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A IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA
Helio Chin da Silva Lemos1
RESUMO
O presente artigo tem por escopo abordar alguns aspectos da a Lei de
Impenhorabilidade do Bem de Família – Lei nº 8.009/90 - uma legislação
condizente com o direito moderno, de cunho social e humanitário, que garante que
o imóvel residencial não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial,
fiscal ou previdenciária. Esta Lei assegura aos que passam por dificuldades
financeiras uma vida digna, sem privação de sua moradia. Preconiza-se, acima de
tudo, esclarecer o tema proposto, analisando os temas controversos que o cercam
em sua aplicabilidade prática. A inserção do bem de família na legislação brasileira
pode ser considerada uma vitória social em razão de sua destacada importância,
principalmente entre as classes menos favorecidas.
PALAVRAS-CHAVE: Lei de Impenhorabilidade do Bem de Família; direito de
moradia; análise jurídica.
INTRODUÇÃO
Tendo em vista o suporte social e o valor da família, o presente artigo tem
por objetivo estudar a Lei nº 8.009/90, promulgada em 08 de março de 1990, que
instituiu a Impenhorabilidade do Bem de Família. Esta Lei, muito embora
carecedora de pormenores, necessitando de complementos, surgiu em um
momento crucial, quando o Brasil enfrentava uma séria crise econômica. Teve
grande repercussão na época.
No Brasil, o bem de família foi incluído inicialmente entre artigos 70 e 73
do Código Civil Brasileiro de 1916 e posteriormente regulou-se através da Lei nº
6.015/73, que trata dos Registros Públicos. Esta modalidade de bem de família
beneficiava uma pequena parcela da sociedade brasileira, fazendo-se necessário
1
Bacharelando no curso de Direito da Escola de Direito e Relações Internacionais das
Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil.
2
um exame detalhado dos diversos requisitos formais para que o beneficiário
fizesse jus à impenhorabilidade do bem desejado.
O artigo 1° da Lei objeto de estudo estampa seu objetivo ao assegurar
que: “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável
e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária
ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais e filhos que sejam
seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei”.
O parágrafo único do mesmo artigo revela o alcance e o objeto do instituto,
ditando que: “A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam
a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os
equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa,
desde que quitados”.
A Lei de Impenhorabilidade do Bem de Família, ao garantir que o imóvel
residencial não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal ou
previdenciária, traz em seu conteúdo normas de cunho humanitário, protegendo o
imóvel da família e garantindo àqueles que passam por dificuldades financeiras
uma vida digna, sem privação de sua moradia. E de outra forma não poderia ser,
pois o Estado tem o dever de dar amparo e proteção à família, vez que ela é a
base da sociedade por determinação Constitucional. O artigo 226 da Constituição
Federal dispõe que: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado”.
A tutela da moradia familiar tem como fundamento razões de ordem
sociológica e moral e como princípio capital a dignidade da pessoa humana.
Um dos intentos da Lei em questão é garantir condições mínimas de sobrevivência.
Segundo BOBBIO, a Lei de Impenhorabilidade do Bem de Família, juntamente com
a Lei do Inquilinato, constituem legislações que realizam e dão concretude ao
direito fundamental de moradia.2
A inserção da impenhorabilidade do bem de família na legislação brasileira
pode ser considerada uma vitória social em razão de sua destacada importância,
principalmente entre as classes menos favorecidas.
2
84.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: UNB, 1999, p.
3
O presente artigo tratará de algumas das questões mencionadas acima e
abordará temas controversos que envolvem o âmbito de aplicabilidade da Lei
objeto de estudo.
1 ORIGEM HISTÓRICA
Segundo AZEVEDO, o modelo de bem de família adotado no Brasil teve
inspiração no modelo norte-americano homestead3, instituído no ordenamento
jurídico daquele país em 1839, no Estado do Texas, quando, devido a uma grave
crise econômica, famílias emigraram para tal Estado e, com medo de serem
perseguidas pelos credores, exigiram do governo estadual garantias para sua
fixação no novo território. Acatando o pedido dos novos habitantes, o governo do
Texas declarou isentos de execução judicial por dívidas os imóveis residenciais
urbanos ou rurais de até 50 acres. Tempos depois, a maior parte dos Estados
Unidos da América já adotava o homestead.4
Para receber o título da terra era necessário cumprir alguns requisitos e,
entre os mais importantes, destacava-se a permanência no local durante cinco
anos, o cultivo e a produção da terra e a criação de benfeitorias.
