DANOS PUNITIVOS: HIPÓTESES DE APLICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO Thiago Carvalho Borges1 Resumo: O presente artigo trata a recepção dos punitive damages no direito brasileiro, a partir de análise da doutrina especializada e da jurisprudência, indicando algumas hipóteses de aplicação Abstract: This article deals with the receipt of punitive damages under Brazilian law, based on expert analysis of the doctrine and judicial cases, indicating some situations of implementation Sumário: Introdução. 1. Punitive Damages. 2. Responsabilidade Civil e Punição. 3. Fundamentos para Aplicação dos Punitive Damages no Brasil. 3.1. Punitive damages, dissuasão, reincidência e danos em massa. 3.2. Punitive damages e abuso do poder econômico. Conclusões. Introdução O problema da indenização por danos morais vive atualmente na jurisprudência e doutrina brasileiras novos debates. Após superar as discussões sobre a indenizabilidade do dano moral e sua cumulatividade com a indenização por danos materiais, novos problemas aparecem, movidos pelas decisões judiciais em temas como a distinção e a cumulatividade da indenização por dano moral com aquela decorrente do dano estético; o reconhecimento, ou não, do dano moral sofrido pela pessoa jurídica; e a aplicação de indenização com caráter punitivo. É sobre este último tema que trataremos, brevemente, apenas com o objetivo alimentar o debate. Como se sabe, nos últimos anos muito se tem produzido na academia brasileira sobre os chamados danos punitivos, nomenclatura oriunda dos punitive damages do common law. Destacamos na literatura nacional os livros de Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. O problema, entretanto, não é somente do Direito brasileiro, havendo também diversas obras estrangeiras sobre o tema, como Sunstein et al. “Punitive Damages: how juries decide”. No sistema brasileiro de responsabilidade civil, os punitive damages são aplicados como um misto entre a tutela inibitória e a tutela punitiva, rompendo com o paradigma do caráter reparatório ou compensatório de origens romanas com fundamento na restitutio in integrum. Além da celeuma sobre a aplicabilidade ou não da indenização com caráter punitivo no Brasil, mesmo entre aqueles que defendem a utilização da prática existem divergências quanto às 1 Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra, Portugal. Professor da Faculdade Baiana de Direito, da UniJorge e da Unifacs. Advogado. 1 hipóteses em que se deve aplicar, bem como quanto ao destinatário do montante fixado a tal título. Trataremos, com brevidade, sobre estes três pontos, remetendo o leitor, sempre que necessário, a outras fontes literárias para aprofundamento. Assim, o trabalho se divide em três partes. A primeira trata do conceito de punitive damages e sua aplicabilidade nos Estados Unidos e recepção na doutrina e na jurisprudência brasileiras. Na segunda parte, trataremos sobre a responsabilidade civil no Brasil e o caráter punitivo da indenização conforme a ordenamento nacional. Por fim, na última parte, teceremos algumas críticas sobre a forma como se dão as decisões no Brasil em matéria de danos punitivos, apontando algumas situações que entendemos possível a adoção do instituto em consonância com o sistema jurídico pátrio, passando a seguir às conclusões finais. 1. Punitive Damages Grande parte da doutrina estrangeira e nacional remete a origem dos punitive damages ao caso Wilkes v. Wood, de 1763, no direito inglês, cujo relato pode ser encontrado, entre outros, em ANDRADE2. Entretanto, foi no direito norteamericano que os danos punitivos se desenvolveram no decorrer do século XX e se tornaram um modelo seguido em vários ordenamentos. Ocorre que sistema de responsabilidade civil dos Estados Unidos é completamente diferente daqueles da família do civil law. Ainda assim, no common law a medida é excepcional3, prevalecendo o formato dos compensatory damages, assemelhado com o sistema reparatório que prevalece nos ordenamentos da família do civil law. O valor da indenização nos compensatory damages deve ser exatamente igual ao total da perda da vítima nos danos patrimoniais, ou uma compensação pela dor e sofrimento nos casos de danos não quantificáveis.4 Somente após todo o processo de responsabilidade, que apura a causalidade e determina a compensação/reparação, é que os danos punitivos serão 2 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral e Indenização Punitiva: os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2009, p. 178-179. 3 Em SUNSTEIN et al. Punitive Damages: how juries decide. Chicago/Londres, The University of Chicago Press, 2002, George L. Priest afirma, na introdução, p. 8, que “in conception, punitive damages are regarded as an extraordinary remedy – available and appropriately awarded in only a small number of cases”. 4 Idem, p. 9-10. 2 apreciados. O procedimento difere entre os Estados americanos, alguns inserindo as questões de danos punitivos no mesmo procedimento dos compensatory damages, outros adotando um procedimento bifurcado, fazendo-se um julgamento separado para os punitive damages. Alguns Estados ainda deixam que as partes decidam que procedimento querem seguir.5 No julgamento dos punitive damages, normalmente decididos por um júri civil, as instruções sobre as questões que devem ser levantadas para o corpo de jurados sempre giram em torno da gravidade da culpa do agente, da repreensibilidade de sua conduta e do efeito dissuasivo. Percebe-se, desta maneira, que o que se pretende com a aplicação de uma pena civil ao agente é punir um comportamento culposo e desestimular o comportamento desviante. Em síntese, nos Estados Unidos o conceito de punitive damages, trazido por PROSSER; WADE; e SCHWARTZ, também chamados de vindictive (vingativos) ou de exemplary (exemplares) damages, ou ainda de smart money (dinheiro esperto), “consiste em uma soma adicional, além da compensação ao réu pelo mal sofrido, que lhe é concedida com o propósito de punir o acusado, de adverti-lo a não repetir o ato danoso e para evitar que outros sigam seu exemplo”6. No Brasil, a aplicação de indenização com caráter punitivo ganhou muitos adeptos, desde os já clássicos manualistas, como Caio Mário da Silva Pereira, Maria Helena Diniz e Silvio Rodrigues, até os novos autores de obras voltados para cursos de graduação e concursos públicos, como Sérgio Cavalieri Filho e Silvio de Salvo Venosa, além de outros tantos autores de artigos e monografias publicados em quantidade pelo Brasil a fora. Contrários à tese, pode-se citar Maria Celina Bodin de Moraes, Adriano Stanley Rocha Souza e Anderson Schreiber, além dos mais clássicos Orlando Gomes, Pontes de Miranda e José de Aguiar Dias. De um modo geral, os doutrinadores que reconhecem a aplicabilidade dos punitive damages ao Direito brasileiro sustentam que “a indenização punitiva do dano moral surge como reflexo da mudança de paradigma da responsabilidade civil e atende a dois objetivos bem definidos: a 5 Idem, p. 10. Cinco Estados, entretanto, não adotam o punitive damages: New Hampshire, Nebraska, Massachusetts, Washington e Louisiana. 