DANOS PUNITIVOS: HIPÓTESES DE APLICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
Thiago Carvalho Borges1
Resumo: O presente artigo trata a recepção dos punitive damages no direito brasileiro, a partir
de análise da doutrina especializada e da jurisprudência, indicando algumas hipóteses de
aplicação
Abstract: This article deals with the receipt of punitive damages under Brazilian law, based on
expert analysis of the doctrine and judicial cases, indicating some situations of implementation
Sumário: Introdução. 1. Punitive Damages. 2. Responsabilidade Civil e Punição. 3.
Fundamentos para Aplicação dos Punitive Damages no Brasil. 3.1. Punitive damages,
dissuasão, reincidência e danos em massa. 3.2. Punitive damages e abuso do poder
econômico. Conclusões.
Introdução
O problema da indenização por danos morais vive atualmente na jurisprudência e doutrina
brasileiras novos debates. Após superar as discussões sobre a indenizabilidade do dano moral
e sua cumulatividade com a indenização por danos materiais, novos problemas aparecem,
movidos pelas decisões judiciais em temas como a distinção e a cumulatividade da indenização
por dano moral com aquela decorrente do dano estético; o reconhecimento, ou não, do dano
moral sofrido pela pessoa jurídica; e a aplicação de indenização com caráter punitivo. É sobre
este último tema que trataremos, brevemente, apenas com o objetivo alimentar o debate.
Como se sabe, nos últimos anos muito se tem produzido na academia brasileira sobre os
chamados danos punitivos, nomenclatura oriunda dos punitive damages do common law.
Destacamos na literatura nacional os livros de Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa
Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. O problema, entretanto, não é
somente do Direito brasileiro, havendo também diversas obras estrangeiras sobre o tema,
como Sunstein et al. “Punitive Damages: how juries decide”.
No sistema brasileiro de responsabilidade civil, os punitive damages são aplicados como um
misto entre a tutela inibitória e a tutela punitiva, rompendo com o paradigma do caráter
reparatório ou compensatório de origens romanas com fundamento na restitutio in integrum.
Além da celeuma sobre a aplicabilidade ou não da indenização com caráter punitivo no Brasil,
mesmo entre aqueles que defendem a utilização da prática existem divergências quanto às
1
Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra, Portugal. Professor da Faculdade
Baiana de Direito, da UniJorge e da Unifacs. Advogado.
1
hipóteses em que se deve aplicar, bem como quanto ao destinatário do montante fixado a tal
título. Trataremos, com brevidade, sobre estes três pontos, remetendo o leitor, sempre que
necessário, a outras fontes literárias para aprofundamento.
Assim, o trabalho se divide em três partes. A primeira trata do conceito de punitive damages e
sua aplicabilidade nos Estados Unidos e recepção na doutrina e na jurisprudência brasileiras.
Na segunda parte, trataremos sobre a responsabilidade civil no Brasil e o caráter punitivo da
indenização conforme a ordenamento nacional. Por fim, na última parte, teceremos algumas
críticas sobre a forma como se dão as decisões no Brasil em matéria de danos punitivos,
apontando algumas situações que entendemos possível a adoção do instituto em consonância
com o sistema jurídico pátrio, passando a seguir às conclusões finais.
1. Punitive Damages
Grande parte da doutrina estrangeira e nacional remete a origem dos punitive damages ao
caso Wilkes v. Wood, de 1763, no direito inglês, cujo relato pode ser encontrado, entre outros,
em ANDRADE2.
Entretanto, foi no direito norteamericano que os danos punitivos se desenvolveram no
decorrer do século XX e se tornaram um modelo seguido em vários ordenamentos. Ocorre que
sistema de responsabilidade civil dos Estados Unidos é completamente diferente daqueles da
família do civil law. Ainda assim, no common law a medida é excepcional3, prevalecendo o
formato dos compensatory damages, assemelhado com o sistema reparatório que prevalece
nos ordenamentos da família do civil law.
O valor da indenização nos compensatory damages deve ser exatamente igual ao total da
perda da vítima nos danos patrimoniais, ou uma compensação pela dor e sofrimento nos casos
de danos não quantificáveis.4 Somente após todo o processo de responsabilidade, que apura a
causalidade e determina a compensação/reparação, é que os danos punitivos serão
2
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral e Indenização Punitiva: os punitive damages na
experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro : Lumen Juris,
2009, p. 178-179.
3
Em SUNSTEIN et al. Punitive Damages: how juries decide. Chicago/Londres, The University of Chicago
Press, 2002, George L. Priest afirma, na introdução, p. 8, que “in conception, punitive damages are
regarded as an extraordinary remedy – available and appropriately awarded in only a small number of
cases”.
4
Idem, p. 9-10.
2
apreciados. O procedimento difere entre os Estados americanos, alguns inserindo as questões
de danos punitivos no mesmo procedimento dos compensatory damages, outros adotando um
procedimento bifurcado, fazendo-se um julgamento separado para os punitive damages.
Alguns Estados ainda deixam que as partes decidam que procedimento querem seguir.5
No julgamento dos punitive damages, normalmente decididos por um júri civil, as instruções
sobre as questões que devem ser levantadas para o corpo de jurados sempre giram em torno
da gravidade da culpa do agente, da repreensibilidade de sua conduta e do efeito dissuasivo.
Percebe-se, desta maneira, que o que se pretende com a aplicação de uma pena civil ao
agente é punir um comportamento culposo e desestimular o comportamento desviante.
Em síntese, nos Estados Unidos o conceito de punitive damages, trazido por PROSSER; WADE;
e SCHWARTZ, também chamados de vindictive (vingativos) ou de exemplary (exemplares)
damages, ou ainda de smart money (dinheiro esperto), “consiste em uma soma adicional,
além da compensação ao réu pelo mal sofrido, que lhe é concedida com o propósito de punir o
acusado, de adverti-lo a não repetir o ato danoso e para evitar que outros sigam seu
exemplo”6.