Como forma de incentivo à colonização, o governo americano expediu o
homestead exemption laws, que constavam como expedientes legislativos, no qual
isentava-se o imóvel residencial da família da penhora. Este foi um dos propulsores
da colonização norte americana e obteve enorme sucesso.
Através do êxito alcançado no estado do Texas, o homestead espalhou-se
por toda a República dos Estados Unidos através da Lei Federal americana de 20
de maio de 1862. Tal sucesso ultrapassou limites territoriais, atingindo diversos
países e povos, inclusive o Brasil.
O primeiro instituto semelhante ao do bem de família, a ser introduzido no
ordenamento jurídico brasileiro, veio através do regulamento 737 de 25.11.1850, o
família”.
3
Home: casa, e stead: lugar, que na linguagem jurídica quer dizer “uma residência de
4
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família e a Lei 8.009/90. 5. ed. São Paulo: RT,
2002, p. 25.
4
qual isentava de penhora certos bens do devedor executado. Contudo, o imóvel
utilizado pelo devedor como residência não era abrangido pelo benefício.5
O bem de família foi inserido definitivamente no Código Civil de 1916,
sendo regulado de início na parte geral desta legislação no “Livro da Pessoas”, e
somente após muita discussão houve a transferência do tema para o “Livro dos
Bens”, nos artigos 70 a 73.
Com a promulgação da Lei 8.009/90, o imóvel destinado ao bem de família
garantiu-se pela regra impenhorável, ressalvadas as exceções contidas na própria
Lei. Em 2002, com a entrada em vigor do novo Código Civil, o tema foi tratado na
nova legislação civil, que trouxe nos artigos 1.711 a 1.722 algumas inovações.
Dentre elas destacam-se a possibilidade do bem de família abranger os valores
mobiliários, ser instituído por terceiros e a execução de despesas condominiais,
sendo esta última, exceção à regra da impenhorabilidade.
2 CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E CLASSIFICAÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA
AZEVEDO conceitua bem de família como sendo “um meio de garantir um
asilo à família, tornando-se o imóvel onde a mesma se instala domicílio
impenhorável e inalienável, enquanto forem vivos os cônjuges e até que os filhos
completem sua maioridade”.6
Quanto à natureza jurídica, AZEVEDO afirma que no direito brasileiro, o
bem de família “é um patrimônio especial, que se institui por ato jurídico de
natureza especial, pelo qual o proprietário de determinado imóvel, nos termos da
lei, cria um benefício de natureza econômica, com escopo de garantir a
sobrevivência da família, em seu mínimo existencial, como célula indispensável à
realização da justiça social”.7
Definida a impenhorabilidade pela Lei nº 8.009/90 e ressalvadas as
exceções nela contida, a expropriação do bem de família não existe, ocorrendo a
impossibilidade de transmissão de domínio. Isto faz com que o bem de família seja
um patrimônio com destinação específica.
5
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., 2002, p. 87.
Id. 2002, p. 93.
7
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família. 3. ed. São Paulo: RT, 1996, p. 107.
6
5
Conforme já mencionado acima, a Lei de Impenhorabilidade do Bem de Família é
norma de ordem pública, sendo, portanto, imperativa ou impositiva, não havendo,
uma vez instituído o bem de família, possibilidade de sua disposição pelas partes.
Quanto à sua classificação, o bem de família divide-se em bem de família
facultativo e em bem de família legal. A Lei 8.009/90 dispõe sobre o bem de família
legal e o Novo Código Civil, nos artigos 1.711 a 1.722, regula o bem de família
facultativo.
3 BENS TUTELADOS PELA LEI
São objetos tutelados pela Lei de Impenhorabilidade do Bem de Família: o
único imóvel residencial, urbano ou rural, destinado à moradia permanente da
entidade familiar (artigo 1º); a construção, as plantações, as benfeitorias, os
equipamentos, inclusive os de uso profissional, os móveis que guarnecem a casa,
desde que quitados (artigo 1º, parágrafo único); os bens móveis quitados do imóvel
locado, que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário
(artigo 2º, parágrafo único); a sede de moradia do imóvel rural com os respectivos
bens móveis e a área limitada como pequena propriedade rural (artigo 4º, § 2º).
Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte
e adornos suntuosos (artigo 2º), bem como as exceções previstas nos vários
incisos do artigo 3º.