6 PROSSER; WADE; e SCHWARTZ. Torts: cases and materials. 9th edition. New York : New Foundation Press, 1994, p. 530-531. No mesmo sentido, BARNES; BEST. Basic Tort Law: cases, statutes, and problems. New York : Aspen Publishers, 2003, p. 606: “Punitive damages are intended to punish defendants or to deter defendants from engaging in similar conduct rather than to compensate the plaintiff”. 3 prevenção (através da dissuasão) e a punição (no sentido de redistribuição)7”. Sem adotar uma posição clara, mas assumindo a aplicabilidade dos danos punitivos, RIZZARDO afirma que “embora se deva objetivar o desestímulo das ofensas (theory of deterrance do direito inglês), não se deve imprimir à reparação o exagerado caráter de punição, ou valorizar demais o sentido de exemplary damages, que excepcionam a regra geral de que as perdas e danos servem apenas para reparar o prejuízo causado; mesmo que inerente a dupla finalidade de punição do agente e compensação pela dor sofrida, impõe-se dar realce ao segundo fator, que é o que se busca com a demanda”8. Por outro lado, MORAES, considerando os punitive damages como “uma figura anômala, intermediária entre o direito civil e o direito penal”, sustenta que, se “aplicado indiscriminadamente a toda e qualquer reparação de danos morais, coloca em perigo princípios fundamentais de sistemas jurídicos que têm na lei a sua fonte normativa, na medida em que se passa a aceitar a idéia, extravagante à nossa tradição, de que a reparação já não se constitui como o fim último da responsabilidade civil, mas a ela se atribuem também, como intrínsecas, as funções de punição e dissuasão, de castigo e prevenção”.9 Mas a Autora não exclui totalmente a possibilidade de aplicação da indenização punitiva ao afirmar: “para que se verifique a amplitude do caráter punitivo da reparação pelo dano moral na jurisprudência brasileira, dois critérios, mas do que outros, devem ser levados em consideração: de um lado, a gradação da culpa e, de outro, o nível econômico do ofensor”10. Em sentido totalmente contrário à aplicação dos punitive damages no Brasil, SOUZA aduz que “a esfera cível cuida do interesse do particular que foi lesado, e busca restabelecer o seu status quo ante patrimonial; a esfera penal cuida do interesse do Estado, em manter a paz social e fazer o agressor, pelo cumprimento da pena, seja readaptado ao convívio social. Esta última, diferentemente da sentença cível, tem caráter pedagógico, já que se espera que a sociedade se sinta desestimulada a praticar aquele ato, diante da pena sofrida pelo seu autor.”11 7 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo : Atlas, 2008, p. 94. RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2007, p. 270. 9 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife : Renovar, 2007, p. 258. 10 Idem, p. 259. 11 SOUZA, Adriano Stanley Rocha. “O Fundamento Jurídico do Dano Moral: princípio da dignidade da pessoa humana ou punitive damages?” em Direito Civil – princípios jurídicos no direito privado. Atualidades III. Belo Horizonte : Del Rey, 2009, p. 260. 8 4 No mesmo caminho segue GONÇALVES, ao afirmar que “não se justifica, pois, como pretendem alguns, que o julgador, depois de arbitrar o montante suficiente para compensar o dano moral sofrido pela vítima (e que, indireta e automaticamente, atuará como fator de desestimulo ao ofensor), adicione-lhe um plus a titulo de pena civil, inspirando-se nas punitive damages do direito norteamericano.”12 Nos tribunais nacionais não é menor a adesão à aplicação dos punitive damages, já se podendo dizer ser cediço que no Superior Tribunal de Justiça é pacífico o entendimento quanto ao cabimento de sua aplicação. Como um exemplo deste fato, veja-se o recente julgado da Quarta Turma: CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANO MORAL. PUBLICAÇÃO EM REVISTA SEMANAL DE CIRCULAÇÃO NACIONAL DE INFORMAÇÃO QUE ATINGE A IMAGEM DE EMPRESA COMERCIAL. DANO AFERIDO NA ORIGEM A PARTIR DOS ELEMENTOS FÁTICO-PROBATÓRIOS CARREADOS NOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO. SÚMULA 07/STJ. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 165, 458 E 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. QUANTUM DA INDENIZAÇÃO. VALOR EXORBITANTE. REDUÇÃO.POSSIBILIDADE. 1. Não se verificam violações aos arts. 165, 458 e 535 do CPC quando o acórdão impugnado examina e decide, fundamentadamente e de forma objetiva, as questões relevantes para o desate da lide. 2. Nos termos da jurisprudência consolidada desta Corte Superior, bem como do Pretório Excelso, o prazo decadencial e a responsabilidade tarifada, previstos na Lei de Imprensa, não foram recepcionados pela Constituição de 1988. (Precedentes: RE n.º 447.584/RJ, Rel. Min. Cezar Peluzo, Segunda Turma, DJU de 16/03/2007; REsp n.º 579.157/MT, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, Quarta Turma, DJU de 11/02/2008; e REsp 625.023/PE, Rel. Min. Massami Uyeda, Quarta Turma, DJU de 26/02/2007). 3. O critério que vem sendo utilizado por essa Corte Superior na fixação do valor da indenização por danos morais, considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido, bem como que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito. 4. Estando assentada pelas instâncias de cognição a existência do dano à imagem da empresa ora recorrida, oriundo do ato praticado pela ora recorrente, revela-se indiferente ter ou não a Corte de 12 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol IV. 4ª ed. São Paulo : Saraiva, 2009, p. 381. 5 origem fundamentado a indenizabilidade pela ofensa no dispositivo legal mais apropriado para tanto, máxime porque inarredável a aplicação à hipótese do art. 159 do Código Civil de 1916. 