PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Jayme Walmer de Freitas
Doação de sangue como prestação social alternativa
DOUTORADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Jayme Walmer de Freitas
Doação de sangue como prestação social alternativa
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Direito, sob orientação do Professor
Doutor Marco Antonio Marques da Silva.
SÃO PAULO
2012
BANCA EXAMINADORA
______________________________
______________________________
______________________________
______________________________
______________________________
Este trabalho é dedicado a cada brasileiro que
clama e luta por um sistema público de saúde
mais digno, justo, igualitário e humano.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Marco Antonio Marques da
Silva, por sua cooperação decisiva nos tópicos mais
relevantes
competência
deste
são
trabalho.
marcas
Seu
dinamismo
indeléveis
de
e
sua
personalidade a espargir admiração entre estudantes,
acadêmicos e profissionais de todos os rincões deste
país.
Aos Professores Claudio José Langroiva
Pereira e Eloísa de Souza Arruda pela significativa
contribuição
acadêmico.
na
elaboração
deste
trabalho
RESUMO
FREITAS, Jayme Walmer de. Doação de sangue como prestação social alternativa. 2012.
181 p. Tese (Doutorado em Direito)  Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2012.
O presente trabalho tem por fim oferecer diretrizes seguras de enquadramento da
doação de sangue como prestação social alternativa. Desde a vigência da Constituição
Federal, em 1988, a doação de sangue tornou-se bandeira para muitos como modalidade de
prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas. Porém, o Supremo Tribunal
Federal decidiu em sentido contrário e a doutrina seguiu a interpretação dada. Este trabalho
enquadra a doação de sangue, a exemplo da doação de cestas básicas, não no rol das penas
restritivas típicas, mas sim no das penas alternativas inominadas previstas no artigo 45,
parágrafo 2º, do diploma penal. Parte-se da premissa que não pode ser imposta por sentença
condenatória, mas fruto de acordo, de consenso, nas infrações de menor e médio potencial
ofensivo. Para sua adequação ao modelo sugerido, exige-se que o acusador ofereça duas ou
mais propostas – uma delas contendo a doação de sangue –, para que o autor do fato ou réu,
acompanhado de seu advogado, exerça sua opção, respeitando-se sua individualidade.
Palavras-chave: Doação; Sangue; Prestação social alternativa.
ABSTRACT
FREITAS, Jayme Walmer de. Blood donation as a social alternative service rendering. 2012.
181 p. Thesis (Doctor in Law)  Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2012.
This paper aims at providing guidelines for secure framework of blood donation as a
punishment involving the social alternative service rendering. As of the Federal Constitution
in 1988, donating blood has become a logo for many, as a way of rendering services to the
community or to public entities. However, the Supreme Court has ruled to the contrary and
the doctrine has adhered to such interpretation. This paper incorporates blood donation, as in
the donation of food baskets, not to the list of typical restrictive penalties, but to the unnamed
alternative penalties provided for in article 45, paragraph 2, of the penal law. It starts from the
premise that it cannot be imposed by a final verdict of guilty, but it is the result of an
agreement, of a consensus, in minor and middle potential offense infractions. For its
suitability to the suggested model, it is required two or more proposals  one containing blood
donation  so the perpetrator or defendant, accompanied by his/her lawyer, exercises his/her
option, respecting his/her individuality.
Keywords: Donation; Blood; Social alternative service rendering.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABBS – Associação Brasileira de Bancos de Sangue
a.C – Antes de Cristo
d.C – Depois de Cristo
ADN – Ácido desoxirribonucleico
AIDS − Acquired Immunodeficiency Syndrome
anti-HBc – Anticorpo contra o Core do vírus da Hepatite B
anti-HCV – Anticorpo contra o vírus da Hepatite C
anti-HIV – Anticorpo do vírus da Imunodeficiência Humana
ALT – Alanina aminotransferase
ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
CFF − Conselho Federal de Farmácia
CLT − Consolidação das Leis do Trabalho
COLSAN − Associação Beneficente de Coleta de Sangue
CP − Código Penal
CPP − Código de Processo Penal
CRIO – Crioprecipitado
FDA – Food and Drugs Administration
FONAJE − Fórum Nacional dos Juizados Especiais
HBV – Vírus da Hepatite B
HCV – Vírus da Hepatite C
HEMOBRÁS  Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia
HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana
HTLV – Vírus T-Linfotrópico Humano
H1N1 – Influenzavirus A
JECRIM − Juizado Especial Criminal
MS – Ministério da Saúde
NAT – Teste de Ácido Nucléico
OEA – Organização dos Estados Americanos
OMS – Organização Mundial da Saúde
ONU – Organização das Nações Unidas
RDC – Resolução de Diretoria Colegiada
RE − Recurso Extraordinário
REsp − Recurso Especial
SBHH – Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia
STJ − Superior Tribuinal de Justiça
TACRIM-SP − Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo
TJMG − Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais
TJSP − Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
UNIFESP − Universidade Federal de São Paulo
VEPEMA − Vara Privativa de Execução de Penas e Medidas Alternativas
WHO – World Health Organization
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 17
1.1 A dignidade da pessoa humana e a humanidade das penas ................................................ 19
1.2 A prestação social alternativa no âmbito do princípio da individualização da pena .......... 27
1.3 A doação de sangue como prestação de serviços à comunidade e o
Supremo Tribunal Federal .................................................................................................. 28
2 A HEMOTERAPIA: NASCIMENTO, DESENVOLVIMENTO E ESTÁGIO ATUAL..... 33
2.1 A história da hemoterapia ................................................................................................... 35
2.2 A hemoterapia nacional ...................................................................................................... 46
2.2.1 A hemoterapia na América Latina ................................................................................... 48
2.3 A Constituição Federal e a vedação de comercialização do sangue e seus derivados ....... 49
2.3.1 Alguns incentivos pelo mundo ........................................................................................ 59
2.4 As políticas públicas no tema ............................................................................................. 63
2.5 O doador de sangue ............................................................................................................ 70
2.6 A coleta ............................................................................................................................... 73
2.7 Por que o sangue salva vidas? ............................................................................................ 76
3 A LEGISLAÇÃO CRIMINAL VIGENTE: DOGMATISMO PARA FACEAR
O DESIDERATO .................................................................................................................. 79
3.1 O Código Penal e as penas restritivas de direitos. A Lei n. 9.714/98 ................................ 79
3.1.1 A internalização ............................................................................................................... 81
3.2 Os juizados especiais no Brasil .......................................................................................... 83
3.3 Os juizados especiais criminais: introdução à Lei n. 9099/95 ............................................ 87
3.3.1 Os princípios regentes ..................................................................................................... 93
3.4 A legitimação da doação de cestas básicas como pena restritiva de direitos ..................... 95
3.4.1 A prestação social alternativa como prestação de outra natureza ................................... 98
3.4.1.1 Prestação de outra natureza ou inominada ................................................................. 100
3.4.1.2 Aceitação do beneficiário ........................................................................................... 107
3.4.1.3 Valor econômico......................................................................................................... 108
4 A DOAÇÃO DE SANGUE COMO PRESTAÇÃO SOCIAL ALTERNATIVA:
PRESTAÇÃO DE OUTRA NATUREZA OU INOMINADA .......................................... 111
4.1 A doação de sangue e sua tipificação penal ..................................................................... 112
4.2 A sui generis condição do beneficiário na doação de sangue .......................................... 112
5 EFETIVIDADE .................................................................................................................. 117
5.1 O abstrato e o concreto..................................................................................................... 121
5.2 Institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais aplicáveis: a transação penal e
a suspensão condicional do processo ............................................................................... 123
5.2.1 Composição civil de danos ........................................................................................... 123
5.2.2 Transação penal............................................................................................................. 124
5.2.2.1 Legitimidade .............................................................................................................. 125
5.2.2.2 Proposta...................................................................................................................... 125
5.2.2.3 Não aceitação da proposta.......................................................................................... 126
5.2.2.4 Sentença homologatória de transação penal .............................................................. 127
5.2.2.5 Recursos das sentenças .............................................................................................. 129
5.3 Suspensão condicional do processo: considerações iniciais ............................................ 129
5.3.1 Natureza jurídica ........................................................................................................... 130
5.3.2 Autonomia, âmbito e alcance ........................................................................................ 133
5.3.3 Requisitos legais ........................................................................................................... 134
5.3.3.1 Requisitos objetivos ................................................................................................... 135
5.3.3.2 Requisitos subjetivos.................................................................................................. 135
5.3.4 Procedimento. Bilateralidade do ato. Recursos cabíveis. Os modelos de
propostas ministeriais .................................................................................................... 135
5.3.5 Condições legais e judiciais da doação de sangue ........................................................ 138
5.3.6 Período de prova e extinção da punibilidade ................................................................ 140
5.3.7 Causas de revogação ..................................................................................................... 140
5.3.7.1 Obrigatórias (art. 89, § 3º).......................................................................................... 140
5.3.7.2 Facultativas (art. 89, § 4º) .......................................................................................... 141
5.3.8 Prescrição (art. 89, § 6º) ................................................................................................ 142
5.4 Condições para concessão dos institutos despenalizadores ............................................. 142
5.5 Triagem inicial ................................................................................................................. 143
5.6 Juízo das execuções penais .............................................................................................. 144
6 RESULTADOS: A EXPERIÊNCIA PRÁTICA ................................................................. 151
6.1 Primeiro aniversário ......................................................................................................... 153
6.2 Outros Estados. Outras iniciativas .................................................................................... 156
7 CONCLUSÕES ................................................................................................................... 159
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 165
APÊNDICE ............................................................................................................................ 175
ANEXO 1 ............................................................................................................................... 177
ANEXO 2 ............................................................................................................................... 179
17
1 INTRODUÇÃO
O ato de doar sangue reúne duas vertentes de alcance inestimável: de um lado, o
desprendimento e a solidariedade do doador; de outro, a carência humana decorrente da
debilidade da saúde física. No Brasil, o percentual de doadores, da ordem de 1,9% da
população, pode e precisa ser incrementado, não só por meio das políticas institucionais
rotineiras realizadas pelo Ministério da Saúde, mas também por novos mecanismos que o
alcem ao patamar dos doadores fidelizados das nações consideradas desenvolvidas, cuja
média gira em torno de 3% dos habitantes. Há países em que o percentual chega a 5%, como a
Escócia1. Em qualquer país, é básica a necessidade de sangue e de seus hemoderivados na
área da saúde pública, de modo que a inserção de políticas novas de coleta que elevem esse
percentual sempre será bem-vinda, mormente se inseridas nos padrões de qualidade exigidos
pelo Ministério da Saúde.
Com a meta de criar um novo método de cooperação entre os poderes constituídos é
que elaboramos este trabalho, seguros de que o Poder Judiciário detém plenas condições
estruturais e legais de cooperar com a saúde pública nacional.
Segundo dados do ano de 2007, publicados em novembro de 2009 em seu sítio oficial,
a Organização Mundial da Saúde (OMS)2 relata cinco fatos e dados estatísticos de pesquisa
sobre a segurança do sangue pelo mundo:
a) 65% de todas as doações de sangue são realizadas em países desenvolvidos,
representando apenas 25% da população mundial;
b) Em 73 países, as taxas de doação ficam abaixo de 1% da população (o mínimo
necessário para satisfazer as necessidades básicas de um país). Desses, 71 são
considerados países em desenvolvimento ou em transição;
c) 42 países coletam abaixo de 25% do abastecimento de sangue a partir de doadores
voluntários não remunerados, que são as fontes mais seguras;
d) 31 países relataram doações remuneradas em 2007, mais de um milhão de doações
no total;
1
2
Disponível em: <www.scotblood.co.uk/become-a-donor.aspx>. Acesso em: 25 jan. 2012.
Disponível em: <http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs279/en/index.html>. Acesso em 25 jan. 2012.
18
e) 41 países não foram capazes de filtrar todas as doações para uma ou mais das
seguintes doenças transmissíveis pela transfusão: HIV, hepatite B, hepatite C e sífilis.
Nosso percentual de doadores, conquanto esteja dentro dos parâmetros da OMS, é
considerado aquém do ideal, tanto que exige, com frequência, dos organismos competentes a
adoção de medidas urgentes para reposição dos estoques3. A maioria quase absoluta de
doadores é formada por pessoas de baixo poder aquisitivo4. Equivale dizer, paradoxalmente,
que as pessoas com melhor saúde não procuram os bancos de sangue.
A par da dificuldade em se conseguir mais doadores fidelizados, temos em nossos
políticos um incompreensível desinteresse pelas políticas voltadas para a hemoterapia. Para
aquilatarmos o descaso parlamentar, nossa Constituição da República foi promulgada em
19885 e a lei que veio disciplinar a doação de sangue tão somente veio a lume treze anos após
(Lei n. 10.205, de 21.03.20016).
A consciência desses dados nos fez debruçar sobre o assunto e indagar: o Poder
Judiciário pode ser um coadjuvante eficaz no campo da saúde? Se tantas mortes ocorrem pela
falta de doadores, a criação de mecanismos de cooperação pode minimizar esse quadro de
constante fragilidade e atuar como fórmula de enfrentamento desse desafio perene.
No anseio de buscar algo palpável e que igualmente servisse para mostrar à população
a preocupação do Poder Judiciário com o seu bem-estar, em maio de 2010, iniciamos a
pesquisa sobre a possibilidade de a doação de sangue figurar como uma das modalidades de
pena restritiva de direitos, de vez que a prestação social alternativa, consoante vontade do
legislador ordinário, passou a ser espécie daquela.
3
Disponível em: <http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/noticia/3372/162/ministerio-lanca-banco-dedoadores-de-sangue-virtual.html>. Acesso em: 12 jan. 2012.
4
Na pesquisa constante do relatório “Perfil do doador de sangue brasileiro” patrocinado pela Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) e realizado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, apurou-se que
42,95% dos doadores fidelizados pertencem à classe C. Os resultados dessa pesquisa foram apresentados pela
primeira vez durante o Congresso Brasileiro de Hematologia e Hemoterapia (Hemo 2005), em novembro, no
Rio de Janeiro (BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA);
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Tecnologia e Ciências. Perfil do doador de sangue
brasileiro. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/hotsite/doador_sangue/pdsbfiles/introducaod.htm>.
Acesso em: 10 mar. 2012).
5
Artigo 199, § 4º: “A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e
substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e
transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.”
6
Regulamenta o parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento,
estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, estabelece o ordenamento
institucional indispensável à execução adequada dessas atividades, e dá outras providências.
19
Para tanto, delimitamos que o trabalho deveria se centrar em duas frentes autônomas,
que poderiam se entrelaçar naturalmente, quando da consecução da medida socialmente
recomendável.
A primeira perscrutaria o setor da saúde pública, no que tivesse pertinência com a
doação de sangue. Os protagonistas mais importantes, doador e receptor, deveriam receber
toda a atenção da pesquisa. Analisadas as condições pessoais de doador e receptor e
resguardados seus direitos e deveres, por certo a adoção da medida atenderia a todos os
requisitos predispostos na Carta Magna e na lei infraconstitucional.
A segunda se cingiria à área jurídica. Por se tratar de nosso campo de atuação
profissional, a indagação que não calava era: como uma medida tão útil à comunidade era
desprezada pelo universo jurídico? A pessoa que doa seu sangue pratica um ato solene de
solidariedade, altruísmo, magnanimidade, desprendimento, quase sem risco, potencialmente
apto a salvar até três vidas, de sorte que todo o esforço para sua inserção no mundo jurídico se
revelava sensata, plausível e justificável.
Fixadas as premissas, o desenvolvimento da teoria sobre esses paradigmas e com os
que dele derivassem era o caminho a trilhar. Alguns acréscimos se evidenciavam. Impunha-se
que a teoria, a par de se amoldar ao direito positivo vigente, teria como inspiração a dignidade
da pessoa humana e, por via oblíqua, a humanização e a individualização da pena. Mediante
lógica rigorosa, o objetivo final seria alcançar um aperfeiçoamento que congregasse o
humanitário e o direito como ciência social, viabilizando um desiderato maior: a justiça
social.
1.1 A dignidade da pessoa humana e a humanidade das penas
O princípio da dignidade da pessoa humana é inato ao homem e implica em liberdade,
igualdade e justiça, constituindo o fundamento da organização social contemporânea7. A
dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos
fundamentais do homem, desde o direito à vida.8
7
8
SILVA, Marco Antonio Marques da. Cidadania e democracia: instrumentos para a efetivação da dignidade
humana. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da
dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 225.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed., rev. e atual. até a Emenda
constitucional n. 67, de 22.12.2010. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 93.
