, o que ocorre reiteradamente nas Administrações Públicas espalhadas pelo território
nacional é justamente o fato de gestores esquecerem que não são eles os detentores do Poder.
Nunca foram e jamais serão. O que se vincula é sempre a idéia de poder aos agentes
governamentais e nunca seus respectivos deveres perante a sociedade. Equivocadamente, quando
se fala em Administração Pública pressupõe-se, automaticamente, Poder.
A verdade é que esta idéia vai contra aos princípios basilares do Direito Administrativo
e, principalmente, contra os preceitos fundamentais da Carta Magna, tendo em vista que o
detentor do Poder é una e exclusivamente o povo. Este apenas outorga uma parcela de
concentração de poderes nas mãos do Estado para que possa motivadamente, nos estritos limites
legais, invadir esferas de outros sujeitos de direito, a fim de cumprir devidamente com suas
atribuições.116
Fato é, que as prerrogativas que advém do princípio da supremacia do interesse público
só podem ser invocadas legitimamente para o alcance dos respectivos interesses públicos, e
jamais para satisfazer apenas interesses ou conveniências tão-só do aparelho estatal, e muito
menos de seus respectivos administradores.
115
Celso Antônio, ob. cit., p. 66/67.
“A própria maneira de apresentar o Direito Administrativo concorre para engendrar uma apreensão de seu
conteúdo mais vincada pela idéia de “poderes”, que comandam os administrados, ao invés de sublinhar os “deveres”,
que se impõem aos administradores (...) em rigor, os atos de quem gere negócio de terceiro, ou seja, os expedidos por
quem apenas apresenta o titular do Poder – que é o povo, segundo a dicção do art. 1º, par. único do texto
constitucional – são, acima de tudo, atos que manifestam e que cumprem deveres: os deveres de implementar a
finalidade legal que os justifica (...) Assim, o Poder, no direito público atual, só aparece, só tem lugar, como algo
ancilar (subsidiário), rigorosamente instrumental e na medida estrita em que é requerido como via necessária e
indispensável para tornar possível o cumprimento do dever de atingir a finalidade legal”. MELLO, Celso Antônio
Bandeira de, Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed., São Paulo, Malheiros 2007, p. 43.
116
47
Este conjunto de deveres atribuídos a Administração, recebe o nome de Função Pública
e consiste basicamente, nas palavras do professor Celso Antônio, na atividade exercida no
cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes
instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica.
Também conhecido como Finalidade Pública, de acordo com Maria Sylvia Zanella Di
Pietro, está presente até mesmo no momento da elaboração da lei, inspira o legislador e vincula a
autoridade administrativa em toda a sua atuação117. Assim, mais que uma simples atribuição
outorgada ao Poder Público, trata-se de um dever que afasta qualquer manifestação de vontade do
gestor governamental:
“Direito público se ocupa de interesses da sociedade como um todo, interesses públicos,
cujo atendimento não é um problema pessoal de quem os esteja a curar, mas um dever
jurídico inescusável. Assim não há espaço para a autonomia da vontade, que é
substituída pela idéia de função, de dever de atendimento do interesse público. É o
Estado quem, por definição, juridicamente encarna os interesses públicos”.118
Estas funções consistem, a bem da verdade, no dever jurídico inescusável do Estado de
atendimento do interesse público. Não se trata de uma simples faculdade do Estado, e sim uma
obrigação a ele atribuída, que decorre justamente da relação de dever-poder instaurado ao longo
da história119.
Assim, só há poder conferido ao Estado, porque a ele foram atribuído deveres
inescusáveis e que necessitam de uma relação vertical frente ao particular a fim de viabilizar seus
respectivos exercícios. Isso significa que, ao contrário do exposto por Daniel Sarmento e sua
legião, a verticalidade das relações entre o indivíduo e o Estado são indispensáveis para garantir o
cumprimento dos deveres impostos à própria Administração.
A fim de corroborar o exposto, se a Administração Pública pode ser condenada quando
omissa, a contrário senso, deve ser prestigiada por ações que garantam os direitos essenciais
inerentes ao homem isento de qualquer vício ou irregularidade.
Não seria uma faculdade e sim um dever da Administração exercer com excelência todas
as funções a ela atribuídas pelo ordenamento legal, que nada mais representa que os próprios
interesses da coletividade:
117
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.59.
Celso Antônio, ob. cit., p. 27.
119
Duguit – serviços prestados à coletividade pelo Estado, por serem indispensáveis à coexistência social (visão
sociologística). Entretanto, há a doutrina que prega que o estudo do Direito Administrativo não se concentra apenas
no âmbito do dever servir do Estado e sim no seu poder de impor, o que acarreta inexoravelmente a análise de temas
como controle do poder, limitações à autoridade e fiscalização dos atos da Administração.
118
48
“A administração exerce função: a função administrativa. Existe função quando alguém
está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem,
necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais
poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito
investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde,
quem os titulariza maneja, na verdade, ‘deveres-poderes’, no interesse alheio”.120
O autor deixa claro que o titular do poder não é o Estado em si, e sim a própria
coletividade que cede parcela de seu direito individual a fim de ver resguardado sua segurança e
bem estar social. E para isso, a junção de cada parcela de renúncia da liberdade é que viabiliza o
Estado de deter o dever-poder da função pública. Ocorre que muitas vezes:
“Existe uma impressão (...) que o Direito Administrativo é um Direito concebido em
favor do Poder, a fim de que ele possa vergar os administrados (...) visto como um ramo
do direito aglutinador de poderes desfrutáveis pelo Estado (...) ao invés de ser
considerado, como efetivamente é, como um conjunto de limitações aos poderes do
Estado ou, muito mais acertadamente, como um conjunto de deveres da Administração
em face dos administrados (...) a idéia base inicialmente considerada como o fator de
desencadeamento do Direito Administrativo e pólo aglutinador de seus vários institutos
foi a idéia de “puissance publique”, isto é, da existência de poderes de autoridade
detidos pelo Estado e exercitáveis em relação aos administrados (...) A própria maneira
de apresentar o Direito Administrativo concorre para engendrar uma apreensão de seu
conteúdo mais vincada pela idéia de ‘poderes’, que comandam os administrados, ao
invés de sublinhar os ‘deveres’, que se impõem aos administradores”.121
E conclui o autor dizendo que: “Tendo em vista este caráter de assujeitamento do poder
a uma finalidade instituída no interesse de todos – e não da pessoa exercente do poder – as
prerrogativas da administração não devem ser vistas ou denominadas como’poderes’ ou ‘poderesdeveres’. Ocorre, não raras às vezes, todos estes conceitos que deveriam ser seguidos à risca para
evitar qualquer tipo de abuso ou desvio de poder, são violados”.
