Mariana Pargendler
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul
www.ufrgs.br
O caráter exemplar da indenização e o Direito Civil Brasileiro:
pena privada ou punitive damages1
Mariana Pargendler
(Acadêmica da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Bolsista PIBIC/CNPq)
“Se alguém furtar um boi (ou uma ovelha), e o matar ou vender,
por um boi pagará cinco bois, e por uma ovelha, quatro ovelhas”.
(Êxodo 22:1)
Introdução. I – Pena privada e punitive damages:
desenvolvimento histórico do caráter exemplar da responsabilidade civil.
SUMÁRIO:
A) Contornos da pena privada no Direito Romano. B) A tradição anglo-saxônica e os
punitive damages. II – O caráter exemplar da responsabilidade civil e o
Direito Civil Brasileiro. A) Hipóteses que ensejam a adoção do caráter exemplar. B)
A função punitiva/preventiva da indenização no Direito Brasileiro: a questão dos danos
morais. Conclusão.
1
Este trabalho integra o programa de atividades desenvolvidas dentro do Projeto de Pesquisa
“Temas atuais
de Direito Privado”, apoiado pelo CNPq e coordenado pela Prof. Dra. Judith Martins-Costa, da Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Cumpre-nos a satisfação de prestar-lhe amplo
agradecimento, já que teria sido impossível realizar esta pesquisa sem a sua valiosa orientação.
Introdução
A responsabilidade civil, um dos institutos centrais do Direito, atende a uma série de
funções como a compensação do dano sofrido, a satisfação do ofendido, a punição do
ofensor, a prevenção dos atos ilícitos e a distribuição dos prejuízos. O presente estudo
busca traçar um paralelo entre o caráter exemplar da indenização que vem sendo adotado de
forma crescente no Direito Brasileiro e os institutos dos punitive damages da tradição
anglo-saxônica e da pena privada, que remonta ao Direito Romano.
Nos sistemas jurídicos romano-germânicos, entre os quais se inclui o Brasil, não
raro se costuma afirmar que, uma vez consagrada a autonomia da responsabilidade civil
relativamente à responsabilidade penal, a função punitiva foi atribuída exclusivamente a
esta última. Concomitantemente, atribuiu-se à responsabilidade civil caráter exclusivamente
reparador, tendo em vista, entre outras razões, a vedação ao enriquecimento sem causa.
Porém, as preocupações mais recentes da civilística com a justiça distributiva (e não
apenas a justiça comutativa) no Direito Brasileiro renovam o antigo debate acerca do
possível caráter sancionador da responsabilidade civil mesmo nos países onde essa noção
era veementemente criticada. A idéia de punição exemplar liga-se, justamente, ao
reconhecimento do caráter sancionador da responsabilidade civil, que passa a incorporar
entre as suas funções a prevenção e a punição de condutas reprováveis mediante o
significativo aumento do quantum da indenização em determinados casos concretos, com
caráter de exemplaridade social.
É possível encarar as funções de punição e prevenção de duas formas distintas. Pela
primeira, a função punitiva e preventiva são como que aglutinadas, resultando como
verdadeiro efeito colateral da obrigação ressarcitória2. Explica-se. Em boa parte dos casos,
o causador do dano em nada lucra com o ato ilícito cometido. Assim, por exemplo, quando
Pedro, por distração, ao tirar se carro da garagem, atinge o carro de sua vizinha, causando
danos visíveis a este. Pedro, ao pagar à vizinha o valor equivalente aos reparos necessários,
certamente estará em situação pior à anterior ao acidente, fato que, por si, pode ser
considerado como punição ao seu comportamento imprudente ou negligente, além de
estímulo para que Pedro preste mais atenção de modo a evitar danos futuros.
No presente trabalho, porém, não será este o prisma a ser adotado. Busca-se aqui
examinar a admissibilidade das funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil,
autonomamente com relação à função compensatória. Por função autônoma se procura
expressar seja o aumento do quantum relativamente ao necessário para a compensação do
dano, para atender à finalidade exemplar da responsabilidade civil, seja, ainda, tal como
acontece nos Estados Unidos, na fixação de um tipo especial de indenização para atender a
essa finalidade: os punitive damages.
Para melhor analisar a aplicação hodierna do caráter exemplar da responsabilidade
civil no Direito Brasileiro, primeiramente, pretende-se traçar um paralelo entre os institutos
da pena privada, do Direito Romano, e dos punitive damages, do direito anglo-saxônico.
Após, parte-se para o estudo da função punitiva e preventiva que a responsabilidade civil
2
A esse respeito, as observações de João Casillo. “Etimologicamente, não há indicação de que a palavra
indenização tenha correlação com a idéia de sanção, mas não se pode negar que, como corolário do dano
causado, a indenização também tenha função sancionatória ao causador do dano. Não se pode fugir desta
realidade, pois ela é muito importante, até sob o ponto de vista psicológico-social. Aliás, é inegável esta
constatação, pois aquele que indeniza, mesmo que o faça amigavelmente, sem coação do Poder Judiciário,
sente o aspecto sancionatório da indenização.Além disso, a possibilidade de as pessoas serem obrigadas a
indenizar, quando agentes de atos ilícitos, pesa fundamentalmente nas atitudes de cada um. Os que
praticariam o ato dolosamente pensam duas vezes antes de fazê-lo. Os que poderiam praticar por culpa,
aguçam seus sentidos, para não incorrerem em imprudência, negligência e imperícia.Tanto é verdade que a
indenização também está ligada à idéia de sanção, que, em vários códigos, há uma identificação com o Direito
Penal, e em outros, mantém-se a possibilidade da prisão civil pelo não cumprimento da obrigação”.
CASILLO, João. Dano à pessoa e sua indenização. 2. ed. São Paulo: RT, 1994, p.81-82.
pode exercer, no direito continental, e da aplicação que tal concepção vem recebendo pelo
Direito Brasileiro.
I – Pena privada e punitive damages: desenvolvimento histórico
do caráter exemplar da responsabilidade civil
A) Contornos da pena privada no Direito Romano
1) A pena privada no Direito Romano clássico
A indenização da parte lesada é, sem nenhuma dúvida, uma função básica da
responsabilidade civil. Porém, historicamente, é verdade que a indenização da vítima não
foi a primeira função da responsabilidade civil. Nas sociedades primitivas, o dano aparecia
principalmente como um rompimento da ordem social e mesmo da ordem cósmica.3
A primeira forma encontrada pelas sociedades primitivas para reagir contra os danos
foi a vingança, que pode ser considerada como a pré-história da responsabilidade civil. Em
um estágio mais avançado da evolução histórica, surgiu a lei de talião como um primeiro
temperamento aos costumes primitivos. Foi somente em uma terceira etapa que se
vislumbrou na responsabilidade civil uma nova possibilidade de reação aos atos danosos.4
Nesta primeira fase da responsabilidade civil, bem testemunhada pela evolução do Direito
Romano, a função principal da responsabilidade civil não era tanto a de ressarcir o
3
4
TUNC, André. Torts. Introduction. In: International Enciclopedia of Comparative Law. v. 11. cap.1, p.93.
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.39 e ss.
ofendido, mas a de punir o responsável pela lesão5. No Direito Romano, a pena privada
tinha lugar no âmbito dos delitos privados (delicta), que eram os ilícitos contra a pessoa ou
aos seus bens, precisamente o furtum, a rapina, a iniuria, e o damnum iniuria datum. Aos
delicta opunham-se os delitos públicos (crimen), isto é, as infrações ao Estado e à paz do
reino, punidas com a poena publica.6
Quando ocorria um delito privado, o Estado não tomava a iniciativa de punir o
ofensor, mas assegurava à vítima o direito de intentar contra este uma actio para obter sua
condenação ao pagamento de determinada quantia, como pena (poena privata).7
A pena privada, em seu aspecto essencial, visava à pessoa do réu e conformava-se
ao princípio da adequação, isto é, devia corresponder ao dano e só podia ser imposta por via
da actio poenalis, o sucedâneo histórico da vingança privada. Podia, pois, definir-se como a
sanção de um ato privado legítimo, sanção que procurava, no direito histórico, afligir o réu
mediante diminuição do seu patrimônio. Predominava, pois, sobre a idéia do ressarcimento,
a noção de pena. Não era reparação, mas apresentava estrutura correlativa à da pena
pública. Revestido dos característicos que lhe emprestou o direito romano clássico, o
sistema oferece, conforme atesta Pascuale Voci, o mais belo documentado exemplo de
como pode a pena adequar-se ao crime. É o mesmo autor que conclui: “O conceito da actio
poenalis é preciso: é penal a ação que tenha função penal”.8
5
The idea that certain kinds of conduct should be vindicated by an award of multiple damages runs deep.
