PRIMÓRDIOS DA JURISDIÇÃO
Antônio José Carvalho da Silva Filho
Mestre em Ciências Jurídico-Processuais pela
Faculdade de Direito de Coimbra - Portugal
Juiz Substituto – TJPR
Sumário: 1. Linhas Gerais; 2. Ordo Iudiciorum Privatorum; 3. Período
da Cognitio extra ordinem; 4. O fenômeno da judicialização da
jurisdição; 5. Referências bibliográficas.
1.
Linhas Gerais
O ser humano, como qualquer outro animal, tem como instinto a necessidade
de reunião com seus semelhantes no afã de possibilitar maior facilidade para subsistência e
proliferação da espécie.
Tal característica gerou o que se convencionou chamar de comunidades, que
quando atingiram certo grau de desenvolvimento receberam o nome de sociedade.
O agrupamento de seres humanos em comunidades provoca relação entre uns e
outros. E destas relações, consequentemente, surgem conflitos de interesses, pois o ser
humano é, por sua natureza, insatisfeito. Destarte, sempre existiram regras para a
determinação da conduta das pessoas 1.
O direito é ferramenta utilizada pelos grupos sociais, primordialmente para
exercer o controle social. A comprovação do brocardo jurídico ubi societas, ibi ius pode ser
realizada pela experiência empírica, que deixa clara a importância e o fundamento do direito
nas sociedades em geral.
1
ANTÔNIO CARLOS WOLKMER ensina que cada sociedade ou comunidade envida esforços para assegurar a ordem
social, criando e fazendo atuar normas de regulamentação essenciais, capazes de atuar como sistema eficaz de
controle social. WOLKMER, Antônio Carlos. O direito nas sociedades primitivas, In: Fundamentos de história do
direito, p. 17.
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Sobre as sociedades primitivas 2 é interessante notar que se organizavam por
normas originadas pelo núcleo familiar, principalmente no que se refere às crenças religiosas,
aos sacrifícios e também ao culto aos mortos. Os sacerdotes exerciam um poder enorme na
organização estatal, sendo verdadeiros legisladores e executores da lei.
“O receio da vingança dos deuses, pelo desrespeito aos ditames, fazia
com que o direito fosse respeitado religiosamente. Daí que, em sua
maioria, os legisladores antigos (reis sacerdotes) anunciaram ter
recebido as leis do deus da cidade. De qualquer forma o ilícito se
confundia com a quebra da tradição e com a infração ao que a
divindade havia proclamado.” 3
A resolução dos conflitos nesta época era realizada de duas maneiras: a) pela
autocomposição, entendida como o acordo entre os sujeitos interessados num mesmo bem da
vida, pela desistência, submissão ou transação; b) pela autodefesa.
Esta última forma de resolução de conflitos é que nos interessa pontualmente.
JOSÉ EDUARDO CARREIRA ALVIM, bebendo da lição de ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, ensina
que aquele que pretendesse determinado bem da vida e encontrasse obstáculos à realização de
sua pretensão, removê-los-ia por seus próprios meios, afastando através da força ou da
galhardia aqueles que se pusessem em seu caminho. Imperava, segundo sua opinião, a lei do
mais forte, uma vez que o conflito era resolvido pelos próprios sujeitos nele envolvidos 4.
Neste sentido, CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, partindo da perspectiva de
que nos primórdios inexistia um estado suficientemente forte para superar os ímpetos
individualistas dos homens e impor o direito acima da vontade de qualquer um deles,
entendem que a autotutela (autodefesa) deve ser conceituada da seguinte forma:
“Assim, quem pretendesse alguma coisa que outrem o impedisse de
obter haveria de, com sua própria força e na medida dela, tratar de
conseguir, por si mesmo, a satisfação de sua pretensão. A própria
repressão aos atos criminosos se fazia em regime de vingança privada
e, quando o Estado chamou para si o jus punitionis, ele o exerceu,
inicialmente mediante seus próprios critérios e decisões, sem a
interposição de órgãos ou pessoas imparciais independentes e
desinteressadas.” 5
Na autotutela, um dos litigantes toma para si a posição do juiz da causa 6 e julga
o litígio, logicamente a seu favor e impõe coercitivamente sua decisão ao outro litigante.