No Brasil, a aplicação de indenização com caráter punitivo ganhou muitos adeptos, desde os já
clássicos manualistas, como Caio Mário da Silva Pereira, Maria Helena Diniz e Silvio Rodrigues,
até os novos autores de obras voltados para cursos de graduação e concursos públicos, como
Sérgio Cavalieri Filho e Silvio de Salvo Venosa, além de outros tantos autores de artigos e
monografias publicados em quantidade pelo Brasil a fora. Contrários à tese, pode-se citar
Maria Celina Bodin de Moraes, Adriano Stanley Rocha Souza e Anderson Schreiber, além dos
mais clássicos Orlando Gomes, Pontes de Miranda e José de Aguiar Dias.
De um modo geral, os doutrinadores que reconhecem a aplicabilidade dos punitive damages
ao Direito brasileiro sustentam que “a indenização punitiva do dano moral surge como reflexo
da mudança de paradigma da responsabilidade civil e atende a dois objetivos bem definidos: a
5
Idem, p. 10. Cinco Estados, entretanto, não adotam o punitive damages: New Hampshire, Nebraska,
Massachusetts, Washington e Louisiana.
6
PROSSER; WADE; e SCHWARTZ. Torts: cases and materials. 9th edition. New York : New Foundation
Press, 1994, p. 530-531. No mesmo sentido, BARNES; BEST. Basic Tort Law: cases, statutes, and
problems. New York : Aspen Publishers, 2003, p. 606: “Punitive damages are intended to punish
defendants or to deter defendants from engaging in similar conduct rather than to compensate the
plaintiff”.
3
prevenção (através da dissuasão) e a punição (no sentido de redistribuição)7”. Sem adotar uma
posição clara, mas assumindo a aplicabilidade dos danos punitivos, RIZZARDO afirma que
“embora se deva objetivar o desestímulo das ofensas (theory of
deterrance do direito inglês), não se deve imprimir à reparação o
exagerado caráter de punição, ou valorizar demais o sentido de
exemplary damages, que excepcionam a regra geral de que as perdas
e danos servem apenas para reparar o prejuízo causado; mesmo que
inerente a dupla finalidade de punição do agente e compensação
pela dor sofrida, impõe-se dar realce ao segundo fator, que é o que
se busca com a demanda”8.
Por outro lado, MORAES, considerando os punitive damages como “uma figura anômala,
intermediária entre o direito civil e o direito penal”, sustenta que, se
“aplicado indiscriminadamente a toda e qualquer reparação de danos
morais, coloca em perigo princípios fundamentais de sistemas
jurídicos que têm na lei a sua fonte normativa, na medida em que se
passa a aceitar a idéia, extravagante à nossa tradição, de que a
reparação já não se constitui como o fim último da responsabilidade
civil, mas a ela se atribuem também, como intrínsecas, as funções de
punição e dissuasão, de castigo e prevenção”.9
Mas a Autora não exclui totalmente a possibilidade de aplicação da indenização punitiva ao
afirmar: “para que se verifique a amplitude do caráter punitivo da reparação pelo dano moral
na jurisprudência brasileira, dois critérios, mas do que outros, devem ser levados em
consideração: de um lado, a gradação da culpa e, de outro, o nível econômico do ofensor”10.
Em sentido totalmente contrário à aplicação dos punitive damages no Brasil, SOUZA aduz que
“a esfera cível cuida do interesse do particular que foi lesado, e busca
restabelecer o seu status quo ante patrimonial; a esfera penal cuida
do interesse do Estado, em manter a paz social e fazer o agressor,
pelo cumprimento da pena, seja readaptado ao convívio social. Esta
última, diferentemente da sentença cível, tem caráter pedagógico, já
que se espera que a sociedade se sinta desestimulada a praticar
aquele ato, diante da pena sofrida pelo seu autor.”11
7
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo : Atlas, 2008, p. 94.
RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2007, p. 270.
9
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos
morais. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife : Renovar, 2007, p. 258.
10
Idem, p. 259.
11
SOUZA, Adriano Stanley Rocha. “O Fundamento Jurídico do Dano Moral: princípio da dignidade da
pessoa humana ou punitive damages?” em Direito Civil – princípios jurídicos no direito privado.
Atualidades III. Belo Horizonte : Del Rey, 2009, p. 260.
8
4
No mesmo caminho segue GONÇALVES, ao afirmar que
“não se justifica, pois, como pretendem alguns, que o julgador,
depois de arbitrar o montante suficiente para compensar o dano
moral sofrido pela vítima (e que, indireta e automaticamente, atuará
como fator de desestimulo ao ofensor), adicione-lhe um plus a titulo
de pena civil, inspirando-se nas punitive damages do direito norteamericano.”12
Nos tribunais nacionais não é menor a adesão à aplicação dos punitive damages, já se
podendo dizer ser cediço que no Superior Tribunal de Justiça é pacífico o entendimento
quanto ao cabimento de sua aplicação. Como um exemplo deste fato, veja-se o recente
julgado da Quarta Turma:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE
CIVIL.
AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANO MORAL. PUBLICAÇÃO EM REVISTA
SEMANAL DE CIRCULAÇÃO NACIONAL DE INFORMAÇÃO QUE ATINGE
A IMAGEM DE EMPRESA COMERCIAL. DANO AFERIDO NA ORIGEM A
PARTIR DOS ELEMENTOS FÁTICO-PROBATÓRIOS CARREADOS NOS
AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO.
SÚMULA 07/STJ. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 165, 458 E 535 DO CPC NÃO
CONFIGURADA. QUANTUM DA INDENIZAÇÃO. VALOR EXORBITANTE.
REDUÇÃO.POSSIBILIDADE.
1. Não se verificam violações aos arts. 165, 458 e 535 do CPC quando
o acórdão impugnado examina e decide, fundamentadamente e de
forma objetiva, as questões relevantes para o desate da lide.
2. Nos termos da jurisprudência consolidada desta Corte Superior,
bem como do Pretório Excelso, o prazo decadencial e a
responsabilidade tarifada, previstos na Lei de Imprensa, não foram
recepcionados pela Constituição de 1988. (Precedentes: RE n.º
447.584/RJ, Rel. Min. Cezar Peluzo, Segunda Turma, DJU de
16/03/2007; REsp n.º 579.157/MT, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa,
Quarta Turma, DJU de 11/02/2008; e REsp 625.023/PE, Rel. Min.
Massami Uyeda, Quarta Turma, DJU de 26/02/2007).
3. O critério que vem sendo utilizado por essa Corte Superior na
fixação do valor da indenização por danos morais, considera as
condições pessoais e econômicas das partes, devendo o
arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à
realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não
haver o enriquecimento indevido do ofendido, bem como que sirva
para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito.