O principal bem tutelado pela Lei nº 8.009/90 é, por excelência, o imóvel
residencial, próprio do casal ou da entidade familiar, nos termos de seu artigo 1º.
Para que haja a proteção, a Lei determina que o imóvel deve ser próprio e
único. Somente o imóvel no qual o proprietário e sua família residem
permanentemente está tutelado, de acordo com o artigo 5º da Lei em estudo.
É importante ressaltar que a Lei não faz nenhuma menção a respeito do
valor do imóvel residencial. Assim, conforme exemplifica CZAJKOWSKI, a Lei
abrange a possibilidade de o proprietário de uma residência luxuosa que não
cumpra o adimplemento de uma obrigação, deter os mesmos direitos e
prerrogativas daquele que não tem possibilidades de saldar suas dívidas, ainda
6
que evidente e ostensiva a exteriorização da riqueza. 8 Da mesma forma, o imóvel é
impenhorável.
Entretanto, conforme afirma NEVES, “cabe à jurisprudência corrigir as
exorbitâncias encontradas na Lei 8.009/90, pela adequada aplicação de suas
regras, segundo os métodos que a hermenêutica põe à sua disposição”.9
Na hipótese de o casal ou entidade familiar, ser possuidor de vários
imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor
valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e
na forma da lei civil, nos termos do artigo 5º, parágrafo único, da Lei nº 8.009/90.
4 PLURALIDADE DE IMÓVEIS
Dispõe o parágrafo único do artigo 5º da Lei de Impenhorabilidade do Bem
de Família que: “Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de
vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de
menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de
Imóveis e na forma do artigo 70 do Código Civil” [atual artigo 1.711 do Novo Código
Civil].
O artigo citado permite ao devedor possuir mais de um imóvel utilizado
como residência com a proteção contra a penhorabilidade, entretanto, exige a lei
que a impenhorabilidade recaia sobre o bem de menor valor.
No mesmo dispositivo, o legislador põe a salvo a hipótese de o devedor já
ter previamente instituído um de seus imóveis como bem de família. Ocorrendo
esta hipótese, o imóvel registrado no Registro de Imóveis estará resguardado pela
impenhorabilidade, independentemente de ser ou não o de maior valor.
Se o devedor possuir vários imóveis utilizados como residência e nenhum
deles estiver registrado nos moldes do Código Civil, avalia-se qual o de menor
valor, estando este e os bens móveis que o guarnecem tutelados pela
impenhorabilidade.
8
CZAJKOWSKI, Rainer. A Impenhorabilidade do Bem de Família: comentários à Lei
8.009/90. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2002, p. 50.
9
NEVES, Celso. Comentários ao Código de Processo Civil. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, v. 7, p. 20.
7
5 EXCEÇÕES À IMPENHORABILIDADE
A morada da família e determinados móveis e equipamentos que a
guarnecem são impenhoráveis de acordo com os preceitos ditados pela Lei
8.009/90. Entretanto, mesmo tutelando a entidade familiar ao salvaguardar seus
móveis e imóveis, a mesma lei estabeleceu também regras de exceção,
relacionadas nos incisos I a VII, de seu artigo 3º.
Sobre o assunto, AZEVEDO explica que:
A lei brasileira exclui da impenhorabilidade os veículos de transporte, as obras de arte e
os adornos suntuosos.
Por essa mesma lei, os bens do devedor, sem os benefícios do bem de família, podem
ser penhorados em razão de: a) crédito de trabalhadores (empregados domésticos e
trabalhadores, em geral, que prestam serviços na residência, instituída em bem de
família); b) crédito para construção ou aquisição do imóvel; c) crédito de alimentos; d)
créditos tributários, contribuições e obrigações propter rem (é passível de execução,
assim, o bem de família, em razão de débitos derivados de impostos, predial ou territorial,
taxas e contribuições, sobre esse imóvel incidentes, bem como despesas geradas por
esse imóvel, tais as de condomínio e as de construção de muro divisório); e) crédito
hipotecário (quando o imóvel é oferecido em garantia); f) aquisição criminosa (do bem de
família); g) crédito de fiança locatícia (quando o proprietário do bem é fiador, em contrato
10
de locação, dando o imóvel em garantia, criando-se, com isso, verdadeiro direito real).
É importante afirmar que tais exceções são elencadas em numerus
clausus, ou seja, são delineados de forma taxativa e restrita, não admitindo
ampliação ou interpretação extensiva. Não cabe ainda qualquer modificação ou
alteração do elenco legal. A interpretação das exceções deve ser feita sempre de
forma restritiva.