20
O valor da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de
Direito (art. 1º, III, da CF), impõe-se como núcleo básico e informador de todo ordenamento
jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação do sistema
constitucional.9
Para Marco Antonio Marques da Silva, a dignidade humana há de se tornar um
autêntico paradigma ético, porquanto os direitos nela ínsitos formam um dos mais importantes
instrumentos de nossa civilização, “visando assegurar um convívio social digno, justo e
pacífico”. E acrescenta: “A primeira geração dos direitos humanos, resultado do
enfrentamento do autoritarismo e arbitrariedade do governo, compõe-se das liberdades
públicas, constituindo o núcleo dos direitos fundamentais, integrados pelos direitos
individuais e políticos”.10
A dignidade humana tem lançado os constitucionalistas e estudiosos de ramos
correlatos a um aprofundamento cada vez mais intenso, por se constituir na fonte de todos os
demais princípios que nele colhem o substrato para demarcar seu campo de incidência.
José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira11 chamam a atenção para que a
dignidade da pessoa humana não se circunscreva aos direitos de primeira geração ou
dimensão12, alertando que:
Concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos
fundamentais, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga uma
densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativoconstitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo
reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais
9
PIOVESAN, Flávia. Dignidade humana e a proteção dos direitos sociais nos planos global, regional e local. In:
MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade
humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 408.
10
SILVA, Marco Antonio Marques da, Cidadania e democracia: instrumentos para a efetivação da dignidade
humana, cit., p. 225.
11
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 2.
ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1984. v. 1, p. 70.
12
Na doutrina, há quem discorde da adoção das terminologias geração ou dimensão. Dimitri Dimoulis e
Leonardo Martins sugerem os termos “categorias” ou “espécies” de direitos fundamentais. Segundo os
doutrinadores o termo “geração” é incorreto, uma vez que as prestações estatais antecedem a criação de
Constituições e a proclamação de direitos fundamentais. E, quanto aos direitos sociais, eles foram garantidos já
nas primeiras Constituições e Declarações do século XVIII e do início do século XIX. Igualmente discordam
do termo “dimensões”, por sua inexatidão terminológica, pois dimensão é palavra utilizada para indicar dois ou
mais componentes ou aspectos do mesmo fenômeno ou elemento (Teoria geral dos direitos fundamentais. 2.
ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 30-31).
21
tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para
construir “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a
quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais.13
Outro constitucionalista lusitano, José Carlos Vieira de Andrade, traça as mesmas
diretrizes quanto à supremacia desse supraprincípio, o qual não se circunscreve aos direitos da
personalidade. Refere que os direitos fundamentais são obrigatórios juridicamente, uma vez
que são explicitações do princípio da dignidade da pessoa humana, que lhes dá fundamento. E
esclarece que a unidade dos direitos fundamentais, como a unidade da ordem jurídica em
geral, deve ser axiológica, material, que funde e legitime o seu conteúdo normativo. Tudo
para justificar a defesa do valor da dignidade de cada ser humano como ser livre e
responsável, único e irrepetível, pois não se trata de um produto ideológico, uma
especificidade do liberalismo individualista já perimido, ao contrário, corresponde a uma
potencialidade característica do ser humano, que se atualiza nas ordens jurídicas concretas.
Ele ainda pondera:
Por isso se afirma que a ordem dos direitos fundamentais é positiva e não
idealista, já que depende de circunstâncias históricas, que são condição de
sua existência, e é revelada a partir da sua previsão em preceitos jurídicos
escritos ou da inserção (objectivamente determinável) na consciência
jurídica da comunidade. É uma ordem de valores cultural e não uma ordem
de valores natural. [...] É neste sentido que continuamos a afirmar que a
Constituição portuguesa [...] integra o estatuto dos indivíduos na sociedade
política num sistema de valores, em que o valor fundamental é o da
dignidade da pessoa humana individual, emblematicamente afirmado no seu
primeiro artigo como o valor primário em que se baseia o Estado.14
A aplicação prática desses valores implica na busca de meios para redução das
diferenças sociais, dentre elas a melhoria da saúde pública, especialmente porque os mais
pobres têm maior carência de sangue e hemoderivados. Nesse ponto é que defendemos a
possibilidade de o Estado, por meio do Poder Judiciário, concretizar cânones, regramentos de
cooperação com os órgãos afetos aos hemocentros, para maximizar os estoques dos bancos de
sangue.
13
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 2.
ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1984. v. 1, p. 70.
14
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 4. ed.
Coimbra: Almedina, 2010. p. 106.
22
O Poder Judiciário, por intermédio de seus juízes, pode criar uma cultura de altruísmo
e solidariedade entre os homens. O autor de um fato delitivo doará de seu próprio corpo para
ajudar o semelhante. Embora tenha feito um mal à sociedade, viabilizam-se meios para que se
autovalorize e coopere com a saúde de outro ser humano.
De se concluir que toda a gama estrutural de princípios concernente aos direitos
fundamentais de natureza individual, bem como de cunho social, a exemplo dos demais
direitos humanos, encontra seu cerne na dignidade da pessoa humana.
Os direitos individuais constituem os denominados direitos de primeira geração. Com
a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX, operou-se a inserção da tecnologia da
máquina a vapor no processo produtivo, provocando prejuízos econômicos e sociais de grande
repercussão aos trabalhadores, de modo que o indivíduo se viu desguarnecido de instrumentos
legais, ante o novo sistema econômico. Esses conflitos sociais constantes entre a classe
operária e a patronal obrigaram o Estado a deixar a posição de letargia, para “adotar uma
atitude positiva, conferindo ao indivíduo, enquanto membro da coletividade, os denominados
direitos econômicos, sociais e culturais, de segunda geração”, na análise de Enrique Ricardo
Lewandowski15, para quem o homem abstrato do passado deixou de existir, cedendo passo ao
trabalhador do presente, um novo sujeito de direitos.
Dentre os direitos de primeira geração estão compreendidos as liberdades públicas e os
direitos políticos, isto é, direitos civis e políticos a traduzirem o valor de liberdade16. Ao tratar
dos direitos e deveres individuais e coletivos, o artigo 5º, caput, da Carta Magna prevê que
“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Segundo Paulo Hamilton Siqueira Junior os direitos humanos de primeira e de
segunda geração não são antagônicos e nem contraditórios. Segundo ele, os direitos civis e
políticos (primeira geração) exigem uma prestação negativa do Estado, uma vez que são
15
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. A formação da doutrina dos direitos fundamentais. In: MIRANDA,
Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo:
Quartier Latin, 2008. p. 392.
16
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. p.
670.
23
direitos individuais em face do Estado. De outro bordo, defende que os direitos econômicos,
culturais e sociais (segunda geração) exigem uma prestação positiva do Estado, ou seja, uma
intervenção política concreta para a sua implementação. E conclui:
Essas duas vertentes de atuação estatal (positiva e negativa) são
perfeitamente compatíveis e igualmente de real importância. A plena
realização dos direitos individuais surge com a realização dos direitos sociais
[...]. Os direitos humanos de 2ª geração reforçam e consagram a plenitude da
dignidade da pessoa humana, que é o ponto nevrálgico dos direitos
fundamentais.17
Nessa vertente positiva é que o Poder Judiciário pode manejar os instrumentos legais
postos à sua disposição para cooperar com o Poder Executivo, dentro de suas políticas
públicas voltadas para o campo da saúde, e atuar de modo decisivo para minimizar áreas
carentes.
A divisão dos direitos em gerações partiu de um critério metodológico de
classificação. No entanto, uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage.
É o acolhimento da ideia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos
consagrados.18
A Constituição da República prevê, em seu artigo 6º, que “são direitos sociais a
educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Além dos direitos sociais catalogados entre os artigos 7º a 11 do Texto Maior, também podem
ser localizados outros no Título VIII, que trata “Da Ordem Social”. Os direitos de segunda
geração constituem-se em dever do Estado de fornecer melhores condições de vida aos
cidadãos, através de iguais oportunidades para o efetivo exercício dos direitos sociais e
econômicos.
Diz o artigo 199, caput, que “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”. Seu
parágrafo 4º estabelece: “A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a
17
SIQUEIRA JUNIOR, Paulo Hamilton. A dignidade da pessoa humana no contexto da pós-modernidade. In:
MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade
humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 260.
18
PIOVESAN. Flávia. A Constituição Brasileira de 1988 e os tratados internacionais de proteção dos direitos
humanos. In: ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA (Org.). Direitos humanos: visões
contemporâneas. São Paulo: Método, 2001. p. 36.
24
remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e
tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo
vedado todo tipo de comercialização”. Exatamente aqui que detectamos viável a interferência
positiva do Poder Judiciário na saúde pública, proporcionando o essencial – sangue e
hemoderivados – para que menos mortes ocorram.
São considerados de terceira geração os direitos de solidariedade19 concernentes à
preservação ambiental e à proteção dos consumidores. Norberto Bobbio pontua, ainda,
direitos humanos de quarta geração, “em função dos avanços da engenharia genética, ao
colocarem em risco a própria existência humana, através da manipulação do patrimônio
genético”.20
Retomando o direito das liberdades, de se pontuar que o princípio da humanização das
penas vem consagrado no artigo 5º da Constituição Federal. Consoante o inciso XLIV, é
assegurado “aos presos o respeito à integridade física e moral”. O inciso XLV garante “às
presidiárias as condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de
amamentação”. Amplificando maiores garantias à pessoa, o inciso XLVII veda as penas: “a)
de morte, salvo em caso de guerra externa declarada nos termos do artigo 84, XIX; b) de
caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis”.
Essa evolução do pensamento de respeito à dignidade da pessoa humana, no tocante às
penas com maior carga humanitária, teve sua origem nas ideias iluministas dos séculos XVII e
XVIII.
Confirmando isso, Carolina Alves de Souza Lima e Oswaldo Henrique Duek Marques
aludem que a “reação aos suplícios e penas cruéis e desumanas aplicadas durante o regime
absolutista surgiu com a filosofia das luzes”21. Explicitam, também, que a filosofia das luzes
forneceu fundamento para o desencadeamento das revoluções burguesas no final do século
19
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 11 ed. rev. e aum. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 108.
20
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campos, 1992.
p. 6.
21
LIMA, Carolina Alves de Souza; MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. O princípio da humanidade das
penas. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da
dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 434.
25
XVII. A partir dessas revoluções, uma série de mudanças em todos os campos do
conhecimento humano contribuiu de modo efetivo para a humanização do direito penal.
Os autores referem que foi Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, nas entrelinhas de
sua obra Dos delitos e das penas, quem passou a detectar a necessidade da abordagem do
princípio da proporcionalidade na relação entre crime e pena. Para eles, essa obra inaugurou o
período humanitário no direito penal. E por essa razão a Declaração Francesa prescreve que a
lei deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias.
Daí dizerem que pensadores como Montesquieu, Beccaria, Romagnosi, Bentham e
Camignani asseguram que a pena deve ser não só a necessária como também a mínima dentre
as possíveis, em relação ao objetivo da prevenção de novos delitos.
Conforme Enrique Ricardo Lewandowski, somente após as lutas desencadeadas contra
o absolutismo, os ideais iluministas ofereceram com clareza que:
[...] a noção de que o homem possui certos direitos inalienáveis e
imprescritíveis, decorrentes da própria natureza humana e existente
independentemente de qualquer ação estatal. E por isso passou-se a entender,
desde então, que tais direitos não poderiam ser, em hipótese alguma,
vulnerados pelo Estado ou por qualquer outra instituição ou pessoa.22
O segundo período humanitário a influenciar decisivamente o direito penal
consagrando os direitos humanos ocorreu na segunda metade do século XX, com o fim da
Segunda Guerra Mundial. As atrocidades foram tão descomunais, a exemplo do holocausto,
que se passou a uma discussão internacional acirrada sobre como atuar ante o constante e
abusivo desrespeito aos direitos humanos.
Foi nesse clima que nasceu a Organização das Nações Unidas (ONU), um órgão
supranacional com o objetivo de desenvolver relações amistosas entre as nações, fundadas no
respeito à igualdade dos povos, que pudesse adotar “medidas apropriadas ao fortalecimento da
paz mundial, além de buscar a cooperação internacional na solução dos problemas
internacionais, sempre com respeito aos direitos humanos”.23
22
23
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo, A formação da doutrina dos direitos fundamentais, cit., p. 390.
LIMA, Carolina Alves de Souza; MARQUES, Oswaldo Henrique Duek, O princípio da humanidade das
penas, p. 435.
26
Na Organização das Nações Unidas, em 1948, foi formalizada a Declaração dos
Direitos Humanos, aprovada por 48 países. Na visão de Marco Antonio Marques da Silva:
Após a Primeira Guerra Mundial, da qual teriam surgido ideias de
negativismo e desânimo, seguiram-se dias piores, com a crise econômica e o
aparecimento do fascismo, do nazismo e, então, da Segunda Guerra
Mundial. Dessa desastrosa experiência, com os horrores conhecidos, houve
uma resposta afirmativa em escala mundial, na qual resultou a Declaração
Universal dos Direitos do Homem.24
Esse foi o marco inaugural de tantos outros documentos relevantes no plano dos
direitos humanos. A ampliação foi evidente, conforme assevera Enrique Ricardo
Lewandowski: “Na Europa, surgiu a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do
Homem e das Liberdades Fundamentais (1950) e a Carta Social Europeia (1961)”25.
Acrescenta que na ONU foi aprovado o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966). De
importância ímpar, de se recordar no continente americano a assinatura da Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem, a Carta Interamericana de Direitos Sociais e a
Convenção Americana de Direitos Humanos (1948), tanto quanto o Pacto de São José da
Costa Rica (1969).
Além desses importantes documentos, muitos outros foram produzidos até o final do
século XX, visando à tutela das minorias (e.g. mulheres26, crianças27, idosos28, deficientes29).
E, no âmago da proposição deste trabalho, sendo a pena um mal a ser imposto pelo
Estado, pretende-se que a doação de sangue como pena restritiva de direitos mescle a punição
com a solidariedade personalíssima, alcançando um resultado sem precedentes, haja vista o
infrator ter em suas mãos o poder de salvar vidas. Mas que, para tal, doa de si próprio.
24
SILVA, Marco Antonio Marques da, Cidadania e democracia: instrumentos para a efetivação da dignidade
humana., cit., p. 225.
25
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo, A formação da doutrina dos direitos fundamentais, cit., p. 393.
26
Por exemplo: a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher da ONU
de 1979, ratificada pelo Brasil em 1984; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 1994, ratificada pelo Brasil em
1995; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção
de Belém do Pará) da OEA.
27
Por exemplo: a Convenção dos Direitos da Criança da ONU de 1989, ratificada pelo Brasil em 1990.
28
Por exemplo: o artigo XXV, parágrafo 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948; o
artigo 11 da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher da ONU de
1979; o artigo 31, alínea c, da Carta Internacional Americana de Garantias Sociais.
29
Por exemplo: a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes da ONU de 1975.
27
1.2
A
prestação
social
alternativa
no
âmbito
do
princípio
da
individualização da pena
Para Aníbal Bruno, a pena para servir de retribuição estatal ao autor de uma infração
penal, passará, necessariamente, por três momentos autônomos e sucessivos: cominação,
aplicação e execução. Ele assevera: “A cominação é a fase legislativa, momento inicial e
imprescindível, porque só a lei pode dispor sobre a punição de crimes. O legislador, ao
mesmo tempo que define os fatos puníveis, prescreve a pena que deve corresponder a cada
um deles”30. É a exteriorização do princípio da legalidade.