4. Estando assentada pelas instâncias de cognição a existência do
dano à imagem da empresa ora recorrida, oriundo do ato praticado
pela ora recorrente, revela-se indiferente ter ou não a Corte de
12
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol IV. 4ª ed. São Paulo : Saraiva, 2009, p. 381.
5
origem fundamentado a indenizabilidade pela ofensa no dispositivo
legal mais apropriado para tanto, máxime porque inarredável a
aplicação à hipótese do art. 159 do Código Civil de 1916.
5. Resultando as conclusões da Corte a quo, acerca da ocorrência do
dano moral, do conjunto fático probatório carreado nos autos, sua
revisão se revela tarefa interditada à esta Corte Superior, na via
especial, nos termos do verbete sumular n.º 07/STJ.
6. Todavia, cabe a alteração do quantum indenizatório quando este
se revelar como valor exorbitante ou ínfimo, consoante iterativa
jurisprudência desta Corte Superior de Justiça.
7. In casu, o Tribunal de Origem condenou a ré ao pagamento de
“720 dias-multa, calculado o dia-multa à base de dez vezes o valor do
salário mínimo vigente no mês de dezembro de 1995 devidamente
corrigido até a data do efetivo pagamento” (fl.421), o que
considerando os critérios utilizados por este STJ, ainda se revela
extremamente excessivo.
8. Dessa forma, considerando-se as peculiaridades deste caso, os
princípios jurisprudenciais desta eg. Corte Superior na fixação do
quantum indenizatório a título de danos morais, rejeita-se o critério
adotado pelo eg. Tribunal de Origem por analogia ao Direito Penal e
se fixa o valor do dano moral na quantia de R$ 46.000,00- (quarenta
e seis mil reais), corrigidos monetariamente a partir desta decisão,
acrescido dos juros legais nos termos da Súmula 54 deste Superior
Tribunal de Justiça.
9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão,
provido.
(REsp 334.827/SP, Rel. Ministro HONILDO AMARAL DE MELLO
CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/AP), QUARTA
TURMA, julgado em 03/11/2009, DJe 16/11/2009) (grifo nosso)
Observa-se que a indenização punitiva é aplicável aos danos morais, adicionando-se um valor a
este título àquele arbitrado para fins de compensação à vítima. Conforme o acórdão acima, a
jurisprudência da Corte Superior recomenda que sejam levados em conta os critérios
“condições pessoais e econômicas das partes” e “desestímulo à repetição”, sem levar ao
enriquecimento sem causa do ofendido, usando de moderação e razoabilidade, atentando
para a realidade da vida e as nuances do caso concreto.
Por outro lado, o mesmo Superior Tribunal de Justiça já entendeu que os punitive damages
não são aplicáveis às perdas e danos materiais na decisão que ficou ementada da seguinte
maneira:
CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. VALORES DESVIADOS PELA
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DA CONTA CORRENTE DO DEPOSITANTE.
Os danos a serem indenizados pela instituição financeira são aqueles
decorrentes da transferência não justificada de fundos do correntista
(a respectiva quantia nominal e os juros remuneratórios de um por
6
cento ao mês) e as despesas (juros e tarifas) que em função do
correspondente saldo negativo o depositante teve de suportar, mais
(+) a correção monetária e os juros de mora de 0,5% (meio por cento)
ao mês na vigência do Código Civil anterior e os juros moratórios a
partir da vigência do atual Código Civil na forma do respectivo art.
406.
Recurso especial conhecido e parcialmente provido.
(REsp 447.431/MG, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, SEGUNDA
SEÇÃO, julgado em 28/03/2007, DJ 16/08/2007 p. 285)
Em seu voto, vencedor por maioria13, o Ministro Ari Pargendler sustentou que
“no Brasil a indenização de perdas e danos não tem função punitiva.
Mesmo nos Estados Unidos da América do Norte, esse instituto
supõe uma carga de dolo (Usos e Abusos da Função Punitiva (punitive
damages) e o Direito brasileiro, Judith Martins-Costa e Mariana Souza
Pargendler, Revista do CEJ nº 28, p. 15/32), inexistente na espécie, na
qual o perito esclareceu que os descontos estavam previstos
‘implicitamente no contrato de cheque especial’“.
Em outro precedente, o Superior Tribunal de Justiça reforçou como limite à aplicação da
indenização com caráter punitivo o enriquecimento sem causa da vítima do dano, como se vê
na ementa a seguir:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS
MORAIS. ACIDENTE DE TRÂNSITO COM VÍTIMA FATAL. ESPOSO E PAI
DAS AUTORAS. IRRELEVÂNCIA DA IDADE OU ESTADO CIVIL DAS
FILHAS DA VÍTIMA PARA FINS INDENIZATÓRIOS. LEGITIMIDADE
ATIVA. QUANTUM DA INDENIZAÇÃO. VALOR IRRISÓRIO.
MAJORAÇÃO. POSSIBILIDADE. DESPESAS DE FUNERAL. FATO CERTO.
MODICIDADE DA VERBA. PROTEÇÃO À DIGNIDADE HUMANA.
DESNECESSIDADE DE PROVA DA SUA REALIZAÇÃO.
1. É presumível a ocorrência de dano moral aos filhos pelo
falecimento de seus pais, sendo irrelevante, para fins de reparação
pelo referido dano, a idade ou estado civil dos primeiros no
momento em que ocorrido o evento danoso (Precedente: REsp n.º
330.288/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, DJU de 26/08/2002) 2.
Há, como bastante sabido, na ressarcibilidade do dano moral, de um
lado, uma expiação do culpado e, de outro, uma satisfação à vítima.
3. O critério que vem sendo utilizado por essa Corte Superior na
fixação do valor da indenização por danos morais, considera as
condições pessoais e econômicas das partes, devendo o
arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à
13
Voto vencido da Ministra Nanci Andrighi, que entendeu que “a remuneração do indébito à mesma
taxa praticada para o cheque especial se justifica, por sua vez, como a única forma de se impedir o
enriquecimento sem causa pela instituição financeira”.
7
realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não
haver o enriquecimento indevido do ofendido, bem como que sirva
para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito.
