Mariana Pargendler [email protected] Universidade Federal do Rio Grande do Sul www.ufrgs.br O caráter exemplar da indenização e o Direito Civil Brasileiro: pena privada ou punitive damages1 Mariana Pargendler (Acadêmica da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Bolsista PIBIC/CNPq) “Se alguém furtar um boi (ou uma ovelha), e o matar ou vender, por um boi pagará cinco bois, e por uma ovelha, quatro ovelhas”. (Êxodo 22:1) Introdução. I – Pena privada e punitive damages: desenvolvimento histórico do caráter exemplar da responsabilidade civil. SUMÁRIO: A) Contornos da pena privada no Direito Romano. B) A tradição anglo-saxônica e os punitive damages. II – O caráter exemplar da responsabilidade civil e o Direito Civil Brasileiro. A) Hipóteses que ensejam a adoção do caráter exemplar. B) A função punitiva/preventiva da indenização no Direito Brasileiro: a questão dos danos morais. Conclusão. 1 Este trabalho integra o programa de atividades desenvolvidas dentro do Projeto de Pesquisa “Temas atuais de Direito Privado”, apoiado pelo CNPq e coordenado pela Prof. Dra. Judith Martins-Costa, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Cumpre-nos a satisfação de prestar-lhe amplo agradecimento, já que teria sido impossível realizar esta pesquisa sem a sua valiosa orientação. Introdução A responsabilidade civil, um dos institutos centrais do Direito, atende a uma série de funções como a compensação do dano sofrido, a satisfação do ofendido, a punição do ofensor, a prevenção dos atos ilícitos e a distribuição dos prejuízos. O presente estudo busca traçar um paralelo entre o caráter exemplar da indenização que vem sendo adotado de forma crescente no Direito Brasileiro e os institutos dos punitive damages da tradição anglo-saxônica e da pena privada, que remonta ao Direito Romano. Nos sistemas jurídicos romano-germânicos, entre os quais se inclui o Brasil, não raro se costuma afirmar que, uma vez consagrada a autonomia da responsabilidade civil relativamente à responsabilidade penal, a função punitiva foi atribuída exclusivamente a esta última. Concomitantemente, atribuiu-se à responsabilidade civil caráter exclusivamente reparador, tendo em vista, entre outras razões, a vedação ao enriquecimento sem causa. Porém, as preocupações mais recentes da civilística com a justiça distributiva (e não apenas a justiça comutativa) no Direito Brasileiro renovam o antigo debate acerca do possível caráter sancionador da responsabilidade civil mesmo nos países onde essa noção era veementemente criticada. A idéia de punição exemplar liga-se, justamente, ao reconhecimento do caráter sancionador da responsabilidade civil, que passa a incorporar entre as suas funções a prevenção e a punição de condutas reprováveis mediante o significativo aumento do quantum da indenização em determinados casos concretos, com caráter de exemplaridade social. É possível encarar as funções de punição e prevenção de duas formas distintas. Pela primeira, a função punitiva e preventiva são como que aglutinadas, resultando como verdadeiro efeito colateral da obrigação ressarcitória2. Explica-se. Em boa parte dos casos, o causador do dano em nada lucra com o ato ilícito cometido. Assim, por exemplo, quando Pedro, por distração, ao tirar se carro da garagem, atinge o carro de sua vizinha, causando danos visíveis a este. Pedro, ao pagar à vizinha o valor equivalente aos reparos necessários, certamente estará em situação pior à anterior ao acidente, fato que, por si, pode ser considerado como punição ao seu comportamento imprudente ou negligente, além de estímulo para que Pedro preste mais atenção de modo a evitar danos futuros. No presente trabalho, porém, não será este o prisma a ser adotado. Busca-se aqui examinar a admissibilidade das funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil, autonomamente com relação à função compensatória. Por função autônoma se procura expressar seja o aumento do quantum relativamente ao necessário para a compensação do dano, para atender à finalidade exemplar da responsabilidade civil, seja, ainda, tal como acontece nos Estados Unidos, na fixação de um tipo especial de indenização para atender a essa finalidade: os punitive damages. Para melhor analisar a aplicação hodierna do caráter exemplar da responsabilidade civil no Direito Brasileiro, primeiramente, pretende-se traçar um paralelo entre os institutos da pena privada, do Direito Romano, e dos punitive damages, do direito anglo-saxônico. Após, parte-se para o estudo da função punitiva e preventiva que a responsabilidade civil 2 A esse respeito, as observações de João Casillo. “Etimologicamente, não há indicação de que a palavra indenização tenha correlação com a idéia de sanção, mas não se pode negar que, como corolário do dano causado, a indenização também tenha função sancionatória ao causador do dano. Não se pode fugir desta realidade, pois ela é muito importante, até sob o ponto de vista psicológico-social. Aliás, é inegável esta constatação, pois aquele que indeniza, mesmo que o faça amigavelmente, sem coação do Poder Judiciário, sente o aspecto sancionatório da indenização.Além disso, a possibilidade de as pessoas serem obrigadas a indenizar, quando agentes de atos ilícitos, pesa fundamentalmente nas atitudes de cada um. Os que praticariam o ato dolosamente pensam duas vezes antes de fazê-lo. Os que poderiam praticar por culpa, aguçam seus sentidos, para não incorrerem em imprudência, negligência e imperícia.Tanto é verdade que a indenização também está ligada à idéia de sanção, que, em vários códigos, há uma identificação com o Direito Penal, e em outros, mantém-se a possibilidade da prisão civil pelo não cumprimento da obrigação”. CASILLO, João. Dano à pessoa e sua indenização. 2. ed. São Paulo: RT, 1994, p.81-82. pode exercer, no direito continental, e da aplicação que tal concepção vem recebendo pelo Direito Brasileiro. I – Pena privada e punitive damages: desenvolvimento histórico do caráter exemplar da responsabilidade civil A) Contornos da pena privada no Direito Romano 1) A pena privada no Direito Romano clássico A indenização da parte lesada é, sem nenhuma dúvida, uma função básica da responsabilidade civil. Porém, historicamente, é verdade que a indenização da vítima não foi a primeira função da responsabilidade civil. Nas sociedades primitivas, o dano aparecia principalmente como um rompimento da ordem social e mesmo da ordem cósmica.3 A primeira forma encontrada pelas sociedades primitivas para reagir contra os danos foi a vingança, que pode ser considerada como a pré-história da responsabilidade civil. Em um estágio mais avançado da evolução histórica, surgiu a lei de talião como um primeiro temperamento aos costumes primitivos. Foi somente em uma terceira etapa que se vislumbrou na responsabilidade civil uma nova possibilidade de reação aos atos danosos.4 Nesta primeira fase da responsabilidade civil, bem testemunhada pela evolução do Direito Romano, a função principal da responsabilidade civil não era tanto a de ressarcir o 3 4 TUNC, André. Torts. Introduction. In: International Enciclopedia of Comparative Law. v. 11. cap.1, p.93. GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.39 e ss. ofendido, mas a de punir o responsável pela lesão5. No Direito Romano, a pena privada tinha lugar no âmbito dos delitos privados (delicta), que eram os ilícitos contra a pessoa ou aos seus bens, precisamente o furtum, a rapina, a iniuria, e o damnum iniuria datum. Aos delicta opunham-se os delitos públicos (crimen), isto é, as infrações ao Estado e à paz do reino, punidas com a poena publica.6 Quando ocorria um delito privado, o Estado não tomava a iniciativa de punir o ofensor, mas assegurava à vítima o direito de intentar contra este uma actio para obter sua condenação ao pagamento de determinada quantia, como pena (poena privata).7 A pena privada, em seu aspecto essencial, visava à pessoa do réu e conformava-se ao princípio da adequação, isto é, devia corresponder ao dano e só podia ser imposta por via da actio poenalis, o sucedâneo histórico da vingança privada. Podia, pois, definir-se como a sanção de um ato privado legítimo, sanção que procurava, no direito histórico, afligir o réu mediante diminuição do seu patrimônio. Predominava, pois, sobre a idéia do ressarcimento, a noção de pena. Não era reparação, mas apresentava estrutura correlativa à da pena pública. Revestido dos característicos que lhe emprestou o direito romano clássico, o sistema oferece, conforme atesta Pascuale Voci, o mais belo documentado exemplo de como pode a pena adequar-se ao crime. É o mesmo autor que conclui: “O conceito da actio poenalis é preciso: é penal a ação que tenha função penal”.8 5 The idea that certain kinds of conduct should be vindicated by an award of multiple damages runs deep. Biblical law embodied the ideal for theft and trespass. Greek law, otherwise. Nevertheless, the rationale behind the various sanctions found in the law of the ancient world did not clearly differentiate what is commonplace to us: “tort” and “crime”. Roman law is illustrative. The delict of theft ran back at least to the Twelve Tables (450 B.C.). The penalty was four times the value of the thing stolen. As with Biblical and Greek law, Roman law did not, therefore, fully make our distinction between “crime” and “tort”. BLAKEY, Robert. Of characterization and other matters: thoughts about multiple damages.Disponível em http://www.law.duke.edu/shell/cite.pl?60+Law+&+Contemp.