Capítulo X – “Pré-Ponderação” (“Entronização”) versus Direitos Fundamentais
Alexandre Santos de Aragão122 defende que em nenhum momento se deve invocar o
interesse público para se sobrepor a qualquer necessidade individual. Não pode haver qualquer
120
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo. 22ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 66.
Ob. cit. p. 42.
122
ARAGÃO, Alexandre Santos de, A “Supremacia do Interesse Público” no Advento do Estado Democrático de
Direito e na Hermenêutica do Direito Público Contemporâneo. Lumen Júris, 2007, p. 07.
121
49
pré-ponderação123 com qualquer outro valor envolvido, de maneira prematura e arbitrária:
“A prevalência só existiria após a ponderação concreta entre os princípios colidentes.
Não haveria, pois, a supremacia antecipada e automática, mas posterior e
fundamentada”.
Assim, na eventual colidência entre um interesse da Administração e um outro do
particular, num primeiro momento, não prevaleceria nenhum dos dois124; eles estariam
absolutamente nivelados, em um verdadeiro “pé de igualdade”. Só então, num segundo momento,
sob a mais cautelosa análise das circunstâncias concretas, é que, possivelmente, poderia verificarse a eventual necessidade de uma sobreposição do interesse da Administração, caso não houvesse
qualquer outro meio alternativo. Tratar-se-ia de uma verdadeira forma secundária (subsidiária) de
solução de conflitos entre interesses antagônicos.
Abre-se aqui um parênteses, a fim de se observar, que a própria corrente doutrinária
trabalha com a eventual possibilidade de uma sobreposição do princípio da supremacia do
interesse público sobre um interesse que verse sobre direitos individuais125. Assim, a questão já
oportunamente analisada, que versa sobre a impossibilidade de um argumento não-institucional
amplamente abstrato jamais poder prevalecer sobre um argumento institucional aplicável ao caso
concreto, restaria prejudicada.
Entretanto, Gustavo Binenbojm126 diz que, tendo em vista que a restrição dos direitos
fundamentais é dada por uma norma de proporção e preservação recíproca dos interesses em
conflito, por razões de ordem normativa e lógica, o conhecimento do direito não se submete a
uma condição que mande prevalecer, aprioristicamente, o interesse público em detrimento do
privado (não-prevalência a priori do coletivo sobre o individual). Isso ocorre, porque é a própria
Constituição que, explícita ou implicitamente, estabelece quando e em que medida os direitos
individuais podem ser restringidos.
123
Esta “pré-ponderação” a que se refere Alexandre Santos é equiparado ao conceito subseqüente de “entronização”
explorado por Paulo Ricardo.
124
Em sentido oposto Hely Lopes: “(...) sempre que entrarem em conflito o direito do indivíduo e o interesse da
comunidade, há de prevalecer este, uma vez que o objetivo principal da administração é o bem comum”.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p. 54.
125
No sentido da doutrina majoritária: “(...) em caso de colisão, deve preponderar a vontade geral legítima sobre a
vontade egoisticamente articulada (...) princípio do interesse público exige a simultânea subordinação das ações
administrativas à dignidade da pessoa humana e o fiel respeito aos direito fundamentais”. FREITAS, Juarez. O
Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais. 3ª Ed., Malheiros, São Paulo, 2004, p. 34-36.
126
BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: Um Novo
Paradigma para o Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007.
50
De acordo com Paulo Ricardo Shier127, a decorrência desta pré-ponderação sem a análise
do fato concreto seria uma espécie de “entronização” do interesse público num pretenso patamar
hierárquico superior àquele ocupado pelos direitos e liberdades individuais. Daniel Sarmento128
prossegue dizendo que este pretenso patamar hierárquico implicaria equivocadamente em uma
constante queda do interesse individual frente ao público sempre que seu interesse for invocado.
“O Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, ao afirmar a
superioridade a priori de um dos bens em jogo sobre o outro, elimina qualquer
possibilidade de sopesamento, premiando de antemão, com a vitória completa e cabal, o
interesse público envolvido, independentemente da nuances do caso concreto, e
impondo o conseqüente sacrifício do interesse privado contraposto”.
Ainda de acordo com o autor, os direitos fundamentais não são absolutos e pode até
haver a necessidade de proteção de outros bens jurídicos de interesses coletivos diversos, também
revestidos de envergadura constitucional, o que justificaria eventualmente restrições aos direitos
fundamentais. Todavia, a questão das restrições de direitos fundamentais justificadas com base
no interesse público exigem um exame mais complexo, o que não vem sendo seguido pelo Poder
Público.
Assim, em vista do regime jurídico de aplicação, não existiria na colisão e restrição dos
direitos fundamentais, um critério universal, válido para todas as situações de colisão, de
preferência ou supremacia do interesse público sobre o privado: “A solução da colisão de
princípios estabelece uma relação de procedência condicionada, ou seja, apenas as condições
efetivas do caso concreto podem determinar qual princípio haverá de prevalecer”.
O autor defende basicamente a idéia de que o Princípio da Supremacia do Interesse
Público sobre o Particular não constitui critério adequado para a resolução de colisões entre
interesses públicos e interesses privados, sugerindo uma nova formulação, mais compatível com
os direitos fundamentais do administrado e o atual estatuto axiológico do Estado Democrático de
Direito.
