Entrar na Justiça?
Bruno Rodrigues Leite1
Já dizia o ditado que “o uso do cachimbo deixa a boca torta” e na seara
jurídica não poderia ser diferente. A utilização de expressões equivocadas na
atividade forense e por parte da população revelam não só a habitualidade de
quem as enuncia, como também indicam as suas concepções sobre a lei e a
justiça, interpretadas, a um só tempo, como lugares físicos (fóruns e tribunais)
e como entidades e instâncias místicas e transcendentais (juiz e lei).
“Entrar na justiça”, “entrar com a ação” e “ir nos homens (da lei)” são
exemplos de expressões que confundem a ação – “direito assegurado a
qualquer pessoa [...], exercido contra o Estado, consistindo em lhe exigir seja
prestada a jurisdição, tendo por base a instauração de um processo legal e
previamente organizado segundo o devido processo constitucional”, indicado
no artigo 5º, inciso XXXV, Constituição Federal de 1988, “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” – com o estar
fisicamente nos edifícios dos órgãos estatais responsáveis pelo exercício da
função jurisdicional e no ter contato com a figura paternal e castradora do juiz
sensível aos apelos do ‘jurisdicionado’2.
A ação é um direito e não pode ser introduzida materialmente em algum
lugar, a justiça é um valor metajurídico e a lei, entendida como ordenamento
jurídico, não é representada única e exclusivamente por um punhado seleto de
homens.
Percorrendo trilha semelhante de equívocos, as expressões “o advogado
invocou o artigo”, “o direito de propriedade está consagrado na Constituição” e
“o processo corre em segredo de justiça” revelam que a lei é interpretada como
uma entidade relacionada ao mistério e ao sagrado. Não obstante, o artigo do
texto legislativo não pode ser “invocado” como um santo, os direitos não se
tornam sagrados no “altar” da Constituição e o processo, além de não ter
1
Mestrando em Direito Processual pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisador do Programa Cidade e Alteridade da
Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do grupo de pesquisa “Kafka e o Direito”
do Núcleo Acadêmico de Pesquisa.
2 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de
Direito, p. 17-37, 103-104. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
pernas para correr, não pode ser envolvido pelo manto misterioso e inefável da
“deusa justiça” com o intuito de reduzir o exercício do contraditório.
A utilização de símbolos (togas; crucifixos em salas de audiência;
martelo), a disposição do magistrado na sala de audiência (sentado ao centro e
acima das partes) e a arquitetura majestosa dos tribunais e fóruns com colunas
no seu exterior que lembram as colunas dos templos gregos e romanos
contribuem para a confusão entre os órgãos estatais responsáveis pelo
exercício das funções jurisdicionais e ambientes sagrados.
A própria Constituição Federal de 1988 reforça essas imagens místicas
ao dispor no artigo 102 que “compete ao Supremo Tribunal Federal,
precipuamente, a guarda da Constituição [...]”3. Guardar significa proteger,
vigiar e amparar. O Supremo Tribunal Federal é, portanto, o guarda da
Constituição.
Essa profusão de palavras, expressões, arquitetura e lugares comuns
nos remetem a parábola “Diante da Lei” escrita por Franz Kafka no livro “Um
médico rural: pequenas narrativas” e que conta a história de um camponês que
intenta entrar na lei, pedindo permissão ao seu porteiro que, no entanto, adia
indefinidamente a entrada. No final do conto, o camponês, próximo da morte e
ainda diante da lei, pergunta ao porteiro o motivo pelo qual apenas ele, durante
todos esses anos, pleiteou a entrada na lei. O porteiro responde que ninguém
mais, além do camponês, podia entrar na lei, pois aquela porta estava
destinada a ele e, naquele momento, com a proximidade da sua morte, a porta
seria fechada4.
A finalidade da porta, neste conto, de separar dois ambientes está
prejudicada, pois ela permanece sempre aberta. Por isto, o porteiro se torna a
própria porta ao impedir o camponês de entrar na lei. É o porteiro, e não a
porta, quem realmente separa o “fora da lei” do “dentro da lei” e tanto o
camponês quanto o porteiro permanecem fora da lei5.
Se entendermos que o Supremo Tribunal Federal é o guardião (porteiro)
da Constituição (lei) perante as partes litigantes (camponês), a interpretação da
Constituição é vedada ao povo que permanecesse sempre diante e fora da lei,
3
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
Um médico rural: pequenas narrativas, p. 23-25.
5 IZABEL, Tomaz Amorim Fernandes. Das portas na obra de Franz Kafka, p. 108, 110.
4
mas nunca na lei. Assim, este tribunal se torna “Supremo” ao se colocar
adiante e acima na interpretação da lei, tolhendo outras análises legais com
fulcro na “celeridade processual” e em súmulas vinculantes6.
Estar na lei não é ir ao fórum ou tribunal e contar com a benemerência
do juiz, mas participar ativamente na construção do significado da lei em
espaços democráticos, sejam eles os órgãos do Estado com funções
legislativas, governamentais ou jurisdicionais em qualquer instância.
Assim, a falta de rigor científico, seja por parte da população ou dos
advogados, juízes e promotores não é apenas uma espécie de coloquialismo,
mas um escolho que oculta concepções ultrapassadas e perigosas e que
prestam um desserviço à ciência jurídica. O direito, como ciência, tem uma
linguagem que a diferencia dos demais ramos do conhecimento e deve ser
observada, sob pena de vulgarização das instituições jurídicas.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de
1988. Diário Oficial da União, Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 14 jul. 2015.
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e estado
democrático de direito. 3ª ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey,
2015.
IZABEL, Tomaz Amorim Fernandes. Das portas nas obras de Franz Kafka.
2010. 116f. Monografia. Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade
Estadual
de
Campinas,
Campinas.
Disponível
em:
<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=41003>. Acesso em:
07 maio 2015.
KAFKA, Franz. Um médico rural: pequenas narrativas. Trad. Modesto
Carone São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma
trajetória conjectural. Belo Horizonte: Arraes, 2013.
6
Ao tratar da violência dos direitos humanos não processualizados, Rosemiro Pereira Leal
afirma que “o preâmbulo constitucional é, portanto, o portal aberto a esses direitos [...] sem
que ninguém mais possa abri-los, porque já se encontram abertos ante todos, como no conto
de Kafka (perante a lei) e guardados em seus sentidos herméticos pelos três poderes
(legislativo, executivo e judiciário) que se incumbem de assegurar que todos fiquem perante
a lei sem jamais nela entrarem para intratextualizá-la e fruí-la em seus conteúdos de validade e
legitimidade” (A Teoria Neoinstitucionalista do Processo: Uma Trajetória Conjectural, p. 63).
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