Existe verdadeiro julgamento in re propria, sendo sempre vencedor aquele que é mais forte,
astuto, inteligente, perspicaz etc. Consiste em decisão de cunho egoístico que afirma perante a
sociedade o “costume” sob a ótica dos vencedores, dos mais fortes e poderosos.
2
JOHN GILISSEN entende que este expressão deve ser utilizada para designar as civilizações mais arcaicas,
principalmente as pré-históricas, entretanto, destaca que ainda hoje existem milhares de homens de vivem de
acordo com a citada organização arcaica, tais como os aborígenes da Austrália ou da Nova Guiné, dos povos
da Papuásia ou de Bornéu, de certos povos índios da Amazônia do Brasil, etc. (GILISSSEN, John. Introdução
histórica ao direito, p. 33)
3
WOLKMER, Antônio Carlos. O direito nas sociedades primitivas, In: Fundamentos de história do direito, p. 19
4
ALVIM, José Eduardo Carreira. Elementos de teoria geral do processo, p. 11
5
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, et alli. Teoria Geral do Processo, p. 21
6
ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO as notas essenciais da autotutela, quais sejam: ausência de juiz distinto das partes
litigantes, e a imposição da decisão por uma das partes à outra. ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto. Processo,
autocomposición y Autodefesa, p. 53
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“Quando, pouco a pouco, os indivíduos foram-se apercebendo dos
males desse sistema, eles começaram a preferir, ao invés da solução
parcial dos seus conflitos (parcial = por ato das próprias partes), uma
solução amigável e imparcial através de árbitros, pessoas de sua confiança
mútua em quem as partes se louvam para que resolvam os conflitos. Esta
interferência, em geral, era confiada aos sacerdotes, cujas ligações
com as divindades garantiam soluções acertadas, de acordo com a
vontade dos deuses; ou aos anciãos, que conheciam os costumes do
grupo social integrado pelos interessados. E a decisão do árbitro
pauta-se pelos padrões acolhidos pela convicção coletiva, inclusive
pelos costumes. Historicamente, pois, surge o juiz antes do
legislador.” 7
A limitação do exercício da autotutela sempre foi uma preocupação para todas
as comunidades. A seguir, analisaremos a estruturação destes limites no direito processual
romano.
2.
“Ordo Iudiciorum Privatorum” 8
CRUZ E TUCCI e AZEVEDO ensinam que deve ser afastada a obsoleta idéia de
que o processo romano nasceu com base na vingança privada. A doutrina romanística atual
entende, de forma praticamente unânime, que desde início da civilização romana havia certa
medida de intervenção estatal limitadora, rectius, exterminadora de qualquer meio de
resolução de conflitos através da autotutela 9.
A fase conhecida como ordo iudiciorum privatorum é concebida como a
junção entre o direito romano arcaico (legis actiones) e o direito romano clássico (per
formula).
O período das legis actiones – ações da lei – (754 a.C. até 149 a.C.)
representava o direito romano clássico, regulado essencialmente pela Lei das XII Tábuas (ano
450 a.C.), no qual havia verdadeira identidade entre a actio (ação) e a legis (lei) 10.
7
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, et alli. Teoria Geral do Processo, p. 22. As duas formas pacíficas de
resolução de conflitos existentes até este instante, autocomposição e arbitragem facultativa, limitavam-se
simplesmente à declaração de existência ou inexistência de um direito, a execução do acordo ou da decisão do
árbitro continuava dependendo da autotutela. Ao contrário do que muitos pensam, a conhecida Lei do talião,
estabelecida pela expressão “olho por olho, dente por dente”, prescrita no Código de Hamurabi (ano 1.694 a.C.),
no reino da Babilônia, tinha como função impedir que as pessoas fizessem justiça de mão própria, principalmente
no que se refere aos crimes e aos delitos em geral, via de regra, sancionados com a pena de morte (uma vida
por uma vida), aplicada pelo juiz, nomeado pelo rei. Já nesta época houve uma crescente delimitação da
autotutela como forma de resolução de conflitos entre indivíduos, sendo que o rei concentrava em suas mãos o
poder de julgar seus súditos.
8
O período do ordo iudiciorum privatorum diz respeito apenas e tão somente dos juízos privados (iudicia privata),
uma vez que o processo penal (iudicia publica) era completamente distinto da organização processual ora
examinada.