+Probs.+97+(Summer+1997) . Acesso em 16 de novembro de 2003. 6 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.265. 7 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.265. 8 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.733. No direito clássico, os delitos ensejavam a actio poenalis, mediante a qual pode ser imposta uma multa ao delinqüente. A actio poenalis opõe-se às demais ações dirigidas ao autor do dano, as chamadas actiones rem persequentes, que visam tão somente a ressarcir o prejuízo causado. A multa pode importar um múltiplo do dano causado (duplum, triplum, quadruplum, e algumas vezes, somente o simplum), mas nem sequer neste último caso pode ser considerada uma ação de indenização.9 Conforme observa Pasquale Voci, o Direito Romano não atribui função reipersecutória a nenhuma ação penal e chama de poenalis somente as ações que sejam verdadeiramente e exclusivamente tais por sua fonte, pela sua estrutura, pela sua função.10 Essas ações, que compreendiam a devolução de uma soma múltipla de até quatro vezes a importância do dano efetivamente sofrido eram qualificada de poenales, em contraposição às ações meramente reipersecutorie, que tinham a finalidade de reintegrar a composição patrimonial à parte lesada.11 No Direito Romano, na origem, a responsabilidade civil era concebida primordialmente como instrumento sancionatório para a tutela de situações jurídicas relevantes. O escopo das várias actiones poenales privadas não era o ressarcimento do dano, mas a sanção ou a repressão a determinadas condutas lesivas de interesses privados, como por exemplo o furto e o roubo, a atuar-se mediante a obrigação de devolver somas mais que compensatórias, múltiplas dos danos sofridos.12 Assim, conquanto no direito clássico, essa poena privata tem o mesmo caráter punitivo da pena pública, no direito justinianeu, porém, ela passa, em verdade, a configurar- 9 SCHULTZ, Fritz. Derecho romano clásico. Trad. José Santa Cruz Teigeiro. Barcelona: Bosch, 1960, p.40. VOCI, Pasquale. Risarcimento e pena privata nel diritto romano clássico. Milano: Giuffrè, 1939, p.5-6. 11 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.40. 12 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.38. 10 se como ressarcimento do dano sofrido pela vítima, embora continue a denominar-se poena.13 2) O desprestígio da noção de pena privada no sistema jurídico continental Como se sabe, a noção de pena privada paulatinamente saiu de cena do direito continental a partir do período justinianeu. O fenômeno foi de tal monta que até mesmo o célebre Rudolf von Ihering, antes de se mostrar defensor da pena privada em sua A luta pelo direito, chegou a proclamar que “a história da pena privada é a história de sua decadência”. Atribui-se à jurisprudência romana o mérito de haver iniciado validamente o movimento de “despenalização” total do direito privado, tendente a eliminar dele todo elemento penalístico, com a construção de um ilícito aquiliano apenas e tão somente de caráter reipersecutório.14 Os fatores que conduziram ao aprofundamento da nítida cisão dos planos ressarcitório e punitivo já iniciada ao final do período romano são múltiplos. Tome-se, por exemplo, a influência dos ideais de justiça comutativa propugnados por São Tomás de Aquino; nessa perspectiva, deveria ser banido qualquer transferência injustificada de riqueza de um sujeito a outro. Segundo São Tomás, diferentemente da lei positiva aplicada ao seu tempo, quem fosse culpado por um furto poderia liberar-se simplesmente restituindo aquilo que havia subtraído. Tais idéias sugeriam a limitação da obrigação de indenizar ao mero ressarcimento do dano efetivamente infligido.15 13 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.266. CAHALI, Yussef Said. Dano e indenização. São Paulo: RT, 1980, p.20. 15 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.40 e ss. 14 O processo de despenalização da responsabilidade civil surgiu não somente no sentido de limitar cada vez mais a obrigação ressarcitória somente aos danos efetivamente sofridos, mas também no sentido de tornar cada vez mais uniforme as regras desse instituto. As várias ações penais romanas comportavam a aplicação de regras diferentes segundo o tipo de ação não somente sob o ponto de vista dos pressupostos da ação, mas também sob o ponto de vista do quantum ressarcitório que variava segundo a gravidade da lesão; por exemplo, o roubo, enquanto crime mais grave, comportava uma obrigação ressarcitória maior que a do simples furto e assim por diante.16 Como observa Paolo Gallo, “In epoca più moderna la crescente prevalenza assunta dall’actio legis aquiliae, che era l’unico rimedio romano che non presupponeva necessariamente il dolo, doveva condurre ad uma crescente uniformazione delle regole applicate in materia di responsabilità civile, fino a consentire l’emersione di um corpus unitario compatto di regole da applicarsi in quasiasi ipotesi di dannegiamento doloso o colposo dei beni altrui”.17 O processo não somente conduziu ao cancelamento da originária função penal da responsabilidade civil, mas também à eliminação de várias diferenças que antes existiam quanto aos diversos tipos de ilícitos, segundo à sua gravidade e segundo o elemento subjetivo do autor da lesão. Acrescente-se a isso a contraposição público-privado resultante do ideário liberal. O Código Civil dos franceses introduzira, como uma de suas maiores inovações, a separação rigorosa entre a matéria civil e os tipos penais, distinção que começara já pela opção de criar diferentes documentos legislativos para cada uma dessas disciplinas. Como observa 16 17 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.43. GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.43. Hans Hattenhauer, a separação não emergia de qualquer esforço de cientificidade ou sistematização, mas, sim, da rígida divisão entre o Direito Público e o Direito Privado, entre a liberdade do cidadão quanto à circulação dos bens e sua posição frente ao poder estatal – separação esta de fundamental importância para assegurar a plena autonomia na sociedade burguesa”. Nesse contexto, a separação entre pena e indenização foi mais uma das conseqüências dessa mentalidade, justificando-se pois, tendo em vista os objetivos a serem alcançados, era, então, imprescindível retirar da indenização qualquer conotação punitiva; a pena dirá respeito ao Estado e a reparação, mediante indenização, exclusivamente ao cidadão.18 Assim, à época do Code, aparentemente, a responsabilidade civil já havia sido purificada de todo e qualquer resquício penal, considerado totalmente estranho ao seu escopo e funcionamento. Na realidade, a pena privada passou a ser vista como um indício da barbárie das civilizações mais remotas. Com efeito, os Mazeaud, ao se referir à pena privada, insistem em frisar que “ce bénéfice vient apaise l’antique besoin de vengeance qui sommeille au fond du coeur de chaque victime. L’homme qui a souffert, n’est pas au fond du coeur de chaque victime. L’homme qui a souffert n’est pas satisfait par cela seul que disparaît sa souffrance; l’instinct le pousse à désirer que l’auteur de la faute souffre à son tour le même mal. L’idée est barbare; elle tient à tout ce qu’il y a de mauvais dans la nature humaine”. Acrescentam, ainda, que as penas privadas são “indéfendables em droit comme em éqüite. Juridiquement, la condamnation civile repose sur le vide, ce que est dire 18 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa: uma leitura civil-constitucional. Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p.201-202. qu’elle s’effondre; le responsable se voit obligé de réparer non seulement un préjudice qu’il n’a pas causé, mais même un préjudice qui n’existe pas”.19 Assim, tamanho era o repúdio à noção de pena privada que, quando Boris Starck lançou sua famosa tese em 1947, esta foi rechaçada, não obstante a repercussão que obteve a sua posição. Talvez, porém, a profecia de Boris Starck, segundo o qual “la peine privée ne meurt que pour renaître” 20, parece ter se realizado com o crescente prestígio que a responsabilidade civil punitiva vem assumindo também em países que seguem a tradição jurídica romano-germânica. B) A tradição anglo-saxônica e os punitive damages 1) Histórico e panorama atual do instituto Os punitive damages, também chamados, exemplary damages, vindictive damages ou smart money consistem na soma em dinheiro conferida ao autor de uma ação indenizatória em valor superior ao necessário à compensação do dano, tendo em vista a dupla finalidade de punição (punishment) e prevenção (deterrence). Os punitive damages, portanto, opõem-se aos ditos compensatory damages, que consistem no montante da indenização equivalente ao dano causado, atribuído com o objetivo de ressarcir o prejuízo. A prática de condenar o causador de um dano a indenizar múltiplos do dano, típica do Direito Romano, ingressou na tradição anglo-saxônica já nos tempos de Eduardo I, quando se passou a atribuir parte prejudicada o direito a perceber o dobro ou o triplo dos 19 MAZEAUD & MAZEAUD. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle. Paris: Sirey, 1950, p.470-471. 20 STARCK, Boris. Essai d’une théorie générale de la responabilité civile considerée en sa double fonction de garantie et de peine privée. Paris: L. Rodstein, 1947, p.377. danos por ela sofridos. Por isso, de modo muito característico no Direito inglês, o castigo era infligido mediante o exercício de ações civis, na forma de uma reparação equivalente a um múltiplo do valor do dano sofrido. Estes princípios são perfeitamente aplicáveis ao Direito Romano do fim da República. No direito moderno romano, as ações penais evoluíram gradualmente até adquirir o caráter de ações cuja finalidade era conseguir uma compensação. Na Inglaterra, serviram de modelo aos legisladores da época de Eduardo I.21 Tem-se como a primeira previsão de indenização múltipla no direito anglo-saxônico o Statute of Councester, da Inglaterra, que data de 1278.22 Embora a possibilidade de indenização superior ao dano não fosse estranha à tradição anglo-saxônica, a origem da doutrina dos exemplary damages originou-se nas cortes inglesas no século XVIII como um meio para justificar a atribuição de indenização quando não havia prejuízo tangível, ou seja, no caso de danos extrapatrimoniais.23 É corrente a afirmação de que “the right of a jury in certain cases to award exemplary damages has been said to be as old as the right of trial by jury itself”.24 Em 1760, algumas cortes começaram a explicar grandes somas concedidas pelos júris em casos graves como compensação ao autor por mental suffering, wounded dignity e injured feelings. Essa indenização adicional por dano à pessoa eram referidos como exemplary damages pelas cortes que justificavam a condenação afirmando que as indenizações elevadas tinham por objetivo não só compensar o lesado pelo prejuízo 21 SCHULTZ, Fritz. Derecho romano clásico. Trad. José Santa Cruz Teigeiro. Barcelona: Bosch, 1960, p.548-549. 22 BLAKEY, Robert. Of characterization and other matters: thoughts about multiple damages.Disponível em http://www.law.duke.edu/shell/cite.pl?60+Law+&+Contemp.+Probs.+97+(Summer+1997) . Acesso em 16 de novembro de 2003. 23 Note. Exemplary damages in the Law of Torts. Harvard Law Review, n. 70, 1957, p.517 ss. 24 Corpus Juris Secundum. “Damages”. New York. The American Law Book Co., p.708. intangível sofrido, mas também punir o ofensor pela conduta ilícita25. Na verdade, tais objetivos foram confundidos pelas Cortes inglesas e norte-americanas até meados do século XIX.26 Porém, no decorrer do século XIX 27, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, o conceito de actual damages (categoria que representa os danos efetivos, na qual se incluem as perdas e danos compensatórias) foi ampliado para abarcar também o prejuízo intangível. Como conseqüência, a função originalmente compensatória dos exemplary damages foi transferida aos actual damages, e as cortes foram levadas a falar dos exemplary damages exclusivamente em termos de punishment e deterrence.28 Assim, atualmente o conceito de punitive damages mostra-se desvinculado de sua ligação originária com a indenização dos danos extrapatrimoniais. Porque suas finalidades precípuas passaram a ser a punição e a prevenção, o foco passou a incidir não sobre a espécie do dano, mas sobre a conduta do seu causador. Tomando-se esse aspecto em consideração, é importante agora traçar algumas considerações gerais sobre o instituto. 25 Note. Exemplary damages in the Law of Torts. Harvard Law Review, n. 70, 1957, p.518-519. É de se ressaltar que é precisamente esta a concepção predominante hoje no Direito Brasileiro com relação ao dano moral, como será visto na parte B deste trabalho. 26 Note. Exemplary damages in the Law of Torts. Harvard Law Review, n. 70, 1957, p.519-520. 27 A esse respeito, Comandè traça com maiores detalhes a transmutação da função atribuída à indenização pelos non pecuniary losses (danos extrapatrimoniais) na common law. Afirmar que não restam mais dúvidas de que os non pecuniary losses entram também na categoria dos compensatory damages, que buscam recompensar o lesado e a colocá-lo na posição em que se encontraria se houvesse sofrido a lesão. Aponta que já no século VII as perdas não pecuniárias eram levadas em consideração pelo ordenamento jurídico, condenando-se por cada ofensa singular o ressarcimento, em cifra fixa, à parte lesada e ao soberano, por haver turbado a paz do reino. A função desenvolvida pelo pain and suffering então era, portanto, punitivodeterrente. No caso Morse v. Auburn & Syracuse R.R(1851), excluiu-se definitivamente que o pain and suffering pertencesse à categoria dos punitive damages; no caso Ransom v. New York & R.R. afirmou que a finalidade prioritária do p.s. era “to render the person as whole as he was before the injury”. Em 1882, tornou-se pacífico na doutrina e na jurisprudência norte-americana que as condenações a indenização por p.s. eram “a compensation for the very grat and long-continued pain which the plaintiff have suffered”. Isso se deveu a uma série de fatores: o aumento no número de incidentes causados pelo progresso técnico industrial, a culpa como princípio geral de imputação da responsabilidade, a cada vez mais constante presença dos seguros em sede de responsabilidade civil. Tais fatores contribuir para transformar a soma de dinheiro aplicada a título de p.s em um verdadeiro ressarcimento do dano, afastando-a de uma vingança privada. COMANDÈ, G. Le non pecuniary losses in common law, Rivista di Diritto Civile, 1993, n.7, p.453 ss. 28 Note. Exemplary damages in the Law of Torts. Harvard Law Review, n. 70, 1957, p.520. Quanto às características gerais e requisitos dos punitive damages que serão a seguir expostos, ressaltem-se que eles se referem à doutrina tal como ela é aceita nos Estados Unidos. Isso porque na Inglaterra, por exemplo, desde 1964, com o caso Rookes v. Barnard, as hipóteses em que podem ser concedidos os punitive damages restaram bastante restritas29. Os limites impostos na Inglaterra por esse precedente, contudo, não foram seguidos por outros países da common law, como Austrália, Canadá e Nova Zelândia30. A escolha pela análise dos punitive damages em seu molde norte-americano justifica-se na medida em que foi nesse país que a doutrina foi mais profundamente estudada e aplicada a seus extremos, sendo alvo, também aí, das mais diversas críticas31. Como regra geral, salvo lei em contrário, receber punitive damages não constitui direito subjetivo e depende sempre da discricionariedade do júri. Em algumas jurisdictions, quando há alegações e provas suficientes, os punitive damages são considerados direito subjetivo, sendo dever (duty) do júri concedê-los. In most jurisdictions, an instruction to the jury as to the award of exemplary damages should be permissive and not mandatory.32 Em geral, não é possível a condenação em punitive damages por violação de um contrato, independentemente dos motivos que levaram o réu a fazê-lo. Isso é possível 29 Em 1964, com o caso Rookes v. Barnard, deu-se um redimensionamento ao possível campo de atuação dos punitive damages. Nessa decisão, Lord Devlin entendeu conveniente limitar a condenação em em punitive damages a três hipóteses bem definidas: (1) diante de uma violação de direitos fundamentais dos cidadãos pela Administração Pública; (2) quando há uma clara intenção do causador do dano de obter um lucro injustificado que não encontraria outras sanções; (3) se existir previsão expressa em lei especial. 