Biblical law embodied the ideal for theft and trespass. Greek law, otherwise. Nevertheless, the rationale
behind the various sanctions found in the law of the ancient world did not clearly differentiate what is
commonplace to us: “tort” and “crime”. Roman law is illustrative. The delict of theft ran back at least to the
Twelve Tables (450 B.C.). The penalty was four times the value of the thing stolen. As with Biblical and
Greek law, Roman law did not, therefore, fully make our distinction between “crime” and “tort”. BLAKEY,
Robert. Of characterization and other matters: thoughts about multiple damages.Disponível em
http://www.law.duke.edu/shell/cite.pl?60+Law+&+Contemp.+Probs.+97+(Summer+1997) . Acesso em 16 de
novembro de 2003.
6
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.265.
7
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.265.
8
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.733.
No direito clássico, os delitos ensejavam a actio poenalis, mediante a qual pode ser
imposta uma multa ao delinqüente. A actio poenalis opõe-se às demais ações dirigidas ao
autor do dano, as chamadas actiones rem persequentes, que visam tão somente a ressarcir o
prejuízo causado. A multa pode importar um múltiplo do dano causado (duplum, triplum,
quadruplum, e algumas vezes, somente o simplum), mas nem sequer neste último caso pode
ser considerada uma ação de indenização.9
Conforme observa Pasquale Voci, o Direito Romano não atribui função
reipersecutória a nenhuma ação penal e chama de poenalis somente as ações que sejam
verdadeiramente e exclusivamente tais por sua fonte, pela sua estrutura, pela sua função.10
Essas ações, que compreendiam a devolução de uma soma múltipla de até quatro vezes a
importância do dano efetivamente sofrido eram qualificada de poenales, em contraposição
às ações meramente reipersecutorie, que tinham a finalidade de reintegrar a composição
patrimonial à parte lesada.11
No Direito Romano, na origem, a responsabilidade civil era concebida
primordialmente como instrumento sancionatório para a tutela de situações jurídicas
relevantes. O escopo das várias actiones poenales privadas não era o ressarcimento do
dano, mas a sanção ou a repressão a determinadas condutas lesivas de interesses privados,
como por exemplo o furto e o roubo, a atuar-se mediante a obrigação de devolver somas
mais que compensatórias, múltiplas dos danos sofridos.12
Assim, conquanto no direito clássico, essa poena privata tem o mesmo caráter
punitivo da pena pública, no direito justinianeu, porém, ela passa, em verdade, a configurar-
9
SCHULTZ, Fritz. Derecho romano clásico. Trad. José Santa Cruz Teigeiro. Barcelona: Bosch, 1960, p.40.
VOCI, Pasquale. Risarcimento e pena privata nel diritto romano clássico. Milano: Giuffrè, 1939, p.5-6.
11
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.40.
12
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.38.
10
se como ressarcimento do dano sofrido pela vítima, embora continue a denominar-se
poena.13
2) O desprestígio da noção de pena privada no sistema jurídico continental
Como se sabe, a noção de pena privada paulatinamente saiu de cena do direito
continental a partir do período justinianeu. O fenômeno foi de tal monta que até mesmo o
célebre Rudolf von Ihering, antes de se mostrar defensor da pena privada em sua A luta
pelo direito, chegou a proclamar que “a história da pena privada é a história de sua
decadência”.
Atribui-se à jurisprudência romana o mérito de haver iniciado validamente o
movimento de “despenalização” total do direito privado, tendente a eliminar dele todo
elemento penalístico, com a construção de um ilícito aquiliano apenas e tão somente de
caráter reipersecutório.14
Os fatores que conduziram ao aprofundamento da nítida cisão dos planos ressarcitório e
punitivo já iniciada ao final do período romano são múltiplos. Tome-se, por exemplo, a
influência dos ideais de justiça comutativa propugnados por São Tomás de Aquino; nessa
perspectiva, deveria ser banido qualquer transferência injustificada de riqueza de um sujeito
a outro. Segundo São Tomás, diferentemente da lei positiva aplicada ao seu tempo, quem
fosse culpado por um furto poderia liberar-se simplesmente restituindo aquilo que havia
subtraído. Tais idéias sugeriam a limitação da obrigação de indenizar ao mero
ressarcimento do dano efetivamente infligido.15
13
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.266.
CAHALI, Yussef Said. Dano e indenização. São Paulo: RT, 1980, p.20.
15
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.40 e ss.
14
O processo de despenalização da responsabilidade civil surgiu não somente no
sentido de limitar cada vez mais a obrigação ressarcitória somente aos danos efetivamente
sofridos, mas também no sentido de tornar cada vez mais uniforme as regras desse instituto.
As várias ações penais romanas comportavam a aplicação de regras diferentes segundo o
tipo de ação não somente sob o ponto de vista dos pressupostos da ação, mas também sob o
ponto de vista do quantum ressarcitório que variava segundo a gravidade da lesão; por
exemplo, o roubo, enquanto crime mais grave, comportava uma obrigação ressarcitória
maior que a do simples furto e assim por diante.16
Como observa Paolo Gallo, “In epoca più moderna la crescente prevalenza assunta
dall’actio legis aquiliae, che era l’unico rimedio romano che non presupponeva
necessariamente il dolo, doveva condurre ad uma crescente uniformazione delle regole
applicate in materia di responsabilità civile, fino a consentire l’emersione di um corpus
unitario compatto di regole da applicarsi in quasiasi ipotesi di dannegiamento doloso o
colposo dei beni altrui”.17
O processo não somente conduziu ao cancelamento da originária função penal da
responsabilidade civil, mas também à eliminação de várias diferenças que antes existiam
quanto aos diversos tipos de ilícitos, segundo à sua gravidade e segundo o elemento
subjetivo do autor da lesão.
Acrescente-se a isso a contraposição público-privado resultante do ideário liberal. O
Código Civil dos franceses introduzira, como uma de suas maiores inovações, a separação
rigorosa entre a matéria civil e os tipos penais, distinção que começara já pela opção de
criar diferentes documentos legislativos para cada uma dessas disciplinas. Como observa
16
17
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.43.
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.43.
Hans Hattenhauer, a separação não emergia de qualquer esforço de cientificidade ou
sistematização, mas, sim, da rígida divisão entre o Direito Público e o Direito Privado, entre
a liberdade do cidadão quanto à circulação dos bens e sua posição frente ao poder estatal –
separação esta de fundamental importância para assegurar a plena autonomia na sociedade
burguesa”. Nesse contexto, a separação entre pena e indenização foi mais uma das
conseqüências dessa mentalidade, justificando-se pois, tendo em vista os objetivos a serem
alcançados, era, então, imprescindível retirar da indenização qualquer conotação punitiva; a
pena dirá respeito ao Estado e a reparação, mediante indenização, exclusivamente ao
cidadão.18
Assim, à época do Code, aparentemente, a responsabilidade civil já havia sido
purificada de todo e qualquer resquício penal, considerado totalmente estranho ao seu
escopo e funcionamento. Na realidade, a pena privada passou a ser vista como um indício
da barbárie das civilizações mais remotas. Com efeito, os Mazeaud, ao se referir à pena
privada, insistem em frisar que “ce bénéfice vient apaise l’antique besoin de vengeance qui
sommeille au fond du coeur de chaque victime. L’homme qui a souffert, n’est pas au fond
du coeur de chaque victime. L’homme qui a souffert n’est pas satisfait par cela seul que
disparaît sa souffrance; l’instinct le pousse à désirer que l’auteur de la faute souffre à son
tour le même mal. L’idée est barbare; elle tient à tout ce qu’il y a de mauvais dans la
nature humaine”. Acrescentam, ainda, que as penas privadas são “indéfendables em droit
comme em éqüite. Juridiquement, la condamnation civile repose sur le vide, ce que est dire
18
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa: uma leitura civil-constitucional. Rio de Janeiro,
Renovar, 2003, p.201-202.
qu’elle s’effondre; le responsable se voit obligé de réparer non seulement un préjudice
qu’il n’a pas causé, mais même un préjudice qui n’existe pas”.19
Assim, tamanho era o repúdio à noção de pena privada que, quando Boris Starck
lançou sua famosa tese em 1947, esta foi rechaçada, não obstante a repercussão que obteve
a sua posição. Talvez, porém, a profecia de Boris Starck, segundo o qual “la peine privée
ne meurt que pour renaître” 20, parece ter se realizado com o crescente prestígio que a
responsabilidade civil punitiva vem assumindo também em países que seguem a tradição
jurídica romano-germânica.