Guilherme de Souza Nucci informa que a individualização da pena se dá em três
diferentes níveis, a saber: a) individualização legislativa pela criação de novos tipos penais,
com seus limites de intensidade; b) individualização judicial realizada pelo Poder Judiciário,
quando da prolação de uma sentença condenatória; c) individualização executória vinculada
ao tratamento penitenciário dispensado a cada condenado, visando à obtenção do maior
número de informações possíveis, para que se trace um programa de execução adaptado a
ele.31
Quanto aos três momentos ou níveis de exteriorização da atividade judicial, em que o
magistrado busca na abstração legal a concreção punitiva da sanção a ser imposta e cumprida,
socorremo-nos da fundamentação exarada pelo Ministro Ayres Brito em seu voto, quando o
Plenário da nossa Corte Maior concluiu, incidentalmente, pela inconstitucionalidade parcial
do artigo 44 da Lei de Drogas, ao pontuar que:
O processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da
personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três
momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o
executivo. Logo, a lei não tem força de subtrair do juiz sentenciante o poderdever de impor ao delinquente a sanção criminal que a ele, juiz, afigurar-se
como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica
ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do
fato-tipo, implicando essa ponderação em concreto a opção jurídico-positiva
pela prevalência do razoável sobre o racional, ditada pelo permanente
esforço do julgador para conciliar segurança jurídica e justiça material.32
30
BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral: pena e medida de segurança. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
v. 3, p. 101.
31
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
p. 925.
32
STF  HC n. 97.256/RS, Pleno, rel. Min. Ayres Brito, j. 01.09.2010.
28
Reforça o ministro, doutrinando: “O princípio da individualização da pena significa o
reconhecimento de que cada ser humano é um microcosmo”, ou então, “não é senão o
reconhecimento dessa magistral originalidade de cada um de nós”.
Aproveita-se da definição de Nelson Hungria, para quem a individualização “é um
processo que visa a retribuir o mal concreto do crime com o mal concreto da pena na concreta
personalidade do criminoso”.
Na fase de cálculo e aplicação da pena é que o princípio da individualização se
corporifica. A tarefa do magistrado de aplicar a sanção correspondente ao ilícito praticado
está milimetricamente expressa na codificação penal. Se dela desviar incidirá em
inobservância de regramento vinculante que, no mais das vezes, representará nulidade
insanável, absoluta, porquanto ao ofender norma de ordem pública, a prolação de outra
decisão será imprescindível.
A Carta da República, em seu artigo 5º, inciso XVLI, apresenta o princípio da
individualização da pena, com os seguintes dizeres: “a lei regulará a individualização da pena
e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c)
multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”.
Na ótica de Alexandre de Moraes:
O princípio da individualização da pena exige estreita observância entre a
responsabilização da conduta do agente e a sanção a ser aplicada, de maneira
que a pena atinja suas finalidades de prevenção e repressão. Assim, a
imposição da pena depende do juízo individualizado da culpabilidade do
agente (censurabilidade de sua conduta).33
1.3 A doação de sangue como prestação de serviços à comunidade e o
Supremo Tribunal Federal
Logo após a promulgação da Constituição Federal em 1988, os juízes passaram a
considerar a doação de sangue como prestação social alternativa, com lastro no texto
constitucional. Mas, como a legislação infraconstitucional, o Código Penal, nada predispunha
33
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2006. p. 103.
29
a respeito dessa modalidade de sanção, quando da substituição da pena privativa de liberdade
por pena restritiva de direitos, o magistrado determinava a doação de sangue na modalidade
de prestação de serviços à comunidade.
Por se tratar de imposição, ordem, determinação a alguém para doar sangue, ou seja,
ato não voluntário, muitas vezes indesejado, vozes se levantaram contrariamente à medida
que, a despeito de seu caráter social, atentava contra a dignidade da pessoa humana, contra o
direito de locomoção do cidadão.
Não tardou e o tema foi suscitado, via habeas corpus, no Supremo Tribunal Federal.
Em voto da lavra do Ministro Celso de Mello, o alcance daquela pena restritiva foi
perfeitamente delimitado e o sonho afastado até o início deste século. Na oportunidade, o
Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar acerca de sentença em que o magistrado
substituíra a pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos consistente em doação
de sangue.34
A sentença foi cassada, determinando-se que outra fosse prolatada. No voto, o
ministro destacou o contrassenso judicial concernente à tentativa de inserir a doação de
sangue como modalidade de pena restritiva, ou seja, como prestação de serviços à
34
“Habeas corpus. Prestação de serviços à comunidade. Doação de sangue. Impossibilidade. Princípio
constitucional da intransmissibilidade da pena. Tema não discutido nas razões de apelação criminal e nem
apreciado pelo Tribunal local. Conhecimento. Ordem concedida. A ação penal de habeas corpus não se
submete, para efeito do seu conhecimento, à exigência formal do prequestionamento. A confirmação de
sentença penal condenatória pelo Tribunal inferior constitui fato processual suficientemente idôneo a convertêlo em órgão coator. Tratando-se de matéria de ordem pública, impunha-se o seu exame ex officio pelo órgão
judiciário de 2º grau, independentemente de expressa provocação formal do paciente. Bastaria, para tanto, o
recurso criminal por ele interposto e tempestivamente deduzido. Compete, desse modo, ao Supremo Tribunal
Federal, processar e julgar, em caráter originário, a ação de habeas corpus em que se suscitem nulidades
processuais ou vícios e defeitos jurídicos que infirmem a validade do próprio ato decisório, ainda que tais
questões não tenham constituído objeto do recurso criminal previamente interposto. A prestação de serviços à
comunidade constitui sanção jurídica revestida de caráter penal. Trata-se de medida alternativa ou substitutiva
da pena privativa de liberdade. Submete-se, em consequência, ao regime jurídico-constitucional das penas e
sofre todas as limitações impostas pelos princípios tutelares da liberdade individual. A exigência judicial de
doação de sangue não se ajusta aos parâmetros conceituais, fixados pelo ordenamento positivo, pertinentes a
própria inteligência da expressão legal „prestação de serviços à comunidade‟, cujo sentido, claro e inequívoco,
veicula a ideia de realização, pelo próprio condenado, de encargos de caráter exclusivamente laboral. Tratandose de exigência conflitante com o modelo jurídico-legal peculiar ao sistema de penas alternativas ou
substitutivas, não há como prestigiá-la e nem mantê-la. A intransmissibilidade da pena traduz postulado de
ordem constitucional. A sanção penal não passará da pessoa do delinquente. Vulnera o princípio da
incontagiabilidade da pena a decisão judicial que permite ao condenado fazer-se substituir, por terceiro
absolutamente estranho ao ilícito penal, na prestação de serviços à comunidade.” (STF  HC n. 68309/DF, 1ª
T., rel. Min. Celso de Mello, j. 27.11.1990, DJ, de 08.03.1991).
30
comunidade, uma vez que não tinha caráter laboral, fundamento dessa pena alternativa. O
conflito era de tal modo evidente que se mostrava impossível prestigiar a boa intenção dos
magistrados que adotaram a ideia.
A decisão da Suprema Corte se espraiou no cenário nacional e calou todos os
oponentes, transmitindo aos doutrinadores nacionais um paradigma: a doação de sangue não
pode servir como modalidade de prestação de serviços à comunidade, por violar os preceitos
estruturais da medida escolhida e, consequentemente, constitucionais.
Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida
Delmanto, na linha da preservação das matrizes constitucionais, salientam: “Inexistindo penas
corporais em nosso ordenamento jurídico, em respeito ao valor da dignidade da pessoa
humana (CR, art. 1º, III), não se admite a doação de sangue como prestação de serviços à
comunidade.”35
Para Alberto Silva Franco e Juliana Belloque, com esteio nas lições de Sérgio Salomão
Shecaira e Alceu Corrêa Júnior, a prestação de serviços à comunidade encontra suas balizas
no respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos que integram o livre
desenvolvimento da personalidade individual, com todas as garantias que deles decorrem
previstas na Constituição, como a liberdade de crença e culto, de convicções políticas e
ideológicas. E concluem retratando que seria inconstitucional determinar a prestação de
serviços à comunidade em templo religioso ou que consista em doação de sangue.36
Damásio Evangelista de Jesus alude que a doação de sangue “não pode ser admitida
como prestação de serviço à comunidade”.37
Não destoam Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina, ao discorrerem
sobre a imperativa observância da compatibilidade entre a aptidão do condenado e o
cumprimento da pena alternativa de prestação de serviços à comunidade. A tarefa constante
da decisão judicial há de condizer com os direitos fundamentais da pessoa humana (art. 46, §
35
DELMANTO, Celso et al. Código Penal comentado: acompanhado de comentários, jurisprudência, súmulas
em matéria penal e legislação complementar. 7. ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 168.
36
FRANCO, Alberto Silva; BELLOQUE, Juliana. Código Penal e sua interpretação: arts. 41 a 60. In: FRANCO,
Alberto Silva; STOCO, Rui (Coords.). Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência. 8. ed. rev.
atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 311.
37
JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal anotado. 17. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 192.
31
3º, do CP). Eles encerram, aplaudindo a jurisprudência nacional pelas glosas em função das
“incontáveis imposições atentatórias à dignidade: doação de sangue, prestação de serviços em
templos religiosos etc.”38
Naquela ocasião, estava claro que a jurisprudência e a doutrina eram unânimes sobre a
impossibilidade da doação de sangue nos moldes praticados, por dois fundamentos: a) como
prestação de serviços à comunidade; b) por imposição judicial.
Destarte, em atenção ao doutrinado pelo Supremo Tribunal Federal, para que a doação
de sangue como pena restritiva se revelasse adequada, haveria de atender a dois pressupostos:
voluntariedade em contraposição à imposição judicial; adoção de outra modalidade de pena
alternativa que não a prestação de serviços à comunidade.
38
GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito penal: parte geral. Coordenação de
Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha. 2. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009. p. 567-568. (Coleção Ciências Criminais, v. 2).
32
33
2 A HEMOTERAPIA: NASCIMENTO, DESENVOLVIMENTO E
ESTÁGIO ATUAL
Todo o regramento atinente à hematologia e à hemoterapia está contemplado na
Resolução de Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que
recebeu o número 57, de 16 de dezembro de 2010 (RDC 57/2010). Essa Resolução, em seu
artigo 157, revogou expressamente as Resoluções ns. 153, de 14 de junho de 2004, e 24, de 24
de janeiro de 2002.
A RDC 57/2010 encontra seu fundamento na legislação infraconstitucional – Lei n.
10.205, de 21.03.2001 , que regulamenta o parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição
Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus
componentes e derivados, estabelece o ordenamento institucional indispensável à execução
adequada dessas atividades, e dá outras providências.
De acordo com o Dicionário digital de termos médicos39, a hematologia é o ramo da
medicina que estuda o sangue. A hematologia estuda particularmente os elementos figurados
do sangue: hemácias (glóbulos vermelhos), leucócitos (glóbulos brancos) e plaquetas. Estuda
também a produção desses elementos e os órgãos onde eles são produzidos (órgãos
hematopoiéticos): medula óssea, baço e linfonodos.
A hemoterapia consiste no tratamento terapêutico realizado por meio da transfusão
sanguínea, seus componentes e derivados, e se trata de uma atividade assistencial de alto risco
epidemiológico, uma vez que o sangue, na condição de tecido vivo, é capaz de transmitir
diversas doenças40. É a terapêutica praticada pela administração de sangue, seus derivados e
substitutos.
39
LEITE, Érida Maria Diniz (Org.). Dicionário digital de termos médicos 2007. Disponível em:
<http://www.pdamed.com.br/diciomed/pdamed_0001_de.php>. Acesso em: 14 mar. 2012.
40
CAMARGO, Johnny Francisco Ribeiro et al. A educação continuada em enfermagem norteando a prática em
hemoterapia: uma busca constante pela qualidade. Revista Prática Hospitalar, ano 9, n. 51, p. 125-131,
maio/jun. 2007. Disponível em: <http://www.praticahospitalar.com.br/pratica%2051/pdfs/mat%2018.pdf>.
Acesso em: 10 mar. 2012.
34
O sangue é um líquido vermelho, viscoso, que circula nas artérias e veias bombeado
pelo coração, transportando gases, nutrientes e elementos necessários à defesa do
organismo.41
A doação de sangue pode ser homóloga ou autóloga. Aquela se dá quando um doador
de sangue fornece para armazenamento em um banco de sangue para transfusão a um
destinatário desconhecido (anônima). Autóloga ocorre quando uma pessoa tem sangue
armazenado que será transfundido de volta para si, em data posterior, geralmente após uma
cirurgia.
A transfusão sanguínea é “a ação e resultado de injetar certa quantidade de sangue de
uma pessoa no sistema circulatório de outra, seja diretamente de pessoa para pessoa, seja por
meio de armazenamento do sangue do doador em banco de sangue”.42
A transfusão sanguínea é um procedimento terapêutico de injeção de sangue ou de um
de seus componentes na corrente sanguínea de um indivíduo. É, ainda, o conjunto dos
procedimentos médicos e biológicos (doação, transformação, conservação e reinjeção do
sangue) que permitem a transfusão de sangue43, utilizado em pacientes que apresentam perda
aguda de sangue (acidentes, cirurgias etc.) ou perda crônica (anemias crônicas, quimioterapias
e outras doenças). A transfusão é um procedimento complexo, de sorte que para garantir o
máximo de segurança ao paciente, é executado obedecendo rigorosamente às normas editadas
pelas autoridades sanitárias do Brasil.
São considerados hemoderivados os produtos oriundos do sangue total ou do plasma,
obtidos por meio de processamento físico-químico ou biotecnológico. Hemocomponentes são
os produtos oriundos do sangue total ou do plasma, obtidos por meio de processamento físico.
41
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009.
42
AULETE, Francisco J. Caldas; VALENTE, Antonio Lopes dos Santos. iDicionário Aulete. Lexikon Editora
Digital Disponível em: <http:// aulete.uol.com.br/site.php?mdl= aulete_digital&op= loadVerbete&pesquisa=
1&palavra=transfus%E3o>. Acesso em: 10 mar. 2012.
43
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, cit.
35
2.1 A história da hemoterapia
Preliminarmente, mostra-se conveniente um conhecimento superficial de como a
hemoterapia chegou ao estágio atual no Brasil. Nesse estudo breve, podemos inferir nossa
defasagem tecnológica em face dos países desenvolvidos. Como alertado no início desta tese,
nosso atraso cultural é um dos fatores preponderantes a nos mobilizar no sentido de uma
mudança de comportamento. De qualquer modo, é importante registrarmos o patamar
alcançado e reconhecido pelos estudiosos no cenário internacional, partindo desde os
primórdios da civilização.
Da pesquisa da advogada Helena Ferreira Nunes44 sobre a origem da transfusão de
sangue colacionaremos os tópicos mais relevantes e, porque não dizer, curiosos, sobre a sua
evolução, até os nossos tempos. Também serviu de fonte para esse estudo o artigo dos
médicos Pedro C. Junqueira, Jacob Rosenblit e Nelson Hamerschlak45 relativamente à história
da hemoterapia no Brasil.
Os médicos esclarecem que a fase científica da hemoterapia teve início no ano de
1900. Antes, as experiências, em regra, eram de caráter empírico.
Conforme Helena Ferreira Nunes, a história da hemoterapia está ligada às guerras,
pois o sucesso de uma batalha se relacionava com o tamanho do ferimento da tropa. Quanto
maiores lesões incapacitantes de um lado, a vitória do antagonista era evidenciada.
As pesquisas, segundo o relato da advogada, vêm desde o Egito antigo, por volta de
2500 a.C., quando os médicos tratavam os pacientes com sangria. Os egípcios criam que o
sangue era um revigorante energético, pois já sabiam que as artérias saíam do coração e se
direcionavam para todo o corpo.
Na China, Huang-T, por volta de 1000 a.C., escreveu o livro de medicina chamado
Livro do Imperador Amarelo, no qual enunciava que a alma se encontrava no sangue.
44
NUNES, Helena Ferreira. Responsabilidade civil e a transfusão de sangue. 2010. 170 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Médicas) – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
45
JUNQUEIRA, Pedro C.; ROSENBLIT, Jacob; HAMERSCHLAK, Nelson. História da hemoterapia no Brasil.
Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, São José do Rio Preto, SP, v. 27, n. 3, p. 201-207, jul./set.
2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v27n3/v27n3a13.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2012.
36
Alcmaeon de Croton, pensador grego do ano 500 a.C., ao praticar dissecção animal,
constatou que as veias e artérias guardavam diferenças. Para Alcmaeon, o sono era produzido
pela saída de sangue da superfície do corpo por meio de veias grossas, e o despertar acontecia
quando a circulação voltava a todo o corpo.