5. Resultando as conclusões da Corte a quo, acerca da ocorrência do dano moral, do conjunto fático probatório carreado nos autos, sua revisão se revela tarefa interditada à esta Corte Superior, na via especial, nos termos do verbete sumular n.º 07/STJ. 6. Todavia, cabe a alteração do quantum indenizatório quando este se revelar como valor exorbitante ou ínfimo, consoante iterativa jurisprudência desta Corte Superior de Justiça. 7. In casu, o Tribunal de Origem condenou a ré ao pagamento de “720 dias-multa, calculado o dia-multa à base de dez vezes o valor do salário mínimo vigente no mês de dezembro de 1995 devidamente corrigido até a data do efetivo pagamento” (fl.421), o que considerando os critérios utilizados por este STJ, ainda se revela extremamente excessivo. 8. Dessa forma, considerando-se as peculiaridades deste caso, os princípios jurisprudenciais desta eg. Corte Superior na fixação do quantum indenizatório a título de danos morais, rejeita-se o critério adotado pelo eg. Tribunal de Origem por analogia ao Direito Penal e se fixa o valor do dano moral na quantia de R$ 46.000,00- (quarenta e seis mil reais), corrigidos monetariamente a partir desta decisão, acrescido dos juros legais nos termos da Súmula 54 deste Superior Tribunal de Justiça. 9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido. (REsp 334.827/SP, Rel. Ministro HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/AP), QUARTA TURMA, julgado em 03/11/2009, DJe 16/11/2009) (grifo nosso) Observa-se que a indenização punitiva é aplicável aos danos morais, adicionando-se um valor a este título àquele arbitrado para fins de compensação à vítima. Conforme o acórdão acima, a jurisprudência da Corte Superior recomenda que sejam levados em conta os critérios “condições pessoais e econômicas das partes” e “desestímulo à repetição”, sem levar ao enriquecimento sem causa do ofendido, usando de moderação e razoabilidade, atentando para a realidade da vida e as nuances do caso concreto. Por outro lado, o mesmo Superior Tribunal de Justiça já entendeu que os punitive damages não são aplicáveis às perdas e danos materiais na decisão que ficou ementada da seguinte maneira: CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. VALORES DESVIADOS PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DA CONTA CORRENTE DO DEPOSITANTE. Os danos a serem indenizados pela instituição financeira são aqueles decorrentes da transferência não justificada de fundos do correntista (a respectiva quantia nominal e os juros remuneratórios de um por 6 cento ao mês) e as despesas (juros e tarifas) que em função do correspondente saldo negativo o depositante teve de suportar, mais (+) a correção monetária e os juros de mora de 0,5% (meio por cento) ao mês na vigência do Código Civil anterior e os juros moratórios a partir da vigência do atual Código Civil na forma do respectivo art. 406. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (REsp 447.431/MG, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 28/03/2007, DJ 16/08/2007 p. 285) Em seu voto, vencedor por maioria13, o Ministro Ari Pargendler sustentou que “no Brasil a indenização de perdas e danos não tem função punitiva. Mesmo nos Estados Unidos da América do Norte, esse instituto supõe uma carga de dolo (Usos e Abusos da Função Punitiva (punitive damages) e o Direito brasileiro, Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler, Revista do CEJ nº 28, p. 15/32), inexistente na espécie, na qual o perito esclareceu que os descontos estavam previstos ‘implicitamente no contrato de cheque especial’“. Em outro precedente, o Superior Tribunal de Justiça reforçou como limite à aplicação da indenização com caráter punitivo o enriquecimento sem causa da vítima do dano, como se vê na ementa a seguir: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. ACIDENTE DE TRÂNSITO COM VÍTIMA FATAL. ESPOSO E PAI DAS AUTORAS. IRRELEVÂNCIA DA IDADE OU ESTADO CIVIL DAS FILHAS DA VÍTIMA PARA FINS INDENIZATÓRIOS. LEGITIMIDADE ATIVA. QUANTUM DA INDENIZAÇÃO. VALOR IRRISÓRIO. MAJORAÇÃO. POSSIBILIDADE. DESPESAS DE FUNERAL. FATO CERTO. MODICIDADE DA VERBA. PROTEÇÃO À DIGNIDADE HUMANA. DESNECESSIDADE DE PROVA DA SUA REALIZAÇÃO. 1. É presumível a ocorrência de dano moral aos filhos pelo falecimento de seus pais, sendo irrelevante, para fins de reparação pelo referido dano, a idade ou estado civil dos primeiros no momento em que ocorrido o evento danoso (Precedente: REsp n.º 330.288/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, DJU de 26/08/2002) 2. Há, como bastante sabido, na ressarcibilidade do dano moral, de um lado, uma expiação do culpado e, de outro, uma satisfação à vítima. 3. O critério que vem sendo utilizado por essa Corte Superior na fixação do valor da indenização por danos morais, considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à 13 Voto vencido da Ministra Nanci Andrighi, que entendeu que “a remuneração do indébito à mesma taxa praticada para o cheque especial se justifica, por sua vez, como a única forma de se impedir o enriquecimento sem causa pela instituição financeira”. 7 realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido, bem como que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito. 4. Ressalte-se que a aplicação irrestrita das "punitive damages" encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la expressamente, mais especificamente, no art. 884 do Código Civil de 2002. 5. Assim, cabe a alteração do quantum indenizatório quando este se revelar como valor exorbitante ou ínfimo, consoante iterativa jurisprudência desta Corte Superior de Justiça. 6. In casu, o tribunal a quo condenou os recorridos ao pagamento de indenização no valor de 10 salários mínimos a cada uma das litisconsortes, pela morte do pai e esposo das mesmas que foi vítima fatal de atropelamento pela imprudência de motorista que transitava em excesso de velocidade pelo acostamento de rodovia, o que, considerando os critérios utilizados por este STJ, se revela extremamente ínfimo. 7. Dessa forma, considerando-se as peculiaridades do caso, bem como os padrões adotados por esta Corte na fixação do quantum indenizatório a título de danos morais, impõe-se a majoração da indenização total para o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), o que corresponde a R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais) por autora. 