B) A tradição anglo-saxônica e os punitive damages
1) Histórico e panorama atual do instituto
Os punitive damages, também chamados, exemplary damages, vindictive damages
ou smart money consistem na soma em dinheiro conferida ao autor de uma ação
indenizatória em valor superior ao necessário à compensação do dano, tendo em vista a
dupla finalidade de punição (punishment) e prevenção (deterrence). Os punitive damages,
portanto, opõem-se aos ditos compensatory damages, que consistem no montante da
indenização equivalente ao dano causado, atribuído com o objetivo de ressarcir o prejuízo.
A prática de condenar o causador de um dano a indenizar múltiplos do dano, típica
do Direito Romano, ingressou na tradição anglo-saxônica já nos tempos de Eduardo I,
quando se passou a atribuir parte prejudicada o direito a perceber o dobro ou o triplo dos
19
MAZEAUD & MAZEAUD. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et
contractuelle. Paris: Sirey, 1950, p.470-471.
20
STARCK, Boris. Essai d’une théorie générale de la responabilité civile considerée en sa double fonction
de garantie et de peine privée. Paris: L. Rodstein, 1947, p.377.
danos por ela sofridos. Por isso, de modo muito característico no Direito inglês, o castigo
era infligido mediante o exercício de ações civis, na forma de uma reparação equivalente a
um múltiplo do valor do dano sofrido. Estes princípios são perfeitamente aplicáveis ao
Direito Romano do fim da República. No direito moderno romano, as ações penais
evoluíram gradualmente até adquirir o caráter de ações cuja finalidade era conseguir uma
compensação. Na Inglaterra, serviram de modelo aos legisladores da época de Eduardo I.21
Tem-se como a primeira previsão de indenização múltipla no direito anglo-saxônico o
Statute of Councester, da Inglaterra, que data de 1278.22
Embora a possibilidade de indenização superior ao dano não fosse estranha à
tradição anglo-saxônica, a origem da doutrina dos exemplary damages originou-se nas
cortes inglesas no século XVIII como um meio para justificar a atribuição de indenização
quando não havia prejuízo tangível, ou seja, no caso de danos extrapatrimoniais.23 É
corrente a afirmação de que “the right of a jury in certain cases to award exemplary
damages has been said to be as old as the right of trial by jury itself”.24
Em 1760, algumas cortes começaram a explicar grandes somas concedidas pelos
júris em casos graves como compensação ao autor por mental suffering, wounded dignity e
injured feelings. Essa indenização adicional por dano à pessoa eram referidos como
exemplary damages pelas cortes que justificavam a condenação afirmando que as
indenizações elevadas tinham por objetivo não só compensar o lesado pelo prejuízo
21
SCHULTZ, Fritz. Derecho romano clásico. Trad. José Santa Cruz Teigeiro. Barcelona: Bosch, 1960,
p.548-549.
22
BLAKEY, Robert. Of characterization and other matters: thoughts about multiple damages.Disponível em
http://www.law.duke.edu/shell/cite.pl?60+Law+&+Contemp.+Probs.+97+(Summer+1997) . Acesso em 16 de
novembro de 2003.
23
Note. Exemplary damages in the Law of Torts. Harvard Law Review, n. 70, 1957, p.517 ss.
24
Corpus Juris Secundum. “Damages”. New York. The American Law Book Co., p.708.
intangível sofrido, mas também punir o ofensor pela conduta ilícita25. Na verdade, tais
objetivos foram confundidos pelas Cortes inglesas e norte-americanas até meados do século
XIX.26
Porém, no decorrer do século XIX 27, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra,
o conceito de actual damages (categoria que representa os danos efetivos, na qual se
incluem as perdas e danos compensatórias) foi ampliado para abarcar também o prejuízo
intangível. Como conseqüência, a função originalmente compensatória dos exemplary
damages foi transferida aos actual damages, e as cortes foram levadas a falar dos
exemplary damages exclusivamente em termos de punishment e deterrence.28
Assim, atualmente o conceito de punitive damages mostra-se desvinculado de sua
ligação originária com a indenização dos danos extrapatrimoniais. Porque suas finalidades
precípuas passaram a ser a punição e a prevenção, o foco passou a incidir não sobre a
espécie do dano, mas sobre a conduta do seu causador. Tomando-se esse aspecto em
consideração, é importante agora traçar algumas considerações gerais sobre o instituto.
25
Note. Exemplary damages in the Law of Torts. Harvard Law Review, n. 70, 1957, p.518-519. É de se
ressaltar que é precisamente esta a concepção predominante hoje no Direito Brasileiro com relação ao dano
moral, como será visto na parte B deste trabalho.
26
Note. Exemplary damages in the Law of Torts. Harvard Law Review, n. 70, 1957, p.519-520.
27
A esse respeito, Comandè traça com maiores detalhes a transmutação da função atribuída à indenização
pelos non pecuniary losses (danos extrapatrimoniais) na common law. Afirmar que não restam mais dúvidas
de que os non pecuniary losses entram também na categoria dos compensatory damages, que buscam
recompensar o lesado e a colocá-lo na posição em que se encontraria se houvesse sofrido a lesão. Aponta que
já no século VII as perdas não pecuniárias eram levadas em consideração pelo ordenamento jurídico,
condenando-se por cada ofensa singular o ressarcimento, em cifra fixa, à parte lesada e ao soberano, por haver
turbado a paz do reino. A função desenvolvida pelo pain and suffering então era, portanto, punitivodeterrente. No caso Morse v. Auburn & Syracuse R.R(1851), excluiu-se definitivamente que o pain and
suffering pertencesse à categoria dos punitive damages; no caso Ransom v. New York & R.R. afirmou que a
finalidade prioritária do p.s. era “to render the person as whole as he was before the injury”. Em 1882,
tornou-se pacífico na doutrina e na jurisprudência norte-americana que as condenações a indenização por p.s.
eram “a compensation for the very grat and long-continued pain which the plaintiff have suffered”. Isso se
deveu a uma série de fatores: o aumento no número de incidentes causados pelo progresso técnico industrial,
a culpa como princípio geral de imputação da responsabilidade, a cada vez mais constante presença dos
seguros em sede de responsabilidade civil. Tais fatores contribuir para transformar a soma de dinheiro
aplicada a título de p.s em um verdadeiro ressarcimento do dano, afastando-a de uma vingança privada.
COMANDÈ, G. Le non pecuniary losses in common law, Rivista di Diritto Civile, 1993, n.7, p.453 ss.
28
Note. Exemplary damages in the Law of Torts. Harvard Law Review, n. 70, 1957, p.520.
Quanto às características gerais e requisitos dos punitive damages que serão a seguir
expostos, ressaltem-se que eles se referem à doutrina tal como ela é aceita nos Estados
Unidos. Isso porque na Inglaterra, por exemplo, desde 1964, com o caso Rookes v.
Barnard, as hipóteses em que podem ser concedidos os punitive damages restaram bastante
restritas29. Os limites impostos na Inglaterra por esse precedente, contudo, não foram
seguidos por outros países da common law, como Austrália, Canadá e Nova Zelândia30.
A escolha pela análise dos punitive damages em seu molde norte-americano
justifica-se na medida em que foi nesse país que a doutrina foi mais profundamente
estudada e aplicada a seus extremos, sendo alvo, também aí, das mais diversas críticas31.
Como regra geral, salvo lei em contrário, receber punitive damages não constitui
direito subjetivo e depende sempre da discricionariedade do júri. Em algumas jurisdictions,
quando há alegações e provas suficientes, os punitive damages são considerados direito
subjetivo, sendo dever (duty) do júri concedê-los. In most jurisdictions, an instruction to
the jury as to the award of exemplary damages should be permissive and not mandatory.32
Em geral, não é possível a condenação em punitive damages por violação de um
contrato, independentemente dos motivos que levaram o réu a fazê-lo. Isso é possível
29
Em 1964, com o caso Rookes v. Barnard, deu-se um redimensionamento ao possível campo de atuação dos
punitive damages. Nessa decisão, Lord Devlin entendeu conveniente limitar a condenação em em punitive
damages a três hipóteses bem definidas: (1) diante de uma violação de direitos fundamentais dos cidadãos
pela Administração Pública; (2) quando há uma clara intenção do causador do dano de obter um lucro
injustificado que não encontraria outras sanções; (3) se existir previsão expressa em lei especial.