Há ainda, a previsão legal do artigo 4º, “caput”, dispondo que “não se
beneficiará do disposto nesta lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de
má-fé imóvel mais valioso Este artigo contempla o caso do devedor que, sabendo
ser insolvente, age de má-fé, transferindo a sua residência de menor valor para
outro imóvel mais valioso, justamente com o intuito de resguardá-lo da
responsabilização perante seus credores. Ocorrendo esta hipótese, SANTOS
afirma que “o aspecto ético-moral não pode ser ignorado, e deve-se atentar para as
finalidade precípuas da lei, à moral e aos bons costumes”.11
10
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., 2002, p. 75.
SANTOS, Marcione Pereira dos. Bem de Família: voluntário e legal. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 218.
11
8
6 O BEM DE FAMÍLIA NO NOVO CÓDIGO CIVIL
O Novo Código Civil, nos artigos 1.711 a 1.722 dispõe sobre o bem de
família voluntário, que assim se constitui por ato de vontade do proprietário.
É importante não confundir o bem de família voluntário ou convencional,
previsto no Código Civil, com a impenhorabilidade contemplada pela Lei nº
8.009/90, que disciplina o bem de família obrigatório, legal ou involuntário.
Segundo DINIZ, o bem de família tratado no Código Civil “é um prédio ou
parcela do patrimônio que os cônjuges, ou entidade familiar, destinam para abrigo
e domicílio desta, com a cláusula de ficar isento da execução por dívidas futuras”.12
A autora, comentando o artigo 1.71113, explica que:
Somente pessoas casadas conviventes ou integrante-chefe da família monoparental
poderão constituir bem de família. A sua instituição competirá, por exemplo, ao marido e à
mulher, tendo-se em vista que, em certas hipóteses, um deles poderá estar na chefia, se
for viúvo ou se assumiu a direção da família sozinho, ante o fato de o outro estar preso,
ter sido declarado ausente ou ter sofrido processo de interdição. Logo, pessoa solteira,
sem prole, mesmo que viva em concubinato, tutor ou curador ou avô não poderão instituir
bem de família. Mas há decisão entendendo que solteiro ou dois irmãos solteiros que
residam no mesmo imóvel têm direito de instituir bem de família, pois o solteiro pode
14
constituir família e os irmãos podem ser tidos como entidade familiar.
Ainda conforme o artigo 1.711 do mesmo Código, o patrimônio destinado
ao bem de família não deve ultrapassar um terço do patrimônio líquido total do
instituidor ao tempo da instituição. É importante ressaltar que esta regra não se
aplica ao bem de família legal regulado pela Lei nº 8.009/90, mas tão somente ao
bem de família facultativo, com previsão na legislação civil.
Ressalte-se que a impenhorabilidade prevista no Código Civil é distinta da
impenhorabilidade
estatuída
pela
Lei
nº
8.009/90.
O
Codex
regula
a
impenhorabilidade convencional, instituída por ato de vontade. Já a Lei de
Impenhorabilidade do Bem de Família regula a impenhorabilidade involuntária, que
independe de vontade e é imposta pela lei.
12
1400.
13
DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.
O artigo 1.711 do Código Civil dispõe que: “Podem os cônjuges, ou a entidade familiar,
mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de
família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição,
mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial”.
14
DINIZ, Maria Helena. Op. cit., 2006, p.1400.
9
Pode-se perceber que o Código Civil não menciona a impenhorabilidade
dos bens móveis que guarnecem a residência do devedor (hipótese tutelada pela
Lei de Impenhorabilidade). Sobre o assunto, AZEVEDO afirma que: “pelo fato de o
Código Civil ser omisso quanto à impenhorabilidade dos bens que guarnecem o
imóvel, estes deverão também ser considerados impenhoráveis”.15
7 DISCUSSÃO SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 8.009/90
A questão da constitucionalidade da Lei nº 8.009/90 deve ser vista sob
dois pontos distintos: um deles diz respeito ao conteúdo de todo o texto analisado e
outro diz respeito à inconstitucionalidade de apenas alguns de seus dispositivos,
sem prejuízo da validade e da eficácia dos demais.