30 OLLIER, Pierre-Dominique; LE GALL, Jean-Pierre. Torts. Various Damages. In: International Enciclopedia of Comparative Law. v. 11. cap.10, p.84. 31 Cumpre ressaltar, desde logo, que as considerações que serão feitas a seguir referem-se à configuração geral dos punitive damages na maioria dos Estados norte-americanos. Como é notório, nos Estados Unidos, as unidades federativas gozam de ampla autonomia legislativa e judicial para a elaboração do direito. Assim, cada Estado sobre a admissibilidade, a extensão e as hipóteses de punitive damages. Dessa forma, o panorama do instituto nos Estados Unidos é dos mais diversos. Há Estados que sequer admitem o instituto; alguns o admitem somente diante de autorização legal expressa; muitos estabelecem limites (caps) para as condenações; e outros, ainda, impõem que parte do montante indenizatório pago pelo ofensor deve reverter para o Estado (split recovery). Assim, nesse trabalho serão feitas caracterizações genéricas, atinentes à formação dos punitive damages na maiora dos Estados. Ademais, ao final, serão apreciados os parâmetros ditados pela Suprema Corte, os quais, por óbvio, devem ser obedecidos em todo o território norte-americano. 32 Corpus Juris Secundum, “Damages”. New York. The American Law Book Co., p.711. somente quando for alegado e provado o cometimento de um ilícito extracontratual (tort) em conexão com a violação do contrato. Todavia, mais recentemente as Cortes norteamericanas têm abrandado a vedação aos punitive damages em caso de inadimplemento contratual. Ausente o elemento subjetivo, só será possível obter indenização compensatória pelo prejuízo sofrido e nada mais.33 Em outras palavras, os punitive damages só podem ser concedidos em caso de circunstâncias subjetivas que se assemelham à categoria continental do dolo, quais sejam malice, wantonness, willfulness, oppression, fraud, entre outras. A mera negligência, na ausência das circunstâncias agravantes, não é razão suficiente para a condenação de punitive damages. Gross negligence (negligência grave), em alguns estados, enseja punitive damages. Além dos efeitos de punição e prevenção, há quem diga que os punitive damages são uma forma de expressão da indignação do júri.34 Às vezes se menciona que a quantia vai para o autor como recompensa pelo serviço ao público de trazer o causador do dano à justiça (as a reward for his public service in bringing the wrongdoer to justice).35 Nos Estados Unidos, via de regra, cabe ao júri a fixação dos punitive damages, a qual, porém, em determinadas hipótese pode ser revisada por uma Corte superior. Tradicionalmente, o sistema jurídico Americano deposita grande importância no papel do júri para decider questões relevantes, confiando no júri como um “guarantor of fairness, a bulwark against tyranny, and a source of civic values”. Entretanto, no âmbito dos punitive damages, uma suspeição generalizada erodiu a histórica confiança no papel do júri. Entre as explicações para a suspeita incluem-se a inclinação do júri contra os réus abastados, o 33 Corpus Juris Secundum, “Damages”. New York. The American Law Book Co., p.715. Corpus Juris Secundum. “Damages”. New York. The American Law Book Co., p.706. 35 Corpus Juris Secundum, “Damages”. New York. The American Law Book Co., p.708. 34 impulso de redistribuir riqueza, a incompetência ou inabilidade em compreender a complexidade que envolve a fixação do quantum e as características psicológicas que predispõem certos jurados a conferir punitive damages.36 O instituto dos punitive damages, não obstante sua aceitação histórica pelo sistema da common law, foi sempre alvo das mais duras críticas. Nas últimas décadas, as indenizações a títulos de punitive damages em valores cada vez mais elevados, comumente na faixa de milhões e até bilhões de dólares, passaram a demonstrar a fragilidade do instituto e a atrair ainda oposição ainda maior. Entretanto, foi somente nos últimos anos que a Suprema Corte dos Estados Unidos houve por bem intervir pela primeira vez nos montantes fixados, baseando-se no princípio do devido processo legal, em sua acepção substantiva, consagrado pela XIV Emenda da Constituição Americana. Não obstante a inconstitucionalidade da fixação dos punitive damages já tivesse sido questionada outras vezes perante a Suprema Corte, somente no caso BMW of North America, Inc. v. Gore (1996) foi reconhecida que a condenação de punitive damages em patamares irrazoáveis afronta a Due Process Clause. Nesse caso, o autor, Ira Gore Jr., comprou um novo BMW sedan de um comerciante do Alabama. Após, ele ficou sabendo que o réu, BMW of North America, tinha repintado parte do carro por causa de um dano ao carro antes de sua chegada aos Estados Unidos, embora a BMW não tenha revelado o fato. O júri conferiu ao réu compensatory damages no valor de $4000 pela diminuição do valor do carro e punitive damages no valor de $4 milhões. A Suprema Corte do Alabama reduziu os punitive damages para $2 milhões. A Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso, considerou esse montante como grossly 36 Note.“Developments in the law – the civil jury”. Harvard Law Review, v.110, n.7, May 1997, p.1517. excessive (manifestamente excessivo), e, portanto, inconstitucional. Então, a Suprema Corte do Alabama, em reconsideração, os reduziu para $50.000. Em Gore, a Suprema Corte instruiu as demais Cortes a considerar três diretrizes na fixação dos punitive damages para todos os casos que seguirem: 1) o grau de repreensibilidade da conduta do réu (the degree of reprehensibility of the defendant’s misconduct). Para aferir a referida repreensibilidade, segundo a Corte, é importante atentar aos seguintes fatores: (1) se o prejuízo causado foi físico ou meramente econômico; (2) se o ato ilícito foi praticado com indiferença ou total desconsideração com a saúde ou a segurança dos outros; (3) se o alvo da conduta é uma pessoa com vulnerabilidade financeira; (4) se a conduta envolveu ações repetidas ou foi um incidente isolado; (5) se o prejuízo foi o resultado de uma ação intencional ou fraudulenta, ou foi um mero acidente. A existência de qualquer desses fatores em favor do autor podem não ser suficientes para sustentar uma condenação de punitive damages; por outro lado, a ausência de todos torna qualquer condenação suspeita. Isso porque se deve presumir que o autor foi plenamente compensado pelo dano sofrido por meio dos compensatory damages, de forma que os punitive damages devem ser pagos somente quando a culpabilidade do réu, depois de ter pago compensatory damages, é tão repreensível que merece a imposição de outras sanção para se atingir punição ou prevenção. 2) A disparidade entre o dano efetivo ou potencial sofrido pelo autor e os punitive damages 3) A diferença entre os punitive damages concedidos pelo júri e as multas civis autorizadas ou impostas em casos semelhantes Mais recentemente, em State Farm Mutual Automobile Insurance Co. V. Campbell et al. (2003), houve nova declaração de inconstitucionalidade dos punitive damages pela Suprema Corte, tendo por base as diretrizes de Gore. No caso, o júri de Utah concedeu aos autores $2.6 milhões em compensatory damages e $145 milhões em punitive damages, que foram reduzidos pela corte em $1 milhão e $25 milhões. Dizendo estar a aplicar os critérios de Gore, a Suprema Corte de Utah restaurou a condenação de punitive damages no valor de $145 milhões. Novamente, a Suprema Corte, segundo os parâmetros ditados em Gore, reconheceu a ofensa ao princípio do devido processo legal em sua acepção substantiva. Ainda assim, a Suprema Corte permaneceu relutante em um limite constitucional concreto para razão entre o dano efetivo ou potencial e os punitive damages, mas afirmou que as razões mais próximas de satisfazerem às exigências constitucionais mostram-se próximas às origens das condenações múltiplas, que, como já vimos, eram permitidas em valores que chegassem até o quádruplo do dano efetivamente sofrido: Assim, “We decline again to impose a bright-line ratio which a punitive damages award cannot exceed. Our jurisprudence and the principles it has now established demonstrate, however, that, in practice, few awards exceeding a single-digit ratio between punitive and compensatory damages, to a significant degree, will satisfy due process. In Haslip, in up-holding a punitive damages award, we concluded that an award of more than four times the amount of compensatory damages might be close to the line of constitutional impropriety. We cited the 4-to-1 ratio again in Gore. The Court further referenced a long legislative history, dating back over 700 years and going forward to today, providing for sanctions of double, treble, or quadruple damages to deter and punish. While these rations are not binding, they are instructive. They demonstrate what should be obvious: Single- digit multipliers are more likely to comport with due process, while still achieving the State’s goals of deterrence and retribution, than awards with rations in range of 500 to 1 or, in this case, of 145 to 1”. Acrescentou a Corte que, de qualquer forma, há uma presunção contra uma condenação em punitive damages que represente uma razão de 145 para 1, relativamente ao valor dos compensatoy damages. Assim, novamente por maioria, a Corte considerou o montante dos punitive damages inconstitucional e devolveu o caso para a Suprema Corte de Utah. II – O caráter exemplar da responsabilidade civil e o Direito Civil Brasileiro A) Hipóteses que ensejam a adoção do caráter exemplar Apesar do descrédito geral a que foi submetida durante largo período de tempo, a discussão sobre o caráter exemplar da responsabilidade civil vem ganhando força nos países de civil law. Boris Starck já sustentara em 1947 que “le mouvement d’abolition de la peine privée s’accompagne d’un mouvement inverse qui tend à la rétablir.”