4. Ressalte-se que a aplicação irrestrita das "punitive damages"
encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que,
anteriormente à entrada do Código Civil de 2002, vedava o
enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e
após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la
expressamente, mais especificamente, no art. 884 do Código Civil de
2002.
5. Assim, cabe a alteração do quantum indenizatório quando este se
revelar como valor exorbitante ou ínfimo, consoante iterativa
jurisprudência desta Corte Superior de Justiça.
6. In casu, o tribunal a quo condenou os recorridos ao pagamento de
indenização no valor de 10 salários mínimos a cada uma das
litisconsortes, pela morte do pai e esposo das mesmas que foi vítima
fatal de atropelamento pela imprudência de motorista que transitava
em excesso de velocidade pelo acostamento de rodovia, o que,
considerando os critérios utilizados por este STJ, se revela
extremamente ínfimo.
7. Dessa forma, considerando-se as peculiaridades do caso, bem
como os padrões adotados por esta Corte na fixação do quantum
indenizatório a título de danos morais, impõe-se a majoração da
indenização total para o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), o que
corresponde a R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais) por autora.
8. Encontra-se sedimentada a orientação desta Turma no sentido de
que inexigível a prova da realização de despesas de funeral, em
razão, primeiramente, da certeza do fato do sepultamento; em
segundo, pela insignificância no contexto da lide, quando limitada ao
mínimo previsto na legislação previdenciária; e, em terceiro, pelo
relevo da verba e sua natureza social, de proteção à dignidade
humana (Precedentes: REsp n.º 625.161/RJ, Rel. Min. Aldir
Passarinho Júnior, DJU de 17/12/2007; e REsp n.º 95.367/RJ, Rel.
Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU de 03/02/1997) 9. Recurso especial
provido.
(REsp 210.101/PR, Rel. Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ
FEDERAL CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado
em 20/11/2008, DJe 09/12/2008) (gripo nosso)
Em síntese, estabelecidos os limites e critérios vistos, o Superior Tribunal de Justiça aplica os
punitive damages em larga escala aos danos morais, no que é seguido pela maior parte dos
Tribunais nacionais.
2. Responsabilidade Civil e Punição.
Não é estranha ao sistema brasileiro a previsão legal de indenizações com caráter punitivo. O
Código Brasileiro de Telecomunicações, Lei n. 4.117/62, já indicava no art. 84 que
8
“Art. 84. Na estimação de dano moral, o juiz terá em conta,
notadamente, a posição social ou política do ofendido, a situação
econômica do ofensor, a intensidade do ânimo de ofender, a
gravidade e a repercussão das ofensas”.
Na mesma linha, a Lei de Imprensa, Lei n. 5.250/67, dispunha que
“Art. 53. No arbitramento da indenização em reparação do dano
moral, o juiz terá em conta, notadamente:
I - a intensidade do sofrimento do ofendido, a gravidade, a natureza e
repercussão da ofensa e a posição social e política do ofendido;
II - A intensidade do dolo ou o grau da culpa do responsável, sua
situação econômica e sua condenação anterior em ação criminal ou
cível fundada em abuso no exercício da liberdade de manifestação do
pensamento e informação;
III - a retratação espontânea e cabal, antes da propositura da ação
penal ou cível, a publicação ou transmissão da resposta ou pedido de
retificação, nos prazos previstos na lei e independentemente de
intervenção judicial, e a extensão da reparação por esse meio obtida
pelo ofendido.
No Código Civil brasileiro pode-se verificar algumas hipóteses de pena civil, como no caso do
art. 608: “Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem
pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de
caber durante dois anos”. Ou mesmo no Título da Responsabilidade Civil, ao estipular que
Art. 939. O credor que demandar o devedor antes de vencida a
dívida, fora dos casos em que a lei o permita, ficará obrigado a
esperar o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros
correspondentes, embora estipulados, e a pagar as custas em dobro.
Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em
parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for
devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o
dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que
dele exigir, salvo se houver prescrição.14
Portanto, não foge totalmente ao sistema brasileiro de responsabilidade o caráter punitivo da
indenização, nem mesmo a atribuição do valor pago a este título à vítima, sem configurar,
contudo, enriquecimento sem causa. O que é de causar alguma polêmica é o fato de os
14
O caráter punitivo destes dispositivos pode ser confirmado pela leitura do art. 941: “As penas
previstas nos arts. 939 e 940 não se aplicarão quando o autor desistir da ação antes de contestada a
lide, salvo ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido”.
9
tribunais aplicarem indiscriminadamente os punitive damages sem previsão legal expressa da
hipótese.
Um fundamento legal que se pode encontrar, em sentido aberto, está, em parte, na tutela
inibitória, que se volta para a prevenção ou cessação do dano, conforme MARINONI “(...) o
problema é a prevenção da prática, da continuação ou da repetição do ilícito”15, e tem
fundamento no art. 5°, XXXV, da Constituição Federal de 1988, que garante a proteção judicial
contra a ameaça a direito. No plano infraconstitucional, o Código de Processo Civil, no art. 461,
e o Código de Defesa do Consumidor, no art. 84, dispõem sobre a tutela específica inibitória.
No Código Civil, o art. 12 determina que “pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão a
direito da personalidade, e reclemar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas
em lei”, conferindo a abertura necessária para se buscar a indenização com caráter punitivo
com fundamento na tutela inibitória. No que tange à fixação do valor da indenização por dano
moral, a norma codificada é abrangente, como se percebe no art. 946 “Se a obrigação for
indeterminada, e não houver na lei ou no contrato disposição fixando a indenização devida
pelo inadimplente, apurar-se-á o valor das perdas e danos na forma que a lei processual
determinar”
3. Fundamentos para Aplicação dos Punitive Damages no Brasil
Fato relevante que não deve passar esquecido é que no sistema de civil law desenvolveu-se a
dicotomia entre Direito Civil e Direito Penal como forma de limitar o espectro de atuação do
Estado sobre a liberdade e os bens das pessoas, por meio da garantia dos direitos
fundamentais. O surgimento do Code Napoleón estabeleceu um paralelismo entre a
responsabilidade penal, tipificante, legalista, restritiva e de ultima ratio, e a responsabilidade
civil, abstrata, aberta, ampliativa e de aplicação irrestrita. Com isto, o caráter punitivo do
ordenamento ficou destinado às normas penais (ainda que derivadas do direito administrativo
ou tributário), ao passo que a sanção civil ficou com a finalidade reparatória ou compensatória
em face dos danos sofridos pela vítima. É bom lembrar, ainda, que a responsabilidade civil
oitocentista possuía um objetivo moralizador, fundada que era na culpa do agente, refletindo
a origem medieval da repressão ao comportamento desviante. No decorrer do século XX,
entretanto, a responsabilidade objetiva ampliou seu campo de atuação a tal ponto de
15
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitória (individual e coletiva). São Paulo : RT, 1998, p.26
10
entrarmos no século XXI observando, na prática, um contingente de casos de responsabilidade
objetiva muito mais numeroso que os de responsabilidade subjetiva16.