9
TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano, p.42
10
JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI E LUIZ CARLOS DE AZEVEDO ensinam o significado da expressão legis actiones: “Observase, no preâmbulo da exposição de Gaio (I., 4.11), que as ações da lei eram de uso frequente entre os antigos –
qui in usu veteres habuerunt –, e foram assim designadas porque se originaram de um texto legal (da lei das XII
tábuas ou de outro), ou porque as situações jurídicas por elas tuteladas se fundavam em uma lei, cujas palavras
deveriam ser cuidadosamente repetidas no formulário da actio.” (TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz
Carlos. Lições de história do processo civil romano, p. 51)
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Do nascimento de Roma (754 a.C.) até o início da República Romana (509
a.C.), o rex (rei), chefe supremo e vitalício, detinha em suas mãos, como único detentor da
potestas publica, os poderes religiosos, militares e civis, legitimando-o a julgar em primeira e
última instância, exclusivamente, todos os conflitos de interesses a ele apresentados.
Na época da monarquia romana, havia um intenso relacionamento entre a
religião (fas) e o direito (ius), tanto que a produção normativa, em geral, estava a cargo dos
sacerdotes, que auxiliando o rex ditavam os comportamentos esperados dos cidadãos, bem
como o solene ritual que deveria ser observado pelos demandantes perante o rex, magister
poppuli 11.
Com a queda da monarquia romana e o início da república a forma de
realização de justiça foi completamente modificada: o rex foi substituído pela magistratura
(magistratus publici populi romani). A novel estrutura, dividida em diversos órgãos, exercia o
imperium e também a iurisdictio, mas de forma mais limitada do que acontecida com o rex.
OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, bebendo das lições de FRANCESCO DE
MARTINO, ensina que a iurisdictio dos magistrados, nomeadamente do pretor, deve ser
compreendida, exclusivamente, como a função de declaração do direito e não de julgamento
da causa do processo ordinário, função completamente distinta das demais desempenhadas
pela autoridade estatal, tais como as stipulationes praetoriae, os interditos, a restitutio in
integrum, a missio in possessionem, etc 12.
No procedimento da ordo iudiciorum privatorum a declaração do direito era
um ato de autoridade estatal (pretor) que afirmava qual era a lei (sentido lato – norma
jurídica) aplicável à controvérsia, enquanto a resolução da causa, ou seja, o exame do conflito
e a pacificação do litígio através da aplicação da lei determinada pelo pretor, era realizada
pelo iudex, cidadão romano, que não fazia parte da magistratura 13.
“É provavelmente a partir desse momento que o procedimento,
apresentando uma discrepância qualitativa de funções, se desenrolava
em duas fases distintas: in iure, diante do pretor, incumbindo-lhe
organizar e fixar os termos da controvérsia; e, em sequência, apud
iudicem, perante o iudex unus, ou, nas controvérsias entre romanos e
estrangeiros, diante do tribunal dos recuperadores; ou ainda, nas
questões sobre sucessão hereditária, perante o tribunal dos centumviri.
O iudex, cidadão romano, tomando conhecimento do litígio a ele
submetido, julgava soberanamente, em nome do povo romano, não
estando, por isso, subordinado a qualquer órgão postado em superior
grau hierárquico.” 14
11
Cfr. TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano, p. 41
Cfr. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução, p. 26. “Somente o processo da actio, que se
desenvolvia através do procedimento do ordo judiciorum privatorum, possuía natureza jurisdicional” (SILVA,
Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução, p. 25), as demais atribuições do pretor eram de natureza decorrente
12
do imperium, do ato de ordenar.
13
“A ‘composição da lide’, realizada através de um decidere confiado a um iudex privado, como adverte De
Matino (p. 218), está inteiramente fora do imperium, atribuído ao praetor, posto que, diz o romanista, ‘questo
imperium nonè adoperato per attuare un’interpretazione o dichiarazione uficiale del diritto’ Esta interpretação ou
declaração oficial do direito é que correspondia à jurisdição.” (SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e
execução, p. 29)
14
TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano, p. 43 e 44
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Tanto a atividade do pretor, na fase in iure, quanto a atividade do iudex, na fase
apud iudicem, eram de natureza jurisdicionais. GAETANO SCHERILLO defende esta tese,
afirmando que quem ius dicit é sempre o magistrado, indicando a norma legal a ser aplicada
depois pelo iudex na sentença. A sentença, em si, seria apenas o último momento na
formulação da regra legal a incidir no caso concreto; e somente como ato final da concreção
da norma poder-se-ia dizer que a sententia era um ato jurisdicional 15.