8. Encontra-se sedimentada a orientação desta Turma no sentido de que inexigível a prova da realização de despesas de funeral, em razão, primeiramente, da certeza do fato do sepultamento; em segundo, pela insignificância no contexto da lide, quando limitada ao mínimo previsto na legislação previdenciária; e, em terceiro, pelo relevo da verba e sua natureza social, de proteção à dignidade humana (Precedentes: REsp n.º 625.161/RJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, DJU de 17/12/2007; e REsp n.º 95.367/RJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU de 03/02/1997) 9. Recurso especial provido. (REsp 210.101/PR, Rel. Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ FEDERAL CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 20/11/2008, DJe 09/12/2008) (gripo nosso) Em síntese, estabelecidos os limites e critérios vistos, o Superior Tribunal de Justiça aplica os punitive damages em larga escala aos danos morais, no que é seguido pela maior parte dos Tribunais nacionais. 2. Responsabilidade Civil e Punição. Não é estranha ao sistema brasileiro a previsão legal de indenizações com caráter punitivo. O Código Brasileiro de Telecomunicações, Lei n. 4.117/62, já indicava no art. 84 que 8 “Art. 84. Na estimação de dano moral, o juiz terá em conta, notadamente, a posição social ou política do ofendido, a situação econômica do ofensor, a intensidade do ânimo de ofender, a gravidade e a repercussão das ofensas”. Na mesma linha, a Lei de Imprensa, Lei n. 5.250/67, dispunha que “Art. 53. No arbitramento da indenização em reparação do dano moral, o juiz terá em conta, notadamente: I - a intensidade do sofrimento do ofendido, a gravidade, a natureza e repercussão da ofensa e a posição social e política do ofendido; II - A intensidade do dolo ou o grau da culpa do responsável, sua situação econômica e sua condenação anterior em ação criminal ou cível fundada em abuso no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação; III - a retratação espontânea e cabal, antes da propositura da ação penal ou cível, a publicação ou transmissão da resposta ou pedido de retificação, nos prazos previstos na lei e independentemente de intervenção judicial, e a extensão da reparação por esse meio obtida pelo ofendido. No Código Civil brasileiro pode-se verificar algumas hipóteses de pena civil, como no caso do art. 608: “Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos”. Ou mesmo no Título da Responsabilidade Civil, ao estipular que Art. 939. O credor que demandar o devedor antes de vencida a dívida, fora dos casos em que a lei o permita, ficará obrigado a esperar o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros correspondentes, embora estipulados, e a pagar as custas em dobro. Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.14 Portanto, não foge totalmente ao sistema brasileiro de responsabilidade o caráter punitivo da indenização, nem mesmo a atribuição do valor pago a este título à vítima, sem configurar, contudo, enriquecimento sem causa. O que é de causar alguma polêmica é o fato de os 14 O caráter punitivo destes dispositivos pode ser confirmado pela leitura do art. 941: “As penas previstas nos arts. 939 e 940 não se aplicarão quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, salvo ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido”. 9 tribunais aplicarem indiscriminadamente os punitive damages sem previsão legal expressa da hipótese. Um fundamento legal que se pode encontrar, em sentido aberto, está, em parte, na tutela inibitória, que se volta para a prevenção ou cessação do dano, conforme MARINONI “(...) o problema é a prevenção da prática, da continuação ou da repetição do ilícito”15, e tem fundamento no art. 5°, XXXV, da Constituição Federal de 1988, que garante a proteção judicial contra a ameaça a direito. No plano infraconstitucional, o Código de Processo Civil, no art. 461, e o Código de Defesa do Consumidor, no art. 84, dispõem sobre a tutela específica inibitória. No Código Civil, o art. 12 determina que “pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão a direito da personalidade, e reclemar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”, conferindo a abertura necessária para se buscar a indenização com caráter punitivo com fundamento na tutela inibitória. No que tange à fixação do valor da indenização por dano moral, a norma codificada é abrangente, como se percebe no art. 946 “Se a obrigação for indeterminada, e não houver na lei ou no contrato disposição fixando a indenização devida pelo inadimplente, apurar-se-á o valor das perdas e danos na forma que a lei processual determinar” 3. Fundamentos para Aplicação dos Punitive Damages no Brasil Fato relevante que não deve passar esquecido é que no sistema de civil law desenvolveu-se a dicotomia entre Direito Civil e Direito Penal como forma de limitar o espectro de atuação do Estado sobre a liberdade e os bens das pessoas, por meio da garantia dos direitos fundamentais. O surgimento do Code Napoleón estabeleceu um paralelismo entre a responsabilidade penal, tipificante, legalista, restritiva e de ultima ratio, e a responsabilidade civil, abstrata, aberta, ampliativa e de aplicação irrestrita. Com isto, o caráter punitivo do ordenamento ficou destinado às normas penais (ainda que derivadas do direito administrativo ou tributário), ao passo que a sanção civil ficou com a finalidade reparatória ou compensatória em face dos danos sofridos pela vítima. É bom lembrar, ainda, que a responsabilidade civil oitocentista possuía um objetivo moralizador, fundada que era na culpa do agente, refletindo a origem medieval da repressão ao comportamento desviante. No decorrer do século XX, entretanto, a responsabilidade objetiva ampliou seu campo de atuação a tal ponto de 15 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitória (individual e coletiva). São Paulo : RT, 1998, p.26 10 entrarmos no século XXI observando, na prática, um contingente de casos de responsabilidade objetiva muito mais numeroso que os de responsabilidade subjetiva16. A responsabilidade civil contemporânea caminha no sentido de objetivação da tutela e, portanto, buscando afirmar a proteção da pessoa humana como finalidade precípua do dever de indenizar. A indenização com caráter punitivo ressuscita a culpa como elemento