Hipócrates, o pai da medicina, em 400 a.C., foi quem deu a explicação racional para
justificar a doença e a saúde, por intermédio da teoria dos quatro humores corporais, segundo
a qual a vida era mantida pelo equilíbrio entre os humores: sangue, flegmão (fleuma), biles
amarela e biles negra, que proviam os respectivos órgãos: coração, cérebro, fígado e baço.
Para o grande médico, as pessoas adoeciam quando houvesse o desequilíbrio de um desses
elementos.
Para Aristóteles, em 350 a.C., o coração era o centro do corpo humano, onde estava
assentada a alma dos seres humanos.
Em Alexandria, no ano de 300 a.C., Herophilus de Chalcedon foi um dos primeiros
anatomistas gregos a assumir publicamente que dissecava cadáveres, e por isso conseguira
determinar que as artérias eram mais espessas que as veias e que ambas carregavam sangue.
Por volta de 270 a.C., Erisitratos, também da Alexandria, descreveu que o coração é
uma bomba natural.
A estudiosa aponta ainda que entre 130 e 200 a.C., Claudius Galeno, um dos médicos
mais importantes da história, em suas experiências de dissecação de animais, provou que nas
artérias havia sangue e sugeriu que os sistemas de veias e artérias são completamente
diferentes. Defendia que o sangue era formado no fígado e transportado por todo o corpo.
Verificou que o sangue arterial era criado a partir da passagem do sangue venoso entre os
ventrículos por poros dos septos.
Aulo Cornelius Celso, médico romano que viveu entre 14 a.C. e 37 d.C., relatou em
sua obra De medicina: a) os benefícios da sangria terapêutica; b) que borrifar vinagre sobre a
superfície do corte ajudava a estancar o sangramento e dissolvia coágulos que estivessem
alojados no interior do crânio; c) que a ingestão de sangue quente, recém-saído da garganta de
37
um gladiador, curava epilepsia; e, d) que o derrame ocular poderia ser tratado com a aplicação
de sangue de pomba, pombo-bravo ou andorinha de olho doente.
Em 1242, o médico árabe Ibn Al-Nafis descobriu e relatou a circulação pulmonar.
Tema muito referido pelos historiadores da medicina remonta ao ano de 1492, quando
o autor romano Stefano Infessura menciona uma transfusão de sangue entre seres humanos.
Na ocasião, um médico sugeriu ao Papa Inocêncio VIII a transfusão de sangue de três
crianças de dez anos. Às três crianças foram prometidas moedas de ouro em quantia
equivalente e um título de ducado. O procedimento falhou, pois as crianças e o papa
faleceram.
Outros historiadores dissentem dessa versão, aludindo que ocorreu a transfusão, porém
o sangue foi ingerido pela boca e não transfundido. Há outros que acusam Infessura de
antipapismo, motivo pelo qual o caso foi ocultado pela Igreja Católica durante muito tempo.
Em 1628, o médico inglês Willian Harvey derrubou a teoria de Galeno, ao publicar
sua obra Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus (Tratado de
anatomia baseado no movimento do coração e sangue em animais), tendo sido o pioneiro em
descrever corretamente e descobrir o sistema circulatório. Ele explicou o real uso das válvulas
e sustentava que o sangue era bombeado pelo coração das artérias para as veias, em circuito
fechado para o corpo e retornava para o coração.
Prossegue a causídica, em cronologia dos eventos históricos que marcaram a
transfusão sanguínea, que em 1639 deu-se o início das transfusões animal-animal, que se
estendeu até o ano de 1667.
Em 15 de junho, o médico francês Jean-Baptist Denis realizou a primeira transfusão de
sangue animal-homem. Tratava-se de um jovem que apresentava uma febre persistente e
estava sonolento. O médico retirou três onças de sangue do jovem e injetou nove onças de
sangue de cordeiro. O procedimento foi bem sucedido e o menino se recuperou da letargia e
engordou. Houve mais transfusões, sem sucesso comprovado, até que na quarta, realizada em
um paciente com doença mental, Antoine Mauroy, com comportamento maníaco violento,
houve ligeira cessação da doença, mas após os sintomas mentais retornaram. Antes de nova
38
transfusão solicitada pela esposa, Mauroy veio a falecer. Houve uma crise sem precedentes no
meio médico, culminando com uma chantagem da mulher de Mauroy sobre o médico JeanBaptist, que acabou sendo absolvido pela Corte Francesa de Julgamento, em 17 de abril de
1668, pois nada se apurou de irregular em seu procedimento, bem como porque havia provas
de que o falecimento se dera em razão de envenenamento cometido por sua esposa.
Em face do incidente, o Parlamento francês exigiu que todas as transfusões de sangue
fossem autorizadas pela Faculdade de Medicina de Paris.
Em 1771, Willian Hewson, anatomista britânico, detalhou em seu livro Experimental
enquiry into the properties of the blood a coagulação sanguínea. Conseguiu sucesso ao
interromper a coagulação e isolar a substância coagulable lymph, hoje conhecida como
fibrinogênio, tornando-se o pioneiro a concluir que o timo e o baço produziam linfócitos.
A transfusão homem-homem foi realizada pela primeira vez em 1795, pelo médico
Philip Syng Pysik; embora seu trabalho não tenha sido publicado, foi noticiado em uma nota
de rodapé de uma revista médica.
Coube a James Blundell ser o pioneiro em dizer claramente que o sangue humano
deveria ser utilizado nas transfusões em seres humanos.
Sua conclusão foi confirmada por Dumas e Prevot, que demonstraram que a infusão de
sangue heterólogo num animal com hemorragia produzia temporariamente melhoras, mas era
seguida de morte em seis dias.
Blundell documentou a contento a primeira transfusão de sangue em humanos, em 26
de setembro de 1818. O paciente tinha 30 anos e era extremamente magro, em função de uma
obstrução pilórica causada por um carcinoma gástrico. Ele recebeu entre 12 a 24 onças de
sangue em aproximadamente 30 a 40 minutos. Apesar da aparente melhora, faleceu em dois
dias.
Depois teve sucesso em uma mulher que sofrera hemorragia pós-parto. De dez
transfusões seguintes, cinco foram bem-sucedidas e as outras cinco malsucedidas.
Normalmente utilizava o sangue doado do marido para transfundir nas pacientes.
39
A evolução dos trabalhos foi acentuada no exterior, até que em 27 de janeiro de 1879,
José Marcondes Filho, em sua tese de doutoramento, fez o primeiro relato acadêmico sobre
hemoterapia no Brasil.
Passaremos a entremear à pesquisa da advogada a dos médicos, eis que se
complementam.
Os médicos relatam no tocante à tese que:
Na era “pré-científica” surgiu o primeiro relato acadêmico sobre
Hemoterapia no Brasil. Trata-se de uma tese de doutoramento apresentada à
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 27 de setembro de 1879, de
autoria de José Vieira Marcondes, filho legítimo do Barão e da Baronesa de
Taubaté. Rejeitada por ser muito polêmica foi, entretanto, sustentada na
Faculdade de Medicina da Bahia, em 30 de dezembro de 1879. Esta tese é
uma monografia descrevendo experiências empíricas, realizadas até aquela
época sobre a transfusão de sangue, onde se discute se a melhor transfusão
seria a do animal para o homem ou entre os seres humanos. O aspecto
interessante deste trabalho é a descrição detalhada de uma reação hemolítica
aguda, com alterações renais e presença da hemoglobina na urina.46
A defensora anota que a descoberta do sistema ABO coube a Karl Landsteiner,
imunologista e pesquisador do Instituto de Anatomia Patológica de Viena. Em seu estudo, o
médico analisou a reação da mistura de amostras de sangue de pessoas sadias com amostra de
pessoas doentes e constatou que as amostras de sangue de pessoas sadias também
aglutinavam.
Em 1900, publicou um artigo sobre as propriedades químicas do sangue, fluidos
linfáticos e plasma, e disse que a aglutinação poderia ser causada por contaminação bacteriana
ou diferenças individuais de sangue humano. E concluiu que “pode auxiliar na explicação das
inúmeras consequências das terapias transfusionais de sangue”47. Suas ideias, porém,
demoraram a ser divulgadas.
46
JUNQUEIRA, Pedro C.; ROSENBLIT, Jacob; HAMERSCHLAK, Nelson, História da hemoterapia no Brasil,
cit., p. 202.
47
No original: “may assist in the explanation of the various consequences of therapeutical blood transfusions”.
(NUNES, Helena Ferreira, Responsabilidade civil e a transfusão de sangue, cit., p. 19 – Nossa tradução).
40
Em 1901, Landsteiner publicou um documento detalhando a descoberta dos grupos
sanguíneos A, B e C, que mais tarde foi denominado de O e, em 1930, recebeu o Prêmio
Nobel de Medicina.
Em 1902, Alfred von Decastello e Adriano Sturli identificaram um quarto grupo
sanguíneo, o tipo AB.
A descoberta de Landsteiner abriu caminho para trabalhos importantes nos Estados
Unidos e na Europa e, mais tarde, também na Rússia.
No Brasil, em 1916, Isaura Leitão defendeu a tese de doutoramento intitulada
Transfusão sanguínea, em que descreveu a realização de quatro casos de transfusão. Nessa
época, os doadores de sangue eram remunerados em 500 réis para cada centímetro cúbico de
sangue doado, quando fossem não imunizados; já os imunizados recebiam 750 réis. Os
bancos de sangue não aceitavam doadores de emergência, nem voluntários ou altruístas.
Essa informação foi colhida por Helena Ferreira Nunes no trabalho dos médicos Pedro
C. Junqueira, Jacob Rosenblit e Nelson Hamerschlak, que nos servirá de fundamento para
informarmos como prosseguiram os estudos e o aperfeiçoamento da hematologia no Brasil.
Melhor esclarecendo, permitimo-nos não aprofundar a abordagem das técnicas
empregadas pelos estudiosos no desvendamento dos melhores aprimoramentos, para não fugir
do desiderato maior deste trabalho. De todo modo, os tópicos considerados mais marcantes
dos experimentos e descobertas até a iniciação da transfusão homem-homem ficaram
registrados, especialmente até o fim das experiências com animais e o início da era científica,
em 1900, que traçaram os rumos da hemoterapia de nossos dias.
Assim, valendo-nos desse trabalho dos médicos, além do que já foi narrado quanto à
trajetória da hematologia em nosso país, analisemos os aspectos concernentes às políticas
públicas correlatas.
Em 1950, a partir de iniciativa do Banco de Sangue do Distrito Federal, foi
promulgada a Lei n. 1.075, de 27 de março de 1950, que dispôs sobre a doação voluntária de
sangue.
41
Em 1964, o Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho para estudo e regulação
disciplinadora da hemoterapia no Brasil, que resultou na formação da Comissão Nacional de
Hemoterapia em 1965, presidida pela Doutora Maria Brasília Leme Lopes, e com
representação da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH) pelos Doutores
Oswaldo Mellone, Francisco Antonáscio e, posteriormente, Jacob Rosenblit.
A Comissão Nacional de Hemoterapia e o Ministério da Saúde, por meio de decretos,
portarias e resoluções, estabeleceram o primado da doação voluntária de sangue e a
necessidade de medidas de proteção a doadores e receptores, disciplinou o fornecimento de
matéria-prima para a indústria de fracionamento plasmático e a importação e exportação de
sangue e hemoderivados. Entre as suas atividades, destacam-se a implantação de registro
oficial dos bancos de sangue públicos e privados, a publicação de normas básicas para
atendimento a doadores e para a prestação de serviço transfusional e a determinação da
obrigatoriedade dos testes sorológicos necessários para a segurança transfusional.
Em 1978, pela nova organização estrutural do Ministério da Saúde, a Comissão
Nacional de Hemoterapia passou a ser uma das Câmaras Técnicas (Dec. n. 79.050, de
30.12.1977). A Câmara Técnica acabou sendo desativada em 30 de dezembro de 1979, com a
criação do Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados (Pró-Sangue).
No período de 1964 a 1979, a hemoterapia no Brasil tinha legislação e normatização
adequadas, porém ainda carecia de uma rígida fiscalização das atividades hemoterápicas e de
uma política de sangue consistente.
O sistema era desorganizado, com serviços públicos e privados de altíssimo nível
técnico e científico convivendo com outros de péssima qualidade, alguns com interesses
prioritariamente comerciais. As indústrias de hemoderivados, em geral, estimulavam a
obtenção de matéria-prima de doadores remunerados e da prática da plasmaférese48. Nem
sempre os cuidados com a saúde dos doadores eram prioritários.
48
A definição dada pela RDC 57/2010 é que aférese é o processo que consiste na obtenção de determinado
componente sanguíneo de doador único, utilizando equipamento específico (máquina de aférese), com retorno
dos hemocomponentes remanescentes à corrente sanguínea. E também: “Plasmaférese é a técnica de transfusão
que permite retirar plasma sanguíneo de um doador ou de um doente; processo de purificação plasmática;
método terapêutico utilizado para eliminar os anticorpos produzidos pelas doenças autoimunes como o Lúpus,
Miastenia Gravis, Síndrome de Lambert-Eaton, Guillain-Barré e outras, que se assemelha à diálise, removendo
o plasma do paciente através de um separador celular que centrifuga o sangue ou o faz passar por uma
membrana com poros ultrafinos, pelos quais somente o plasma pode passar.” (LEITE, Érida Maria Diniz
(Org.), Dicionário digital de termos médicos 2007, cit.).
42
Nessa linha, João Carlos Pina Saraiva, um dos presidentes da SBHH, em editorial
sobre a história da hemoterapia no Brasil, cita algumas mazelas da remuneração da doação de
sangue que denotavam a imoralidade de comportamentos profissionais. Ele dilucida:
Naquela época, mesmo alguns serviços públicos remuneravam os doadores
de sangue. Os fiscais do Ministério da Previdência exigiam dos serviços de
hemoterapia, ainda na década de 70, a apresentação de recibos que
comprovassem o pagamento dos doadores de sangue, por inferirem que o
lucro do empresário não se poderia fazer à custa de doadores voluntários.49
Na opinião dos médicos hematologistas, em alguns bancos de sangue de ética
questionável, indivíduos das camadas mais pobres da população, que muitas vezes não tinham
reais condições físicas e mesmo nutricionais, eram estimulados a doar sangue.
No ponto, ressaltam acontecimentos que culminaram na reorganização do sistema
hemoterápico no Brasil, dentre eles “A Campanha de Doação Voluntária de Sangue da
Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia” e a Constituição de 1988.
No tocante à Campanha de Doação Voluntária de Sangue, vibram com os detalhes da
ação e o fim da doação remunerada.
João Carlos Pina Saraiva, em seu editorial, traz adendos relevantes na luta contra a
remuneração e menciona a participação efetiva de uma mulher, a presidente da Associação
dos Doadores Voluntários de Sangue. Segundo ele:
[...] a revolução política da especialidade estava em fermentação. A
especialidade estava desacreditada pelas frequentes denúncias de
comercialização, sem se referir outras denúncias bem mais graves e que
chegaram a figurar nas páginas policiais. A principal interlocutora dos
organismos internacionais era uma mulher, não médica – a Sra. Carlota
Osório, presidente da Associação Brasileira de Doadores Voluntários de
Sangue, que tinha acesso aberto aos gabinetes governamentais, inclusive no
exterior, onde era considerada a principal figura brasileira contra a
comercialização do sangue e conseguia influenciar ministros de estado nas
políticas governamentais de saúde. A sua atuação, bastante controversa, foi
fortalecida pela inércia dos agentes públicos e privados em resolverem
problemas que se avolumavam na especialidade. Assim é que, nas décadas
49
SARAIVA, João Carlos Pina. A história da hemoterapia no Brasil. Revista Brasileira de Hematologia e
Hemoterapia, São José do Rio Preto, SP, v. 27, n. 3, p. 156, jul./set. 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v27n3/v27n3a04.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2012.
43
de 70 e de 80, algumas iniciativas foram fundamentais para que a
hemoterapia brasileira ultrapassasse as barreiras do compadrio e do
regionalismo.50
Prossegue o trio médico, afirmando que, em 1979, a SBHH era presidida por Celso
Carlos de Campos Guerra. Inconformado com a situação das doações de sangue em alguns
serviços do Brasil, muitas vezes realizadas por presidiários em troca de cigarros, ou por
mendigos em busca da remuneração, estimulou e liderou diversos colegas de São Paulo em
uma cruzada por todo o país, que culminou em junho de 1980 com a extinção da doação
remunerada de sangue no Brasil.51
Para atingir esse objetivo, Celso Carlos de Campos Guerra teve o apoio de todos os
hemoterapeutas do país e contou com a ajuda da comunidade médica e órgãos de classe, como
a Associação Médica Brasileira, a Associação Paulista de Medicina, a Associação Paulista de
Propaganda, a Associação Brasileira de Relações Públicas e da imprensa de forma geral.