Conseqüentemente, a admissão de cláusulas muito gerais como a do princípio em tela
seria uma verdadeira ameaça à liberdade individual. A discricionariedade excessiva conferida aos
aplicadores do direito implicaria na violação aos princípios democráticos e da reserva de lei, em
127
SHIER, Paulo Ricardo, Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime Jurídico dos
Direitos Fundamentais, Lumen Júris, 2007, p. 219.
128
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de
Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 30.
51
matéria de limitação de direitos, já que transfere para a administração a fixação concreta dos
limites ao exercício de cada direito fundamental.
Em vez de uma relação de contradição entre os interesses privado e público há, em
verdade, uma conexão estrutural. A bem da verdade, tratar-se-ia de uma incorreta identificação
do interesse público, ou seja, um conflito ou convergência inexistente.
Complementa Alexandre Santos, dizendo acerca da grande necessidade de emprego de
uma metodologia mais adequada para limitar a subjetividade do julgador e do administrador na
aplicação do Direito Público, que não pode mais ser visto apenas como garantidor do interesse
público e sim como o instrumento da garantia dos direitos fundamentais positivos e negativos.
O autor, cita como exemplo o caso do nazismo na Alemanha, no qual o Estado só se
subordinava ao que ele próprio estabelecia (autolimitação). Era limitado não pelos próprios
indivíduos que deveriam se encontrar em igualdade de condições frente ao Estado, mas sim por
um direito especial que visava assegurar a supremacia de sua vontade sobre os demais sujeitos da
sociedade. Envolvia o dever de proporcionalidade, que impõe ao Estado a obrigação de sempre
sopesar os interesses privados legítimos envolvidos em cada caso, ainda que eles não constituam
direitos fundamentais.
Gustavo Binenbojm129 propõe, ao invés de uma regra de prevalência, impor ao aplicador
do Direito um percurso ponderativo para atribuir máxima realização aos direitos envolvidos o
critério decisivo para a atuação da administração. De acordo com o autor, na maioria dos casos a
Constituição nem a lei realizam o juízo de ponderação, por completo, entre os interesses
conflitantes. E complementa:
“Aqui, tal como o legislador, incumbirá ao administrador público percorrer as etapas de
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito para encontrar o ponto
arquimediano de justa ponderação entre direitos individuais e metas coletivas”.
Em suma, os autores negam a supremacia do interesse público sobre o particular e
buscam afirmar a superioridade prima facie dos direitos fundamentais. O civismo que interessaria
é o do “patriotismo constitucional”, que pressupõe a consolidação de uma cultura de direitos
humanos. Além disso, a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais não se
129
BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: Um Novo
Paradigma para o Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007.
52
compatibiliza com a atribuição de uma primazia dos interesses públicos sobre os direitos
fundamentais.
Daniel Sarmento prossegue dizendo que o caráter principiológico das normas
constitucionais protetivas dos direitos fundamentais permite: (i) ao legislador que, através de
uma ponderação constitucional dos interesses em jogo, estabeleça restrições àqueles direitos,
sujeitos, no entanto, a uma série de limitações (são os chamados “limites dos limites”); (ii) ao
Judiciário, por meio de ponderações de interesses, impor limitações aplicadas ao caso concreto
nas hipóteses de conflitos entre princípios não solucionados pelo Legislativo ou quando
inconstitucional seu equacionamento.
Portanto, a solução para colisões entre eles não é singela. A busca da solução
constitucional adequada deve respeitar os chamados “limites dos limites”, quais sejam: os direitos
e garantias fundamentais.
Sob este prisma, Luis Barroso enaltece a nova hermenêutica
constitucional: (i) Constitucionalização do Direito como centro do sistema jurídico, e; (ii) o
amplo desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais baseada na dignidade humana, como
uma verdadeira reaproximação do Direito e da Ética.
Imprescindível trazer à baila da análise do presente tópico, o famoso Caso Luth, julgado
este proferido pela Suprema Corte Alemã. Nele conceituou-se de forma singular a eficácia
horizontal dos direitos fundamentais. Entendeu-se que as normas do ordenamento jurídico pátrio
devem ser interpretados de acordo com os preceitos e valores dos direitos fundamentais. Uma
idéia da Constituição como ordem objetiva de valores, que condiciona a leitura e interpretação de
todos os ramos do direito.
De acordo com Daniel Sarmento130, haveriam três escalas para a solução dos conflitos:
(i) hegemonia absoluta do princípio do interesse público desde o princípio propriamente dito,
prevalecendo completa e cabalmente, impondo restrições ao interesse privado; (ii) modalidade
mais fraca na qual não haveria uma primazia a priori do interesse público, e em circunstancias
especiais, com provas fortes e contundentes, prevaleceriam o interesse privado; (iii) o ônus
argumentativo passaria para quem defenda o interesse público, tendo como regra a
preponderância dos direitos fundamentais.
130
SARMENTO, Daniel, Interesses Públicos Vs. Interesses Privados nas Perspectiva da Teoria e da Filosofia
Constitucional, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2007, p. 51/79.
53
É preciso lembrar que a Constituição surgiu num momento histórico de superação de
uma visão autoritária sobre o Estado e sua relação com os cidadãos, que relegava os direitos
fundamentais a um plano secundário e periférico. Assim, a opção do constituinte, que perfilhou a
idéia de que os direitos fundamentais não são dádivas do Poder Público, mas sim uma projeção
normativa de valores morais superiores ao próprio Estado. Conseqüentemente, foram
explicitamente convertidos à condição de cláusulas pétreas, limitando o próprio constituinte
derivado.