A esta forma de resolução de conflitos, através do processo ordinário na fase da
ordo iudiciorum privatorum, deu-se o nome de arbitragem obrigatória, desenvolvida sempre
em duas fases conforme citado.
Diga-se que a fase in iure concluía-se com a celebração da litis contestatio,
entendida como um “comportamento processual das partes, dirigido a um escopo comum,
qual seja o compromisso de participarem do juízo apud iudicem e acatarem o respectivo
julgamento” 16 pelos litigantes.
A arbitragem obrigatória surgia como a principal forma de resolução de
conflitos na República Romana, em detrimento da autotutela, que desde os primórdios de
Roma era vedada aos litigantes, ainda mais após o surgimento da Lei das XII Tábuas, pelo
menos durante a cognição da causa.
O período per formula, também chamado de período formulário (149 a.C. até
209 d.C.), introduzido pela lex Aebutia (149 -126 a.C.) e oficializado definitivamente pela lex
Julia privatorum (17 a.C.), aplicado de modo esporádico até a época de Diocleciano (285-305
d.C.) 17, era caracterizado por um rito mais seguro e menos rigoroso do que o do período das
ações da lei.
“Fórmula, diminutivo de forma, é palavra grega que significa modelo.
Fórmula, portanto, é um autêntico modelo abstrato pelo qual se
propicia litigar por escrito, em conformidade com os esquemas
jurisdicionais previstos, pelo direito honorário, no edito do pretor.
A expressão processo formular – salienta Pugliese – é encontrada nas
Institutas de Gaio, que aludia a agere, litigare per formulam ou per
formulas (4.30), em contraposição ao agere ou petere per legis
actiones.” 18
A arbitragem obrigatória no período formulário ganhou inovações. Enquanto
no período das ações da lei o procedimento era imerso de formalidades e ritos sacro-legais,
herança do rex, magister populi, o processo civil do período formulário era menos formalista,
mais ágil e funcional que seu antecedente. Além do que, contava com um elemento de
segurança jurídica muito mais robusto do que o do período das ações da lei, senão vejamos: o
processo passou a ser parcialmente escrito, uma vez que a fórmula retirou o caráter
essencialmente oral do procedimento das ações da lei.
Outra diferença significativa era a de que, no período das legis actiones, quem
tinha a prioridade na escolha do iudex eram as partes, os litigantes, que escolheriam um
árbitro de sua confiança e, apenas se não houvesse acordo entre eles, o pretor nomearia um
iudex que gozasse da confiança da autoridade estatal. Já no período formular, competia
15
16
17
18
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Jurisdição e execução, p. 32
TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano, p. 98 e 99
Cfr. TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano, p. 39
TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano, p. 73 e 74
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exclusivamente ao pretor a escolha do iudex, sempre pessoa de sua confiança, demonstrando
claramente a intenção intervencionista do Estado na resolução dos conflitos intersubjetivos.
A fase in iure ganhou um novo ato, a redação da fórmula, que era realizado no
mesmo instante da nomeação do julgador da causa. A fórmula, como se sabe, deveria conter
os elementos necessários 19 para que o iudex pudesse desempenhar suas funções, isto é, a de
conhecer e julgar a lide.
Importante frisar que durante o período formular houve uma profunda
modificação política e administrativa em Roma, devido aos evidentes avanços do sistema
processual.
Mesmo com a transformação da República no Império Romano, o
procedimento formulário estendeu-se por mais de 200 anos. Entretanto, em 17 a.C., com a
reorganização do ordo iudiciorum pela lex Julia privatorum, as causas que se fundavam nas
normas do ius honorarium não estariam mais sobre a competência do iudex.