Naquela ocasião, a estratégia para a obtenção do doador altruísta, a exemplo de países
desenvolvidos, era conseguir o chamado doador de reposição (familiares e amigos dos
pacientes), que era sensibilizado e conscientizado para o ato de doar. Aquilo que parecia
impossível aconteceu sem qualquer desabastecimento, que era o principal temor dos
organizadores da campanha.
Aludem que o Brasil, que naquela época tinha 80% de doação remunerada, passou a
ter exclusivamente doadores voluntários.
O próprio Celso Carlos de Campos Guerra52 descreve, com suas letras, o difícil trajeto
percorrido, no final da década de 70 e início da de 80, para superar e pôr fim à doação
remunerada de sangue no Brasil.
50
SARAIVA, João Carlos Pina, A história da hemoterapia no Brasil, cit., p. 156.
JUNQUEIRA, Pedro C.; ROSENBLIT, Jacob; HAMERSCHLAK, Nelson, História da hemoterapia no Brasil,
cit., p 205.
52
GUERRA, Celso Carlos de Campos. Fim da doação remunerada de sangue no Brasil faz 25 anos. Revista
Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, São José do Rio Preto, SP, v. 27, n. 1, p. 1-3, jan./mar. 2005.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v27n1/v27n1a01.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2012.
51
44
Conforme o então presidente da SBHH no biênio 1979-1981, dois problemas cruciais
precisavam de solução: a) as leucemias agudas da infância tinham 50% de cura, enquanto no
Brasil eram raros os casos de cura; b) outro problema era a falta de doadores, levando os
serviços públicos à exigência de doação de sangue para internar os pacientes ou à realização
de coletas de sangue em presídios. Os bancos de sangue privados, por sua vez, recorriam nas
capitais e cidades de médio porte à doação remunerada, criando, assim, uma profissão, a do
doador gratificado.
À época, era proibida no Brasil a “solicitação de doações de parentes e amigos dos
pacientes da Previdência Social, pois os sindicatos entendiam, àquela época, que o governo
pagava o sangue e, por isso, não havia a necessidade de reposição dos estoques”.53
Depois de muitos ajustes políticos internos e com o Governo Federal, chegou-se à
conclusão de que a criação de um “Dia D” para marcar o fim da remuneração da doação de
sangue no país seria estrategicamente perfeita. E, “no dia 1º de maio de 1980 terminou a
doação remunerada no Estado de São Paulo. Foi feito um documento divulgando o fim da
remuneração de doadores no Estado de São Paulo e enviado às nossas Regionais a medida
realizada”.54
Finda a doação remunerada, a imprensa auxiliou na divulgação de campanha voltada à
doação altruística de sangue. A ação foi muito bem recebida na classe médica, resultando no
reconhecimento da hemoterapia como especialidade.
O então presidente elaborou um extenso documento ao Governo Federal descrevendo
os aspectos positivos e negativos da ação governamental. Destacou entre os aspectos positivos
o fim da doação remunerada, a unificação dos serviços de hematologia e hemoterapia, aliado
ao maior investimento na área pública do setor. De negativo, a política para a indústria de
hemoderivados, que levou a maioria das fábricas à inativação e ao fechamento, tal como a
multinacional Hoechst, o Instituto Santa Catarina e a privada LIP. Restou o Hemope,
governamental, que não se desenvolveu.
53
54
GUERRA, Celso Carlos de Campos, Fim da doação remunerada de sangue no Brasil faz 25 anos, cit., p. 1.
Ibidem, p. 2.
45
Em 2005, o governo criou a Hemobrás. Com referência a essa etapa da hemoterapia,
interessante retratar que apesar de o Brasil ser dependente da importação de hemoderivados,
surge uma luz no fim do túnel, porquanto a Hemobrás55 construirá a maior fábrica de
hemoderivados da América Latina, numa área de 48 mil metros quadrados no Município de
Goiana, norte de Pernambuco, a 63 quilômetros do Recife. Será uma das âncoras do Polo
Farmacoquímico de Pernambuco, cuja área de 345 hectares pode abrigar 36 indústrias.
Orçada em R$ 540 milhões, a planta industrial terá capacidade para processar
anualmente 500 mil litros de plasma, matéria-prima dos hemoderivados. A fábrica deve
iniciar sua produção em 2014, elaborando os seguintes medicamentos: albumina, utilizada em
pacientes queimados ou com cirrose e em cirurgias de grande porte; imunoglobulina, que
funciona como anticorpo para pessoas com organismo sem defesa imunológica; fatores de
coagulação VIII e IX, complexo protrombínico e fator de Von Willebrand, destinado a
pessoas com hemofilia.
Retomando e finalizando a análise do editorial de Celso Carlos de Campos Guerra,
anota o ex-presidente que com o fim da doação remunerada no Brasil, coube à iniciativa
privada, inclusive orientando as instituições públicas, a se deixar de coletar sangue em
presídios e não exigir doação para a internação de pacientes.
De outra parte, Pedro C. Junqueira, Jacob Rosenblit e Nelson Hamerschlak, como
também os personagens fundamentais na história do processo de reconhecimento da atividade
hematológica e hemoterápica no Brasil, no pertinente às novidades trazidas pela Constituição
Federal de 1988, ponderam sobre o parágrafo 4º do artigo 199 como medida de valorização da
profissão. Concluem aduzindo que apenas em 2002 (de fato foi em 2001, quando da edição da
Lei n. 10.205), a regulamentação legal do parágrafo desse artigo foi aprovada, com a
proibição da doação gratificada de sangue, conceituando a remuneração dos serviços por meio
da cobertura de custos de processamento.
55
EMPRESA BRASILEIRA DE HEMODERIVADOS E BIOTECNOLOGIA (Hemobrás). Disponível em:
<www.hemobras.gov.br/site/conteudo/fabrica.asp>. Acesso em: 03 jan. 2012.
46
2.2 A hemoterapia nacional
Os serviços de hemoterapia, independentemente de seu nível de complexidade, devem
estar sob a responsabilidade técnica de profissional médico, especialista em hemoterapia ou
hematologia, ou qualificado por órgão competente devidamente reconhecido para esse fim
pelo Sistema Estadual de Sangue, que responderá pelas atividades executadas pelo serviço.
A Resolução de Diretoria Colegiada n. 151, de 21 de agosto de 2001, cuidou de
regulamentar os níveis de complexidade dos serviços de hemoterapia no país.
A hemorrede nacional é coordenada, no nível federal, pela Gerência Geral de Sangue,
outros Tecidos e Órgãos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde,
e nos Estados e Distrito Federal pelo gestor do Sistema Único de Saúde (SUS).
Os serviços de hemoterapia que integram a hemorrede nacional terão nomenclatura e
conceituação específicas, de conformidade com a seguinte estrutura: Hemocentro
Coordenador, Hemocentro Regional, Núcleo de Hemoterapia, Unidade de Coleta e
Transfusão, Unidade de Coleta, Central de Triagem Laboratorial de Doadores e Agência
Transfusional.
O Hemocentro Coordenador é entidade de âmbito central, de natureza pública,
localizada preferencialmente na capital, com a finalidade de prestar assistência e apoio
hemoterápico e/ou hematológico à rede de serviços de saúde. Deverá prestar serviços de
assistência às áreas a que se propõe, de ensino e pesquisa, formação de RH, controle de
qualidade, suporte técnico, integração das instituições públicas e filantrópicas, e apoio técnico
à Secretaria de Saúde na formulação da Política de Sangue e Hemoderivados no Estado, de
acordo com o Sistema Nacional de Sangue e Hemoderivados e o Plano Nacional de Sangue e
Hemoderivados e em articulação com as Vigilâncias Sanitária e Epidemiológica.
O Hemocentro Regional é entidade pública de âmbito regional, para atuação
macrorregional na área hemoterápica e/ou hematológica. Deverá coordenar e desenvolver as
ações estabelecidas na Política de Sangue e Hemoderivados do Estado para uma macrorregião
de saúde. Poderá encaminhar a uma Central de Triagem Laboratorial de Doadores as amostras
47
de sangue para realização dos exames e atuar como distribuidor de hemocomponentes para
outros serviços.
O Núcleo de Hemoterapia é entidade de âmbito local ou regional, de natureza pública
ou privada, para atuação microrregional na área de hemoterapia e/ou hematologia. Deverá
desenvolver as ações estabelecidas pela Política de Sangue e Hemoderivados no Estado.
Poderá encaminhar a uma Central de Triagem Laboratorial de Doadores as amostras de
sangue para realização dos exames.
A Unidade de Coleta e Transfusão poderá ser uma entidade de âmbito local, de
natureza pública ou privada, que realiza coleta de sangue total e transfusão, localizada em
hospitais ou pequenos municípios, onde a demanda de serviços não justifique a instalação de
uma estrutura mais complexa de hemoterapia. Poderá ou não processar o sangue total e
realizar os testes imunohematológicos dos doadores. Deverá encaminhar para a realização da
triagem laboratorial dos marcadores para as doenças infecciosas a um Serviço de Hemoterapia
de referência.
A Unidade de Coleta é entidade de âmbito local, que realiza coleta de sangue total,
podendo ser móvel ou fixa. Sendo móvel, deverá ser pública e estar ligada a um Serviço de
Hemoterapia. Sendo fixa, poderá ser pública ou privada. Deverá encaminhar o sangue total
para processamento e realização dos testes imunohematológicos e de triagem laboratorial dos
marcadores para as doenças infecciosas a um Serviço de Hemoterapia de referência.
A Central de Triagem Laboratorial de Doadores é entidade de âmbito local, regional
ou estadual, pública ou privada, que tem como competência a realização dos exames de
triagem das doenças infecciosas nas amostras de sangue dos doadores coletado na própria
instituição ou em outras. A realização de exames para outras instituições só será autorizada
mediante convênio/contrato de prestação serviço, conforme a natureza das instituições.
Por fim, a Agência Transfusional deverá ter localização preferencial em hospitais, com
a função de armazenar, realizar testes de compatibilidade entre doador e receptor e transfundir
os hemocomponentes liberados. O suprimento de sangue a estas agências realizar-se-á pelos
Serviços de Hemoterapia de maior complexidade.
48
2.2.1 A hemoterapia na América Latina
Gabriel A. Schmunis e Jose R. Cruz56 reportam minuciosamente a evolução da
hemoterapia na América Latina. Aludem que a 28ª Assembleia Mundial da Saúde da
Organização Mundial da Saúde aprovou a Resolução WHA 28.72, em 1975, versando sobre o
fornecimento e utilização do sangue humano e hemoderivados. O documento veio instar os
países membros ao desenvolvimento de políticas nacionais de sangue baseadas na doação
voluntária não remunerada, bem como para a promulgação de leis regendo o funcionamento
dos serviços correlatos às políticas do sangue, além de medidas destinadas à proteção de
doadores e receptores de sangue e hemoderivados.
Segundo os autores, contradizendo o que se colhe nos bancos de sangue brasileiros,
supostamente baseados em estatísticas fornecidas na década de 90 e até 2002, na América
Latina, os doadores voluntários são minoria, a despeito de mais saudáveis que os doadores
remunerados ou de reposição. Refletem que os doadores remunerados, pelo benefício
financeiro, tendem a omitir informações relevantes que inviabilizariam a doação ou imporiam
seu adiamento. Os doadores de reposição, amigos ou familiares são recrutados para substituir
o sangue usado ou a ser usado. Estes, em função da pressão exercida pelos receptores ou
parentes, do mesmo modo, podem não estar dispostos a fornecer informações relevantes sobre
seu real estado de saúde.
Alguns dados alarmantes são descritos pelos doutrinadores57. Em 1997, mais de 89%
dos doadores de sangue foram de reposição, parentes ou amigos dos pacientes, no Chile,
Costa Rica, Guatemala, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Na Colômbia,
Equador, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Panamá, essa proporção variou entre 57 e 80%.
Em 1999, os doadores voluntários variaram entre 40 a 50%, na Costa Rica e Nicarágua; de 18
a 21%, no Equador, Guatemala e Honduras. Em 2002, a maior proporção de doadores
voluntários foi encontrada na Costa Rica (48%), Colômbia e Equador (41%), seguidos de
Honduras (22%). Em outros países, a porcentagem de doadores voluntários foi inferior a 10%.
Consignam que, em 2002, alguns países ainda persistiam em remunerar doadores (12,55% na
56
SCHMUNIS, Gabriel A.; CRUZ, Jose R. Safety of the blood supply in Latin America. Clinical Microbiology
Reviews, v. 18, no. 1, p. 12, 2005. Disponível em: <http://cmr.asm.org/content/18/3/582.full.pdf+html>.
Acesso em: 14 mar. 2012.
57
Ibidem, p. 15-16.
49
Bolívia e 47% no Panamá, em 2001; 8,77% em Honduras e 3,22% no Peru), baseados em
dados das Nações Unidas.
Mesmo os países que informaram índice de doações voluntárias superior a 20%, em
2002 (Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Honduras, Nicarágua e Uruguai), omitiram
dados acerca de serem doadores de repetição ou pela primeira vez.
Apesar dos esforços iniciais de Argentina, Brasil, Colômbia, Equador, México e
Uruguai em estabelecerem um sistema de notificação de incidentes e eventos adversos
relacionados com a administração da hematologia, as informações sobre tais questões não
foram oficialmente enviadas por esses países. Portanto, o impacto potencialmente negativo
das transfusões de sangue em pacientes e na saúde pública restou desconhecido.
No que toca ao envio de informações sobre infecções transmitidas nas transfusões de
1993 a 2001 e 200258, o primeiro ano em que foram disponibilizadas para todo o mundo, foi
em 1993, pela Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica e El Salvador, Guatemala, Honduras,
Nicarágua e Venezuela; 1994, pelo Equador, Panamá, Paraguai e Uruguai; 1995, pela
Argentina; 1997, pelo Peru; e 1999, pelo setor público do Brasil e México.
O número absoluto de doadores aumentou durante o período de 1993 a 2002, de 10% a
150%, em alguns países, como Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras, Panamá e
Paraguai; manteve-se na Argentina, Chile, Costa Rica, Nicarágua e Uruguai. No Brasil, o
número de doadores dobrou entre os anos base 1999 e 2002, porque a informação tornou-se
disponível, também, pelo setor privado.
2.3 A Constituição Federal e a vedação de comercialização do sangue e seus
derivados
A finalidade maior deste trabalho reside no encontro de positivação apta a consolidar a
doação de sangue como medida jurídico-penal, em prol da salvação de vidas, mediante atos
ungidos de altruísmo e solidariedade, capazes da geração subjetiva de autoestima e objetiva
de justiça social.
58
SCHMUNIS, Gabriel A.; CRUZ, Jose R., Safety of the blood supply in Latin America, cit., p. 17.
50
Cada doação potencialmente pode salvar de três a quatro vidas. Com essa medida de
alto alcance humanitário, o Poder Judiciário pode criar mecanismos tendentes a disseminar
comportamentos de comprometimento social em que o doador e, por influência do ato
benévolo, seus familiares se vinculem à causa e se tornem doadores habituais.
O bem-estar físico e moral se inserem no contexto do direito fundamental “vida”. E a
vida (art. 5º, caput, da CF) não há de ser considerada apenas no seu sentido biológico de
incessante autoatividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica
mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico,
que se transforma incessantemente sem perder a própria identidade.59
A proteção constitucional é perene, porquanto “é mais um processo (processo vital),
que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo
sua identidade até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte [...].
Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida”.60
Pelo intrínseco congresso entre o bem-estar físico e mental, ao abordar o direito à
integridade física, José Afonso da Silva chama a atenção para o Texto Maior firmar como
direito fundamental o respeito aos presos (art. 5º, XLIX) e vedar, genérica e expressamente,
qualquer desrespeito à integridade física e moral de qualquer pessoa, declarando que
“ninguém será submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III). E
faz um questionamento: sendo a integridade física um direito individual, seria lícito alguém
alienar membros ou órgãos de seu corpo? E responde: “Se essa alienação, onerosa ou gratuita,
se faz para extração após a morte do alienante, não parece que caiba qualquer objeção. É que,
em tal caso, não ocorre ofensa à vida, que já inexistirá.”61
No Brasil é vedada a comercialização de órgãos e a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de
1997, instituiu o sistema nacional de transplante. Anos depois, sofreu pequena modificação
pela Lei n. 10.211, de 23 de março de 2001. A Lei n. 9.434/97 somente admite a disposição
gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de
59
SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 197.
Ibidem, p. 197.
61
Ibidem, p. 200.
60
51
transplante ou tratamento. Resta sublinhar que, para os efeitos da legislação, não estão
inseridos nessa limitação o sangue, o esperma e o óvulo.
Quanto à gratuidade, José Afonso da Silva sublinha que:
Procedeu bem a lei ao estabelecer a gratuidade para o caso. É que a vida,
além de ser um direito fundamental do indivíduo, é também um interesse
que, não só ao Estado, mas à própria humanidade, em função de sua
conservação, cabe preservar. Do mesmo modo que a ninguém é legítimo
alienar outros direitos fundamentais, como a liberdade, por exemplo,
também não se lhe admite alienar a própria vida, em nenhuma de suas
dimensões. É de observar, contudo, que a lei só permite a disposição de
tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo para fins de transplante,
quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do
corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo
sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de
suas aptidões vitais e saúde mental, e não cause mutilação ou deformação
inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente
indispensável à pessoa receptora (art. 9º). Dá-se que a doação, em tela, tem
por objetivo salvar vida, e não teria justificativa sacrificar a vida ou a
vitalidade do doador extinguindo ou mutilando a própria vida.62
Paralelamente à preservação da vida, e nessa linha de raciocínio, de se ressaltar que a
Lei n. 10.205/01, no artigo 14 e incisos, traça paradigmas disciplinando todas as medidas
relacionadas à doação de sangue. No que toca aos requisitos da doação de sangue,
especialmente a gratuidade, os incisos II e III arrimam o seguinte:
A Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados rege-se
pelos seguintes princípios e diretrizes:
[...]
II - utilização da doação voluntária, não remunerada, do sangue, cabendo ao
poder público estimulá-la como ato relevante de solidariedade humana e
compromisso social;
III - proibição de remuneração ao doador pela doação de sangue;
Sem destoar, a RDC 57/2010, que “determina o Regulamento Sanitário para Serviços
que desenvolvem atividades relacionadas ao ciclo produtivo do sangue humano e
componentes e procedimentos transfusionais”, recrudesce o espectro dos requisitos que
envolvem a doação de sangue, para acrescentar, além do que o texto constitucional aborda
(vedação de comercialização) e da lei infraconstitucional (não remuneração), outros
parâmetros considerados mote da Organização Mundial da Saúde e que foram sendo
62
SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 201.
52
sucessivamente olvidados pelos aludidos diplomas legais. A resolução, em seu artigo 20,
agrega àqueles requisitos que “a doação de sangue deve ser voluntária, anônima, altruísta e
não remunerada, direta ou indiretamente, preservando-se o sigilo das informações prestadas”.
A redação da Resolução encontra sintonia com os diplomas internacionais sobre a
doação de sangue e seus pressupostos, inclusive no incremento que majora esse leque de
exigências, que passamos a analisar uma a uma.
Em síntese, consiste na obrigatoriedade do ato ser voluntário, anônimo, altruísta e
gratuito ou não remunerado.
A voluntariedade deve ser respeitada sempre, uma vez que o doador não pode ser
obrigado a praticar determinado ato se sua convicção pessoal, por qual motivo for, apontar em
sentido diverso.
Quanto ao anonimato, a lei esclarece o seu alcance, e não há necessidade de nada mais
anotar a respeito, porquanto nem receptor e nem doador devem saber a origem ou destinação
do sangue, salvo em se tratando de doação autóloga.
O altruísmo, termo criado pelo filósofo francês Augusto Comte por volta de 1830,
significa cuidado desinteressado pelo outro, a realização de um ato humanitário abnegativo
em prol do próximo. É o domínio dos instintos egoístas. Designa o amor mais amplo possível
ao outro, vale dizer, a inclinação natural que nos levaria a escolher o interesse geral, de
preferência aos nossos próprios interesses. Em seu sentido mais moral, por oposição a
egoísmo e a egocentrismo, altruísmo designa a atitude generosa que consiste em sacrificar
efetivamente seu interesse próprio em proveito do interesse do outro ou da comunidade.63
O doador de sangue pratica um ato de altruísmo, ou seja, um ato dedicado ao próximo.
Um ato de filantropia, de solidariedade humana. Doa um órgão seu para terceira pessoa
desconhecida. Ainda que esse doador seja estimulado pelo Poder Judiciário, o caráter altruísta
da ação persiste.
63
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001. p. 10.
53
O altruísmo pode ser provocado? Na rotina das pessoas, a decisão de doar sangue
nasce como um ato humano voluntário. Essa voluntariedade do ato de abnegação é que traz
ínsito o altruísmo. Não obstante, a voluntariedade pode nascer da sugestão alheia. Amigos,
parentes, propaganda, tudo enfim pode colaborar para convencer a pessoa a doar. Mesmo que
provocada a assim agir em face de um ato processual, não deixaria de ser altruísta. O
sentimento de respeito ao próximo, de ajuda a um estranho, é um ato humanitário
caracterizador do altruísmo.
Quando se sugere a doação de sangue no curso de um processo, e a pessoa é
informada que seu ato pode salvar vidas, para contrabalançar a fúria punitiva estatal, é
sintomático que o destinatário da sugestão mescle seu interesse pessoal de se livrar da pena
privativa de liberdade. Seu raciocínio é simples: doo sangue e me livro da prisão. Esse
mecanismo permite ao Poder Judiciário colaborar com a cidadania, informando à pessoa sobre
quais carências, nos diversos setores da sociedade, elegeu e incluiu entre suas metas.
Descobre, ainda que desconheça a exata consequência da doação, que sua ação pode gerar
benefícios à saúde pública. Em síntese, o altruísmo pode, sim, derivar da intervenção de
terceiros, como no exemplo figurado.
Passamos à narrativa de uma situação concreta por nós vivida que transmite certeza
dessa convicção. Um jovem estava para ser sentenciado por um crime de furto leve. A ele
havia sido proposto o benefício do sursis processual, mas recusara. Confesso, o jovem seria
condenado inequivocamente. No entanto, antes de prolatar a sentença, foi-lhe indagado se não
queria repensar sobre o benefício recusado, aventando-se a possibilidade de o órgão
ministerial modificar a proposta, inclusive oferecendo-lhe a oportunidade de doar sangue. O
jovem, humilde por demais, sempre permaneceu cabisbaixo. De repente, pede a palavra e diz:
“Senhor juiz, se eu der sangue, posso salvar uma vida, não?” Aquelas palavras comoveram
todos na sala de audiência. Diante do inusitado causado pelas palavras do jovem, foi
esclarecido que sim, uma doação de sangue pode salvar até três vidas. “Então, eu aceito”,
disse ele.
Em nosso sentir, esse jovem desconhecia lexicamente o significado da palavra
altruísmo, todavia a sua reação espelha o brotar desse sentimento inato e magnânimo. Aceitou
doar porque podia salvar uma vida...
54
Cremos que inexiste óbice algum em o Poder Judiciário servir de elo entre o autor do
fato e o banco de sangue, como forma de estímulo a desabrochar o altruísmo na pessoa, em
seus familiares e amigos. Essa virtude varia de pessoa para pessoa, a exemplo dos valores
morais e éticos. Se os ilícitos são praticados por toda sorte de pessoas, é sensato que muitas
podem ter noção do significado de altruísmo, outras não.
O altruísmo entre membros de uma mesma família é uma realidade quase que
obrigatória; fora dela é que existe a relutância, porquanto a pessoa, em seu íntimo, acredita
que sofre alguma espécie de prejuízo com tal empreendimento. Mas a semente, uma vez
plantada, tende a trazer bons frutos.
Nessa linha de credo, estudiosos vêm se posicionando no sentido de que o altruísmo,
em oposição ao egoísmo, pode frutificar em um grupo social, em uma comunidade.
Em entrevista, o economista Samuel Bowles, autor de diversos trabalhos sobre a
evolução genética e cultural dos humanos, publicados em revistas como Nature e Science, põe
em dúvida a teoria da evolução de Charles Darwin e a ideia de que os homens são
inteiramente egoístas64. Defensor da tese de que a gentileza foi e é fundamental para a
evolução humana, em contraposição à teoria da sobrevivência do mais apto, em face das
inúmeras pesquisas que realizou na África, Ásia e em países da América Latina, concluiu que
a seleção natural pode produzir espécies altruístas e cooperativas, ao invés de seres humanos
inteiramente egoístas, como defendia Charles Darwin.
O pesquisador responde, nos seguintes termos, à questão: “O altruísmo pode ser
aprendido?”:
Certamente. Acreditava-se, no passado, que o comportamento altruísta
ficava restrito a membros de uma mesma tribo ou vila ou limitado a grupos
linguísticos. Mas, agora, sabemos que o altruísmo pode se estender pelo
mundo todo. Muitos de nossos valores são influenciados pela nossa
constituição genética. Mas também somos seres culturais, aprendemos
através de exemplos – com as lições de nossos pais, professores, vizinhos,
líderes nacionais e internacionais. Tenho 71 anos. Na minha juventude, era
64
AZEVEDO, Solange. Samuel Bowles: “Charles Darwin estava errado”. IstoÉ, São Paulo, n. 2.158, de
18.03.2011. Isto É Entrevista. Disponível em: <http:// www.istoe.com.br/ assuntos/ entrevista/ detalhe/
129045_CHARLES+DARWIN+ESTAVA+ERRADO+>. Acesso em: 14 mar. 2012.
55
impossível imaginar que um afro-americano seria eleito presidente dos
Estados Unidos, já que alguns tipos de espírito cívico não existiam nos anos
1950 e 1960.65
Instado sobre como o comportamento altruísta influenciou a evolução cultural e
genética dos homens, alude:
A pessoa é altruísta, de acordo com biólogos e também segundo a minha
definição, se ajuda aos outros sacrificando a si mesma. Para os biólogos, isso
significa ajudar as outras pessoas a se adaptar, produzir mais crianças e
cuidar delas até que elas próprias possam se reproduzir. Para os biólogos, no
entanto, esse tipo de sacrifício só seria possível entre irmãos ou parentes
próximos. Porque, se a pessoa abrir mão do próprio sucesso reprodutivo para
ajudar um desconhecido, seu tipo altruísta é eliminado. O problema é que
essa teoria desconsidera uma questão importantíssima: seres humanos vivem
em grupos e nós sobrevivemos por causa disso. Se estivéssemos num grupo
em que todos são egoístas, ele funcionaria precariamente e acabaria
extinto.66
Prossegue ainda, afiançando pesquisas reveladoras de que se as pessoas forem tratadas
como entes egoístas, isso pode ser um incentivo para que ajam de modo egoísta. Por isso,
defende que países e empresas poderiam ser mais bem administrados à luz de sua teoria.
Evoca e critica Maquiavel (1469-1527), para quem o mundo é perverso e a raiva torna as
pessoas engenhosas, motivo pelo qual somente a lei as tornaria boas. A elaboração frequente
de leis levando em conta o pressuposto de que as pessoas são completamente egoístas, como
filósofos e advogados vêm produzindo, está equivocada. Para provar seu raciocínio, cita um
exemplo em Israel de que, entre várias creches, uma delas impôs multa para os pais que
chegassem atrasados mais de dez minutos para buscar seus filhos; a proporção de atrasos
dobrou a partir da edição da regra. Em contrapartida, nas creches em que a regra não foi
imposta, a proporção de atraso permaneceu inalterada. E conclui: “Quando não havia multa,
os pais sentiam estar violando uma norma ética e atrapalhando o andamento da escola e a
rotina dos professores. Depois, chegar atrasado virou uma mercadoria que os pais poderiam
comprar.”67
No encerramento de sua entrevista, defende que o mundo está se tornando mais
altruísta, senão de espírito mais público.
65
AZEVEDO, Solange, Samuel Bowles: “Charles Darwin estava errado”, cit.
Ibidem.
67
Ibidem.
66
56
Não se quer criticar Charles Darwin ou enaltecer Samuel Bowles, mas somente
explorar o raciocínio de um reconhecido profissional da área da evolução genética e cultural
dos seres humanos, ao ponderar, com coerência, que o altruísmo pode ser estimulado, pelo
simples motivo de que cada ser humano é distinto do outro, em quase todos os aspectos,
especialmente nos morais e éticos, de modo que os mais privilegiados precisam cooperar com
o aperfeiçoamento do próximo.
De se ressaltar que o juiz é um educador, motivo por que há de instar os
jurisdicionados a cooperarem com o meio social em que habitam. A tendência é que se torne
um voluntário dessa cruzada do bem, estimulando as pessoas que tiveram qualquer problema
com a Justiça a doarem sangue como prestação social alternativa.
Se o ato é altruísta, inquestionavelmente é um estímulo à autoestima. Tome-se o
exemplo anterior do jovem que aceitou a doação de sangue, dentre outras condições relativas
ao sursis processual. Quando foi indagado sobre o motivo pelo qual se negara a receber o
benefício, respondeu que nada merecia, senão a punição estatal. A pena era o que entendia
adequado a si próprio. Desejava ser punido pelo mal causado. Contudo, ao se dar conta que
podia salvar vidas com algo seu, uma doação exclusivamente pessoal, certamente sua
autopunição foi mitigada. Percebeu que podia ser útil à sociedade. Não era um estorvo. Um
arquétipo domiciliar pode bem retratar esse delineamento e aclarar o alcance da autoestima.
Um pai, zangado com o filho que fez estripulia exagerada, ao invés de pô-lo de castigo,
determina que o ajude a guardar as compras ou outra tarefa domiciliar importante. O filho não
ficará enclausurado em um quarto. Ao contrário, produzirá algo útil para o bem-estar familiar.
Assim agindo, a criança tem condições de ganhar respeito dos familiares e se sentir
valorizada.
Remuneração é o ato ou efeito de remunerar. É a retribuição por serviço ou favor
prestado, recompensa, prêmio. É a gratificação, geralmente em dinheiro, por trabalho
realizado, salário ou recompensa.68
68
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, cit.
57
A recompensa pode ser qualificada, na esfera jurídica, como “pagamento que
corresponde à promessa feita no sentido de retribuir aquele que conseguisse determinado
resultado”.69
Prêmio é: a) retribuição em dinheiro por um serviço prestado; b) quantia em dinheiro
ou objeto de valor real dado a quem fez jus; c) distinção conferida a quem se destaca por
méritos, feitos ou trabalhos, galardão, condecoração.70
As terminologias encontram assento na normatização exarada pela Anvisa. Porém, a
vedação à remuneração tem por objetivo maior evitar o pagamento em espécie de qualquer
ação solidária feita pelo doador. É a luta contra uma das principais mazelas da história da
hemoterapia nacional. Como se sabe, os mais humildes e os presidiários eram convidados a
fazer o ato de filantropia e recebiam por isso. O Governo Federal remunerava em dinheiro o
ato benevolente praticado. Essa era a política de fomento daquele momento histórico.
Com a remuneração fora da política adotada para a coleta de sangue, enquanto o
legislador infraconstitucional destaca sua impossibilidade, os técnicos da Anvisa decidiram
amplificar seu sentido, para proibir não só a monetária, mas todo e qualquer tipo de
remuneração, direta ou indireta, no corpo da Resolução. Em outros termos: toda e qualquer
forma de contratação realizada entre doador e o profissional da saúde deve ser considerada
ilícita e, portanto, vedada.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a cada um de seus Estados
membros desenvolver serviços de transfusão de sangue baseados na doação regular não
remunerada, conforme Resolução n. 28.72, adotada em 1975, na Assembleia Mundial da
Saúde.71
A OMS fixou em 1997 a meta de que toda a doação seria não remunerada em seus
países membros. No entanto, em 2006, somente 49 dos 124 países pesquisados adotaram essa
prática. Há países que dependem de doadores remunerados para manter os bancos de sangue.
69
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, cit.
Ibidem.