.37 Talvez como resultado da previsão do autor – que, a propósito, também restou isolado ao defender com veemência a pena privada à sua época- a função punitiva da responsabilidade civil não pára de ganhar adeptos. 37 STARCK, Boris. Essai d’une théorie générale de la responabilité civile considerée en sa double fonction de garantie et de peine privée. Paris: L. Rodstein, 1947, p.377. As razões para a volta do caráter exemplar da responsabilidade civil não são difíceis de explicar, porquanto resultam, na maior parte dos casos, da própria insuficiência das respostas oferecidas pela responsabilidade civil quando exerce função meramente compensatória, com o montante da indenização limitado ao dano efetivamente sofrido. Agregue-se a isso a tendência de retração do Direito Penal, que, segundo os modernos estudiosos, deve ser limitado às ofensas mais graves à ordem social, abrindo, então, espaço para a retomada do caráter sancionador da responsabilidade civil. Paolo Gallo, autor de brilhante monografia sobre o tema, elenca quatro hipóteses aptas a serem sancionadas com a pena privada no direito contemporâneo: (1) casos de responsabilidade civil “sem dano”, isto é, sem dano de natureza econômica imediatamente perceptível, como ocorre no vasto setor das lesões aos direitos de personalidade; (2) situações em que o lucro obtido com o ato ilícito é superior ao dano; (3) hipóteses em que a probabilidade de condenação a ressarcir os danos é inferior relativamente à probabilidade de causar danos; (4) crimes de bagatela.38 A primeira hipótese, que concerne, precisamente, aos danos extrapatrimoniais, será analisada com vagar no capítulo seguinte do trabalho (II, B), quando será analisado o caráter exemplar da responsabilidade civil no Direito Brasileiro. As situações (2) e (3), por sua vez, merecem ser aqui melhor explanadas, dada sua importância ascendente em uma sociedade de riscos e de produção em série. Tais hipóteses correspondem aos casos em que o custo social do ilícito é muito superior àquele individualmente sentido pelas vítimas singulares, como ocorre em muitas atividades empresariais.39 38 39 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.175 ss. GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.18. Quanto a esse aspecto, é paradigmático o caso Ford Corporation v. Grimshaw. Trata-se de um caso muito conhecido. Após uma batida, um carro produzido pela Ford, conhecido com Ford Pinto, explode causando a morte de três ocupantes. Verifica-se que a explosão do carro se deu porque reservatório do carburador foi colocado no lado posterior, o que permitia uma economia de 15 dólares por cada automóvel produzido.40 Nesse caso, o júri não hesitou em conceder uma considerável soma a título de punitive damages, com base na consideração de que o comportamento da Ford era altamente reprovável. Para efetuar uma economia de apenas 15 dólares por automóvel, o tanque foi colocado no lado posterior. Embora consciente do perigo em caso de colisão, tendo-se em vista uma análise de custos e benefícios, a empresa considerou que seria mais vantajoso ressarcir os eventuais danos do que colocar o tanque em outro lugar.41 Resta evidente, pois, que a indenização ressarcitória, aqui, não é suficiente para gerar um efeito preventivo idôneo. Além disso, o número de sujeitos que em concreto intentarão uma demanda judicial de natureza ressarcitória é inferior com relação ao número de sujeitos lesados ou potencialmente lesados.42 Em casos análogos ao Grimshaw v. Ford Motor Co., um idôneo efeito preventivo só pode ser alcançado mediante a cominação de valores tais a permitir uma total integralização do custo social total, com base na doutrina do caráter exemplar da responsabilidade civil.43 A quarta hipótese de responsabilidade civil exemplar citada pelo autor toca aos chamados crimes de bagatela, ou seja, as condutas que, pelo valor irrisório do seu objeto, não são hábeis a desencadear a pretensão punitiva do Estado. Assim, a responsabilidade 40 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.18. GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.19. 42 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.19. 43 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.152. 41 civil punitiva, aqui, supriria a lacuna ora existente no nosso sistema jurídico, que, ao reconhecer a atipicidade penal da conduta, não oferece qualquer outro mecanismo apto a desestimular o ato. O direito penal nasce no âmbito do Direito Romano, sobretudo no setor dos ilícitos contra o Estado, o rei, a paz pública. Progressivamente, expande-se em matéria de crimes contra a pessoa e o patrimônio, também com o objetivo de permitir um recurso mais amplo às garantias típicas do processo penal. Mais recentemente, ou melhor, desde Beccaria, verifica-se a tendência inversa. É, sobretudo, no século XX que tal fenômeno assume proporções ainda maiores, de sorte que os penalistas defendem uma significativa redução das fattispecie penais pelas seguintes razões: gravidade das sanções penais, aflitividade intrínseca ao processo penal, efeitos estigmatizantes da condenação e custos conexos ao funcionamento do processo penal.44 Segundo as tendências mais recentes, a escolha da sanção penal deve ser inspirada não tanto pela exigência de proporcionalidade, mas também pela de subsidiariedade; nesse sentido, só deve haver recurso às sanções penais em caso de macrolesões insuscetíveis de serem adequadamente sancionadas mediante instrumentos alternativos de tutela (lesões mais graves). Em doutrina, já foi sugerida a utilização da pena privada para sancionar fenômenos muito difusos, como por exemplo o furto nos grandes magazines ou a emissão de cheque sem fundos. Na Alemanha, foi introduzido um sistema de penas privadas em matéria de furtos em grandes magazines; em caso de furto, calcula-se, em média nos magazines, onde há um ladrão entre 430 clientes, o diretor é legitimado a aplicar uma multa proporcional ao furto cometido, o qual não deve, em nenhum caso, exceder ao triplo do valor subtraído e oscilar entre um mínimo de 5 e um máximo de 50 marcos, que não inclui, 44 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.22-23. por óbvio, a restituição e eventual ressarcimento verdadeiro, que se cumulam com a sanção. Trata-se de uma solução que apresenta inegáveis pontos de contato com a velha actio furti romana.45 Quanto aos cheques sem fundos, a Itália, desde 1990, apresenta uma lei que prevê um multa de dez vezes a soma não paga no momento da apresentação do título, juntamente com a revogação da autorização para emitir cheques. Também aqui há um claro exemplo de sanção pecuniária utilizada de forma complementar ou substitutiva da sanção penal. A tendência referente à restrição do campo do penalmente relevante abre novas perspectivas seja às sanções administrativas seja aos vários tipos de sanções civis. Nessa perspectiva, as penas privadas assumem um papel de sanção intermediária entre aquelas penais em sentido estrito e o mero ressarcimento do dano sempre que o recurso às sanções penais pode parecer excessivo e o apelo ao mero ressarcimento do dano se mostre insuficiente para desenvolver um eficaz apelo preventivo em relação às modalidades de lesão e às seus efeitos.46 Delimitadas os requisitos objetivos da responsabilidade civil punitiva, passa-se agora aos requisitos de cunho subjetivo. No direito anglo-americano a concessão de