Diante de conflitos entre direitos fundamentais e interesses públicos de estatura
constitucional, pode-se falar numa precedência “prima facie” dos primeiros. Assim, o interesse
público pode até prevalecer, após um detido exame calcado sobretudo no princípio da
proporcionalidade, mas para isso serão necessárias razões mais fortes. Tal idéia vincula tanto
legislador como os aplicadores do Direito. E conclui o autor que:
“(...) não encontram respaldo numa ordem constitucional como a brasileira, em cujo
epicentro axiológico figura o princípio da dignidade da pessoa humana”. Significa
muito mais do que o mero tratamento em sede constitucional de matérias anteriormente
afetas ao direito civil. Trata-se da imposição de uma releitura das normas e institutos do
direito privado filtrados a partir da axiologia constitucional, diante do reconhecimento
de que a constituição não representa apenas a norma básica do Estado, tendo se
convertido na “ordem jurídico fundamental da comunidade”.
Por fim, Gustavo Binnenbojm tenta a todo o momento demonstrar a inconsistência
teórica do dito Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular sob uma
sistemática cidadã, comprometida com a proteção e promoção dos direitos individuais de maneira
ponderada e compatível com a realização das necessidades e aspirações da coletividade como um
todo. Para o alcance de tal desiderato, o Direito Administrativo não teria mais como ser explicado
a partir de um postulado de supremacia, mas sim de proporcionalidade.
Não obstante inúmeras controversas que norteam o princípio da proporcionalidade
(tendo em vista que há uma forte corrente doutrinária que defende não se tratar de um princípio,
mas sim um método de interpretação), o ilustre Ministro Gilmar Mendes resume que: “(...)
tratando-se de um método de ponderação de bens à luz do caso concreto, é intuitivo que a priori
não exista uma hierarquia fixa e abstrata entre os diversos princípios, ressalvada apenas a
dignidade da pessoa humana como valor-fonte dos demais valores, valor fundante da experiência
ética ou, se preferimos, princípio e fim de toda ordem jurídica”.131
131
Ob. cit., p. 58.
54
Capítulo X – Desconstrução?
A par de todas as teses e divergências científicas acerca das considerações a seguir
expostas, insta salientar não serem estas objetivo do presente trabalho, motivo pelo qual buscarei
embasar o bloco de raciocínio nos moldes das posições mais aceitas em suas respectivas áreas –
filosofia, sociologia, antropologia e etc – sempre com o intuito de se alcançar os pontos
imprescindíveis para a conclusão do objeto, ora sob análise.
Enfim, estudos acerca da origem e evolução humana mostram que num primeiro
momento o indivíduo vivia isolado, com plena autonomia e independência. Ao perceber maiores
benefícios e possibilidades de desenvolvimento, este passou a se reunir em grupos, o que ensejou
o início de sua organização social. Ocorre que suas relações tornaram-se cada vez mais
complexas, o que gerou importantes implicações. Uma delas foi que sua liberdade já não era mais
absoluta. Seu comportamento tinha de se adequar ao meio social como um todo. A liberdade do
indivíduo encontrava limite onde começava a liberdade do outro132. Isso gerou conflitos que
demandavam soluções, sob pena da regressão ao estado de insociabilidade133.
Foi então que o indivíduo, percebendo que viver isolado já não era mais possível, teve
de renunciar parte de sua liberdade se quisesse preservar a parte restante134. Assim, juntamente
com os demais membros da coletividade, depositou esta parcela de liberdade nas mãos de um
Poder uno e indivisível, que passaria a representá-los como um todo. Este Poder recebeu o nome
de Estado, e recebeu o encargo de zelar pelos interesses gerais da sociedade, buscar seus
respectivos anseios e dirimir os conflitos135.
132
Nesse sentido, são as lições de Kant: “A liberdade tem de se pressupor como a propriedade da vontade de todos os
seres racionais. A todo ser racional que tem uma vontade temos que atribuir-lhe necessariamente a idéia de liberdade,
sob a qual ele unicamente pode agir”. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo
Quintela. Lisboa: Edições 70, 1948,. .p. 95- 96, e da Declaração dos Direitos do Homem de 1789: “A liberdade
consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem; assim, a existência dos direitos naturais de cada
homem só tem por limites os que assegurem aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Tais
limites só podem ser determinados por lei”.
133
“O Direito, porém, não visa a ordenar as relações dos indivíduos, mas, ao contrário, para realizar uma convivência
ordenada, o que se traduz na expressão: ‘bem comum’. O bem comum não é a soma dos bens individuais, nem a
média do bem de todos; o bem comum, a rigor, é a ordenação daquilo que cada homem pode realizar sem prejuízo do
bem alheio, uma composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos”. REALE, Miguel, Lições
Preliminares do Direito. 27ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 59.
134
Cf. Teoria do Contrato Social de Rousseau, já devidamente analisada no Capítulo II, p. 13: “(...) desenvolvida
pelo primado do filósofo francês Jean Jacques Rousseau134, dizia que as pessoas viviam em sociedade a partir de uma
espécie de contrato social. Assim, a lei deveria ser basicamente uma expressão da vontade coletiva, a qual revelaria
indiretamente o próprio interesse público”.
135
Acerca do tema, vide preciosa obra de Cessare de Baccaria.