da responsabilidade civil, servindo agora não mais como critério essencial para a reparação, mas como elemento sine qua non da punição que será aplicada ao autor do dano moral. Neste sentido, é primordial ressaltar que a admissão da aplicabilidade excepcional do punitive damage no Direito brasileiro não representa o ressurgimento da responsabilidade subjetiva em detrimento da responsabilidade objetiva, que continua representando o grande avanço do ordenamento civil no sentido de garantir a proteção da pessoa humana ante o descompasso entre o avanço tecnológico e a adaptação do contexto jurídico da sociedade. Ademais, estamos com Maria Celina Bodin de Moraes ao sustentar a extraordinariedade da medida, cuja aplicação indiscriminada põe em questão toda a lógica do sistema civil. Daí a posição titubeante de Arnaldo Rizzardo, vista acima, que admite a aplicação da punição, mas pede que seja realçado o caráter compensatório em detrimento do disciplinador. Como se viu, a doutrina é massiçamente favorável à aplicação dos punitive damages no Brasil, mas não há muito desenvolvimento acerca dos critérios para esta aplicação. Neste sentido, ANDRADE tenta organizar alguns argumentos, mas acaba caindo em contradição ao enumerar como pressupostos da indenização punitiva a ocorrência de dano moral; culpa grave do ofensor; e a obtenção de lucro com o ato ilícito, mas defende a aplicação de indenização punitiva no seguinte caso hipotético: “Imaginem-se dois acidentes de trânsito, o primeiro, causado por motorista que tem habilitação há anos, sem uma única infração, que dirigia em velocidade compatível com o local, mas, por inexplicável imperícia na mudança de marchas, perdeu o controle do automóvel em uma curva e colidiu com outro veículo. O motorista prontamente 16 Embora a regra geral do Direito brasileiro seja da responsabilidade subjetiva, pela norma que se extrai da combinação entre o art. 186 e o art. 927, caput, do Código Civil, e a responsabilidade objetiva seja apenas a exceção, como se depreende do texto da cláusula geral do art. 927, parágrafo único, que determina que são casos de responsabilidade civil objetiva os decorrente de danos causados por atividades de risco, além de outros expressamente previstos em lei, na prática o número de casos de responsabilidade objetiva é sensivelmente maior por causa da política legislativa que estabelece entre os casos legais de responsabilidade objetiva as situações que causam danos em massa, como a responsabilidade do fornecedor nas relações de consumo ou a responsabilidade do Estado. 11 socorre a vítima, levando-a ao hospital, dando-lhe toda assistência necessária e demonstrando grande consternação com o ocorrido. O segundo acidente é causado por motorista que, após ingerir bebida alcoólica em quantidade acima da permitida pelas leis de trânsito, dirigia seu automóvel em rua movimentada, em excesso de velocidade, apostando corrida com outro veículo, o que fez com que perdesse o controle e atingisse um terceiro automóvel. Após o acidente, o motorista tenta se evadir do local sem prestar auxílio à vítima, só não o conseguindo porque é alcançado pela polícia. Em nenhum momento o motorista causador do acidente demonstra arrependimento, e até manifesta indiferença pelo ocorrido. Assumindo que as vítimas de ambos os acidentes hipotéticos sofreram lesões igualmente graves e abstraindo qualquer outra possível diferença relevante entre as situações, atentaria contra o senso comum condenar os dois motoristas ao pagamento de igual valor de indenização por dano moral. Repugnaria ao sentimento de justiça atribuir igual peso a condutas tão desiguais, porque tão diferentemente censuráveis.”17 A contradição é evidente, pois no exemplo citado pelo próprio autor não há qualquer circunstância de obtenção de lucro com o ato ilícito. Trata-se de apenas um dos muitos casos em que o juiz cível deve ficar adstrito a aplicar a indenização repatatória- compensatória e deixar que o juízo penal e administrativo promovam a devida punição da conduta socialmente indesejada. Não pode, porque arbitrário, autoritário e antidemocrático, querer o juiz de uma questão de responsabilidade civil querer, simplesmente por entender repulsivo um ato, aplicar uma punição não prevista na lei e sem qualquer fundamento no ordenamento, utilizando como argumento apenas o “atentado ao senso comum” ou o “sentimento de justiça”. Na jurisprudência também não é menor a insegurança na aplicação dos danos punitivos, posto que se impõe o enriquecimento sem causa como limite da indenização, mas não se explica como é possível evitá-lo ao se fazer qualquer aumento na indenização que ultrapasse aquilo que se entende como suficiente para compensar. Com efeito, o enriquecimento sem causa ocorre quando se dá qualquer acréscimo patrimonial sem justa causa jurídica18. Se o juiz arbitra um valor que entende satisfatório para a compensação do dano moral, ao estabelecer qualquer aumento, sem fundamento no ordenamento, estará criando uma situação de enriquecimento sem causa por parte da vítima. 17 ANDRADE, Ob. Cit., p. 240. Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. 18 12 Isto sem falar, em relação ao agente, na inobservância do art. 5°, XXXIX, da Constituição Federal que dispõe que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Em grande parte das vezes as indenizações não são calculadas em duas partes, uma compensatória e outra punitiva, o que dificulta a defesa. Desde a petição inicial já se formula um único pedido de indenização, incorporando o aspecto reparatório-compensatório e o caráter punitivo. A sentença é proferida no mesmo sentido, aplicando uma condenação em bloco, sem distinguir o quantum de cada espécie. Esta prática dificulta não somente a defesa e a possibilidade de recurso, mas também a julgamento do magistrado sobre o valor atribuído em caráter de punição. Neste sentido, entendemos que a aplicabilidade dos danos punitivos no Direito brasileiro deve ser baseada nas funções social e econômica da propriedade que, incidindo sobre a responsabilidade civil, conferem-lhe um poder de limitar o exercício do direito pelo titular quando ele for abusivo. Assim, o juiz somente poderia aplicar uma indenização em caráter punitivo quando o agente auferisse vantagem econômica com a prática do ilícito, com fundamento no princípio da justiça corretiva e na tutela inibitória. Desta maneira, a responsabilidade civil cumpriria a função de evitar o abuso do poder econômico e garantir a justiça na concorrência. 