Quanto à lei vista como um todo não há muitos questionamentos sobre
inconstitucionalidade, tendo em vista seu caráter social e humanitário em
consonância com a norma constitucional de proteção à moradia (artigo 6º da
Constituição Federal) e os Pactos, Convenções e Declarações internacionais sobre
o assunto. Nesse sentido é a jurisprudência abaixo:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS À PENHORA E À
EXECUÇÃO. LEI 8.009/90. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. MP. REQUISITOS
DE URGÊNCIA. IMPENHORABILIDADE. 1. Não é inconstitucional a MP 143/90, que foi
convertida na Lei 8.009/90, pois o requisito de urgência restou avaliado pelo Presidente
da República, confirmado pelo Congresso Nacional, sem impugnação consistente em
16
sede judicial, capaz de elidir a presunção de constitucionalidade do ato.
Entretanto, quando da promulgação da Lei de Impenhorabilidade do Bem
de Família, questionou-se a sua constitucionalidade em face do princípio da
sujeição do patrimônio do devedor à execução de suas dívidas. Por este princípio,
o patrimônio do devedor é a garantia do credor. Este questionamento não perdurou
em razão do objeto jurídico da Lei n° 8.009/90, que é a família do devedor e não
simplesmente o devedor. A família, base da sociedade por determinação
constitucional, dissipou as discussões sobre a constitucionalidade da Lei em
questão.
15
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., 2002, p. 204.
TRF, 3ª R., Ap. 259051, rel. Carlos Muta, p. 10.03.2004. Disponível em:
<http://www.trf.gov.br/consultas/jurisprudencia>. Acesso: 20 jul. 2008.
16
10
Quanto aos dispositivos individualmente considerados, a doutrina é
divergente em relação à constitucionalidade do inciso VII do artigo 3º da Lei de
Impenhorabilidade do Bem de Família, que permite a penhora por obrigação
decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Este inciso foi
acrescentado à Lei nº 8.009/90 pela Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991 (Lei do
Inquilinato).
Atualmente, prevalece no Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de
que é constitucional a penhorabilidade do imóvel do fiador, o que também era
acolhido pelo extinto Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, em sua maioria. As
jurisprudências, em sua maior parte, afirmam ser constitucional a exceção trazida
pela Lei de Impenhorabilidade, não afrontando o direito de moradia previsto no
artigo 6º da Constituição Federal.
O Tribunal de Justiça do Paraná já firmou posicionamento nos dois
sentidos, admitindo a penhora do bem de família do fiador em alguns casos17 e em
outros considerando a medida contrária aos preceitos do ordenamento jurídico
brasileiro.18
Na doutrina, uma posição minoritária entende a penhorabilidade do bem
de família do fiador inconstitucional, por violar o princípio da isonomia (artigo 5º,
“caput”, da Constituição Federal) e o princípio da dignidade humana (artigo 1º,
inciso III, da Constituição Federal).
Argumenta-se que o devedor principal (o locatário) não pode ter o seu bem
de família penhorado, enquanto o fiador (em regra devedor subsidiário, nos termos
do artigo 827 do Código Civil) pode suportar a constrição. A lesão ao princípio da
isonomia reside no fato da fiança ser contrato acessório, que não pode trazer mais
obrigações que o contrato principal de locação.
Argumenta-se ainda que haveria desrespeito à proteção constitucional de
moradia, prevista no artigo 6º da Magna Carta, uma das exteriorizações do
princípio da dignidade da pessoa humana.
Segundo GAGLIANO e PAMPLONA FILHO:
17
TJPR, 12ª Câm. C., Ac. 108, rel. D’artagnan Serpa As, j. 30.04.2008. Disponível em:
<http://www.tj.pr.gov.br/consultas/jurisprudencia/Jurisprudencia Resultado.asp>. Acesso: 20 jul.
2008.
18
TJPR, 11ª Câm. C., Ac. 8545, rel. Mário Rau, j. 05.12.2007. Disponível em:
<http://www.tj.pr.gov.br/consultas/jurisprudencia/Jurisprudencia Resultado.asp>. Acesso: 20 jul.
2008.
11
À luz do Direito Civil Constitucional – pois não há outra forma de pensar modernamente o
Direito Civil -, parece-nos forçoso concluir que este dispositivo de lei viola o princípio da
isonomia insculpido no artigo 5º da CF, uma vez que trata de forma desigual locatário e
fiador, embora as obrigações de ambos tenham a mesma causa jurídica: o contrato de
19
locação.