71
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Blood transfusion safety: voluntary non-remunerated blood
donation. Disponível em: <http://www.who.int/bloodsafety/voluntary_donation/en/>. Acesso em: 14.03.2012.
70
58
Nos Estados Unidos, a doação de sangue é obrigatoriamente voluntária e não remunerada; já
os doadores de plasma são remunerados, entre U$ 9 e U$ 20 por doação.72
Para o farmacêutico Osnei Okumoto, conselheiro federal pelo Mato Grosso do Sul e
diretor da hemorrede do seu Estado, o Brasil adota uma política da barganha pela doação de
sangue, o que é equivocado. Explica que, dependendo dos hábitos e das condições físicas
percebidas na triagem, o candidato não poderá doar. Ele alerta “O perigo da barganha é que o
doador não apto pode mentir para o médico e se arriscar, ao doar sangue para ganhar as
contrapartidas oferecidas.”73
Toda sua preocupação se dá porque, em alguns Estados, o doador devidamente
cadastrado tem isenção das taxas de inscrição em concursos públicos, ganha folga no trabalho
e um farto lanche no dia em que faz a coleta. Se considerarmos que o Brasil tem grande
número de pessoas desempregadas e que vivem em situação de extrema pobreza, sem ter o
que comer, significa que um lanche e a possibilidade de prestar concurso público de graça são
chamarizes eficazes, mas que podem ser muito perigosos. Aborda ainda:
Em países como os Estados Unidos, França e Japão, existe uma cultura de
doação de sangue. Por isso, esses países apresentam os melhores estoques
reguladores de sangue. Lá, a doação é verdadeiramente voluntária e altruísta.
Os cidadãos desses países doam por caridade e porque entendem a
importância desse ato, sem esperar nada em troca. Aqui, é diferente.74
Mas, esse radicalismo do profissional contra a fórmula de fomento que o Poder
Público encontrou para melhorar o estoque dos bancos de sangue não se coaduna com tudo o
que é feito ao redor do mundo. Se excessos existem, eles decorrem da boa vontade política
daqueles que pretendem cooperar com a saúde pública. Caso extrapolem os paradigmas
72
Os valores pagos aos doadores vão diretamente para cada centro de coleta autorizado, cuja inspeção,
fiscalização e investigação criminal ficam por conta da American Blood Resources Association, ligada à Food
and Drugs Administration (FDA). A propaganda, que é livre, informa: “One recent study of over 400 college
students, age 18 to 22, found that 10 percent have sold their blood plasma at least once for cash payments of
from $9 to $20 per donation. Of that group, three out of five are former Red Cross donors who stopped
donating blood for a lollipop and a t-shirt when they started selling their plasma for cash!” (NATIONAL
PLASMA CENTERS. Disponível em: <www.nationalplasmacenters.com>. Acesso em: 03 jan. 2012).
73
OKUMOTO, Osnei, citado em: RANGEL, Priscila; BRANDÃO, Aloísio. Doação: entre o altruísmo e a
barganha. Pharmacia Brasileira, Brasília, Conselho Federal de Farmácia (CFF), n. 49, p. 35, ago./set. 2005.
Disponível em: <http://www.cff.org.br/sistemas/geral/revista/pdf/18/doaAAo.pdf>. Acesso em 14 mar. 2012.
74
OKUMOTO, Osnei citado em: RANGEL, Priscila; BRANDÃO, Aloísio. Doação: entre o altruísmo e a
barganha, cit., p. 35.
59
éticos, morais e legais, os profissionais da área hão de atuar em sentido contrário para refutar
ações do gênero.
Induvidosamente, o ideal é que os doadores homólogos pratiquem o ato por pura
caridade e altruísmo. Nessa seara, o Estado promove políticas públicas tendentes a estimular e
incentivar a doação gratuita, especialmente por meio de campanhas institucionais nas épocas
de maior carência do estoque.
De outro lado, provocando cada pessoa em seu íntimo, nos mais diversos países, não
só no Brasil, o incentivo mais adotado é a concessão do dia de folga no trabalho para quem
estiver empregado.
2.3.1 Alguns incentivos pelo mundo
Consoante o Departamento do Trabalho do Estado de Nova Iorque, nos Estados
Unidos, a Lei Trabalhista, na seção 202-j determina que os empregadores ofereçam o tempo
necessário para que os empregados doem sangue.75
Na Itália, a Lei 219, de 21 de outubro de 2005, que trata da nova disciplina da
atividade transfusional e da produção nacional dos hemoderivados, prevê em seu artigo 8.1
que o dia da doação será como um feriado remunerado.76
A Sociedade Cruz Vermelha de Cingapura presenteia o doador voluntário que fizer
determinado número de doações, dentro do programa denominado de Recrutamento do
Doador Voluntário, começando com uma medalha de bronze quando alcançar 25 doações
(homem ou mulher). Ao atingir 50 doações o homem e 35 a mulher, faz jus a medalha de
prata. Se 75 o homem e 50 a mulher, ganha a medalha de rubi. Chegando a 100 o homem e 75
a mulher, concede-se a medalha de ouro; 125 o homem e 100 a mulher, medalha de diamante;
75
GUIDELINES for implementation of employee blood donation leave. Disponível em:
<www.labor.state.ny.us/workerprotection/laborstandards/PDFs/Blood%20guidelinesFINAL.pdf>. Acesso em:
10 mar. 2012.
76
“Art. 8. (Astensione dal lavoro). 1. I donatori di sangue e di emocomponenti con rapporto di lavoro
dipendente, ovvero interessati dalle tipologie contrattuali di cui al decreto legislativo 10 settembre 2003, n.
276, hanno diritto ad astenersi dal lavoro per l’intera giornata in cui effettuano la donazione, conservando la
normale retribuzione per l’intera giornata lavorativa. I relativi contributi previdenziali sono accreditati ai
sensi dell’articolo 8 della legge 23 aprile 1981, n. 155.”
60
150 o homem e 125 a mulher, o prêmio campeão dos campeões; e, por fim, 200 vezes o
homem e 150 a mulher, o Prêmio Humanitário da Cruz Vermelha.77
No Brasil, o trabalhador sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho poderá
deixar de comparecer ao serviço, sem prejuízo do salário, por um dia em cada 12 meses de
trabalho, em caso de doação voluntária de sangue devidamente comprovada (art. 473, inc. IV,
da CLT78). Os funcionários públicos civis federais, sem qualquer prejuízo, podem se ausentar
do serviço por um dia para doação de sangue, sem limite anual de doações (art. 97, inc. I, da
Lei n. 8.112/199079).
É política adotada em todos os cantos do planeta disseminar medidas que visem à
mitigação das deficiências da saúde pública na área da hematologia, especialmente aquelas
que aumentem a população de doadores fidelizados ou não, com ênfase, repita-se, às
campanhas institucionais veiculadas pela imprensa.
Em nosso país, os parlamentares tentam, por sua vez, criar novos incentivos de
cooperação, elaborando projetos de lei diretamente visando a beneficiar os doadores de
sangue. Como exemplo recente, podemos citar o Projeto de Lei n. 2.137/2011, de autoria do
deputado federal Wilson Filho, apresentado em 25 de agosto de 2011. Nele, o parlamentar
apresenta uma série de benefícios para quem realizar “pelo menos três doações, no caso de
homens, e de duas no caso de mulheres, no período de doze meses antecedentes à data em que
for pleiteado qualquer dos incentivos enumerados nesta lei”. E os incentivos são isenção de
pagamento de: taxa de inscrição em concursos públicos para provimento de cargos ou
empregos públicos, eletivos ou temporários, da administração pública federal, estadual ou
municipal, bem como de suas autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades
de economia mista; taxa de inscrição em vestibulares públicos, para ingresso nas instituições
federais, estaduais ou municipais de ensino; taxas de exames e provas para registro em
conselhos ou outras entidades de fiscalização do exercício profissional, desde que tais
entidades autorizem previamente tal isenção como forma de parceria no incentivo à doação de
sangue.
77
Disponível em: <http://www.redcross.org.sg/articles/honour-roll-2009>. Acesso em 25 jan. 2012.
“Artigo 473 - O empregado poderá deixar de comparecer ao serviço sem prejuízo do salário: [...] IV - por 1
(um) dia, em cada 12 (doze) meses de trabalho, em caso de doação voluntária de sangue devidamente
comprovada; (Inciso acrescentado pelo Dec.-Lei n. 229, de 28.02.1967) [...].”
79
“Artigo 97 - Sem qualquer prejuízo, poderá o servidor ausentar-se do serviço: I - por 1 (um) dia, para doação
de sangue; [...].”
78
61
Nesse projeto de lei ainda propõe o parlamentar vantagens ao doador funcionário
público, bem como alteração na Consolidação das Leis do Trabalho, permitindo até quatro
doações em um ano. E vai mais longe: prevê modificação da Lei de Execuções Penais,
sugerindo que o condenado que cumpre pena em regime fechado ou semiaberto, que for
doador de sangue, poderá diminuir o tempo de execução na razão de um dia para cada doação
realizada, dentro do limite de quatro dias para homens e três para as mulheres, a cada ano.
Na justificativa de seu projeto de lei, o parlamentar salienta que suas proposições não
se confundem com comercialização, ao contrário, “representam formas de estimular os
brasileiros a praticarem a doação voluntária e altruísta”.
A iniciativa do parlamentar é elogiável em quase todos os aspectos, no entanto, dentro
da exegese das prerrogativas mínimas de garantia de saúde para o receptor, deve ser evitada a
doação de sangue de pessoas que foram ou estão encarceradas. O risco do dano que egressos
pode provocar é imenso. Mais prudente que sejam excluídos os que permaneceram recolhidos
em estabelecimentos penitenciários.
Dentro da filosofia de cooperação e criação de incentivos para redução do déficit de
sangue e hemoderivados nos bancos de sangue, a nosso juízo, o Poder Judiciário deve se
irmanar a essa política de fomento criando, do mesmo modo, mecanismos que minimizem
essa carência.
E na estratégia que ora defendemos, não há troca de favores ou outra forma indireta de
remuneração. Vejamos. Quando o Poder Judiciário homologa a transação ou a suspensão
condicional do processo, ou qualquer outra forma de ato consensual, visa à despenalização, ou
seja, abre mão de seu poder de punir, do jus puniendi, permitindo que o agente mantenha
intocada sua liberdade, ao substituí-la por uma pena alternativa. Objetiva com isso atingir os
fins da pena justa e adequada, proporcionando a ressocialização da pessoa humana.
Não se trata de um negócio entre o Ministério Público e a defesa, donde se poderia
cogitar de remuneração, mas de forma de despenalização através de concessões recíprocas,
em que o Estado cede de um lado para o cidadão abdicar parcela de sua liberdade, sem
clausura, para pagar o mal cometido. Nessa perda parcial de sua liberdade de locomoção, na
qual, por exemplo, presta serviços à comunidade, tem limitado o seu fim de semana, ou é
62
obrigado a pagar uma prestação pecuniária, submete-se ao poder estatal para o devido
cumprimento de sua pena.
Nas três hipóteses alvitradas neste trabalho para doação de sangue, com a participação
efetiva do Poder Judiciário, a consensualidade se faz presente. Não há imposição, mas
proposições que permitem discussão entre o agente, acompanhado de seu patrono, e o
acusador, gerando um resultado de mútuo consenso, a ser homologado judicialmente.
Se o agente obtém vantagem de não perder sua liberdade, o Estado recebe o sangue
que tem destinação certa. A doutrina é unânime em asseverar que a transação é uma forma de
despenalização. Diga-se o mesmo quanto à suspensão condicional do processo.
Não se trata da malfadada barganha dos negócios de natureza privada, mas de
consenso visando a preservar a liberdade e a dignidade, cooperando para que os cárceres não
fiquem mais entulhados de pessoas.
A doação de sangue, ao figurar como modalidade de prestação social alternativa,
significa que o Poder Judiciário, por meio do Estado-juiz, aplica uma sanção prevista em lei
ao autor do fato, ao homologar uma proposta de transação penal, ou impõe condições ao réu,
ao homologar propostas ministeriais em uma suspensão condicional do processo. Em ambas
as situações, inclusive numa terceira, em fase de execução penal, quando se propõe ao
condenado em infração de menor ou médio potencial ofensivo a substituição da prestação
pecuniária por prestação de outra natureza, incogitável falar-se em remuneração ou
subespécie dela.
A composição entre as partes que digladiam no processo – Ministério Público e autor
do fato ou réu –, devidamente submetida e aceita pelo Poder Judiciário, tem por objeto a não
imposição de pena privativa liberdade, a suspensão da ação penal e o não enclaustramento do
condenado. A concordância do cidadão diante de uma potencial perda da liberdade ou de
instauração da ação penal contra si não pode ser confundida com remuneração direta ou
indireta por doação de sangue. Ela nada mais é do que um singelo elo da corrente no contexto
da sanção cabível pela infração praticada.
63
O exercício da opção pela proposta mais conveniente pode ser a mais benéfica à saúde
pública. De qualquer modo, somente fazem jus aos benefícios da transação penal e da
suspensão condicional do processo, bem como da pena substitutiva da pecuniária, o cidadão
primário, sem antecedentes e, por conseguinte, portador de um passado virgem no campo
criminal, independentemente de sua condição financeira, que não tenha habitado o cárcere.
Podemos adiantar que, em mais de um ano de aplicação da sanção alternativa, é
comum pessoas admitirem portar doenças, medos, seguir credo religioso que veda a doação
de sangue, e optarem por outra proposição ou até sugerirem uma terceira ou quarta. Ademais,
sempre é bom lembrar que se trata de proposta de acordo, de consenso, na qual a negociação
está à disposição do cidadão e de seu advogado para tentar mitigar o elastério das sanções
pretendidas pelo acusador.
Nosso pleito tem por fim transformar essas ideias em uma nova política de fomento à
doação de sangue voluntária, não remunerada, altruísta e anônima, nos moldes dos predicados
em que a normatização infraconstitucional finca como requisitos obrigatórios para esse ato de
desprendimento de valor inestimável.
2.4 As políticas públicas no tema
Informa Helena Ferreira Nunes80, em 1992, o Governo do Estado de São Paulo foi
pioneiro na inserção de novo teste sorológico, haja vista o enorme desgaste que os vírus da
AIDS e da hepatite C vinham provocando na saúde pública nacional. Por meio da Portaria
CVS n. 1, de 30 de junho de 1992, tornou-se obrigatória a realização de prova sorológica
individualizada para hepatite C em todo sangue doado para fins transfusionais e industriais.
Em 1993, o Ministério da Saúde publicou a Portaria MS n. 1.376/93, tornando
obrigatória a realização de provas sorológicas para HIV, hepatite B, hepatite C, HTLV I,
HTLV II, doença de Chagas, sífilis, malárias (em regiões endêmicas) e dosagem de ALT.
Sem embargo, a tecnologia utilizada para a realização dos exames de sangue é
criticada e tida como superada, especialmente após a entrada do teste NAT, em franco uso nos
80
NUNES, Helena Ferreira, Responsabilidade civil e a transfusão de sangue, cit., p. 34-35.
64
países desenvolvidos e financeiramente mais poderosos. No Brasil, o seu ingresso se
restringiu à área privada. Apurou-se que o teste atualmente realizado não detecta a presença
do vírus, e sim a presença de anticorpos formados para combater o vírus. Por esse motivo, o
espaço de tempo entre a contaminação pelo vírus e a formação dos anticorpos para combatêlo, conhecida como janela imunológica, varia de 22 dias para o vírus da AIDS (HIV) e 72 dias
para o vírus da hepatite C (HCV). A nova tecnologia, conhecida como teste NAT (teste de
ampliação e de detecção de ácidos nucléicos), detecta a presença do vírus da AIDS (HIV) e
hepatite C (HCV) em menor espaço de tempo entre a contaminação e a formação de
anticorpos, ou seja, a janela imunológica tem seu lapso temporal reduzido.81
Em 2002, o Ministério da Saúde publicou a Portaria MS n. 262, em 5 de fevereiro,
tornando obrigatório o uso dos testes de amplificação e detecção de ácidos nucléicos (NAT),
para HIV e HCV, pelos serviços de hemoterapia do país, em todas as amostras de sangue para
fins transfusionais. Essa Portaria acabou revogada pela de Portaria MS n. 1.407, de 1º de
agosto de 2002, que também foi revogada pela de Portaria MS n. 79, de 31 de janeiro de
2003, que igualmente acabou revogada pela de Portaria MS n. 112, de 29 de janeiro de 2004.