3.1. Punitive damages, dissuasão, reincidência e danos em massa Como foi visto, a doutrina e a jurisprudência nacionais concordam que a aplicação dos punitive damages tem um caráter pedagógico, dissuasivo da reincidência19. Entretanto, nem é rara a preocupação nas fundamentações com os riscos de reincidir apresentados pela agente. Aplicase indiscriminadamente a punição com o argumento do desestímulo à repetição do ilícito mesmo que o autor do dano não apresente qualquer indício de que possa vir a fazê-lo. Ficam 19 De acordo com VENOSA,“Não se identifica, em princípio, esse aspecto dissuasório, com o aspecto didático ou pedagógico. A condenação por dano moral pode incutir no sentimento social o caráter de ilicitude em determinada conduta, mormente quando esse aspecto não é muito conhecido no meio social. Para que essa finalidade pudesse ser atingida plenamente, há necessidade de que, de lege ferenda, permita-se ao julgador determinar a publicação da sentença em veículos que atinjam determinados segmentos mais ou menos amplos da sociedade, como consectário da condenação. Nem sempre a imprensa noticia decisões importantes e, quando o faz, peca com freqüência por não informar corretamente.” (VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. Vol IV. 7ª ed. São Paulo : Atlas, 2007, p. 288) 13 apenas os argumentos, sem qualquer aproximação com o caso concreto que justifique a aplicação da pena. Além disso, utilizar-se tão-somente do argumento da dissuasão não nos parece suficiente, uma vez que o direito penal já cumpre este múnus. A nosso ver, será sempre de todo inadequada a aplicação de indenização punitiva quando o caso concreto já ensejar, na seara penal, administrativa, tributária ou ambiental algum tipo de pena expressamente previsto em lei. Não se trata somente de querer evitar o bis in idem, que nos parece ser possível quando a lei expressamente o determinar, mas principalmente a utilização de uma pena civil, sem previsão legal expressa, arbitrária, autoritária e sem fundamento quando o ordenamento, compreendido em sua completude, já estabelece maneiras outras de dissuadir e evitar a reincidência. Contrariar tal entendimento significará deixar de lado toda uma construção garantista dos direitos fundamentais, especialmente quanto ao princípio da legalidade já referido acima, expresso no art. 5°, XXXV, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”20. Neste sentido, a doutrina penal sustenta que “o princípio da legalidade, base estrutural do próprio estado de direito, é também a pedra angular de todo o direito penal que aspire à segurança jurídica, compreendida não apenas na acepção da ‘previsibilidade da intervenção do poder punitivo do estado”, que lhe confere Roxin, mas também na perspectiva subjetiva do ‘sentimento de segurança jurídica’ que postula Zaffaroni. Além de assegurar a possibilidade do prévio conhecimento dos crimes e das penas, o princípio garante que o cidadão não será submetido a coerção penal distinta daquela predisposta na lei. Está o princípio da legalidade inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos”.21 Para se ter uma perspectiva do que se diz, veja-se PROCESSO CIVIL. AGRAVO CONTRA INADMISSÃO DE RECURSO ESPECIAL. PROVIMENTO PARCIAL. PRECLUSÃO DOS TEMAS DESACOLHIDOS NO AGRAVO. CIVIL. INDENIZAÇÃO. VINGANÇA. DISPAROS DE ARMA DE FOGO. PARAPLEGIA. MOTIVO FÚTIL. DANO 20 Mesmo no Código Civil, o art. 12 supracitado faz referência apenas à possibilidade de se aplicar outras sanções à lesão aos direitos da personalidade, além das perdas e danos, desde que previstas em lei. 21 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro : Revan, 1990, p. 67. 14 MORAL. VALOR DA INDENIZAÇÃO. CONTROLE PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MAJORAÇÃO. PENSÃO MENSAL. MAJORAÇÃO. DESPESAS COM ADVOGADOS PARA ACOMPANHAR AÇÃO PENAL CONTRA O AUTOR DOS DISPAROS. INDEFERIMENTO. TRATAMENTO NO EXTERIOR. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I – O valor da indenização por dano moral sujeita-se ao controle do Superior Tribunal de Justiça, desde que o quantum contrarie a lei ou o bom senso, mostrando-se manifestamente exagerado, ou irrisório, distanciando-se das finalidades da lei. Na espécie, levando em consideração a situação econômico-social das partes, a atividade ilícita exercida pelo réu 2º recorrente, de ganho fácil, o abalo físico, psíquico e social sofrido pelo autor, o elevado grau da agressão, a ausência de motivo e a natureza punitiva e inibidora que a indenização, no caso, deve ter, mostrou-se insuficiente o valor fixado pelo Tribunal de origem a título de danos morais, a reclamar majoração. II - Ainda que se admita que o autor tenha desrespeitado a honra do réu, o certo é que a reação deste foi manifestamente desproporcional, passando longe, e muito, do tolerável. E não se pode deixar de considerar que, na espécie, as lesões decorreram de conduta criminosa, de acentuado dolo, como se vivêssemos em um País sem leis e em estado de barbárie. III - A pensão mensal nos termos requeridos não agride o razoável e nem se mostra injusta, considerando as circunstâncias da causa, notadamente o padrão econômico-social das partes. IV - O valor eventualmente pago aos advogados criminalistas, na espécie, não são incluídos, por não ser essa despesa obrigatória, mas opcional, sendo apenas facultativa a contratação de assistência da acusação. V - O provimento em parte do agravo interposto contra a inadmissão do recurso especial restringe o conhecimento da Turma à matéria ainda não decidida, uma vez havida a preclusão quanto aos demais temas. (REsp 183.508/RJ, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 05/02/2002, DJ 10/06/2002 p. 212, REPDJ 14/10/2002 p. 231) Percebe-se do colacionado na ementa da decisão acima que o caráter inibidor da indenização é tratado em confusão com o punitivo, além de não haver maiores fundamentos para sua aplicação. Para se ter uma idéia, no voto do relator, vencedor no caso, o único momento em que faz referência ao desestímulo é na seguinte passagem: “Por outro lado, essa indenização deve ser fixada em termos razoáveis, não se justificando que a reparação venha a constituir-se em enriquecimento indevido, com manifestos abusos e exageros, devendo