CZAJKOWSKI20 e MARMITT21 criticam explicitamente o inciso VII,
alegando haver injustiça para com o fiador ao colocá-lo em posição de inferioridade
ao locatário.
Em um ordenamento civil justo e solidário, o contrato não pode fugir de
sua concepção social, sendo certo que a interpretação de inconstitucionalidade do
inciso VII do artigo 3º da Lei de Impenhorabilidade do Bem de Família mantém
relação direta com o princípio da função social dos contratos.
O princípio da função social dos contratos está consagrado no Novo
Código Civil, artigo 421, que dispõe que: “A liberdade de contratar será exercida
em razão e nos limites da função social do contrato”. Este princípio está ligado à
proteção dos direitos inerentes à dignidade da pessoa humana e seu principal
escopo é equilibrar as relações jurídicas para que não haja preponderância de uma
parte sobre a outra.
A nova legislação civil deixa evidente que há uma nova tendência de
interpretação e aplicação das normas do Direito Civil. Nessa nova tendência, as
relações e negócios jurídicos devem atender aos anseios do princípio da função
social dos contratos, bem como aos demais princípios consagrados pela
Constituição Federal. Nesse sentido, pode-se afirmar que sendo a fiança um
contrato acessório ao contrato de locação, ambos devem ser interpretados
conforme os preceitos contidos no princípio da isonomia, no princípio da dignidade
da pessoa humana e no princípio da função social dos contratos.
19
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil.
São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 289.
20
CZAJKOWSKI, Rainer. Op. cit., 2002, p.181.
21
MARMITT, Arnaldo. Bem de Família. Rio de Janeiro: Aide:1995, p. 95.
12
8 O ESTADO CIVIL DO DEVEDOR: DEVEDORES SOLTEIROS, UNIÕES
ESTÁVEIS E FAMÍLIAS MONOPARENTAIS
A Lei nº 8.009/90 esclarece em seu artigo 1º que “o imóvel residencial
próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por
qualquer tipo de dívida (...)”. A redação da Lei, em um primeiro momento, pode
induzir as pessoas a pensar que o imóvel residencial da pessoa solteira está
excluído da proteção ao bem de família.
No
entanto,
vários
doutrinadores
posicionam-se
no
sentido
da
impenhorabilidade ser extensiva às pessoas solteiras e a jurisprudência é vasta
nesse sentido.
AZEVEDO, por exemplo, assevera que:
Entendo diferentemente desse posicionamento contrário à proteção do solteiro ou do que
vive solitariamente. Eles não podem ser excluídos da proteção da lei, porque cada
pessoa, ainda que vivendo sozinha, deve ser considerada como família, em sentido mais
estrito, já que o homem, fora da sociedade deve buscar um ninho, um lar, para proteger22
se das violências, das agruras e dos revezes que existem na sociedade.
De maneira semelhante entendem GAGLIANO e PAMPLONA FILHO,
afirmando que “o conceito legal de entidade familiar não poderia ser tão duro, sob
pena de se coroarem injustiças”.23
Discorrendo a respeito do bem de família voluntário, DINIZ afirma que
“somente
pessoas
casadas
conviventes
ou
integrante-chefe
da
família
monoparental poderão constituir bem de família (...). Logo, pessoa solteira, sem
prole, mesmo que viva em concubinato, tutor ou curador ou avô não poderão
instituir bem de família”.24
Entretanto, a mesma autora explica que “há decisão entendendo que o
solteiro ou dois irmãos solteiros que residam no mesmo imóvel têm direito de
instituir bem de família, pois o solteiro pode constituir família e os irmãos podem
ser tidos como entidade familiar”.25
22
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., 2002, p. 174-175.
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil.
4. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v.1, p. 290.
24
DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p.1400.
25
Id., 2006, p. 1400.
23
13
Nos Tribunais, o assunto é controverso, havendo julgados que entendem
que a Lei de Impenhorabilidade tutela o imóvel do devedor solteiro e outros em
sentido contrário.
Quanto às uniões estáveis e às famílias monoparentais, o artigo 226 da
Constituição Federal dispõe que: “A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado” (...). O § 3º do mesmo artigo consigna que: “Para efeito da
proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher
como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. E o
§ 4º dispõe que: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
Observa-se, portanto, que a Lei Maior reconhece a união estável e a
família monoparental, ou seja, aquela formada por um dos pais e seus filhos, como
entidade familiar.