A responsabilidade civil contemporânea caminha no sentido de objetivação da tutela e,
portanto, buscando afirmar a proteção da pessoa humana como finalidade precípua do dever
de indenizar. A indenização com caráter punitivo ressuscita a culpa como elemento da
responsabilidade civil, servindo agora não mais como critério essencial para a reparação, mas
como elemento sine qua non da punição que será aplicada ao autor do dano moral. Neste
sentido, é primordial ressaltar que a admissão da aplicabilidade excepcional do punitive
damage no Direito brasileiro não representa o ressurgimento da responsabilidade subjetiva
em detrimento da responsabilidade objetiva, que continua representando o grande avanço do
ordenamento civil no sentido de garantir a proteção da pessoa humana ante o descompasso
entre o avanço tecnológico e a adaptação do contexto jurídico da sociedade.
Ademais, estamos com Maria Celina Bodin de Moraes ao sustentar a extraordinariedade da
medida, cuja aplicação indiscriminada põe em questão toda a lógica do sistema civil. Daí a
posição titubeante de Arnaldo Rizzardo, vista acima, que admite a aplicação da punição, mas
pede que seja realçado o caráter compensatório em detrimento do disciplinador. Como se viu,
a doutrina é massiçamente favorável à aplicação dos punitive damages no Brasil, mas não há
muito desenvolvimento acerca dos critérios para esta aplicação. Neste sentido, ANDRADE
tenta organizar alguns argumentos, mas acaba caindo em contradição ao enumerar como
pressupostos da indenização punitiva a ocorrência de dano moral; culpa grave do ofensor; e a
obtenção de lucro com o ato ilícito, mas defende a aplicação de indenização punitiva no
seguinte caso hipotético:
“Imaginem-se dois acidentes de trânsito, o primeiro, causado por
motorista que tem habilitação há anos, sem uma única infração, que
dirigia em velocidade compatível com o local, mas, por inexplicável
imperícia na mudança de marchas, perdeu o controle do automóvel
em uma curva e colidiu com outro veículo. O motorista prontamente
16
Embora a regra geral do Direito brasileiro seja da responsabilidade subjetiva, pela norma que se extrai
da combinação entre o art. 186 e o art. 927, caput, do Código Civil, e a responsabilidade objetiva seja
apenas a exceção, como se depreende do texto da cláusula geral do art. 927, parágrafo único, que
determina que são casos de responsabilidade civil objetiva os decorrente de danos causados por
atividades de risco, além de outros expressamente previstos em lei, na prática o número de casos de
responsabilidade objetiva é sensivelmente maior por causa da política legislativa que estabelece entre
os casos legais de responsabilidade objetiva as situações que causam danos em massa, como a
responsabilidade do fornecedor nas relações de consumo ou a responsabilidade do Estado.
11
socorre a vítima, levando-a ao hospital, dando-lhe toda assistência
necessária e demonstrando grande consternação com o ocorrido.
O segundo acidente é causado por motorista que, após ingerir bebida
alcoólica em quantidade acima da permitida pelas leis de trânsito,
dirigia seu automóvel em rua movimentada, em excesso de
velocidade, apostando corrida com outro veículo, o que fez com que
perdesse o controle e atingisse um terceiro automóvel. Após o
acidente, o motorista tenta se evadir do local sem prestar auxílio à
vítima, só não o conseguindo porque é alcançado pela polícia. Em
nenhum momento o motorista causador do acidente demonstra
arrependimento, e até manifesta indiferença pelo ocorrido.
Assumindo que as vítimas de ambos os acidentes hipotéticos
sofreram lesões igualmente graves e abstraindo qualquer outra
possível diferença relevante entre as situações, atentaria contra o
senso comum condenar os dois motoristas ao pagamento de igual
valor de indenização por dano moral. Repugnaria ao sentimento de
justiça atribuir igual peso a condutas tão desiguais, porque tão
diferentemente censuráveis.”17
A contradição é evidente, pois no exemplo citado pelo próprio autor não há qualquer
circunstância de obtenção de lucro com o ato ilícito. Trata-se de apenas um dos muitos casos
em que o juiz cível deve ficar adstrito a aplicar a indenização repatatória- compensatória e
deixar que o juízo penal e administrativo promovam a devida punição da conduta socialmente
indesejada. Não pode, porque arbitrário, autoritário e antidemocrático, querer o juiz de uma
questão de responsabilidade civil querer, simplesmente por entender repulsivo um ato, aplicar
uma punição não prevista na lei e sem qualquer fundamento no ordenamento, utilizando
como argumento apenas o “atentado ao senso comum” ou o “sentimento de justiça”.
Na jurisprudência também não é menor a insegurança na aplicação dos danos punitivos, posto
que se impõe o enriquecimento sem causa como limite da indenização, mas não se explica
como é possível evitá-lo ao se fazer qualquer aumento na indenização que ultrapasse aquilo
que se entende como suficiente para compensar.
Com efeito, o enriquecimento sem causa ocorre quando se dá qualquer acréscimo patrimonial
sem justa causa jurídica18. Se o juiz arbitra um valor que entende satisfatório para a
compensação do dano moral, ao estabelecer qualquer aumento, sem fundamento no
ordenamento, estará criando uma situação de enriquecimento sem causa por parte da vítima.
17
ANDRADE, Ob. Cit., p. 240.
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o
indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
18
12
Isto sem falar, em relação ao agente, na inobservância do art. 5°, XXXIX, da Constituição
Federal que dispõe que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia
cominação legal”.