o arbitramento operar-se com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa e ao porte econômico das partes, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua 15 experiência e do bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso. Ademais, deve procurar desestimular o ofensor a repetir o ato.” Ora, o caso relatado se tratou de uma briga de rua, motivada pelo fato de que a vítima supostamente teria flertado com a esposa do autor do dano, que acabou por disparar contra o seu adversário com arma de fogo, causando-lhe paralisia. É brutal o incidente e, sem dúvida, comovente. A reação do Réu foi totalmente desproporcional e digna de repreensão. Mas não cabe ao juízo cível fazê-lo. Observe-se que não há maiores evidências de que o Autor da agressão venha a reincidir, mormente tendo sido condenado na seara penal. Não tem fundamento uma punição cível, pecuniária, não prevista na lei, quando o fato é sujeito ao juízo penal, que pode mesmo constranger a liberdade do condenado, na forma da lei. É inadmissível o julgador de uma causa cível querer aplicar uma punição apoiando-se exclusivamente no fundamento de que “não se pode deixar de considerar que, na espécie, as lesões decorreram de conduta criminosa, de acentuado dolo, como se vivêssemos em um País sem leis e em estado de barbárie”. Não se trata de um país sem lei, ao contrário, a lei existe e deve ser aplicada por quem é competente para este fim. O processo civil é concebido com o objetivo de reparar/compensar os danos experimentados pela vítima, não para punir o agente, que é matéria de outros ramos do Direito. A aplicação da pena nestes casos não é apenas arbitrária, mas também autoritária, por ausência completa de fundamento na lei, e antidemocrática, porque proferida por aquele que não é investido de legitimidade, no caso concreto, para punir. Por fim, ainda que se trate de uma hipótese de dano moral em que a conduta do agente não venha a sofrer nenhum outro tipo de punição, não basta a mera possibilidade de reincidência, mas ela deve proporcionar alguma vantagem para o autor do dano. Em outras palavras, entendemos que o argumento da dissuasão somente terá sentido se existirem razões suficientes para acreditar que haverá a reincidência. A dissuasão vazia, apenas por um palpite do julgador, é arbitrária e não deve ser admitida. No sentido de se exigir alguma vantagem para a aplicação do punitive damages, o princípio da justiça corretiva defendido por COLEMAN, segundo o qual o dever de reparação daquele que age culposamente é assegurado pelo ganho injusto. Para o Professor da Universidade de Yale, 16 “na ausência de um ganho injusto, a justiça corretiva não exige que o direito da responsabilidade extracontratual implemente um sistema de compensação”22. A aplicação do dano punitivo terá sentido nas hipóteses em que o agente já vem reincidindo, especialmente quando aufere alguma vantagem pelo cometimento do dano. E a prova desta vantagem deve constar dos autos, exceto quando for notória, como já acontece no caso dos bancos, empresas de telefonia, empresas aéreas, supermercados etc. Nestes casos, como se sabe, os custos de evitar os acidentes são sensivelmente maiores que os que se paga com as indenizações por danos morais causados aos consumidores. Para inibir os danos em massa, a indenização punitiva encontraria fundamento constitucional na função social da propriedade e da livre iniciativa, justificando a exceção ao princípio da necessidade de previsão legal anterior da pena. 3.2. Punitive damages e abuso do poder econômico Outra situação, conectada com a que acabamos de defender, de aplicação de punitive damages no Brasil tem fundamento no abuso do poder econômico. Aqui, não se trata apenas do argumento da reincidência, que pode até se fazer presente, mas não é o mais relevante. Trata-se de uma situação em que o agente causa o dano porque, economicamente, pode suportar a indenização esperada e, por esta razão, comete-o deliberadamente. É cediço que o direito brasileiro adotou a teoria objetiva do abuso do direito, mas entendemos que tal teoria aplica-se apenas com a finalidade reparatória-compensatória do dano causado. No caso de aplicação de danos punitivos, será necessário em caráter emulativo e doloso na conduta do agente. Exemplificativamente, seria a hipótese de uma empresa, ciente de que certa celebridade está para fechar contrato publicitário com uma empresa concorrente, resolve antecipar o uso não autorizado de sua imagem em uma propaganda comercial. Havendo indícios de que a empresa contava com arcar com o pagamento de uma indenização para a vítima por danos materiais e morais como custo normal de seu comportamento, a indenização punitiva terá sentido. Não tanto para inibir a reincidência (embora o efeito colateral também fosse este), mas principalmente para tornar o ilícito desvantajoso. Com efeito, nestes casos, a indenização 22 COLEMAN, Jules L. “La justicia correctiva y el enriquecimiento sin causa” em ROSENKRANTZ, Carlos F. (comp.) La Responsabilidade extracontractual. Barcelona : Editorial Gedisa, 2005, p. 68 17 punitiva se fundaria não somente na função social, mas também na função econômica da propriedade, que não pode ser utilizada com o intuito de prejudicar. Uma situação semelhante com esta já foi julgada pelo Superior Tribunal de Justiça, como se vê abaixo: CIVIL. PRESCRIÇÃO. DIREITO DE IMAGEM. Violação continuada. Para fins prescricionais, o termo 'a quo', envolvendo violação continuada ao direito de imagem, conta-se a partir do último ato praticado. Ausência de elementos probatórios quanto à autorização anterior para a publicação da fotografia. Exploração de imagem sem contrato escrito, se limita ao prazo máximo de cinco anos. Art. 49, III da Lei 9610/98. Valor moral arbitrado em consonância com jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. RECURSO IMPROVIDO. (REsp 1014624/RJ, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 10/03/2009, DJe 20/03/2009) Trata-se de ação indenizatória pelo uso indevido de fotografia de vencedora de concurso de Miss Senhorita Rio na capa de obra fonográfica reeditada. A lesão reclamada na inicial consiste na edição desautorizada da imagem da Autora na capa de compact-disc relançado em 2002. No voto vencedor do Ministro Relator, ficou estampado que “[O Réu] em nenhum momento comprovou esta a existência de autorização