danos exemplares fica subordinada à prova do dolo. Assim, é necessária a existência de uma verdadeira e própria malice, que é a intenção de agir deliberadamente causando danos a outras pessoas; ou a existência de um comportamento reckless, isto é, realizado apesar da consciência acerca de sua alta periculosidade social com relação à sua escassa utilidade. Mais limitada é, diversamente, a tendência de expandir a aplicação dos punitive damages 45 46 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.26. GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.27. também em matéria de gross negligence, isto é, de culpa grave. Logo, muito delicada é a questão de demarcar a linha entre culpa grave e recklessness.47 A tendência dos juízes americanos a limitar a concessão de punitive damages somente aos casos de malice e recklessness resulta justificada, tanto sob o ponto de vista tradicional, como com base na análise econômica do direito. Na presença de mera culpa, a imposição de penas pode levar a um fenômeno de supercompensaçação, como a um fenômeno de hiperprevenção. Um discurso similar pode ser realizado quanto à responsabilidade objetiva.48 Uma das críticas que foi levantada nos Estados Unidos quanto à expansão dos punitive damages em matéria de responsabilidade do produtor consiste na incompatibilidade entre um instituto que para poder operar pressupõe necessariamente a malice ou a recklessness com os regimes de responsabilidade objetiva. Na realidade, não é difícil superar tal objeção, considerando como tais institutos operam em dois diferentes níveis e com finalidades muito diversas.49 O escopo da responsabilidade objetiva é unicamente o de propiciar uma integral internalização do custo complexo dos incidentes resultantes do exercício da atividade da empresa, sem o limite constituído aos danos inevitáveis que opera em matéria de culpa; o escopo dos punitive damages é, ao contrário, o de desestimular condutas juridicamente reprováveis porque lesivas de valores relevantes. Trata-se de uma conclusão a que Starck já havia chegado em sua famosa monografia de 1947, na qual sustentava a relevância residual do juízo de culpabilidade também no estado da responsabilidade objetiva e por risco. 47 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.179. GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.180. 49 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.185. 48 Não deve haver recurso à pena privada em caso de culpa, porque a cominação de uma soma maior a título de punição conduziria a uma excessiva exaltação do nível das medidas preventivas, com a conseqüente prevenção excessiva e a elevação do custo social total, sem contar o efeito translativo de riqueza em benefício do sujeito lesado.50 Tampouco é oportuna a adoção de pena privada em caso de responsabilidade objetiva. Se a função da responsabilidade objetiva é promover a internalização integral do custo social total decorrente da realização de determinada atividade produtiva, sem o limite constituído pelos danos inevitáveis que opera em matéria de responsabilidade por culpa, impor a obrigação de pagar punitive damages impõe um efeito de iperdeterrenza, com o conseqüente desestímulo a atividades à atividade empresarial socialmente útil.51 Por fim, após observar a importância do dolo (seja direito ou eventual) como requisito para a aplicação da responsabilidade civil punitiva, cabe analisar os critérios para a fixação do quantum típicos da função exemplar. Com efeito, os critérios a serem utilizados para a afirmação do caráter sancionador da responsabilidade civil são os seguintes: (1) o grau de culpa do ofensor, (2) a condição econômica do responsável pela lesão e (3) o enriquecimento obtido com o fato ilícito.52 B) A função punitiva/preventiva da indenização no Direito Brasileiro: a questão dos danos morais 50 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.63. GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.64. 52 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.197 e ss. 51 No direito comparado, de poucas questões emerge uma mais diversa e contraditória variedade de soluções do que a de saber de que modo a responsabilidade civil por danos morais. Aponta-se que “this is due both to the “incommensurability” of the damage involved and to the immorality of soliciting and receiving money as retribution for an offence to dignity or for a disturbance of peace. One may distinguish, according to their functions, three classes of damages: for compensation, for satisfaction53 and for punitive purposes.54 A questão ganha relevância para o presente trabalho na medida em que, no Brasil, toda a discussão sobre o caráter exemplar da responsabilidade civil acaba por cingir-se à problemática da reparação do dano moral. Conforme visto supra, pela classificação doutrinária de Paolo Gallo, há, pelo menos, quatro hipóteses de aplicação da responsabilidade civil punitiva No Direito Brasileiro, porém, o caráter punitivo e 53 Cumpre ressaltar que o termo “satisfação” pode ser empregado em duas acepções distintas. Segundo a primeira, satisfação seria uma expressão correlata ao conceito de compensação, porém mais adequada ao caso de dano extrapatrimonial, porque ausente, neste último, o princípio da equivalência entre o dano e a indenização e a possibilidade de restitutio in integrum. Há, ainda, uma outra apreensão do termo “satisfação”. Esta última, talvez ainda mais corrente, remonta à doutrina desenvolvida no Direito alemão. Na Alemanha, a noção de satisfação é empregada em um sentido mais específico, que busca descrever uma função especial da responsabilidade civil ao buscar assegurar à parte lesada uma sensação de justiça por meio de uma reação legal ao ilícito. Levando-se em conta a função de satisfação da indenização, está não pode ser simplesmente avaliada de forma objetiva segundo a extensão do dano extrapatrimonial, mas há de levar em consideração também a gravidade do ato e a condição econômica das partes envolvidas. Como observa Bernd-Rüdiger Kern, mencionam-se três finalidades da satisfação: (1) trazer ao lesado um sentimento de satisfação, apaziguando o seu senso de justiça ferido; (2) impor ao ofensor um sensível sacrifício patrimonial; (3) deve atuar preventivamente para o futuro. Portanto, A noção de satisfação, como entendida nesse sentido particular, está estritamente ligada à instituição da punição. Ver OLLIER, Pierre-Dominique; LE GALL, Jean-Pierre. Torts. Various Damages. In: International Enciclopedia of Comparative Law. v. 11. cap.10, p.80-81.STOLL, Hans. Torts. Consequences of liability: remedies. In: International Enciclopedia of Comparative Law. v. 11. cap. 8. p.10; KERN, Bernd-Rüdiger. A função de satisfação na indenização do dano pessoal: um elemento penal na satisfação do dano? Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v.17, p.26, 1999. 54 OLLIER, Pierre-Dominique; LE GALL, Jean-Pierre. Torts. Various Damages. In: International Enciclopedia of Comparative Law. v. 11. cap.10, p.64. preventivo da responsabilidade civil é visto como característica inerente e exclusiva da indenização dos danos morais. À época em que ainda se discutia a viabilidade de se conceder indenização diante da inexistência de prejuízo de ordem patrimonial, surgiram os mais diversos entendimentos. Diante da afirmação de alguns doutrinadores de que seria impossível, além de imoral, “pagar a dor com dinheiro”, emergiram construções doutrinárias com o escopo de legitimar a concessão de uma soma em dinheiro à pessoa que teve sua esfera extrapatrimonial atingida. Nesse contexto, passou-se a defender que a indenização do dano moral seria não só legítima, mas também necessária, pois, do contrário, o ofensor restaria impune. Dessa maneira, afastavam-se os óbices de cunho ético-social e justificava-se a indenizabilidade do dano moral com fundamento na noção de pena privada55. Aliás, nesse aspecto, verifica-se um inegável paralelo com o surgimento da doutrina dos punitive damages na tradição anglo-saxônica, como já exposto supra. Diante da impossibilidade originária em ressarcir o dano que não deixasse lastros patrimoniais, lançou-se mão da teoria punitiva a fim de não deixar o lesado, nesses casos, sem qualquer amparo por parte do ordenamento jurídico. No entanto, como também já foi visto, no próprio direito anglo-saxônico, uma vez consagrada a reparabilidade do dano moral, a função desta passou a ser entendida como meramente compensatória, perdendo sua primitiva vinculação com o instituto dos punitive damages. Estes, por sua vez, passaram a ser concedidos somente nos casos excepcionais em que o estado subjetivo do causador do dano, aliado à