30
OLLIER, Pierre-Dominique; LE GALL, Jean-Pierre. Torts. Various Damages. In: International
Enciclopedia of Comparative Law. v. 11. cap.10, p.84.
31
Cumpre ressaltar, desde logo, que as considerações que serão feitas a seguir referem-se à configuração geral
dos punitive damages na maioria dos Estados norte-americanos. Como é notório, nos Estados Unidos, as
unidades federativas gozam de ampla autonomia legislativa e judicial para a elaboração do direito. Assim,
cada Estado sobre a admissibilidade, a extensão e as hipóteses de punitive damages. Dessa forma, o panorama
do instituto nos Estados Unidos é dos mais diversos. Há Estados que sequer admitem o instituto; alguns o
admitem somente diante de autorização legal expressa; muitos estabelecem limites (caps) para as
condenações; e outros, ainda, impõem que parte do montante indenizatório pago pelo ofensor deve reverter
para o Estado (split recovery). Assim, nesse trabalho serão feitas caracterizações genéricas, atinentes à
formação dos punitive damages na maiora dos Estados. Ademais, ao final, serão apreciados os parâmetros
ditados pela Suprema Corte, os quais, por óbvio, devem ser obedecidos em todo o território norte-americano.
32
Corpus Juris Secundum, “Damages”. New York. The American Law Book Co., p.711.
somente quando for alegado e provado o cometimento de um ilícito extracontratual (tort)
em conexão com a violação do contrato. Todavia, mais recentemente as Cortes norteamericanas têm abrandado a vedação aos punitive damages em caso de inadimplemento
contratual.
Ausente o elemento subjetivo, só será possível obter indenização compensatória
pelo prejuízo sofrido e nada mais.33 Em outras palavras, os punitive damages só podem ser
concedidos em caso de circunstâncias subjetivas que se assemelham à categoria continental
do dolo, quais sejam malice, wantonness, willfulness, oppression, fraud, entre outras. A
mera negligência, na ausência das circunstâncias agravantes, não é razão suficiente para a
condenação de punitive damages. Gross negligence (negligência grave), em alguns estados,
enseja punitive damages.
Além dos efeitos de punição e prevenção, há quem diga que os punitive damages
são uma forma de expressão da indignação do júri.34 Às vezes se menciona que a quantia
vai para o autor como recompensa pelo serviço ao público de trazer o causador do dano à
justiça (as a reward for his public service in bringing the wrongdoer to justice).35
Nos Estados Unidos, via de regra, cabe ao júri a fixação dos punitive damages, a
qual, porém, em determinadas hipótese pode ser revisada por uma Corte superior.
Tradicionalmente, o sistema jurídico Americano deposita grande importância no papel do
júri para decider questões relevantes, confiando no júri como um “guarantor of fairness, a
bulwark against tyranny, and a source of civic values”. Entretanto, no âmbito dos punitive
damages, uma suspeição generalizada erodiu a histórica confiança no papel do júri. Entre
as explicações para a suspeita incluem-se a inclinação do júri contra os réus abastados, o
33
Corpus Juris Secundum, “Damages”. New York. The American Law Book Co., p.715.
Corpus Juris Secundum. “Damages”. New York. The American Law Book Co., p.706.
35
Corpus Juris Secundum, “Damages”. New York. The American Law Book Co., p.708.
34
impulso de redistribuir riqueza, a incompetência ou inabilidade em compreender a
complexidade que envolve a fixação do quantum e as características psicológicas que
predispõem certos jurados a conferir punitive damages.36
O instituto dos punitive damages, não obstante sua aceitação histórica pelo sistema
da common law, foi sempre alvo das mais duras críticas. Nas últimas décadas, as
indenizações a títulos de punitive damages em valores cada vez mais elevados, comumente
na faixa de milhões e até bilhões de dólares, passaram a demonstrar a fragilidade do
instituto e a atrair ainda oposição ainda maior. Entretanto, foi somente nos últimos anos que
a Suprema Corte dos Estados Unidos houve por bem intervir pela primeira vez nos
montantes fixados, baseando-se no princípio do devido processo legal, em sua acepção
substantiva, consagrado pela XIV Emenda da Constituição Americana.
Não obstante a inconstitucionalidade da fixação dos punitive damages já tivesse
sido questionada outras vezes perante a Suprema Corte, somente no caso BMW of North
America, Inc. v. Gore (1996) foi reconhecida que a condenação de punitive damages em
patamares irrazoáveis afronta a Due Process Clause.
Nesse caso, o autor, Ira Gore Jr., comprou um novo BMW sedan de um comerciante
do Alabama. Após, ele ficou sabendo que o réu, BMW of North America, tinha repintado
parte do carro por causa de um dano ao carro antes de sua chegada aos Estados Unidos,
embora a BMW não tenha revelado o fato. O júri conferiu ao réu compensatory damages
no valor de $4000 pela diminuição do valor do carro e punitive damages no valor de $4
milhões. A Suprema Corte do Alabama reduziu os punitive damages para $2 milhões. A
Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso, considerou esse montante como grossly
36
Note.“Developments in the law – the civil jury”. Harvard Law Review, v.110, n.7, May 1997, p.1517.
excessive (manifestamente excessivo), e, portanto, inconstitucional. Então, a Suprema Corte
do Alabama, em reconsideração, os reduziu para $50.000.
Em Gore, a Suprema Corte instruiu as demais Cortes a considerar três diretrizes na
fixação dos punitive damages para todos os casos que seguirem:
1) o grau de repreensibilidade da conduta do réu (the degree of reprehensibility of the
defendant’s misconduct). Para aferir a referida repreensibilidade, segundo a Corte, é
importante atentar aos seguintes fatores: (1) se o prejuízo causado foi físico ou meramente
econômico; (2) se o ato ilícito foi praticado com indiferença ou total desconsideração com
a saúde ou a segurança dos outros; (3) se o alvo da conduta é uma pessoa com
vulnerabilidade financeira; (4) se a conduta envolveu ações repetidas ou foi um incidente
isolado; (5) se o prejuízo foi o resultado de uma ação intencional ou fraudulenta, ou foi um
mero acidente. A existência de qualquer desses fatores em favor do autor podem não ser
suficientes para sustentar uma condenação de punitive damages; por outro lado, a ausência
de todos torna qualquer condenação suspeita. Isso porque se deve presumir que o autor foi
plenamente compensado pelo dano sofrido por meio dos compensatory damages, de forma
que os punitive damages devem ser pagos somente quando a culpabilidade do réu, depois
de ter pago compensatory damages, é tão repreensível que merece a imposição de outras
sanção para se atingir punição ou prevenção.
2) A disparidade entre o dano efetivo ou potencial sofrido pelo autor e os punitive
damages
3) A diferença entre os punitive damages concedidos pelo júri e as multas civis
autorizadas ou impostas em casos semelhantes
Mais recentemente, em State Farm Mutual Automobile Insurance Co. V. Campbell
et al. (2003), houve nova declaração de inconstitucionalidade dos punitive damages pela
Suprema Corte, tendo por base as diretrizes de Gore.
No caso, o júri de Utah concedeu aos autores $2.6 milhões em compensatory
damages e $145 milhões em punitive damages, que foram reduzidos pela corte em $1
milhão e $25 milhões. Dizendo estar a aplicar os critérios de Gore, a Suprema Corte de
Utah restaurou a condenação de punitive damages no valor de $145 milhões.
Novamente, a Suprema Corte, segundo os parâmetros ditados em Gore, reconheceu
a ofensa ao princípio do devido processo legal em sua acepção substantiva. Ainda assim, a
Suprema Corte permaneceu relutante em um limite constitucional concreto para razão entre
o dano efetivo ou potencial e os punitive damages, mas afirmou que as razões mais
próximas de satisfazerem às exigências constitucionais mostram-se próximas às origens das
condenações múltiplas, que, como já vimos, eram permitidas em valores que chegassem até
o quádruplo do dano efetivamente sofrido:
Assim, “We decline again to impose a bright-line ratio which a punitive damages
award cannot exceed. Our jurisprudence and the principles it has now established
demonstrate, however, that, in practice, few awards exceeding a single-digit ratio between
punitive and compensatory damages, to a significant degree, will satisfy due process. In
Haslip, in up-holding a punitive damages award, we concluded that an award of more than
four times the amount of compensatory damages might be close to the line of constitutional
impropriety. We cited the 4-to-1 ratio again in Gore. The Court further referenced a long
legislative history, dating back over 700 years and going forward to today, providing for
sanctions of double, treble, or quadruple damages to deter and punish. While these rations
are not binding, they are instructive. They demonstrate what should be obvious: Single-
digit multipliers are more likely to comport with due process, while still achieving the
State’s goals of deterrence and retribution, than awards with rations in range of 500 to 1
or, in this case, of 145 to 1”.