ou aquiescência para o uso da imagem, quando da primeira edição, o mesmo ocorrendo, quando da reedição da fotografia, objeto da presente ação. Nem há como presumir-se ou interpretar-se, à míngua de provas, a inércia da recorrida nos anos que se passaram, como autorização tácita para a publicação. Inescusado acrescentar-se que a violação do direito de imagem ocorre toda vez que a mesma é publicada, sem autorização, com o que a violação se renova, de forma continuada.” No que tange à indenização, o Ministro sustentou: “Por fim, analiso a pretensão de redução da condenação dos danos morais fixados em R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais). O valor do dano moral tem o escopo de atender a sua dupla função: reparar o dano e punir o ofensor para que não volte a reincidir (elemento pedagógico punitivo). Julgo que a indenização arbitrada cumpre perfeitamente as duas funções acima referidas, não destoando, também, da jurisprudência 18 desta Corte em casos semelhantes, de modo que se mostra inviável a sua redução.” Como se vê, o mais uma vez o caráter punitivo da indenização é levantado com pobre fundamentação, baseado tão somente na dissuasão da reincidência. O caso concreto permitia uma digressão mais substancial no sentido de reconhecer o ato abusivo do agente que utilizou sem autorização a fotografia da vítima, com o aparente objetivo de evitar uma possível resposta negativa em caso de pedido de autorização. Esta é uma situação que nos parece razoável a aplicação da indenização com caráter punitivo pelo abuso da posição dominante. Conclusão A aplicação dos danos punitivos de maneira indiscriminada é uma simplificação demasiada ou uma recusa a uma reflexão mais profunda. No Brasil, a tendência à simplificação e à facilitação na argumentação conduz à formação de uma jurisprudência insegura e contraditória. Nos julgados sobre danos punitivos, prevalecem fundamentações rasas, arbitrárias e, muitas vezes, autoritárias, fundadas unicamente no sentimento de justiça dos magistrados. Alguns dos fundamentos utilizados para aplicação dos danos punitivos parecem inadequados quando pensados isoladamente, como a condição social e econômica do agente e da vítima. Quando se leva em consideração a condição sócio-econômica da vítima, acaba-se por levar a indenizações menores para as pessoas mais pobres, como acontece cotidianamente nos juizados especiais de consumidor. Com efeito, não é difícil participar de audiências que, em uma situação fática idêntica, o juiz condene o fornecedor a uma indenização maior para a pessoa que mora em um bairro melhor e tem emprego mais bem remunerado que para uma pessoa menos favorecida sócio-economicamente. Por outro lado, aplicar uma indenização mais elevada apenas com base no fato de que se trata de um agente causador do dano economicamente mais abastado também não nos parece argumento suficiente. Em alguns casos, o julgador se limita a dizer que “a indenização deve ser majorada em razão da condição econômica favorável do agente, que não se sentirá dissuadido com uma indenização muito baixa”. O argumento é frágil e não resiste a uma análise mais minuciosa de alguns casos concretos em que pessoas abastadas se sentem terrivelmente mal pelo simples fato de terem cometido um dano, e a condenação a pagar os danos morais 19 compensatórios já é para elas desestímulo suficiente à reincidência (sendo em muitos casos nem seria o caso de haver qualquer risco de o dano voltar a acontecer). Bem andou o Superior Tribunal de Justiça no caso a seguir, em que a condição econômica mais favorecida da empresa não foi empecilho para reconhecer que a conduta do agente foi a melhor possível diante do dano já causado: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. PERDA DE CONEXÃO EM VÔO INTERNACIONAL. REDUÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO, FIXADO EM R$ 12.000,00 PARA R$ 3.000,00 A CADA UM DOS AUTORES. I - As circunstâncias da lide apresentam peculiaridades que justificam a redução do quantum indenizatório, em especial o suporte oferecido pela empresa Recorrente para minimizar os transtornos e constrangimentos sofridos pelos Autores. Agravo Regimental improvido. (AgRg no Ag 1070474/RJ, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/02/2009, DJe 09/03/2009) Outros fundamentos utilizados pela doutrina e jurisprudência, como a moderação e a razoabilidade, na maior parte das vezes não passa de retórica e são utilizados apenas para o magistrado impor seu sentimento de justiça às partes no caso concreto. É claro que, por outro lado, a formação paulatina de uma tradição fundada nos julgamentos reiterados confere alguma legitimidade à aplicação indiscriminada das indenizações com caráter punitivo, mas esperamos que a tradição se sustente, progressivamente, em fundamentos mais sólidos de forma a garantir, com maior legitimidade, um grau de segurança satisfatório nas relações privadas. Bibliografia ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral e Indenização Punitiva: os punitive damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2009 BARNES; BEST. Basic Tort Law: cases, statutes, and problems. New York : Aspen Publishers, 2003 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro : Revan, 1990 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo : Atlas, 2008 COLEMAN, Jules L. “La justicia correctiva y el enriquecimiento sin causa” em ROSENKRANTZ, Carlos F. (comp.) La Responsabilidade extracontractual. Barcelona : Editorial Gedisa, 2005 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol IV. 4ª ed. São Paulo : Saraiva, 2009 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitória (individual e coletiva). São Paulo : RT, 1998 20 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife : Renovar, 2007 PROSSER; WADE; e SCHWARTZ. Torts: cases and materials. 9th edition. New York : New Foundation Press, 1994 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2007 SOUZA, Adriano Stanley Rocha. “O Fundamento Jurídico do Dano Moral: princípio da dignidade da pessoa humana ou punitive damages?” em Direito Civil – princípios jurídicos no direito privado. Atualidades III. Belo Horizonte : Del Rey, 2009 SUNSTEIN et al. Punitive Damages: how juries decide. Chicago/Londres, The University of Chicago Press, 2002 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. Vol IV. 7ª ed. São Paulo : Atlas, 2007 21