censurabilidade de sua conduta, 55 Em verdade, a adoção da teoria da pena privada como solução à questão da imoralidade da indenização é, no mínimo questionável. No brilhante apontar de Pontes de Miranda, “o recebimento, pelo que sofreu o dano, nada tem de imoral (...). Em verdade, não há castigo, nem há imoralidade no receber, mesmo porque, se a fixação fosse de pena privada, a imoralidade não desapareceria”. (t. LIV, p.298-299) PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito privado. Rio de Janeiro, Borsoi, 1955-1972. justificassem a fixação do quantum indenizatório em patamar superior ao necessário para a mera compensação, tendo em vista as finalidades punitiva e preventiva da responsabilidade civil. O Direito Brasileiro, contudo, não passou pela mesma espécie de evolução sofrida pelo direito norte-americano, de modo que ainda se reputam os aspectos punitivos como imanentes aos danos morais. No ordenamento jurídico pátrio, embora desde a Constituição de 1988 tenha se tornada pacífica a admissibilidade da indenização dos danos morais, por expressa disposição constitucional, ainda hoje não se atingiu qualquer espécie de consenso sobre a sua função. A tese punitiva, porém, encontrando ampla receptividade no Direito Brasileiro, não sendo suplantada sequer pela indenizabilidade irrestrita do dano moral pela Carta da República. Assim, ainda hoje coexistem três correntes, em sede tanto doutrinária como jurisprudencial, sobre a função da indenização do dano moral, quais sejam (1) a compensação/satisfação do ofendido56, (2) a punição do ofensor 57 e (3) tanto a satisfação do ofendido como a punição do ofensor58. 56 Propugnam que, em regra, a função da reparação do dano moral é somente ressarcitória MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa: uma leitura civil-constitucional. Rio de Janeiro, Renovar, 2003; SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996.THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano Moral. 3. ed. atualizada e ampliada. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000. 57 Como defensores da tese punitiva, temos LACERDA, Galeno. Indenização do dano moral (parecer). Revista dos Tribunais, v.728, p.94-101, jun. 1996. 58 São partidários da teoria mista, que pode ser considerada majoritária na doutrina e na jurisprudência brasileira, CASILLO, João. Dano à pessoa e sua indenização. 2. ed. São Paulo: RT, 1994.; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998; LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético: responsabilidade civil. São Paulo: RT, 1999; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002; Quando a vítima reclama a reparação pecuniária em virtude do dano moral, não pede um preço para a sua dor moral, mas, a penas, que se lhe outorgue um meio de atenuar, em parte, as conseqüências da lesão jurídica. Na reparação dos danos morais, o dinheiro não desempenha a função de equivalência, como, em regra, nos danos materiais, porém, concomitantemente, a função satisfatória é a de pena. (p.47); GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Critérios para a fixação da reparação do dano moral: abordagem sob a perspectiva civil-constitucional. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (org.). Grandes temas da atualidade: dano moral. Rio de Janeiro: Forense, 2002; COUTO E SILVA, Clóvis do. Principes fondamentaux de la responsabilité civile em droit brésilien et compare (datilog.) Porto Alegre, 1988; NORONHA, Fernando. Desenvolvimentos contemporâneos da responsabilidade civil. Revista dos Também no sentido de reconhecer a função punitiva e preventiva da responsabilidade civil tem-se posicionado a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, órgão de extrema importância, porque responsável pela uniformização da interpretação da legislação federal: “O valor dos danos morais, de seu turno, como tenho assinalado em diversas oportunidades deve ser fixado em termos razoáveis, não se justificando que a reparação enseje enriquecimento indevido, devendo o arbitramento operar-se com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao porte financeiro das partes, orientando-se o julgador pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, valendo-se de sua experiência e bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, não deixando de observar, outrossim, a natureza punitiva e disciplinadora da indenização”. (Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. REsp nº 389.879-MG, Relator Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 16/04/2002, DJ 02/09/2002)., Como conseqüência da adoção da função punitiva (2) ou mista (3) da indenização do dano moral, para a fixação do quantum indenizatório são avaliados outros critérios que não a gravidade objetiva da lesão ao bem jurídico. Consoante foi acima exposto, segundo a classificação de Paolo Gallo, os critérios para a fixação do quantum que fazem transparecer a função punitiva/preventiva da responsabilidade civil são três: (1) o grau de culpa do Tribunais¸ v. 761, p.31-44, mar. 1999; CAHALI, Yussef Said. Dano e indenização. São Paulo: RT, 1980; LORENZETTI, Ricardo Luis. 6º Congresso Internacional de Direito Ambiental – 10 anos da ECO-92: o direito e o desenvolvimento sustentável – Teoria geral do dano ambiental moral. Revista de Direito Ambiental, n.28, p.139-149, out/dez 2002. ofensor, (2) a condição econômica do responsável pela lesão e (3) o enriquecimento obtido com o fato ilícito.59 A estes fatores, os defensores da teoria mista, em geral, acrescentam mais dois: (4) intensidade e a duração do sofrimento experimentado pela vítima, assim como a perda das chances de vida e dos prazeres da vida social ou da vida íntima, e (5) as condições sociais e econômicas do ofendido, tendo em vista a vedação ao enriquecimento sem causa. Como se vê, o quarto critério apresenta caráter marcadamente compensatório/satisfativo. O quinto critério, por sua vez, não obstante a sua fragilidade, também tem sido freqüentemente aplicado pela jurisprudência. Nos países em que os danos extrapatrimoniais eram admitidos apenas nos casos de delito criminal, como na Itália e na Argentina (onde não mais prevalece tal limitação), é natural que a estrita correlação entre danos extrapatrimoniais e pena privada tenha adquirido mais força.60 No Brasil, porém, não há como compreender o prestígio de tal associação. Pode ser que a noção de se imprimir caráter punitivo à responsabilidade civil tenha sido inspirada pelos punitive damages do direito norte-americano, que, no Brasil, têm sido erroneamente tratados como sinônimos de danos morais talvez desde a imprecisão histórica em que incorreu Pontes de Miranda, um dos mais prestigiados juristas da história do Direito Brasileiro.61 59 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.197 ss. SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, p.183. 61 Em equívoco histórico, afirmou o mestre Pontes de Miranda em seu Tratado: “Na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, chama-se exemplary damages aos danos morais”. Conforme já examinado, a ligação dos punitive ou exemplary damages deu-se tão somente em um estágio inicial, já estando, ao final do século XIX, amplamente superada. Todavia, desde Pontes de Miranda, não é raro encontrar no Brasil menções aos punitive damages como se fossem o instituto correlato no direito anglo-saxônico à nossa indenização por dano moral, o que não poderia estar mais longe da realidade. Como visto, é pacífico, no direito anglo-saxônico, que a indenização por danos extrapatrimoniais apresentam função compensatória. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito privado. Rio de Janeiro, Borsoi, 1955-1972. 60 A perfeita identificação entre o caráter punitivo da indenização e o dano moral, perpetrada por boa parte da doutrina e da jurisprudência brasileiras, porém, enseja algumas perplexidades. Isso porque, desde a Constituição de 1988, a reparação do dano moral não fica sujeita a outros pressupostos além dos requisitos tradicionais da responsabilidade civil (ato ilícito, fator de atribuição e nexo de causalidade entre a conduta humana e o dano). Todavia, ocorre que as funções punitiva e preventiva – e nem poderia ser diferente, sob pena de serem inúteis aos fins que perseguem – apresentam pressupostos bem mais exigentes. Já se viu na parte antecedente deste trabalho que a aplicação de tais funções exige a presença de elementos subjetivos da conduta do ofensor, pois, do contrário, acarretariam os fenômenos indesejáveis de hiperprevenção e supercompensação. Para chegar a tais conclusões, aliás, basta uma análise sistemática do ordenamento jurídico. Uma vez inadmissível a responsabilidade objetiva no âmbito do Direito Penal, a qual seria, inclusive, inconstitucional, tampouco subsistem razões para acolher a responsabilidade civil objetiva punitiva. Essa distinção, apesar de elementar, tem sido freqüentemente esquecida pela doutrina e desconsiderada pela jurisprudência. Em caso paradigmático, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em caso de responsabilidade objetiva e na ausência de qualquer elemento subjetivo reprovável na conduta do causador do dano, entendeu por fixar a indenização do dano moral com referência expressa à doutrina dos exemplary damages, em acórdão assim ementado: “CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. EXECUÇÃO FORÇADA MOVIDA CONTRA HOMÔNIMO. LEGITIMIDADE PSSIVA DO CREDOR. 