“Mais importante do que essa modificação na órbita do processo
privado, foi a unificação das instâncias: com a ingerência da cognitio
extraordinária do princeps ou de seus delegados, em determinadas
causas que careciam de tutela jurídica, o procedimento, até então
obrigatoriamente bipartido, passa a desenrolar-se, desde sua
instauração, até o final, diante de uma única autoridade estatal
(magistrado-funcionário). Assim, a decisão do magistrado, no novo
sistema processual, não mais corresponderá a um parecer jurídico
(sententia) de um simples cidadão autorizado pelas leis, mas, sim, a
um comando vinculante de um órgão estatal.” 20
Este foi o primeiro passo para a judicialização da jurisdição, entendida como o
monopólio da atividade jurisdicional pelo Estado, que, durante o Império Romano, ocorreu no
período da cognitio extra ordinem.
3.
Período da “Cognitio Extra Ordinem”
Conforme percebe ARRUDA ALVIM, o processo da cognição extraordinária (209
a.C. até o final do Império Romano) pautava-se pelo agigantamento do Estado-Juiz e a
conseqüente ingerência estatal no processo, desde o início do litígio até a sentença final 21.
Como dantes asseverado, o embrião do período da cognitio extraordinaria foi a
lex Julia, que criou a unificação das instâncias bipartidas em apenas um órgão judicial e
estatal.
A iurisdictio, antes dividida entre a atividade do pretor e a do iudex, agora
concentra-se nas mãos do Estado, representado por um magistrado-funcionário, competente
para a resolução dos litígios de natureza privada.
19
20
21
Resumo do editio formula e das postulationes do demandante e do demandado.
TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano, p. 48.
ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil, p. 46
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Muitos atribuem à passagem do período formular ao período da cognitio
extraordinaria um verdadeiro avanço processual, pois o instrumento para resolução de
conflitos (processo) sofreu reformulações que possibilitaram a investigação da causa de forma
mais adequada pelo julgador. Com a morte de Dioclesiano em 305 d.C., a arbitragem foi
completamente extinta do direito romano, entrando num ostracismo que perdurou por mais de
um milênio.
“Esse sistema perdurou por muito tempo (já com a jurisdição estatal
da cognitio extra ordinem), até que, após o retrocesso derivado das
invasões bárbaras (século das trevas = período do feudalismo), se foi
retomar timidamente na Idade Média, notadamente nas penínsulas
itálica e ibérica, a evolução jurídica no tocante a ação, processo e
direito. Nesta fase, já se reconhecia ao réu o direito a contraprova
(princípio do contraditório). A sentença era uma decorrência dos fatos
provados. A sentença só afetava as partes. Já existia o recurso de
apelação. Aqui o processo já passara a ser visto como instrumento de
realização de um Direito, todavia sem lhe ser independente.” 22
Não temos como objetivo realizar um exame aprofundado do período da
extraordinaria cognitio, pretemos somente demonstrar que ele foi o início da construção dos
processos modernos e do ideal de monopólio da jurisdição pelo Estado, exercido por seus
órgãos, exclusivamente; diga-se, por aquele dotado da função de julgar, a magistratura.
4.
O Fenômeno da Judicialização da Jurisdição
Após um período de retrocesso – processo civil romano-barbárico 23 – o
processo voltou a ser utilizado como ferramenta de resolução de conflitos, tal qual acontecia
no período da cognitio extraordinaria.
Os períodos dos glosadores (1100 até 1271) e pós-glosadores (1271 até 1400)
foram essenciais para a reconstrução dos conceitos criados pelo processo civil romano, que
revisitados e readequados possibilitaram a estruturação do embrião de nosso processo civil.
Com a gradativa formação dos Estados, como hoje os concebemos, ocorrida
entre o século XV e XVI, organizados, via de regra, em monarquias, ocorreu o fenômeno de
concentração da administração, da legislação e da jurisdição na estrutura estatal.
O absolutismo, nascido a partir da crise em que mergulhou o feudalismo,
defendia que uma pessoa, o Rei, Senhor Absoluto, deveria concentrar todo o poder do Estado
em suas mãos, em razão da delegação dos poderes de Deus diretamente ao monarca, para que
governasse na Terra.
Diversos pensadores justificaram o ideal Absolutista, dentre eles podemos
citar: Nicolau Maquiavel (1469-1527), Jean Bodin (1530-1596), Thomas Hobbes (1588-1679)
e J. Bossuet (1627-1704).
22
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito processual civil, vol. I, p. 34.