Acrescentou a Corte que, de qualquer forma, há uma presunção contra uma
condenação em punitive damages que represente uma razão de 145 para 1, relativamente ao
valor dos compensatoy damages. Assim, novamente por maioria, a Corte considerou o
montante dos punitive damages inconstitucional e devolveu o caso para a Suprema Corte de
Utah.
II – O caráter exemplar da responsabilidade civil e o Direito
Civil Brasileiro
A) Hipóteses que ensejam a adoção do caráter exemplar
Apesar do descrédito geral a que foi submetida durante largo período de tempo, a
discussão sobre o caráter exemplar da responsabilidade civil vem ganhando força nos
países de civil law. Boris Starck já sustentara em 1947 que “le mouvement d’abolition de la
peine privée s’accompagne d’un mouvement inverse qui tend à la rétablir.”.37 Talvez como
resultado da previsão do autor – que, a propósito, também restou isolado ao defender com
veemência a pena privada à sua época- a função punitiva da responsabilidade civil não pára
de ganhar adeptos.
37
STARCK, Boris. Essai d’une théorie générale de la responabilité civile considerée en sa double fonction
de garantie et de peine privée. Paris: L. Rodstein, 1947, p.377.
As razões para a volta do caráter exemplar da responsabilidade civil não são difíceis
de explicar, porquanto resultam, na maior parte dos casos, da própria insuficiência das
respostas oferecidas pela responsabilidade civil quando exerce função meramente
compensatória, com o montante da indenização limitado ao dano efetivamente sofrido.
Agregue-se a isso a tendência de retração do Direito Penal, que, segundo os modernos
estudiosos, deve ser limitado às ofensas mais graves à ordem social, abrindo, então, espaço
para a retomada do caráter sancionador da responsabilidade civil.
Paolo Gallo, autor de brilhante monografia sobre o tema, elenca quatro hipóteses
aptas a serem sancionadas com a pena privada no direito contemporâneo: (1) casos de
responsabilidade civil “sem dano”, isto é, sem dano de natureza econômica imediatamente
perceptível, como ocorre no vasto setor das lesões aos direitos de personalidade; (2)
situações em que o lucro obtido com o ato ilícito é superior ao dano; (3) hipóteses em que a
probabilidade de condenação a ressarcir os danos é inferior relativamente à probabilidade
de causar danos; (4) crimes de bagatela.38
A primeira hipótese, que concerne, precisamente, aos danos extrapatrimoniais, será
analisada com vagar no capítulo seguinte do trabalho (II, B), quando será analisado o
caráter exemplar da responsabilidade civil no Direito Brasileiro.
As situações (2) e (3), por sua vez, merecem ser aqui melhor explanadas, dada sua
importância ascendente em uma sociedade de riscos e de produção em série. Tais hipóteses
correspondem aos casos em que o custo social do ilícito é muito superior àquele
individualmente sentido pelas vítimas singulares, como ocorre em muitas atividades
empresariais.39
38
39
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.175 ss.
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.18.
Quanto a esse aspecto, é paradigmático o caso Ford Corporation v. Grimshaw.
Trata-se de um caso muito conhecido. Após uma batida, um carro produzido pela Ford,
conhecido com Ford Pinto, explode causando a morte de três ocupantes. Verifica-se que a
explosão do carro se deu porque reservatório do carburador foi colocado no lado posterior,
o que permitia uma economia de 15 dólares por cada automóvel produzido.40
Nesse caso, o júri não hesitou em conceder uma considerável soma a título de
punitive damages, com base na consideração de que o comportamento da Ford era
altamente reprovável. Para efetuar uma economia de apenas 15 dólares por automóvel, o
tanque foi colocado no lado posterior. Embora consciente do perigo em caso de colisão,
tendo-se em vista uma análise de custos e benefícios, a empresa considerou que seria mais
vantajoso ressarcir os eventuais danos do que colocar o tanque em outro lugar.41
Resta evidente, pois, que a indenização ressarcitória, aqui, não é suficiente para
gerar um efeito preventivo idôneo. Além disso, o número de sujeitos que em concreto
intentarão uma demanda judicial de natureza ressarcitória é inferior com relação ao número
de sujeitos lesados ou potencialmente lesados.42
Em casos análogos ao Grimshaw v. Ford Motor Co., um idôneo efeito preventivo só
pode ser alcançado mediante a cominação de valores tais a permitir uma total integralização
do custo social total, com base na doutrina do caráter exemplar da responsabilidade civil.43
A quarta hipótese de responsabilidade civil exemplar citada pelo autor toca aos
chamados crimes de bagatela, ou seja, as condutas que, pelo valor irrisório do seu objeto,
não são hábeis a desencadear a pretensão punitiva do Estado. Assim, a responsabilidade
40
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.18.
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.19.
42
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.19.
43
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.152.
41
civil punitiva, aqui, supriria a lacuna ora existente no nosso sistema jurídico, que, ao
reconhecer a atipicidade penal da conduta, não oferece qualquer outro mecanismo apto a
desestimular o ato.
O direito penal nasce no âmbito do Direito Romano, sobretudo no setor dos ilícitos
contra o Estado, o rei, a paz pública. Progressivamente, expande-se em matéria de crimes
contra a pessoa e o patrimônio, também com o objetivo de permitir um recurso mais amplo
às garantias típicas do processo penal. Mais recentemente, ou melhor, desde Beccaria,
verifica-se a tendência inversa. É, sobretudo, no século XX que tal fenômeno assume
proporções ainda maiores, de sorte que os penalistas defendem uma significativa redução
das fattispecie penais pelas seguintes razões: gravidade das sanções penais, aflitividade
intrínseca ao processo penal, efeitos estigmatizantes da condenação e custos conexos ao
funcionamento do processo penal.44
Segundo as tendências mais recentes, a escolha da sanção penal deve ser inspirada
não tanto pela exigência de proporcionalidade, mas também pela de subsidiariedade; nesse
sentido, só deve haver recurso às sanções penais em caso de macrolesões insuscetíveis de
serem adequadamente sancionadas mediante instrumentos alternativos de tutela (lesões
mais graves). Em doutrina, já foi sugerida a utilização da pena privada para sancionar
fenômenos muito difusos, como por exemplo o furto nos grandes magazines ou a emissão
de cheque sem fundos. Na Alemanha, foi introduzido um sistema de penas privadas em
matéria de furtos em grandes magazines; em caso de furto, calcula-se, em média nos
magazines, onde há um ladrão entre 430 clientes, o diretor é legitimado a aplicar uma multa
proporcional ao furto cometido, o qual não deve, em nenhum caso, exceder ao triplo do
valor subtraído e oscilar entre um mínimo de 5 e um máximo de 50 marcos, que não inclui,
44
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.22-23.
por óbvio, a restituição e eventual ressarcimento verdadeiro, que se cumulam com a sanção.
Trata-se de uma solução que apresenta inegáveis pontos de contato com a velha actio furti
romana.45
Quanto aos cheques sem fundos, a Itália, desde 1990, apresenta uma lei que prevê
um multa de dez vezes a soma não paga no momento da apresentação do título, juntamente
com a revogação da autorização para emitir cheques. Também aqui há um claro exemplo de
sanção pecuniária utilizada de forma complementar ou substitutiva da sanção penal. A
tendência referente à restrição do campo do penalmente relevante abre novas perspectivas
seja às sanções administrativas seja aos vários tipos de sanções civis. Nessa perspectiva, as
penas privadas assumem um papel de sanção intermediária entre aquelas penais em sentido
estrito e o mero ressarcimento do dano sempre que o recurso às sanções penais pode
parecer excessivo e o apelo ao mero ressarcimento do dano se mostre insuficiente para
desenvolver um eficaz apelo preventivo em relação às modalidades de lesão e às seus
efeitos.46
Delimitadas os requisitos objetivos da responsabilidade civil punitiva, passa-se
agora aos requisitos de cunho subjetivo. No direito anglo-americano a concessão de danos
exemplares fica subordinada à prova do dolo. Assim, é necessária a existência de uma
verdadeira e própria malice, que é a intenção de agir deliberadamente causando danos a
outras pessoas; ou a existência de um comportamento reckless, isto é, realizado apesar da
consciência acerca de sua alta periculosidade social com relação à sua escassa utilidade.