Em grande parte das vezes as indenizações não são calculadas em duas partes, uma
compensatória e outra punitiva, o que dificulta a defesa. Desde a petição inicial já se formula
um único pedido de indenização, incorporando o aspecto reparatório-compensatório e o
caráter punitivo. A sentença é proferida no mesmo sentido, aplicando uma condenação em
bloco, sem distinguir o quantum de cada espécie. Esta prática dificulta não somente a defesa e
a possibilidade de recurso, mas também a julgamento do magistrado sobre o valor atribuído
em caráter de punição.
Neste sentido, entendemos que a aplicabilidade dos danos punitivos no Direito brasileiro deve
ser baseada nas funções social e econômica da propriedade que, incidindo sobre a
responsabilidade civil, conferem-lhe um poder de limitar o exercício do direito pelo titular
quando ele for abusivo. Assim, o juiz somente poderia aplicar uma indenização em caráter
punitivo quando o agente auferisse vantagem econômica com a prática do ilícito, com
fundamento no princípio da justiça corretiva e na tutela inibitória. Desta maneira, a
responsabilidade civil cumpriria a função de evitar o abuso do poder econômico e garantir a
justiça na concorrência.
3.1. Punitive damages, dissuasão, reincidência e danos em massa
Como foi visto, a doutrina e a jurisprudência nacionais concordam que a aplicação dos punitive
damages tem um caráter pedagógico, dissuasivo da reincidência19. Entretanto, nem é rara a
preocupação nas fundamentações com os riscos de reincidir apresentados pela agente. Aplicase indiscriminadamente a punição com o argumento do desestímulo à repetição do ilícito
mesmo que o autor do dano não apresente qualquer indício de que possa vir a fazê-lo. Ficam
19
De acordo com VENOSA,“Não se identifica, em princípio, esse aspecto dissuasório, com o aspecto
didático ou pedagógico. A condenação por dano moral pode incutir no sentimento social o caráter de
ilicitude em determinada conduta, mormente quando esse aspecto não é muito conhecido no meio
social. Para que essa finalidade pudesse ser atingida plenamente, há necessidade de que, de lege
ferenda, permita-se ao julgador determinar a publicação da sentença em veículos que atinjam
determinados segmentos mais ou menos amplos da sociedade, como consectário da condenação. Nem
sempre a imprensa noticia decisões importantes e, quando o faz, peca com freqüência por não informar
corretamente.” (VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. Vol IV. 7ª ed. São Paulo :
Atlas, 2007, p. 288)
13
apenas os argumentos, sem qualquer aproximação com o caso concreto que justifique a
aplicação da pena.
Além disso, utilizar-se tão-somente do argumento da dissuasão não nos parece suficiente, uma
vez que o direito penal já cumpre este múnus. A nosso ver, será sempre de todo inadequada a
aplicação de indenização punitiva quando o caso concreto já ensejar, na seara penal,
administrativa, tributária ou ambiental algum tipo de pena expressamente previsto em lei. Não
se trata somente de querer evitar o bis in idem, que nos parece ser possível quando a lei
expressamente o determinar, mas principalmente a utilização de uma pena civil, sem previsão
legal expressa, arbitrária, autoritária e sem fundamento quando o ordenamento,
compreendido em sua completude, já estabelece maneiras outras de dissuadir e evitar a
reincidência.
Contrariar tal entendimento significará deixar de lado toda uma construção garantista dos
direitos fundamentais, especialmente quanto ao princípio da legalidade já referido acima,
expresso no art. 5°, XXXV, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “não há crime sem
lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”20. Neste sentido, a doutrina
penal sustenta que
“o princípio da legalidade, base estrutural do próprio estado de
direito, é também a pedra angular de todo o direito penal que aspire
à segurança jurídica, compreendida não apenas na acepção da
‘previsibilidade da intervenção do poder punitivo do estado”, que lhe
confere Roxin, mas também na perspectiva subjetiva do ‘sentimento
de segurança jurídica’ que postula Zaffaroni. Além de assegurar a
possibilidade do prévio conhecimento dos crimes e das penas, o
princípio garante que o cidadão não será submetido a coerção penal
distinta daquela predisposta na lei. Está o princípio da legalidade
inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na
Convenção Americana sobre Direitos Humanos”.21
Para se ter uma perspectiva do que se diz, veja-se
PROCESSO CIVIL. AGRAVO CONTRA INADMISSÃO DE RECURSO
ESPECIAL. PROVIMENTO PARCIAL. PRECLUSÃO DOS TEMAS
DESACOLHIDOS NO AGRAVO. CIVIL. INDENIZAÇÃO. VINGANÇA.
DISPAROS DE ARMA DE FOGO. PARAPLEGIA. MOTIVO FÚTIL. DANO
20
Mesmo no Código Civil, o art. 12 supracitado faz referência apenas à possibilidade de se aplicar outras
sanções à lesão aos direitos da personalidade, além das perdas e danos, desde que previstas em lei.
21
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro : Revan, 1990, p. 67.
14
MORAL. VALOR DA INDENIZAÇÃO. CONTROLE PELO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MAJORAÇÃO. PENSÃO MENSAL. MAJORAÇÃO.
DESPESAS COM ADVOGADOS PARA ACOMPANHAR AÇÃO PENAL
CONTRA O AUTOR DOS DISPAROS. INDEFERIMENTO. TRATAMENTO
NO EXTERIOR. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
I – O valor da indenização por dano moral sujeita-se ao controle do
Superior Tribunal de Justiça, desde que o quantum contrarie a lei ou
o bom senso, mostrando-se manifestamente exagerado, ou irrisório,
distanciando-se das finalidades da lei. Na espécie, levando em
consideração a situação econômico-social das partes, a atividade
ilícita exercida pelo réu 2º recorrente, de ganho fácil, o abalo físico,
psíquico e social sofrido pelo autor, o elevado grau da agressão, a
ausência de motivo e a natureza punitiva e inibidora que a
indenização, no caso, deve ter, mostrou-se insuficiente o valor fixado
pelo Tribunal de origem a título de danos morais, a reclamar
majoração.
II - Ainda que se admita que o autor tenha desrespeitado a honra do
réu, o certo é que a reação deste foi manifestamente
desproporcional, passando longe, e muito, do tolerável. E não se
pode deixar de considerar que, na espécie, as lesões decorreram de
conduta criminosa, de acentuado dolo, como se vivêssemos em um
País sem leis e em estado de barbárie.