1. O credor é responsável pelo dano provocado contra homônimo, executado no lugar do verdadeiro obrigado, pois a execução se realiza no seu interesse (CPC, art. 612). Fixação do valor da indenização (exemplary damages). 3. Apelação desprovida.” 62 Tratava-se de ação de indenização por danos morais contra credor que promoveu execução forçada contra homônimo do seu devedor. Por óbvio, no caso, não houve qualquer intenção de cometer o ato ilícito, havendo tampouco culpa grave por parte do credor, o qual, aliás, só teve prejuízos diante do erro ocorrido. Imputando a responsabilidade pelos danos ao credor pelo fato de “a execução se realizar segundo seu exclusivo interesse”, hipótese de risco da atividade, mencionou-se a doutrina dos punitive damages em caso que, no direito anglo-saxônico, esta não seria cabível. Todavia, é verdade que, mesmo quando admitem o caráter sancionador da responsabilidade civil, os valores fixados apresentam-se bastante módicos se comparados às condenações em punitive damages tal como ocorrem nos Estados Unidos. Tal disparidade repousa sobre uma série de fatores de ordem cultural e econômica. A ética dominante na sociedade norte-americana não vê com maus olhos o recebimento de uma grande soma em dinheiro pelo indivíduo lesado, enquanto que países como a França e, em certa medida, o Brasil, consideram tal situação imoral. Além disso, como estudado acima, uma das mencionadas finalidades dos punitive damages nos Estados Unidos é servir como recompensa ao lesado por levar à Justiça o ofensor. Essa finalidade parece se justificar nos Estados Unidos diante dos altos custos para se recorrer ao Judiciário. No Brasil, porém, as custas judiciais envolvem quantias bem 62 Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 5ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 596.210.849. Relator Des. Araken de Assis. J. 21/11/1996. Ementa: menos significativas, de modo que a responsabilidade civil punitiva como concebida no país não envolve tal finalidade. O Novo Código Civil Brasileiro de 2002, ao substituir o regramento trazido pelo Código Civil de 1916, traz uma brecha para a volta da importância da função punitiva/preventiva da responsabilidade civil, ao desmontar um dos pilares da concepção de que esta teria função estritamente compensatória: o dogma da equivalência do grau de culpa. O dogma da equivalência do grau de culpa remonta ao Direito Romano em sua máxima “in Lege Aquilia et levissima culpa venit”, segundo a qual mesmo a culpa leve é suficiente para gerar a o dever de indenizar, sendo indiferente para a obrigação ressarcitória o grau de culpa do ofensor. Na realidade, a evolução que atenuou em medida crescente o caráter sancionador da responsabilidade civil conduziu à uniformidade das regras ressarcitórias em caso de culpa ou dolo. Com o crescente interesse pela pena privada, pela função punitiva da responsabilidade civil, ganha importância a tendência a atribuir relevância em sede de quantificação da obrigação ressarcitória ou sancionatória a fatores atinentes à esfera psíquica do sujeito agente. Isso contribui, novamente, para diferenciar as regras de responsabilidade civil em caso de dolo ou de simples culpa.63 Dispõe o art. 944 do Novo Código Civil: “Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.”64 63 GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p.59. A orientação dada pelo projeto não foi exatamente nos moldes preconizados por San Tiago Dantas, ao nosso ver mais adequada, que previa simplesmente a gradação da indenização de acordo com o grau de culpa. “Note-se, porém que a tendência mais recente, no Direito Civil, aquela que provavelmente passará para o 64 Com base em uma interpretação a contrario sensu, pode-se vislumbrar a possibilidade de aumentar o quantum diante da presença de culpa gravíssima ou dolo. Ainda que esta interpretação ousada não seja adotada pela jurisprudência de plano, é certo que o dogma da equivalência da culpa e do dolo, que constituía um entrave a função punitiva da responsabilidade civil, está rompido. Assim, a função punitiva da responsabilidade civil no Direito Brasileiro tende a assumir importância cada vez maior. Ademais, tramita no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 6.960/2002, denominado vulgarmente de “Projeto Fiúza”, que visa a alterar a redação de uma série de artigos do Novo Código Civil, incluindo-se aí o acréscimo de um § 2º ao citado artigo 944: “§ 2º. A reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante”. Se aprovado o referido projeto, o ordenamento jurídico brasileiro terá acolhido expressamente a chamada “teoria do desestímulo” (“deterrence theory”), que se encontra presente na doutrina dos punitive damages. Então, será ainda mais provável que as funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil venha a tomar novo rumo. Aliás, importante notar que somente agora no Brasil têm começado a surgir debates doutrinários específicos sobre a aplicabilidade ou não da doutrina dos punitive damages ao ordenamento jurídico brasileiro. Enquanto que na Argentina, por exemplo, as referências bibliográficas ao tema são já há algum tempo bastante numerosas, no Brasil, em maio de 2003, quando essa pesquisa foi iniciada, as obras doutrinárias referentes a essa questão eram bastante incipientes. nosso Código de Obrigações e, pelo contrário, para readmitir a gradação da culpa, mas já agora com um outro efeito, para graduar por ele o montante da reparação. A idéia de que a reparação civil, ao lado do seu efeito compensatório, também um efeito repressivo, punitivo, faz com que se pense em ordenar uma reparação maior quando a culpa for lata, quando a culpa foi pesada, e uma reparação menor à medida que se atinge a esfera mais leve da culpa”. Apud: SAN TIAGO DANTAS, Programa..., v.II/102 Apud:(p.90) CASILLO, João. Dano à pessoa e sua indenização. 2. ed. São Paulo: RT, 1994. Conclusão A questão da função exemplar da responsabilidade civil no Direito Brasileiro tem sido mal colocada. A um, porque é entendida como característica exclusiva e inerente de toda indenização por danos morais. A dois, porque, por conseguinte, não raro tem prescindido de um critério essencial para a punição, qual seja, a repreensibilidade ou culpabilidade da conduta ilícita. Não observar a culpabilidade afronta tanto princípios morais como princípios de análise econômica do direito, pois aplicar punição em responsabilidade objetiva causa overdeterrence (hiperprevenção). Ademais, no Direito Brasileiro não se tem discutido questões fundamentais relativas à admissibilidade da responsabilidade civil punitiva. A doutrina estrangeira, não sem razão, aponta uma série de óbices constitucionais à adoção de um tal sistema, como a aplicação de punição sem as garantias do Processo Penal, a desconsideração do princípio nulla poena sine lege, a possibilidade de bis in idem quando houver, além da responsabilidade civil, responsabilização criminal, etc. Em última análise, a questão da responsabilidade civil punitiva requer um exame extremamente cuidadoso, a fim de que não se chegue à crise sistêmica existente nesse âmbito nos Estados Unidos, que reclamou, inclusive, a intervenção da Suprema Corte para coibir os abusos. Pensamos que, se aplicada com cuidado, a responsabilidade civil punitiva não contraria os princípios constitucionais contemplados pelo Direito Brasileiro. É mister, no entanto, que se proceda à fundamentação legal do instituto, já que, nos ordenamentos jurídicos que seguem a tradição romano-germânica, a lei ainda ocupa lugar central no sistema. Com as alterações promovidas pelo Novo Código Civil e com as possibilidades de reforma previstas pelo Projeto Fiúza, o Direito Brasileiro fica cada vez mais próximo de uma expressa consagração da idéia de que a responsabilidade civil não deve servir tão somente à compensação do dano sofrido, mas também à prevenção dos danos que estão por vir.