55
Entretanto, essa série de deveres que norteava a noção de Estado, necessitava de um
meio eficaz para sua execução. Assim, juntamente com suas atribuições vieram algumas
prerrogativas136, que nada mais são, do que mecanismos imprescindíveis para atingir a finalidade
específica de cada dever, de utilização geral, imparcial e obrigatória. Em outras palavras, ao
Estado é atribuído deveres. Mas, muitas vezes, estes deveres envolvem medidas que invadem a
esfera de outros sujeitos de direitos. Assim, ao Estado é conferido Poderes para viabilizar o
manejo destas medidas, em uma verdadeira sobreposição de seu interesse sobre aos dos
particulares137:
“Deste princípio procedem as seguintes conseqüências ou princípios subordinados: (...)
a) posição privilegiada do órgão encarregado de zelar pelo interesse público e de
exprimi-lo, nas relações com os particulares; (...) Benefícios que a ordem jurídica
confere a fim de assegurar conveniente proteção aos interesses públicos instrumentando
os órgãos que os representam para um bom, fácil, expedito e resguardado desempenho
de sua missão. Traduz-se privilégios que lhe são atribuídos. (....) b) posição de
supremacia do órgão nas mesmas relações; (....) Metaforicamente expressada através da
afirmação de que vigora a verticalidade nas relações entre administração e particulares;
ao contrário da horizontalidade, típica das relações entre estes últimos. Significa que o
Poder Público encontra-se em situação de autoridade, de comando, relativamente aos
particulares, como indispensável condição para gerir os interesses públicos postos em
confronto”.138
Ora, talvez o maior reflexo deste Dever-poder do Estado, vale dizer, deste conjunto de
prerrogativas a ele conferidas, é a posição privilegiada e suprema frente aos particulares
(verticalidade nas relações). O mesmo não acontece nas relações de direito privado, no qual as
partes encontram-se em um mesmo patamar hierárquico (horizontalidade nas relações). Aqui,
deve-se buscar sempre a equiparação entre os particulares, ou seja, no mundo privado, quando há
situações de desequilíbrio, deve-se dar tratamento diferenciado ao hipossuficiente para que ele
fique em “pé de igualdade” com o outro.
Com efeito, o interesse público deve se situar em um patamar de privilégios que o
direito privado não possui. No Direito Administrativo as relações são verticais. O Estado tem
prerrogativas às quais o particular deve se submeter. Nas palavras de Hely Lopes: “é o motivo da
desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados (...) dada à prevalência do
136
Preferimos o termo “prerrogativa” a que “privilégio”, tendo em vista que este traz uma idéia de mera vantagem,
enquanto aquele, traz a idéia de um mecanismo para atingir um específico fim obrigatório, que caso não houvesse,
não poderia ser utilizado.
137
Esta posição não é unânime, havendo notórios doutrinadores que defendem a idéia de um Poder-dever conferido
ao Estado e não o Dever-poder conforme exposto. Esse é o caso de Maria Sylvia Zanella di Pietro (ob. cit., p. 77) e
José dos Santos Carvalho Filho (ob. cit., p. 41).
138
Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit. p. 66/67.
56
interesse geral sobre os individuais, inúmeros privilégios e prerrogativas são reconhecidos ao
Poder Público”.139
Diante de todo o exposto, trazendo os principais conceitos ao plano prático, este seria
justamente o primeiro campo de averiguação da aplicabilidade do princípio da supremacia do
interesse público ao fato empírico: (i) O ato praticado é de atribuição conferida ao Estado
(Dever)?; (ii) O ato praticado confere o uso da prerrogativa utilizada (Poder)?140
Seria o que tomei a liberdade de chamar de “plano amplo de averiguação”, que nas
palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello seria a confirmação de que:
“(...) ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para propiciar o
cumprimento do dever a que estão jungidos, ou seja, são conferidos como meios
impostergáveis ao preenchimento da finalidade que o exercente de função deverá
suprir. Segue-se que tais poderes são instrumentais: servientes do dever de bem cumprir
a finalidade a que estão indissoluvelmente atrelados (...) Daí a conveniência de inverter
os termos deste binômio para melhor vincar sua fisionomia e exibir com clareza que o
poder se subordina ao cumprimento, no interesse alheio, de uma dada finalidade. Há
adstrição a uma finalidade previamente estabelecida”.
Seria a confirmação da existência de uma atribuição que demande a execução de uma
prerrogativa, o que garantiria, à primeira vista, a legitimidade do ato e a possibilidade de atuação
do Estado. Todo este conjunto de saberes recebe o nome de Função Pública ou também
conhecida por alguns como Finalidade Pública141:
“Há função sempre que alguém está assujeitado ao dever de buscar, no interesse de
outrem, o atendimento de certa finalidade. Para desincumbir-se de tal dever, o sujeito
de função necessita manejar poderes, sem os quais não teria como atender à finalidade
que deve perseguir para a satisfação do interesse alheio”.142
Esta se encontra subordinada aos efeitos do Princípio da Indisponibilidade do Interesse
Público, que afirma que o administrador não pode dispor livremente do interesse público, só
podendo fazê-lo dentro dos estreitos limites impostos pela lei. Nas palavras de José dos Santos143:
“Os bens e interesses públicos não pertencem à Administração nem a seus agentes. Cabe-lhes
139
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p.106.
“(...) os dois aspectos fundamentais que o caracterizam são resumidos nos vocábulos prerrogativas e sujeições, as
primeiras concedidas à Administração, para oferecer-lhe meios para assegurar o exercício de suas atividades, e as
segundas como limites opostos à atuação administrativa em beneficio dos direitos dos cidadãos (...) dois aspectos
opostos: a autoridade da Administração Pública e a liberdade individual”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito
Administrativo. 20ª Ed. São Paulo, Atlas, 2007, p.102/109.
141
Cf. Maria Sylvia Zanella di Pietro, ob. cit. p. 483.
142
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit. p. 93.
143
Ob. cit., p. 32.
140
57
apenas geri-los, conserva-los e por eles velar em prol da coletividade, esta sim a verdadeira titular
dos direitos e interesses públicos”. Reflexo direto deste princípio é a Continuidade do Serviço
Administrativo, tendo em vista que os serviços públicos buscam atender diretamente os reclamos
dos indivíduos no corpo social, conseqüentemente não podem de forma alguma ser
interrompidos.
Se por um lado, o princípio da supremacia dá poderes ao administrador público que o
mundo privado não tem, por outro, a indisponibilidade impõe limites ao administrador que para o
particular não existem. Enquanto ao particular é permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe,
à Administração é conferido fazer tudo aquilo que a lei permite. Sendo a lei a expressão da
vontade do titular do interesse público, o Gestor não tem disposição livre sobre as coisas,
simplesmente porque ele não é dono daquilo que está a fazer.