III - A pensão mensal nos termos requeridos não agride o razoável e
nem se mostra injusta, considerando as circunstâncias da causa,
notadamente o padrão econômico-social das partes.
IV - O valor eventualmente pago aos advogados criminalistas, na
espécie, não são incluídos, por não ser essa despesa obrigatória, mas
opcional, sendo apenas facultativa a contratação de assistência da
acusação.
V - O provimento em parte do agravo interposto contra a inadmissão
do recurso especial restringe o conhecimento da Turma à matéria
ainda não decidida, uma vez havida a preclusão quanto aos demais
temas.
(REsp 183.508/RJ, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA,
QUARTA TURMA, julgado em 05/02/2002, DJ 10/06/2002 p. 212,
REPDJ 14/10/2002 p. 231)
Percebe-se do colacionado na ementa da decisão acima que o caráter inibidor da indenização
é tratado em confusão com o punitivo, além de não haver maiores fundamentos para sua
aplicação. Para se ter uma idéia, no voto do relator, vencedor no caso, o único momento em
que faz referência ao desestímulo é na seguinte passagem:
“Por outro lado, essa indenização deve ser fixada em termos
razoáveis, não se justificando que a reparação venha a constituir-se
em enriquecimento indevido, com manifestos abusos e exageros,
devendo
o
arbitramento
operar-se
com
moderação,
proporcionalmente ao grau de culpa e ao porte econômico das
partes, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e
pela jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua
15
experiência e do bom senso, atento à realidade da vida e às
peculiaridades de cada caso. Ademais, deve procurar desestimular o
ofensor a repetir o ato.”
Ora, o caso relatado se tratou de uma briga de rua, motivada pelo fato de que a vítima
supostamente teria flertado com a esposa do autor do dano, que acabou por disparar contra o
seu adversário com arma de fogo, causando-lhe paralisia. É brutal o incidente e, sem dúvida,
comovente. A reação do Réu foi totalmente desproporcional e digna de repreensão. Mas não
cabe ao juízo cível fazê-lo. Observe-se que não há maiores evidências de que o Autor da
agressão venha a reincidir, mormente tendo sido condenado na seara penal. Não tem
fundamento uma punição cível, pecuniária, não prevista na lei, quando o fato é sujeito ao juízo
penal, que pode mesmo constranger a liberdade do condenado, na forma da lei.
É inadmissível o julgador de uma causa cível querer aplicar uma punição apoiando-se
exclusivamente no fundamento de que “não se pode deixar de considerar que, na espécie, as
lesões decorreram de conduta criminosa, de acentuado dolo, como se vivêssemos em um País
sem leis e em estado de barbárie”. Não se trata de um país sem lei, ao contrário, a lei existe e
deve ser aplicada por quem é competente para este fim. O processo civil é concebido com o
objetivo de reparar/compensar os danos experimentados pela vítima, não para punir o agente,
que é matéria de outros ramos do Direito. A aplicação da pena nestes casos não é apenas
arbitrária, mas também autoritária, por ausência completa de fundamento na lei, e
antidemocrática, porque proferida por aquele que não é investido de legitimidade, no caso
concreto, para punir.
Por fim, ainda que se trate de uma hipótese de dano moral em que a conduta do agente não
venha a sofrer nenhum outro tipo de punição, não basta a mera possibilidade de reincidência,
mas ela deve proporcionar alguma vantagem para o autor do dano. Em outras palavras,
entendemos que o argumento da dissuasão somente terá sentido se existirem razões
suficientes para acreditar que haverá a reincidência. A dissuasão vazia, apenas por um palpite
do julgador, é arbitrária e não deve ser admitida.
No sentido de se exigir alguma vantagem para a aplicação do punitive damages, o princípio da
justiça corretiva defendido por COLEMAN, segundo o qual o dever de reparação daquele que
age culposamente é assegurado pelo ganho injusto. Para o Professor da Universidade de Yale,
16
“na ausência de um ganho injusto, a justiça corretiva não exige que o direito da
responsabilidade extracontratual implemente um sistema de compensação”22.
A aplicação do dano punitivo terá sentido nas hipóteses em que o agente já vem reincidindo,
especialmente quando aufere alguma vantagem pelo cometimento do dano. E a prova desta
vantagem deve constar dos autos, exceto quando for notória, como já acontece no caso dos
bancos, empresas de telefonia, empresas aéreas, supermercados etc. Nestes casos, como se
sabe, os custos de evitar os acidentes são sensivelmente maiores que os que se paga com as
indenizações por danos morais causados aos consumidores. Para inibir os danos em massa, a
indenização punitiva encontraria fundamento constitucional na função social da propriedade e
da livre iniciativa, justificando a exceção ao princípio da necessidade de previsão legal anterior
da pena.
3.2. Punitive damages e abuso do poder econômico
Outra situação, conectada com a que acabamos de defender, de aplicação de punitive
damages no Brasil tem fundamento no abuso do poder econômico. Aqui, não se trata apenas
do argumento da reincidência, que pode até se fazer presente, mas não é o mais relevante.
Trata-se de uma situação em que o agente causa o dano porque, economicamente, pode
suportar a indenização esperada e, por esta razão, comete-o deliberadamente. É cediço que o
direito brasileiro adotou a teoria objetiva do abuso do direito, mas entendemos que tal teoria
aplica-se apenas com a finalidade reparatória-compensatória do dano causado. No caso de
aplicação de danos punitivos, será necessário em caráter emulativo e doloso na conduta do
agente.
Exemplificativamente, seria a hipótese de uma empresa, ciente de que certa celebridade está
para fechar contrato publicitário com uma empresa concorrente, resolve antecipar o uso não
autorizado de sua imagem em uma propaganda comercial. Havendo indícios de que a empresa
contava com arcar com o pagamento de uma indenização para a vítima por danos materiais e
morais como custo normal de seu comportamento, a indenização punitiva terá sentido. Não
tanto para inibir a reincidência (embora o efeito colateral também fosse este), mas
principalmente para tornar o ilícito desvantajoso. Com efeito, nestes casos, a indenização
22
COLEMAN, Jules L. “La justicia correctiva y el enriquecimiento sin causa” em ROSENKRANTZ, Carlos F.