Assim, pode-se afirmar que a Lei nº 8.009/90, ao resguardar o imóvel
residencial da entidade familiar de eventuais penhoras, abrange neste conceito as
uniões estáveis e as famílias monoparentais.
DINIZ, discorrendo sobre a constituição do bem de família convencional,
afirma que “pode o bem de família ser constituído: a) pelos cônjuges, ou
conviventes, ou, ainda, pelo integrante-chefe da família monoparental (...)”.26
Tratando-se do bem de família facultativo ou voluntário, que constitui-se
pelo registro de seu título no Registro de Imóveis, é importante mencionar que a
Lei de Registros Públicos não exige a comprovação da existência da família ou
entidade familiar, bastando uma simples declaração. A ausência desta formalidade
facilita a instituição do bem de família pelos conviventes da união estável, vez que
esta é uma união informal que não se comprova por certidão como ocorre no
casamento.
A aceitação pelo Direito de outros tipos de família, diversos da entidade
familiar tradicional, tornou-se imprescindível. Famílias constituídas por pais ou
mães solteiras ou famílias não casadas pelo regime civil, devem receber amparo
da legislação assim como as famílias tradicionais, sob pena de a Lei se tornar
obsoleta e não acompanhar a evolução social.
26
DINIZ, Maria Helena. Op. cit., 2006, p.1401.
14
CONCLUSÃO
A promulgação da Lei de Impenhorabilidade do Bem de Família constituiu
uma vitória social e sua importância na sociedade de consumo atual é
inquestionável. Com o nascimento desta lei especial, a constituição do bem de
família deixou de depender da iniciativa dos chefes de família, conforme prescrevia
o Código Civil de 1916, passando a ser constituído pelo Estado. Antes da Lei n°
8.009/90, nem sempre os chefes de família precaviam-se de eventuais penhoras
que lhe tomavam sua moradia e de sua família.
Em um sistema capitalista no qual o objetivo das pessoas é a acumulação
de riquezas, estando a aquisição de bens no topo das necessidades humanas, é
imprescindível a existência de uma legislação protetiva da moradia e de valores
extra-patrimoniais como a dignidade da pessoa humana. É dever do Estado, diante
da atual oferta arraigada de produtos e serviços, móveis e imóveis, não permitir
que uma pessoa comprometa todo seu patrimônio. É dever do Estado, ao
consagrar a família como base da sociedade, não permitir que o devedor deixe sua
família desabrigada.
Por todos os aspectos, positivos e negativos, sobre a possibilidade ou não
da penhora do bem de família, concluí-se pela relevância do tema e pelo caráter
enriquecedor de seu estudo.
É certo que a Lei de Impenhorabilidade do Bem de Família não pretende,
em hipótese alguma, incentivar a inadimplência do devedor, dando-lhe meios para
se utilizar do subterfúgio da impenhorabilidade, mas sim, garantir ao devedor e sua
família que não sejam privados de sua moradia. A meta principal da Lei nº
8.009/90, ao garantir que o lar da família não será objeto de constrição judicial, é
resguardar a entidade familiar e seu equilíbrio, vez que esta é a base da sociedade
por determinação constitucional.
E para que haja equilíbrio no ordenamento jurídico, a própria Lei de
Impenhorabilidade contém exceções, evitando assim a má-fé por parte do devedor
e o grave prejuízo por parte do credor.
15
REFERÊNCIAS
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_____. Bem de Família: com comentários à Lei 8.009/90. 5.ed. São Paulo: RT,
2002.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: UNB, 1999.
CZAJKOWSKI, Rainer. A Impenhorabilidade do Bem de Família. 3. ed. Curitiba:
Juruá, 1998.
_____. A Impenhorabilidade do Bem de Família. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2002.
DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito
Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 1 v.
MARMITT, Arnaldo. Bem de Família. Rio de Janeiro: Aide, 1995.
NEVES, Celso. Comentários ao Código de Processo Civil. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1999. 7 v.
SANTOS, Marcione Pereira dos. Bem de Família: voluntário e legal. São Paulo:
Saraiva, 2003.
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ. Consulta à jurisprudência. Disponível em:
<http://www.tj.pr.gov.br/consultas/jurisprudencia/JurisprudenciaResultado.asp>.
Acesso: 20 jul. 2008.
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL 3ª REGIÃO. Consulta à jurisprudência.
Disponível em: <http://www.trf.gov.br/consultas/jurisprudencia>. Acesso: 20 jul.
2008.
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