“A natureza da administração pública é a de um múnus público para quem a exerce, isto
é, a de um encargo de defesa, conservação e aprimoramento dos bens, serviços e
interesses da coletividade. Como tal, impõe-se ao administrador público a obrigação de
cumprir fielmente os preceitos de Direito e da Moral administrativa que regem a sua
atuação”.144
Nas considerações tecidas acerca de Função Pública, Celso Antônio Bandeira de Mello
vai mais além, ao dispor sobre o alcance das atribuições e prerrogativas que “não são manejáveis
ao sabor da administração, porquanto jamais dispõe de ‘poderes’ e sim ‘deveres-poderes’, pois é
mero desempenho de função (apenas uma finalidade justifica o emprego deste poder)”.
Mas não é o bastante. O segundo passo está no que chamo de “plano intermediário de
averiguação”. Seria o campo que verifica o âmbito de aplicação da sobreposição do interesse
público propriamente dito, ou seja, indagar-se-ia a respeito dos seguintes tópicos: (i) legalidade;
(ii) impessoalidade; (iii) moralidade; (iv) razoabilidade; (v) proporcionalidade.
Os três primeiros encontram-se explícitos no caput do artigo 37 da Constituição Federal,
enquanto os outros dois decorrem dos princípios da legalidade.
Acerca do princípio da legalidade, indispensável transcrever interessante trecho da
exposição de Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do preceito:
"Enquanto o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é da
essência de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente organizada com fins
políticos, o da legalidade é específico do Estado de Direito. É justamente aquele que o
qualifica e que lhe dá a identidade própria. Por isso mesmo é o princípio basilar do
144
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p.86.
58
regime jurídico-administrativo, já que o Direito Administrativo nasce com o Estado de
Direito: é uma conseqüência dele. É o fruto da submissão do Estado à lei. É, em suma:
a consagração da idéia de que a Administração Pública só pode ser exercida na
conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade
sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei. (...) O
princípio da legalidade contrapõe-se, portanto, e visceralmente, a quaisquer tendências
de exacerbação personalista dos governantes. Opõe-se a todas as formas de poder
autoritário, desde o absolutista, contra o qual irrompeu, até as manifestações
caudilhescas ou messiânicas típicas dos países subdesenvolvidos. (...) Michel
Stassinopoulos, em fórmula sintética e feliz, esclarece que, além de não poder atuar
contra legem ou prater legem, a Administração só pode agir secundum legem. Aliás, no
mesmo sentido é a observação de Alessi, ao averbar que a função administrativa se
subordina à legislação não apenas porque a lei pode estabelecer proibições e vedações à
Administração, mas também porque esta só pode fazer aquilo que a lei antecipadamente
autoriza. (...) Logo, a Administração não poderá proibir ou impor comportamento
algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe
faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja”.145
Acerca do princípio da impessoalidade, este estabelece que a Administração tem de
tratar os administrados sem qualquer discriminação seja qual for a situação. Favoritismos e
perseguições devem ser banidos, devendo pregar sempre os princípios da igualdade e isonomia.
Já o princípio da moralidade, preconiza que a Administração Pública e seus agentes
devem agir sob a mais ilibada conduta ética, segundo os cânones da lealdade e boa-fé. De acordo
com José dos Santos, o administrador “deve não só averiguar os critérios de conveniência,
oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é
desonesto”.146
Decorrente do princípio da legalidade, a razoabilidade consiste no dever da
Administração Pública exercitar suas prerrogativas discricionárias dentro de limites padrões, sem
incorrer em condutas desarrazoáveis. Traz a idéia de bom senso ou atuação racional na qual:
“Juridicamente, sua dimensão, intensidade e tônica são fornecidas pelo Direito posto, e só por
este ângulo é que pode ser considerado e invocado”.147 Por este motivo é que a apreciação do
Judiciário acerca do mérito é possível sem se violar a tripartição dos poderes.
Outrossim, as condutas administrativas devem sempre se sujeitar aos mais estritos
moldes e equilíbrio entre o fim almejado e os meios utilizados. Desdobramento do próprio
princípio da razoabilidade, o princípio da proporcionalidade determina a obervância
da
adequação entre meios e fins, sendo vedada a imposição de sansões ou obrigações em medidas
145
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit. p. 93
Cf. José dos Santos Carvalho Filho, ob. cit. p. 20.
147
Cf. José dos Santos Carvalho Filho, ob. cit. p. 20.
146
59
superiores ao estritamente necessário para a defesa do interesse público. Assim, quem age sob o
fundamento da supremacia do interesse público deve se ater aos seus exatos limites:
“Os ‘poderes’ administrativos – na realidade, deveres-poderes – só existirão – e,
portanto, só poderão ser validamente exercidos – na extensão e intensidade
proporcionais ao que seja irrecusavelmente requerido para o atendimento do escopo
legal a que estão vinculados. Todo excesso, em qualquer sentido, é extravasamento de
sua configuração jurídica. É, a final, extralimitação da competência, abuso, uso além do
permitido, e, como tal, comportamento inválido que o Judiciário deve fulminar a
requerimento do interessado”.148
Por fim, o terceiro e último passo está no “plano estrito de averiguação”, qual seja
verificar os pressupostos de validade do Ato Administrativo149: (i) sujeito; (ii) objeto; (iii) forma;
(iv) motivo; (v) finalidade.