Vide por todos: ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil, vol. I, p. 47 e 48; ALVIM, Arruda. Direito
processual civil, vol I, p. 146 à 153; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito processual civil, vol. 1, p.
34 e 35.
23
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A citada institucionalização da justiça seguia estrutura ditada pelo Despota,
considerado, sempre, o senhor supremo de todos os poderes, inclusive do jurisdicional.
Logicamente que o Absolutista não era o juiz de fato de todas as causas, mas
delegava parcela deste poder a determinados sujeitos, sempre pertencentes à nobreza ou ao
clero, tais como os duques, os barões, os bispos e os cardeais. Todavia a todo instante poderia
avocar o julgamento de qualquer litígio, salvo aqueles provenientes da Santa Inquisição,
decidindo-o em primeira e última instância, privilegiando, em regra, aquele com que tivesse
maiores afinidades ou interesses.
As revoluções liberais, inspiradas pelo iluminismo, aboliram o absolutismo,
constituindo um novo ideal de governo, qual seja, o liberalismo. O poder real, a partir deste
instante, está limitado por uma Constituição e pelo Parlamento.
CHARLES-LOUIS DE SECONDAT, aristocrata francês, mais conhecido como
CHARLES DE MONTESQUIEU 24, é até hoje apontado como o principal pensador da divisão das
funções do poder estatal em três categorias: executivo, legislativo e judiciário.
“A proposta da separação dos poderes tinha duas bases fundamentais,
inicialmente à proteção da liberdade individual e de outro lado
aumentar a eficiência do Estado, haja vista uma melhor divisão de
atribuições e competências tornando cada órgão especializado em
determinada função. Todo este ideal que fora resistido de início teve
como objetivo à época diminuir o absolutismo dos governos.” 25
A teoria conhecida como tripartição dos poderes, ou como a intitulou
MONTESQUIEU, teoria da separação dos poderes, foi a grande responsável pela judicialização
da jurisdição.
Com o objetivo de ceifar o poder absoluto na mão do monarca, era necessário
pulverizar o poder estatal em diversas frentes, primando, no caso da jurisdição, pelo exercício
por um órgão independente, cujos agentes colocar-se-iam na posição de imparcialidade, com
o fito de realizar a pacificação social de acordo com as normas criadas pelo próprio Estado.
Surgia, então, a figura do Estado-juiz, entendido como órgão monopolizador da
função jurisdicional, derivado diretamente do poder estatal. Desde então, o Estado é visto
como senhor absoluto da função jurisdicional, por decorrência do próprio conceito de
soberania herdado ainda do Estado absolutista. Ninguém, além do juiz estatal, pode exercer
jurisdição sobre o território do Estado.
Essas são as premissas históricas que estabeleceram o conceito atual de
jurisdição.
24
MONTESQUIEU, Charles de. O espírito das leis, passim
SILVA, Marcus Vinicius Fernandes Andrade da. A separação dos poderes, as concepções mecanicistas e
normativas das constituições e seus métodos interpretativos. Jus Vigilantibus, Vitória, 21 ago. 2004. Disponível
em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/2182>. Acesso em: 30 mar. 2005
25
www.abdpc.org.br
5.
Referências Bibliográficas
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MÉXICO, UNAM, 1970
ALVIM, José Eduardo Carreira. Elementos de teoria geral do processo, 7ª ed., Rio de
Janeiro : Forense, 1999.
____________________. Manual de direito processual civil, vol. I, 7ª ed., São Paulo :
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BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de processo civil, Lei nº 5.869, de 11 de
Janeiro de 1973, vol. I; Rio de Janeiro : Forense, 1981.
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CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano; 14.ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 1991.
GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito. 2ª. ed. Tradução de A. M. Hespanha e L.
M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995
LOPES-CARDOSO, Álvaro. Código de Processo Civil Anotado, 2ª edição; Lisboa :
Livraria Petrony, 2004.
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MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de processo civil: tomo I, arts. 1º-45.; Rio
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SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica,
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____________________. Jurisdição e excução na tradição romano-germânica, 2ª ed. rev.;
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TUCCI, José Rogério Cruz; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de história do processo civil
romano, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1996.
WOLKMER, Antônio Carlos Wolkmer. O direito nas Sociedades primitivas, In:
Fundamentos de história do Direito, Belo Horizonte : Del Rey, 1996.
www.abdpc.org.br
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