Mais limitada é, diversamente, a tendência de expandir a aplicação dos punitive damages
45
46
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.26.
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.27.
também em matéria de gross negligence, isto é, de culpa grave. Logo, muito delicada é a
questão de demarcar a linha entre culpa grave e recklessness.47
A tendência dos juízes americanos a limitar a concessão de punitive damages
somente aos casos de malice e recklessness resulta justificada, tanto sob o ponto de vista
tradicional, como com base na análise econômica do direito. Na presença de mera culpa, a
imposição de penas pode levar a um fenômeno de supercompensaçação, como a um
fenômeno de hiperprevenção. Um discurso similar pode ser realizado quanto à
responsabilidade objetiva.48
Uma das críticas que foi levantada nos Estados Unidos quanto à expansão dos
punitive damages em matéria de responsabilidade do produtor consiste na
incompatibilidade entre um instituto que para poder operar pressupõe necessariamente a
malice ou a recklessness com os regimes de responsabilidade objetiva. Na realidade, não é
difícil superar tal objeção, considerando como tais institutos operam em dois diferentes
níveis e com finalidades muito diversas.49
O escopo da responsabilidade objetiva é unicamente o de propiciar uma integral
internalização do custo complexo dos incidentes resultantes do exercício da atividade da
empresa, sem o limite constituído aos danos inevitáveis que opera em matéria de culpa; o
escopo dos punitive damages é, ao contrário, o de desestimular condutas juridicamente
reprováveis porque lesivas de valores relevantes. Trata-se de uma conclusão a que Starck já
havia chegado em sua famosa monografia de 1947, na qual sustentava a relevância residual
do juízo de culpabilidade também no estado da responsabilidade objetiva e por risco.
47
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.179.
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.180.
49
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.185.
48
Não deve haver recurso à pena privada em caso de culpa, porque a cominação de
uma soma maior a título de punição conduziria a uma excessiva exaltação do nível das
medidas preventivas, com a conseqüente prevenção excessiva e a elevação do custo social
total, sem contar o efeito translativo de riqueza em benefício do sujeito lesado.50
Tampouco é oportuna a adoção de pena privada em caso de responsabilidade
objetiva. Se a função da responsabilidade objetiva é promover a internalização integral do
custo social total decorrente da realização de determinada atividade produtiva, sem o limite
constituído pelos danos inevitáveis que opera em matéria de responsabilidade por culpa,
impor a obrigação de pagar punitive damages impõe um efeito de iperdeterrenza, com o
conseqüente desestímulo a atividades à atividade empresarial socialmente útil.51
Por fim, após observar a importância do dolo (seja direito ou eventual) como
requisito para a aplicação da responsabilidade civil punitiva, cabe analisar os critérios para
a fixação do quantum típicos da função exemplar. Com efeito, os critérios a serem
utilizados para a afirmação do caráter sancionador da responsabilidade civil são os
seguintes: (1) o grau de culpa do ofensor, (2) a condição econômica do responsável pela
lesão e (3) o enriquecimento obtido com o fato ilícito.52
B) A função punitiva/preventiva da indenização no Direito
Brasileiro: a questão dos danos morais
50
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.63.
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.64.
52
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.197 e ss.
51
No direito comparado, de poucas questões emerge uma mais diversa e contraditória
variedade de soluções do que a de saber de que modo a responsabilidade civil por danos
morais. Aponta-se que “this is due both to the “incommensurability” of the damage
involved and to the immorality of soliciting and receiving money as retribution for an
offence to dignity or for a disturbance of peace. One may distinguish, according to their
functions, three classes of damages: for compensation, for satisfaction53 and for punitive
purposes.54
A questão ganha relevância para o presente trabalho na medida em que, no Brasil,
toda a discussão sobre o caráter exemplar da responsabilidade civil acaba por cingir-se à
problemática da reparação do dano moral. Conforme visto supra, pela classificação
doutrinária de Paolo Gallo, há, pelo menos, quatro hipóteses de aplicação da
responsabilidade civil punitiva No Direito Brasileiro, porém, o caráter punitivo e
53
Cumpre ressaltar que o termo “satisfação” pode ser empregado em duas acepções distintas. Segundo a
primeira, satisfação seria uma expressão correlata ao conceito de compensação, porém mais adequada ao caso
de dano extrapatrimonial, porque ausente, neste último, o princípio da equivalência entre o dano e a
indenização e a possibilidade de restitutio in integrum. Há, ainda, uma outra apreensão do termo “satisfação”.
Esta última, talvez ainda mais corrente, remonta à doutrina desenvolvida no Direito alemão. Na Alemanha, a
noção de satisfação é empregada em um sentido mais específico, que busca descrever uma função especial
da responsabilidade civil ao buscar assegurar à parte lesada uma sensação de justiça por meio de uma
reação legal ao ilícito. Levando-se em conta a função de satisfação da indenização, está não pode ser
simplesmente avaliada de forma objetiva segundo a extensão do dano extrapatrimonial, mas há de
levar em consideração também a gravidade do ato e a condição econômica das partes envolvidas. Como
observa Bernd-Rüdiger Kern, mencionam-se três finalidades da satisfação: (1) trazer ao lesado um sentimento
de satisfação, apaziguando o seu senso de justiça ferido; (2) impor ao ofensor um sensível sacrifício
patrimonial; (3) deve atuar preventivamente para o futuro. Portanto, A noção de satisfação, como entendida
nesse sentido particular, está estritamente ligada à instituição da punição. Ver OLLIER, Pierre-Dominique;
LE GALL, Jean-Pierre. Torts. Various Damages. In: International Enciclopedia of Comparative Law. v. 11.
cap.10, p.80-81.STOLL, Hans. Torts. Consequences of liability: remedies. In: International Enciclopedia of
Comparative Law. v. 11. cap. 8. p.10; KERN, Bernd-Rüdiger. A função de satisfação na indenização do dano
pessoal: um elemento penal na satisfação do dano? Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v.17, p.26,
1999.
54
OLLIER, Pierre-Dominique; LE GALL, Jean-Pierre. Torts. Various Damages. In: International
Enciclopedia of Comparative Law. v. 11. cap.10, p.64.
preventivo da responsabilidade civil é visto como característica inerente e exclusiva da
indenização dos danos morais.
À época em que ainda se discutia a viabilidade de se conceder indenização diante da
inexistência de prejuízo de ordem patrimonial, surgiram os mais diversos entendimentos.
Diante da afirmação de alguns doutrinadores de que seria impossível, além de imoral,
“pagar a dor com dinheiro”, emergiram construções doutrinárias com o escopo de legitimar
a concessão de uma soma em dinheiro à pessoa que teve sua esfera extrapatrimonial
atingida. Nesse contexto, passou-se a defender que a indenização do dano moral seria não
só legítima, mas também necessária, pois, do contrário, o ofensor restaria impune. Dessa
maneira, afastavam-se os óbices de cunho ético-social e justificava-se a indenizabilidade
do dano moral com fundamento na noção de pena privada55.
Aliás, nesse aspecto, verifica-se um inegável paralelo com o surgimento da doutrina
dos punitive damages na tradição anglo-saxônica, como já exposto supra. Diante da
impossibilidade originária em ressarcir o dano que não deixasse lastros patrimoniais,
lançou-se mão da teoria punitiva a fim de não deixar o lesado, nesses casos, sem qualquer
amparo por parte do ordenamento jurídico.
No entanto, como também já foi visto, no próprio direito anglo-saxônico, uma vez
consagrada a reparabilidade do dano moral, a função desta passou a ser entendida como
meramente compensatória, perdendo sua primitiva vinculação com o instituto dos punitive
damages. Estes, por sua vez, passaram a ser concedidos somente nos casos excepcionais em
que o estado subjetivo do causador do dano, aliado à censurabilidade de sua conduta,
55
Em verdade, a adoção da teoria da pena privada como solução à questão da imoralidade da indenização é,
no mínimo questionável. No brilhante apontar de Pontes de Miranda, “o recebimento, pelo que sofreu o dano,
nada tem de imoral (...). Em verdade, não há castigo, nem há imoralidade no receber, mesmo porque, se a
fixação fosse de pena privada, a imoralidade não desapareceria”. (t. LIV, p.298-299) PONTES DE
MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito privado. Rio de Janeiro, Borsoi, 1955-1972.
justificassem a fixação do quantum indenizatório em patamar superior ao necessário para a
mera compensação, tendo em vista as finalidades punitiva e preventiva da responsabilidade
civil.