Não comentarei cada um dos elementos, mas ressalto, conforme anteriormente aduzido,
que para se configurar a finalidade não basta apenas à análise do fim em si mesmo, necessário se
faz analisá-la sob a égide de sua correlação social, ou seja, este deve estar amparado pela busca
do bem-estar social, sob pena de violar a função social dos atos de governo:
“A autonomia da vontade só existe na formação do ato jurídico. Porém, os direitos e
deveres relativos à situação jurídica dela resultante, a sua natureza e extensão são
regulamentados por ato unilateral do Estado, jamais por disposições criadas pelas
partes. Ocorrem, através de processos técnicos de imposição autoritária da sua vontade,
nos quais se estabelecem as normas adequadas e se conferem os poderes próprios para
atingir o fim estatal que é a realização do bem comum. É a ordem natural do Direito
interno, nas relações com outras entidades menores ou com particulares”.150
Além disso, insta relembrar que o elemento motivo é regido pela Teoria dos Motivos
Determinantes. Todo ato administrativo é praticado sob o ensejo de certas circunstâncias reais,
que passam a integrar o próprio ato, vinculando-o aos motivos justificantes.
148
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit., p. 96.
Dessarte as inúmeras divergências acerca dos elementos e pressupostos do ato administrativo.
150
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha, Conceito de Direito Administrativo. In Revista da Universidade
Católica de São Paulo, 1964, v. XXVII, p. 36.
149
60
CONCLUSÃO
Capítulo XII – Evitando Abusos e Desvios
A bem da verdade, as intenções dos atos de governo com fundamento direto no princípio
da supremacia do interesse público podem se vincular, freqüentemente, à vontade subjetiva do
gestor público e, conseqüentemente, se sujeitar a um elevado grau de manipulação, deturpando
assim os reais interesses sociais diante de um específico fato concreto. Vale dizer que no
momento da atuação do agente político, quando se busca a ponderação dos interesses e valores
em evidência, há ampla subjetividade para sua decisão, o que pode levar, facilmente, a abusos e
desvios da finalidade devida.
Talvez estas sejam as claras circunstâncias que ensejaram as mais pertinentes questões
levantadas pela doutrina oposta, e que, corretamente, enaltecem uma maior necessidade da
releitura dos atuais modelos de motivação, que justifiquem fielmente quando determinadas
situações são mais relevantes do que outras para que um princípio, como o da supremacia do
interesse público, possa ser considerado, sob a perspectiva de um caso concreto, mais importante
do que outro princípio, como nos casos de colidências com os direitos fundamentais.
Sob este prisma, considerando: (i) que o princípio da supremacia do interesse público
desempenha papel fundamental nos atuais ditames sociais; (ii) que é de suma importância situá-lo
devidamente dentro do sistema normativo constitucional; (iii) que sob a perspectiva de sua
dimensão ontológica, equivale a normas jurídicas; verifica-se a iminente importância e
necessidade do desenvolvimento de um raciocínio prático, o qual, sob certos critérios objetivos,
consiga solver conflitos de interesses, dentro de uma sistemática normativa constitucional válida.
Diante de todo o exposto, conclui-se que aquele que age sob o manto da supremacia do
interesse público deve se ater a mais estrita legalidade e probidade dentro de três campos:
Obediência ao dever-poder da Administração Pública (atribuições e prerrogativas
da Função Pública; indisponibilidade e continuidade dos Serviços Públicos);
Obediência aos requisitos de validade do Princípio propriamente dito (legalidade,
61
impessoalidade, moralidade, razoabilidade e proporcionalidade);
Obediência aos pressupostos de validade do Ato Administrativo (sujeito, objeto,
forma, motivo e finalidade).
Caso algum destes elementos seja violado151, o particular sempre estará resguardado,
pela Ação Popular e as Ações Possessórias, além de todos os writs constitucionais, conforme a
seguir elencados:
“Em todos os casos, a ameaça ou a incorreta utilização de quaisquer destas
prerrogativas podem ser judicialmente corrigidas, preventiva ou repressivamente,
conforme o caso, por meio do habeas corpus quando envolver ofensas à liberdade de
locomoção, os mandados de segurança individual ou coletivo quando houver violação
de direito liquido e certo”.152
Capítulo XIII – Implicações Práticas
Percebe-se ao longo dos últimos anos, que aquele fenômeno nos apresentado como
globalização, não passou de uma ilusão; uma falsa propaganda, que se propagou rapidamente
com o advento de novos meios de tecnologia ligados, principalmente, ao transporte e à
comunicação. À época, imaginávamos uma verdadeira revolução, na qual haveria uma
generalizada disseminação de oportunidades devido ao “encurtamento” das distâncias e a quebra
das barreiras de incomunicabilidade. O mundo seria um só; um verdadeiro “vilarejo global”, no
qual aquela pequena produtora de pão-de-queijo poderia vendê-los para um consumidor do outro
lado do mundo. O que isso sugeria, em tese, era uma ampliação na livre iniciativa e na plena
concorrência.
Entretanto, não foi o que aconteceu. E não demorou muito para que isso fosse percebido.
Hoje constata-se uma crescente concentração de mercados. Não raras às vezes, vamos ao
supermercado e aquele produto que se consumia há anos, foi incorporado por uma marca notória
151
Cf. Maria Sylvia: “Se a lei dá à Administração os poderes (...) é porque tem em vista atender ao interesse geral,
que não pode ceder diante do interesse individual. Em conseqüência, se, ao usar tais poderes (...) conseguir vantagens
para si ou para terceiros (...) estará se desviando da finalidade pública prevista em lei. Daí o vício do desvio de poder
ou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Ed.
São Paulo, Atlas, 2007, p. 66. Cf. Diógenes Gasparini: “A aplicabilidade desse princípio, por certo, não significa o
total desrespeito ao interesse privado, já que a Administração deve obediência ao direito adquirido, à coisa julgada e
ao ato jurídico perfeito (...)”, in Direito Administrativo. 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 20.
152
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo. 22ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 93.
62
de alguma corporação multinacional. Se se verificar as estatísticas no âmbito do mercado de
capitais, são poucos os casos de cisão de empresas. O que nos deparamos, diariamente, são mega
operações de fusões e aquisições de companhias. Clara prova de como a concentração de
mercado se mostra cada vez mais acentuada. E isso traz importantes implicações.