(comp.) La Responsabilidade extracontractual. Barcelona : Editorial Gedisa, 2005, p. 68
17
punitiva se fundaria não somente na função social, mas também na função econômica da
propriedade, que não pode ser utilizada com o intuito de prejudicar.
Uma situação semelhante com esta já foi julgada pelo Superior Tribunal de Justiça, como se vê
abaixo:
CIVIL. PRESCRIÇÃO. DIREITO DE IMAGEM. Violação continuada. Para
fins prescricionais, o termo 'a quo', envolvendo violação continuada
ao direito de imagem, conta-se a partir do último ato praticado.
Ausência de elementos probatórios quanto à autorização anterior
para a publicação da fotografia. Exploração de imagem sem contrato
escrito, se limita ao prazo máximo de cinco anos. Art. 49, III da Lei
9610/98. Valor moral arbitrado em consonância com jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça.
RECURSO IMPROVIDO.
(REsp 1014624/RJ, Rel. Ministro
VASCO DELLA GIUSTINA
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA,
julgado em 10/03/2009, DJe 20/03/2009)
Trata-se de ação indenizatória pelo uso indevido de fotografia de vencedora de concurso de
Miss Senhorita Rio na capa de obra fonográfica reeditada. A lesão reclamada na inicial consiste
na edição desautorizada da imagem da Autora na capa de compact-disc relançado em 2002.
No voto vencedor do Ministro Relator, ficou estampado que
“[O Réu] em nenhum momento comprovou esta a existência de
autorização ou aquiescência para o uso da imagem, quando da
primeira edição, o mesmo ocorrendo, quando da reedição da
fotografia, objeto da presente ação. Nem há como presumir-se ou
interpretar-se, à míngua de provas, a inércia da recorrida nos anos
que se passaram, como autorização tácita para a publicação.
Inescusado acrescentar-se que a violação do direito de imagem
ocorre toda vez que a mesma é publicada, sem autorização, com o
que a violação se renova, de forma continuada.”
No que tange à indenização, o Ministro sustentou:
“Por fim, analiso a pretensão de redução da condenação dos danos
morais fixados em R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais).
O valor do dano moral tem o escopo de atender a sua dupla função:
reparar o dano e punir o ofensor para que não volte a reincidir
(elemento pedagógico punitivo).
Julgo que a indenização arbitrada cumpre perfeitamente as duas
funções acima referidas, não destoando, também, da jurisprudência
18
desta Corte em casos semelhantes, de modo que se mostra inviável a
sua redução.”
Como se vê, o mais uma vez o caráter punitivo da indenização é levantado com pobre
fundamentação, baseado tão somente na dissuasão da reincidência. O caso concreto permitia
uma digressão mais substancial no sentido de reconhecer o ato abusivo do agente que utilizou
sem autorização a fotografia da vítima, com o aparente objetivo de evitar uma possível
resposta negativa em caso de pedido de autorização. Esta é uma situação que nos parece
razoável a aplicação da indenização com caráter punitivo pelo abuso da posição dominante.
Conclusão
A aplicação dos danos punitivos de maneira indiscriminada é uma simplificação demasiada ou
uma recusa a uma reflexão mais profunda. No Brasil, a tendência à simplificação e à facilitação
na argumentação conduz à formação de uma jurisprudência insegura e contraditória. Nos
julgados sobre danos punitivos, prevalecem fundamentações rasas, arbitrárias e, muitas vezes,
autoritárias, fundadas unicamente no sentimento de justiça dos magistrados.
Alguns dos fundamentos utilizados para aplicação dos danos punitivos parecem inadequados
quando pensados isoladamente, como a condição social e econômica do agente e da vítima.
Quando se leva em consideração a condição sócio-econômica da vítima, acaba-se por levar a
indenizações menores para as pessoas mais pobres, como acontece cotidianamente nos
juizados especiais de consumidor. Com efeito, não é difícil participar de audiências que, em
uma situação fática idêntica, o juiz condene o fornecedor a uma indenização maior para a
pessoa que mora em um bairro melhor e tem emprego mais bem remunerado que para uma
pessoa menos favorecida sócio-economicamente.
Por outro lado, aplicar uma indenização mais elevada apenas com base no fato de que se trata
de um agente causador do dano economicamente mais abastado também não nos parece
argumento suficiente. Em alguns casos, o julgador se limita a dizer que “a indenização deve ser
majorada em razão da condição econômica favorável do agente, que não se sentirá dissuadido
com uma indenização muito baixa”. O argumento é frágil e não resiste a uma análise mais
minuciosa de alguns casos concretos em que pessoas abastadas se sentem terrivelmente mal
pelo simples fato de terem cometido um dano, e a condenação a pagar os danos morais
19
compensatórios já é para elas desestímulo suficiente à reincidência (sendo em muitos casos
nem seria o caso de haver qualquer risco de o dano voltar a acontecer).
Bem andou o Superior Tribunal de Justiça no caso a seguir, em que a condição econômica mais
favorecida da empresa não foi empecilho para reconhecer que a conduta do agente foi a
melhor possível diante do dano já causado:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. PERDA DE CONEXÃO EM
VÔO INTERNACIONAL. REDUÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO,
FIXADO EM R$ 12.000,00 PARA R$ 3.000,00 A CADA UM DOS
AUTORES.
I - As circunstâncias da lide apresentam peculiaridades que justificam
a redução do quantum indenizatório, em especial o suporte
oferecido pela empresa Recorrente para minimizar os transtornos e
constrangimentos sofridos pelos Autores.
Agravo Regimental improvido.
(AgRg no Ag 1070474/RJ, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA
TURMA, julgado em 19/02/2009, DJe 09/03/2009)
Outros fundamentos utilizados pela doutrina e jurisprudência, como a moderação e a
razoabilidade, na maior parte das vezes não passa de retórica e são utilizados apenas para o
magistrado impor seu sentimento de justiça às partes no caso concreto. É claro que, por outro
lado, a formação paulatina de uma tradição fundada nos julgamentos reiterados confere
alguma legitimidade à aplicação indiscriminada das indenizações com caráter punitivo, mas
esperamos que a tradição se sustente, progressivamente, em fundamentos mais sólidos de
forma a garantir, com maior legitimidade, um grau de segurança satisfatório nas relações
privadas.
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21
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