O Direito Brasileiro, contudo, não passou pela mesma espécie de evolução sofrida
pelo direito norte-americano, de modo que ainda se reputam os aspectos punitivos como
imanentes aos danos morais. No ordenamento jurídico pátrio, embora desde a Constituição
de 1988 tenha se tornada pacífica a admissibilidade da indenização dos danos morais, por
expressa disposição constitucional, ainda hoje não se atingiu qualquer espécie de consenso
sobre a sua função.
A tese punitiva, porém, encontrando ampla receptividade no Direito Brasileiro, não
sendo suplantada sequer pela indenizabilidade irrestrita do dano moral pela Carta da
República. Assim, ainda hoje coexistem três correntes, em sede tanto doutrinária como
jurisprudencial, sobre a função da indenização do dano moral, quais sejam (1) a
compensação/satisfação do ofendido56, (2) a punição do ofensor 57 e (3) tanto a satisfação do
ofendido como a punição do ofensor58.
56
Propugnam que, em regra, a função da reparação do dano moral é somente ressarcitória MORAES, Maria
Celina Bodin de. Danos à pessoa: uma leitura civil-constitucional. Rio de Janeiro, Renovar, 2003; SEVERO,
Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996.THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano
Moral. 3. ed. atualizada e ampliada. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000.
57
Como defensores da tese punitiva, temos LACERDA, Galeno. Indenização do dano moral (parecer).
Revista dos Tribunais, v.728, p.94-101, jun. 1996.
58
São partidários da teoria mista, que pode ser considerada majoritária na doutrina e na jurisprudência
brasileira, CASILLO, João. Dano à pessoa e sua indenização. 2. ed. São Paulo: RT, 1994.; PEREIRA, Caio
Mário da Silva. Responsabilidade civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998; LOPEZ, Teresa Ancona. O dano
estético: responsabilidade civil. São Paulo: RT, 1999; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de
responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002; Quando a vítima reclama a reparação pecuniária
em virtude do dano moral, não pede um preço para a sua dor moral, mas, a penas, que se lhe outorgue um
meio de atenuar, em parte, as conseqüências da lesão jurídica. Na reparação dos danos morais, o dinheiro não
desempenha a função de equivalência, como, em regra, nos danos materiais, porém, concomitantemente, a
função satisfatória é a de pena. (p.47); GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Critérios para a fixação da
reparação do dano moral: abordagem sob a perspectiva civil-constitucional. In: LEITE, Eduardo de Oliveira
(org.). Grandes temas da atualidade: dano moral. Rio de Janeiro: Forense, 2002; COUTO E SILVA, Clóvis
do. Principes fondamentaux de la responsabilité civile em droit brésilien et compare (datilog.) Porto Alegre,
1988; NORONHA, Fernando. Desenvolvimentos contemporâneos da responsabilidade civil. Revista dos
Também no sentido de reconhecer a função punitiva e preventiva da
responsabilidade civil tem-se posicionado a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça,
órgão de extrema importância, porque responsável pela uniformização da interpretação da
legislação federal:
“O valor dos danos morais, de seu turno, como tenho assinalado em diversas
oportunidades deve ser fixado em termos razoáveis, não se justificando que a reparação
enseje enriquecimento indevido, devendo o arbitramento operar-se com moderação,
proporcionalmente ao grau de culpa, ao porte financeiro das partes, orientando-se o
julgador pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, valendo-se de sua
experiência e bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, não
deixando de observar, outrossim, a natureza punitiva e disciplinadora da indenização”.
(Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. REsp nº 389.879-MG, Relator Min. Sálvio de
Figueiredo Teixeira, j. 16/04/2002, DJ 02/09/2002).,
Como conseqüência da adoção da função punitiva (2) ou mista (3) da indenização
do dano moral, para a fixação do quantum indenizatório são avaliados outros critérios que
não a gravidade objetiva da lesão ao bem jurídico. Consoante foi acima exposto, segundo a
classificação de Paolo Gallo, os critérios para a fixação do quantum que fazem transparecer
a função punitiva/preventiva da responsabilidade civil são três: (1) o grau de culpa do
Tribunais¸ v. 761, p.31-44, mar. 1999; CAHALI, Yussef Said. Dano e indenização. São Paulo: RT, 1980;
LORENZETTI, Ricardo Luis. 6º Congresso Internacional de Direito Ambiental – 10 anos da ECO-92: o
direito e o desenvolvimento sustentável – Teoria geral do dano ambiental moral. Revista de Direito
Ambiental, n.28, p.139-149, out/dez 2002.
ofensor, (2) a condição econômica do responsável pela lesão e (3) o enriquecimento obtido
com o fato ilícito.59
A estes fatores, os defensores da teoria mista, em geral, acrescentam mais dois: (4)
intensidade e a duração do sofrimento experimentado pela vítima, assim como a perda das
chances de vida e dos prazeres da vida social ou da vida íntima, e (5) as condições sociais e
econômicas do ofendido, tendo em vista a vedação ao enriquecimento sem causa. Como se
vê, o quarto critério apresenta caráter marcadamente compensatório/satisfativo. O quinto
critério, por sua vez, não obstante a sua fragilidade, também tem sido freqüentemente
aplicado pela jurisprudência.
Nos países em que os danos extrapatrimoniais eram admitidos apenas nos casos de
delito criminal, como na Itália e na Argentina (onde não mais prevalece tal limitação), é
natural que a estrita correlação entre danos extrapatrimoniais e pena privada tenha
adquirido mais força.60 No Brasil, porém, não há como compreender o prestígio de tal
associação. Pode ser que a noção de se imprimir caráter punitivo à responsabilidade civil
tenha sido inspirada pelos punitive damages do direito norte-americano, que, no Brasil, têm
sido erroneamente tratados como sinônimos de danos morais talvez desde a imprecisão
histórica em que incorreu Pontes de Miranda, um dos mais prestigiados juristas da história
do Direito Brasileiro.61
59
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.197 ss.
SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, p.183.
61
Em equívoco histórico, afirmou o mestre Pontes de Miranda em seu Tratado: “Na Inglaterra e nos Estados
Unidos da América, chama-se exemplary damages aos danos morais”. Conforme já examinado, a ligação dos
punitive ou exemplary damages deu-se tão somente em um estágio inicial, já estando, ao final do século XIX,
amplamente superada. Todavia, desde Pontes de Miranda, não é raro encontrar no Brasil menções aos
punitive damages como se fossem o instituto correlato no direito anglo-saxônico à nossa indenização por dano
moral, o que não poderia estar mais longe da realidade. Como visto, é pacífico, no direito anglo-saxônico, que
a indenização por danos extrapatrimoniais apresentam função compensatória. PONTES DE MIRANDA,
Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito privado. Rio de Janeiro, Borsoi, 1955-1972.
60
A perfeita identificação entre o caráter punitivo da indenização e o dano moral,
perpetrada por boa parte da doutrina e da jurisprudência brasileiras, porém, enseja algumas
perplexidades. Isso porque, desde a Constituição de 1988, a reparação do dano moral não
fica sujeita a outros pressupostos além dos requisitos tradicionais da responsabilidade civil
(ato ilícito, fator de atribuição e nexo de causalidade entre a conduta humana e o dano).
Todavia, ocorre que as funções punitiva e preventiva – e nem poderia ser diferente,
sob pena de serem inúteis aos fins que perseguem – apresentam pressupostos bem mais
exigentes. Já se viu na parte antecedente deste trabalho que a aplicação de tais funções
exige a presença de elementos subjetivos da conduta do ofensor, pois, do contrário,
acarretariam os fenômenos indesejáveis de hiperprevenção e supercompensação. Para
chegar a tais conclusões, aliás, basta uma análise sistemática do ordenamento jurídico. Uma
vez inadmissível a responsabilidade objetiva no âmbito do Direito Penal, a qual seria,
inclusive, inconstitucional, tampouco subsistem razões para acolher a responsabilidade civil
objetiva punitiva.