Dizer que por detrás de todo poder, encontra-se o dinheiro, é algo muito sério, senão
preocupante. Associar poder ao dinheiro, é grave. Principalmente, quando este poder refere-se ao
poder representativo de todo um povo. Seria o mesmo que dizer que a soberania de uma nação
inteira encontra-se abaixo daqueles que detêm o dinheiro. Muitos fecham os olhos para não ver,
mas a verdade é que existe, atualmente, uma legião de transnacionais com lucros que ultrapassam
PIB’s de inúmeros países ao redor do mundo, o que faz delas, poderosas instituições capazes de
influir das mais diversas maneiras em diferentes regiões.
E ainda assim, querem mitigar a supremacia do interesse público sobre o privado? Será
que diante da história não restou claro o que isso significa? Voltaríamos ao tempo em que as
regras eram feitas pela lei da oferta e da procura, só que desta vez com uma agravante: haveria
apenas a procura, ao passo que a oferta estaria concentrada nas mãos de uma poderosa minoria
empresarial. Nos submeteríamos ao capricho daqueles que detêm o capital. Esse sim seria o
detentor dos Poderes, tendo em vista que é o capital que elege os representantes, os quais fazem
as leis; que o executivo simplesmente aplica e o judiciário meramente regula.
Fato é, que em uma batalha entre economia e direito, é certo que o primeiro irá
prevalecer. Sob este prisma, é que insurge o princípio da supremacia do interesse público a fim
de equilibrar e contrabalancear frente aos interesses dos particulares. Nesse sentido, insta
salientar as digressões de José dos Santos153: “A ‘desconstrução’ do princípio espelha uma visão
distorcida e coloca em risco a própria democracia”, na mesma linha adotada por Alice Gonzáles
Borges154: “o princípio, isto sim, suscita ‘reconstrução’, vale dizer, adaptação à dinâmica social”.
O fato abordado já na introdução, acerca da crise econômica que assolou o mundo nos
últimos dois trimestres de 2008, foi demonstração clara da fragilidade do sistema.
Conseqüentemente, provou-se pertinente a atuação estatal no exemplo empírico, que no caso está
153
CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 22ª Ed., Rio de Janeiro, Lúmen Júris,
2009, p. 30.
154
BORGES, Alice Gonzáles, Supremacia do Interesse Público: Desconstrução ou Reconstrução?, Salvador,
Revista Diálogo Jurídico, 2007.
63
ligado ao equilíbrio econômico, mas que poderia ter se dado em inúmeros outros campos de
incidência.
Ocorre que, partindo da premissa de que a partir do instante em que o indivíduo optou
por viver em sociedade, sua liberdade individual já não era mais absoluta; para se garantir o
convívio em sociedade, impossível deixar de se impor certas limitações às liberdades individuais.
Assim, sendo tais prerrogativas imprescindíveis, o melhor seria atribuí-las a um ente que
represente da maneira mais isenta e fiel possível os interesses e anseios da coletividade como um
todo, que, hodiernamente, pelo atual modelo adotado, é o próprio Estado. A despeito do
raciocínio exposto, insta transcrever, interessante passagem da obra de Cesare de Beccaria, que já
em seu tempo tinha uma visão, até hoje, modernista:
“Nenhum homem entregou gratuitamente parte da sua própria liberdade, mas em
contrapartida espera que o restante dela seja devidamente garantida e protegida. Por
isso, que a parcela depositada não deve ser mais do que aquele vínculo de estrita
necessidade que viabilize a manutenção dos interesses particulares unidos, que, do
contrário, se dissolveriam no antigo estado de insociabilidade. Além disso, cada um só
quer colocar no depósito público a mínima porção possível, apenas a que baste para
induzir os outros a defendê-lo”.155
Logo, para viabilizar e garantir o exercício destas respectivas atribuições, indispensável
conferir determinadas prerrogativas. E, finalmente, estas prerrogativas necessitam de um
fundamento, que é justamente uma sobreposição da supremacia do interesse público, pois este
nada mais é que o direto interesse da coletividade, que por sua vez é o conjunto de um número
indeterminado de interesses particulares. Assim, mitigar a supremacia seria o mesmo que
destituir o Estado do Poder. Seria privá-lo de poder exercer seus deveres de acordo com o que a
ele foi atribuído.
“Não é desconhecido o fato de que o Estado deve atuar à sombra do princípio da
supremacia do interesse público. Significa dizer que o interesse particular há de se se
curvar diante do interesse coletivo. É fácil imaginar que, não fora assim, se implantaria
o caos na sociedade”.156
Para o contratualista Rousseau157, uma das maiores ameaças à soberania popular decorre
da incessante ação de agentes políticos e suas vontades particulares contra a vontade geral.
155
BECCARIA, Cesare, Dos Delitos e das Penas. 2ª Ed., São Paulo, Martins, 2002, p. 42/45.
CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 22ª Ed., Rio de Janeiro, Lúmen Júris,
2009, p. 71.
157
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social, in “Os Clássicos da Política”, 11ª Ed, 1ºVol, São Paulo, Ática,
1999, p. 121.
156
64
Assim, nada mais lógico, que buscar o interesse de uma maioria frente a um interesse individual e
minoritário, ou seja, seria a aceitação da vontade da maioria como critério para a imposição
homogênea de uma obrigação ao todo.
Em suma, o posicionamento e o comportamento do indivíduo, uma vez inserido no meio
social, não mais se desvincula do imperativo natural de homem social158, afastando assim sua
antiga condição de homem como um ser isolado. Mas, a questão é: como delimitar de forma
efetiva e eficiente tal interesse coletivo frente aos direitos fundamentais da pessoa humana a
ponto de garantir um bem-estar social e ao mesmo tempo não infringir as liberdades individuais?
Tomando como base todo o exposto, e partindo da conclusão proposta no capítulo anterior, esta é
a proposta para o próximo desafio!
158
Expressão utilizada por Dalmo de Abreu Dallari em sua ob. cit., p. 18.
65
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SILVA, Pedro Ivo Vieira. - Gastão Toledo Advogados