Essa distinção, apesar de elementar, tem sido freqüentemente esquecida pela
doutrina e desconsiderada pela jurisprudência. Em caso paradigmático, o Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, em caso de responsabilidade objetiva e na ausência de
qualquer elemento subjetivo reprovável na conduta do causador do dano, entendeu por fixar
a indenização do dano moral com referência expressa à doutrina dos exemplary damages,
em acórdão assim ementado:
“CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. EXECUÇÃO FORÇADA
MOVIDA CONTRA HOMÔNIMO. LEGITIMIDADE PSSIVA DO
CREDOR. 1. O credor é responsável pelo dano provocado contra
homônimo, executado no lugar do verdadeiro obrigado, pois a execução se
realiza no seu interesse (CPC, art. 612). Fixação do valor da indenização
(exemplary damages). 3. Apelação desprovida.” 62
Tratava-se de ação de indenização por danos morais contra credor que promoveu
execução forçada contra homônimo do seu devedor. Por óbvio, no caso, não houve
qualquer intenção de cometer o ato ilícito, havendo tampouco culpa grave por parte do
credor, o qual, aliás, só teve prejuízos diante do erro ocorrido. Imputando a
responsabilidade pelos danos ao credor pelo fato de “a execução se realizar segundo seu
exclusivo interesse”, hipótese de risco da atividade, mencionou-se a doutrina dos punitive
damages em caso que, no direito anglo-saxônico, esta não seria cabível.
Todavia, é verdade que, mesmo quando admitem o caráter sancionador da
responsabilidade civil, os valores fixados apresentam-se bastante módicos se comparados
às condenações em punitive damages tal como ocorrem nos Estados Unidos. Tal
disparidade repousa sobre uma série de fatores de ordem cultural e econômica. A ética
dominante na sociedade norte-americana não vê com maus olhos o recebimento de uma
grande soma em dinheiro pelo indivíduo lesado, enquanto que países como a França e, em
certa medida, o Brasil, consideram tal situação imoral.
Além disso, como estudado acima, uma das mencionadas finalidades dos punitive
damages nos Estados Unidos é servir como recompensa ao lesado por levar à Justiça o
ofensor. Essa finalidade parece se justificar nos Estados Unidos diante dos altos custos para
se recorrer ao Judiciário. No Brasil, porém, as custas judiciais envolvem quantias bem
62
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 5ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 596.210.849. Relator Des.
Araken de Assis. J. 21/11/1996. Ementa:
menos significativas, de modo que a responsabilidade civil punitiva como concebida no
país não envolve tal finalidade.
O Novo Código Civil Brasileiro de 2002, ao substituir o regramento trazido pelo
Código Civil de 1916, traz uma brecha para a volta da importância da função
punitiva/preventiva da responsabilidade civil, ao desmontar um dos pilares da concepção de
que esta teria função estritamente compensatória: o dogma da equivalência do grau de
culpa. O dogma da equivalência do grau de culpa remonta ao Direito Romano em sua
máxima “in Lege Aquilia et levissima culpa venit”, segundo a qual mesmo a culpa leve é
suficiente para gerar a o dever de indenizar, sendo indiferente para a obrigação ressarcitória
o grau de culpa do ofensor.
Na realidade, a evolução que atenuou em medida crescente o caráter sancionador da
responsabilidade civil conduziu à uniformidade das regras ressarcitórias em caso de culpa
ou dolo. Com o crescente interesse pela pena privada, pela função punitiva da
responsabilidade civil, ganha importância a tendência a atribuir relevância em sede de
quantificação da obrigação ressarcitória ou sancionatória a fatores atinentes à esfera
psíquica do sujeito agente. Isso contribui, novamente, para diferenciar as regras de
responsabilidade civil em caso de dolo ou de simples culpa.63
Dispõe o art. 944 do Novo Código Civil:
“Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da
culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.”64
63
GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.59.
A orientação dada pelo projeto não foi exatamente nos moldes preconizados por San Tiago Dantas, ao
nosso ver mais adequada, que previa simplesmente a gradação da indenização de acordo com o grau de culpa.
“Note-se, porém que a tendência mais recente, no Direito Civil, aquela que provavelmente passará para o
64
Com base em uma interpretação a contrario sensu, pode-se vislumbrar a
possibilidade de aumentar o quantum diante da presença de culpa gravíssima ou dolo.
Ainda que esta interpretação ousada não seja adotada pela jurisprudência de plano, é certo
que o dogma da equivalência da culpa e do dolo, que constituía um entrave a função
punitiva da responsabilidade civil, está rompido. Assim, a função punitiva da
responsabilidade civil no Direito Brasileiro tende a assumir importância cada vez maior.
Ademais, tramita no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 6.960/2002,
denominado vulgarmente de “Projeto Fiúza”, que visa a alterar a redação de uma série de
artigos do Novo Código Civil, incluindo-se aí o acréscimo de um § 2º ao citado artigo 944:
“§ 2º. A reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao
lesado e adequado desestímulo ao lesante”.
Se aprovado o referido projeto, o ordenamento jurídico brasileiro terá acolhido
expressamente a chamada “teoria do desestímulo” (“deterrence theory”), que se encontra
presente na doutrina dos punitive damages. Então, será ainda mais provável que as funções
punitiva e preventiva da responsabilidade civil venha a tomar novo rumo.
Aliás, importante notar que somente agora no Brasil têm começado a surgir debates
doutrinários específicos sobre a aplicabilidade ou não da doutrina dos punitive damages ao
ordenamento jurídico brasileiro. Enquanto que na Argentina, por exemplo, as referências
bibliográficas ao tema são já há algum tempo bastante numerosas, no Brasil, em maio de
2003, quando essa pesquisa foi iniciada, as obras doutrinárias referentes a essa questão
eram bastante incipientes.
nosso Código de Obrigações e, pelo contrário, para readmitir a gradação da culpa, mas já agora com um outro
efeito, para graduar por ele o montante da reparação. A idéia de que a reparação civil, ao lado do seu efeito
compensatório, também um efeito repressivo, punitivo, faz com que se pense em ordenar uma reparação
maior quando a culpa for lata, quando a culpa foi pesada, e uma reparação menor à medida que se atinge a
esfera mais leve da culpa”. Apud: SAN TIAGO DANTAS, Programa..., v.II/102 Apud:(p.90) CASILLO,
João. Dano à pessoa e sua indenização. 2. ed. São Paulo: RT, 1994.
Conclusão
A questão da função exemplar da responsabilidade civil no Direito Brasileiro tem
sido mal colocada. A um, porque é entendida como característica exclusiva e inerente de
toda indenização por danos morais. A dois, porque, por conseguinte, não raro tem
prescindido de um critério essencial para a punição, qual seja, a repreensibilidade ou
culpabilidade da conduta ilícita. Não observar a culpabilidade afronta tanto princípios
morais como princípios de análise econômica do direito, pois aplicar punição em
responsabilidade objetiva causa overdeterrence (hiperprevenção).
Ademais, no Direito Brasileiro não se tem discutido questões fundamentais relativas
à admissibilidade da responsabilidade civil punitiva. A doutrina estrangeira, não sem razão,
aponta uma série de óbices constitucionais à adoção de um tal sistema, como a aplicação de
punição sem as garantias do Processo Penal, a desconsideração do princípio nulla poena
sine lege, a possibilidade de bis in idem quando houver, além da responsabilidade civil,
responsabilização criminal, etc. Em última análise, a questão da responsabilidade civil
punitiva requer um exame extremamente cuidadoso, a fim de que não se chegue à crise
sistêmica existente nesse âmbito nos Estados Unidos, que reclamou, inclusive, a
intervenção da Suprema Corte para coibir os abusos.
Pensamos que, se aplicada com cuidado, a responsabilidade civil punitiva não
contraria os princípios constitucionais contemplados pelo Direito Brasileiro. É mister, no
entanto, que se proceda à fundamentação legal do instituto, já que, nos ordenamentos
jurídicos que seguem a tradição romano-germânica, a lei ainda ocupa lugar central no
sistema. Com as alterações promovidas pelo Novo Código Civil e com as possibilidades de
reforma previstas pelo Projeto Fiúza, o Direito Brasileiro fica cada vez mais próximo de
uma expressa consagração da idéia de que a responsabilidade civil não deve servir tão
somente à compensação do dano sofrido, mas também à prevenção dos danos que estão por
vir.
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O caráter exemplar da responsabilidade civil e o Direito Civil