A Portaria MS n. 112/2004, diante da realidade nacional de que os recursos do
Ministério da Saúde são parcos e que ano após ano tem o seu orçamento drasticamente
reduzido, houve por bem determinar a implantação em etapas, no âmbito da Hemorrede
Nacional, da realização dos testes de amplificação e de detecção de ácidos nucléicos (NAT),
para HIV e para HCV, nas amostras de sangue de doadores. Determina que a implantação seja
gradativa, devendo a primeira etapa se dar em número restrito de Serviços de Hemoterapia
públicos, a ser definida pelo Ministério da Saúde, respeitando-se critérios epidemiológicos,
sanitários, área física e outros, além de exigir técnicos de níveis superior e médio, capacitados
e disponíveis para serem treinados.
O teste NAT vem sendo maciçamente utilizado pelos serviços de hemoterapia da área
privada em sua rotina de provas sorológicas e, em contrapartida, em ínfimo percentual na área
pública.
81
Janela imunológica é o período em que após uma pessoa ser contaminada por um vírus ou bactéria, seu
organismo apresenta certo lapso temporal para reagir e produzir quantidade suficiente de anticorpos
necessários para serem detectados nos exames sorológicos. Nesse lapso, ainda que os testes não sejam
reagentes para a doença contraída, o sangue se contaminou e poderá ser transmitido.
65
Várias ações civis públicas foram ajuizadas pelo Brasil com o fito de obrigar os
serviços públicos e privados de saúde a adquirirem o teste NAT, visando a reduzir o risco de
doações de sangue contaminado e, simultaneamente, o período da janela imunológica. Nesse
aspecto, foi importante a atuação firme da Associação Brasileira de Bancos de Sangue
(ABBS) e do Ministério Público do Estado de Goiás. Aliás, a SBHH defende a popularização
do teste em questão, conforme agudizam os médicos Silvano Wendell, José E. Levi, Paulo T.
Almeida e Guilherme Fujita Neto.82
Note-se que com o teste NAT, os prazos são sensivelmente reduzidos. A detecção do
vírus HIV tem o prazo reduzido de 22 para 11 dias; do HCV, de 72 para 20 dias; do HVB, de
56 para 31 dias.
Infelizmente, pelos recursos insuficientes, sequer temos o NAT, mas o mercado
americano já conta com um superior, o teste NAT Procleix Ultrio (introduzido em clínicas
particulares no Brasil em 2010). O objetivo americano é o de eliminar qualquer risco aos
receptores.
Cesar Almeida Rodrigues, diretor da empresa responsável pela introdução desse
produto no mercado nacional, destaca em entrevista:
O Brasil conta com aproximadamente 100 hemocentros que testam 3,7
milhões de doações de sangue por ano. Entre eles, nove hemocentros
utilizam a tecnologia NAT, representando cerca de 8% do total de doações
no Brasil. [...] o teste Procleix Ultrio, o primeiro teste NAT 3-em-1 com
marca CE e aprovado pela Food and Drug Administration (FDA), que testa,
simultaneamente, a presença de HIV-1, hepatite B e hepatite C em amostras
de sangue doado. [...] Para o Brasil, que está ativamente concentrado no
avanço das políticas e dos programas de assistência à saúde, o Procleix
Ultrio pode ser um complemento importante dos testes sorológicos
tradicionais, que também são usados para testar o sangue doado. [...] Com o
teste NAT, os hemocentros de todo o Brasil podem ajudar a reduzir ainda
mais o risco associado aos vírus de HIV e de hepatite B e C transmitidos por
meio de sangue doado.83
82
WENDELL, Silvano et al. Introdução do NAT no Brazil: algumas considerações adicionais. Revista Brasileira
de Hematologia e Hemoterapia, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 112-113, mar./abr. 2009. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v31n2/a14v31n2.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2012.
83
PALUMBO, Luciano. Novartis traz novo teste NAT ao Brasil. Pacientes Online, São Paulo, 18 jan. 2011.
Entrevista com Cesar Almeida Rodrigues, diretor da Novartis Diagnostics do Brasil. Disponível em:
<www.pacientesonline.com.br/ultimas-noticias/item/8618-teste-pode-identificarr-tres-tipos-de-virusdiferentes-de-uma-so-vez-tecnologia-detecta-estagios-precoces-de-infeccao>. Acesso em: 10 mar. 2012.
66
O Brasil, no momento, caminha para introduzir o teste NAT integralmente no país.
Essa afirmativa decorre de campanha criada pelo Ministério da Saúde, informada em 14 de
junho de 2011, no Dia Mundial do Doador de Sangue, ocasião em que o Ministro Alexandre
Padilha anunciou a expansão do teste NAT para todos os hemocentros brasileiros. A meta da
campanha é atingir 4 milhões de voluntários até 2012, o que representa 2,1% da população
brasileira. O percentual da população envolvida atualmente com essa mobilização é de 1,9%.
A campanha 2011 também terá como meta conquistar voluntários regulares, que são aquelas
pessoas que doam duas vezes ou mais vezes no período de um ano.84
Esse percentual de 1,9% está dentro do parâmetro da OMS  de 1 a 3% da população
, no entanto o Ministério considera que é urgente e possível aumentar o número de
brasileiros doadores: se cada pessoa doasse duas vezes ao ano, não faltaria sangue para
transfusão no país.
Para avaliarmos o quadro nacional, não só em números, como também em atividades
voltadas à conscientização da doação voluntária da população, segue um breve panorama do
que ocorre nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e no Distrito Federal.
Desse retrato, tem-se uma inferência de como todos estão debruçados na causa da coleta de
sangue e hemoderivados e seus fins curativos para a causa da saúde pública.
O Governo estadual paulista informa no sítio oficial da Secretaria da Saúde sobre a
Fundação Pró-Sangue, entidade sem fins lucrativos ligada à Secretaria de Estado da Saúde e à
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que mantém com esta cooperação
acadêmica e técnico-científica.85
A Fundação Pró-Sangue coleta em média 12.000 bolsas mensalmente, volume de
sangue equivalente a aproximadamente 32% do sangue consumido na Região Metropolitana
de São Paulo, 16 % do Estado e 4% do Brasil.
84
MINISTÉRIO lança campanha para atingir 4 milhões de doadores de sangue. Disponível em:
<http://portal.saude.gov.br/portal/aplicacoes/noticias/default.cfm?pg=dspDetalheNoticia&id_area=124&CO_N
OTICIA=12762>. Acesso em: Acesso em: 12 jan. 2012.
85
FUNDAÇÃO
PRÓ-SANGUE.
HEMOCENTRO
DE
SÃO
PAULO.
Disponível
em:
<www.saude.sp.gov.br/ses/institucional/fundacoes/fundacao-pro-sangue-hemocentro-de-sao-paulo>. Acesso
em: 03 jan. 2012.
67
A Fundação Hemominas, de Belo Horizonte, tem números mais significativos, haja
vista ser o órgão que centraliza os dados de coleta estadual: a) responsável por 91% do sangue
transfundido no Estado; b) 29.000 candidatos à doação de sangue/mês; c) 23.000 coletas/mês;
d)
103.000
hemocomponentes
produzidos/mês;
e)
187.000
exames
sorológicos
realizados/mês; f) 186.000 exames processados/mês; e, g) 5.700 consultas médicas/mês.86
O Hemorio, no Estado do Rio de Janeiro, abastece com sangue e derivados cerca de
200 unidades de saúde. Recebe uma média de 350 doadores voluntários de sangue por dia.
Além disso, possui um serviço de hematologia, com mais de 10 mil pacientes ativos, que
realizam tratamentos de doenças hematológicas.87
Tem um interessante programa, denominado Jovens Salva-Vidas, que consiste em um
trabalho realizado por profissionais do Hemorio com educadores e educandos para
desenvolver a cultura da doação voluntária de sangue na nossa sociedade.
No mesmo diapasão, a Fundação Hemocentro de Brasília desenvolve um programa
destinado a estimular entre os jovens de 18 a 20 anos de idade a doação de sangue, criando
oportunidades de desenvolverem hábitos saudáveis de vida, valores humanos, altruísticos e
éticos.88
Nos finais de ano, o Ministério da Saúde enfrenta uma preocupação maior, porque o
estoque é reduzido em 30%, em função das férias escolares. Para minimizar a falta de
estoque, as campanhas de doação são frequentes em todo o país.
Essas campanhas não se restringem à esfera oficial, ou seja, extrapolam o âmbito de
supervisão do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais de Saúde. Entidades,
instituições, empresas, igrejas, times de futebol, associações de bairro, clubes de serviços,
enfim, toda espécie de grupo social se mobiliza, embrenhada no espírito de solidariedade
dessas campanhas, para acudir e auxiliar os bancos de sangue.
86
Disponível em: <www.hemominas.mg.gov.br/hemominas/menu/aInstituicao/historico.html>. Acesso em: 03
jan. 2012.
87
Disponível em: <www.hemorio.rj.gov.br>. Acesso em: 03 jan. 2012.
88
Disponível em: <www.fhb.df.gov.br>. Acesso em: 03 jan. 2012.
68
Vejamos alguns exemplos de solidariedade e altruísmo de entidades em prol da
doação: dirigentes de Rotary Club, Lions, Clube de Castores, Leo Clubes etc., ao cooptarem
associados e familiares, bem como pessoas da sociedade para esse fim; o Exército Brasileiro,
ao orientar os jovens que ingressam nos Tiros de Guerra a comparecer, pelo menos um dia por
ano, para fazerem a doação; os recém-ingressos (bichos) nas faculdades fazem trotes
solidários; os bombeiros fazem campanha entre seus integrantes por todo o país; as
faculdades/universidades fazem campanhas anuais, bem como as igrejas, católicas e
evangélicas, as torcidas organizadas dos clubes de futebol, masculino e feminino etc. É óbvio
que essas campanhas, independente de sua origem oficial ou privada, têm o mesmo fim, ainda
que estimuladas por qualquer nas inúmeras organizações não governamentais pelo país afora.
A propósito, o desabafo da Doutora Maria Angélica Soares, coordenadora do
Hemocentro do Hospital São Paulo da Universidade Federal de São Paulo, em entrevista
concedida a Dráuzio Varella:
Ninguém está livre de precisar de uma transfusão de sangue. Ninguém está
livre de sofrer um acidente, de passar por uma cirurgia ou por um
procedimento médico em que a transfusão seja absolutamente indispensável.
Como não existe sangue sintético produzido em laboratórios, quem precisa
de transfusão tem de contar com a boa vontade de doadores, uma vez que
nada substitui o sangue verdadeiro retirado das veias de outro ser humano.
Todos sabem que é importante doar sangue. Mas, quando chega a nossa vez,
sempre encontramos uma desculpa – Hoje está frio ou não estou disposto;
nesses últimos dias tenho trabalhado muito e ando cansado; será que esse
sangue não me vai fazer falta...  e vamos adiando a doação que poderia
salvar a vida de uma pessoa. Sempre é bom frisar que o sangue doado não
faz a menor falta para o doador. Consequentemente, nada justifica que as
pessoas deixem de doá-lo. O processo é simples, rápido e seguro.89
Interessante notar que o problema é mundial e não somente brasileiro. Na página
oficial do sítio da Cruz Vermelha Americana é feito o clamor:
A cada minuto de cada dia, alguém necessita de sangue. Sangue que somente
pode vir de um doador voluntário, uma pessoa como você que pode optar
pela doação. Inexiste substituição para a sua doação. Quando você faz a
doação de sangue, se junta a um grupo seleto. Atualmente somente três em
cada cem americanos doam sangue.90
89
SOARES, Maria Angélica. Doação de sangue: entrevista concedida a Dráuzio Varella. Disponível em:
<www.drauziovarella.com.br>. Acesso em: 03 jan. 2012.
90
AMERICAN NATIONAL RED CROSS. Give blood. Disponível em: <www.redcross.org/donate/give>.
Acesso em: 03 jan. 2012.
69
Outros dados significativos são colhidos nas estatísticas do sítio oficial da Cruz
Vermelha americana:
Da necessidade: a cada dois segundos, alguém nos EUA necessita de sangue;
mais de 38.000 doadores de sangue são necessários a cada dia; mais de um
milhão de novas pessoas são diagnosticadas com câncer cada ano, muitas
delas necessitam sangue, às vezes diariamente, durante o tratamento de
quimioterapia; a vítima de um simples acidente de carro pode exigir até cem
litros de sangue. Dos doadores: a razão principal porque os doadores dizem
doar sangue é que eles “querem ajudar o próximo”; dois motivos comuns
citados pelas pessoas que não doam sangue são: “nunca pensei sobre isso” e
“eu não gosto de agulhas”; uma doação pode ajudar a salvar as vidas de até
três pessoas; se você começar a doar sangue aos 17 anos e doar a cada 56
dias até alcançar 76, você terá doado quantidade provável para salvar mais
de 1.000 vidas; a Cruz Vermelha Americana aceita doação de sangue
somente de doadores voluntários.91
Nos Estados Unidos da América, três a cada cem americanos doam sangue. Na
Escócia, esse número é de cinco.
Dentro dessa premissa de que todos os segmentos podem dar o seu percentual de
cooperação com a causa da doação de sangue e hemoderivados, o Poder Judiciário, do mesmo
modo, tem condições de sobra para cooperar com a saúde pública, por meio de uma ação útil,
solidária, despretensiosa e cooperativa. Útil porque, ainda que sejam poucos os doadores,
dissemina-se o interesse e o altruísmo em prol da ação. Solidária porque, além de colaborar
com os bancos de sangue de cada localidade, o juiz formará opiniões favoráveis à ação.
Despretensiosa porque ninguém precisa mostrar resultados. Cooperativa porque, se há ações
voltadas para a caridade na maior diversidade de áreas, como a doação de cestas básicas, de
roupas, cobertores, de livros e de remédios, a doação de sangue, respeitadas opiniões
divergentes, supera qualquer delas, por contar com o diferencial que tem o poder real de
salvar vidas.
Com um pouco de noção do que é doar sangue, percebe-se que o juiz tem um
ferramental impressionante para cooperar com o quadro atual, ao estimular cidadãos
envolvidos com a Justiça criminal.
91
AMERICAN NATIONAL RED CROSS. Blood Facts and Statistics. Disponível
<www.redcrossblood.org/learn-about-blood/blood-facts-and-statistics>. Acesso em: 03 jan. 2012.
em:
70
Se juízes e membros do Ministério Público, espalhados pelos mais distantes rincões,
unirem seus esforços para inserir a doação de sangue como pena alternativa à prisão, nas
hipóteses fincadas na Lei n. 9.099/1995 – transação penal e suspensão condicional do
processo –, por certo milhares de vidas serão poupadas, sem se olvidar do juiz das execuções
penais nas infrações médias e leves.
Em outros termos, sob a ótica do sistema acusatório, o juiz, representando o Poder
Judiciário, o Ministério Público ou o querelante oferecendo sua proposta, representando o jus
puniendi, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil, representando e ao lado
do autor do fato, forma-se o tripé de solidariedade em prol de pessoas que necessitam de
sangue para sobreviver.
Uma vez que o ideal de todos esteja focado na probabilidade efetiva de se salvar vidas,
basta agir.
2.5 O doador de sangue
A doação de sangue vem disciplinada na RDC 57/2010, em seus artigos 21 e
seguintes.
Para o ato, o candidato deve apresentar documento de identificação, com fotografia,
emitido por órgão oficial, para registro no serviço de hemoterapia.
O candidato à doação de sangue deve ser informado sobre as condições básicas e
desconfortos associados à doação, devendo ser avisado sobre a realização de testes
laboratoriais de triagem para doenças infecciosas transmitidas pelo sangue e sobre fatores que
podem aumentar os riscos aos receptores, bem como sobre a importância de suas respostas na
triagem clínica.
A cada doação, o candidato deve ser avaliado quanto aos seus antecedentes e ao seu
estado de saúde atual, por meio de entrevista individual, realizada por profissional de saúde de
nível superior, sob supervisão médica, em sala que garanta a privacidade e o sigilo das
informações, para determinar se a coleta pode ser realizada sem causar-lhe prejuízo e para que
71
a transfusão dos hemocomponentes obtidos a partir dessa doação não venha a causar
problemas aos receptores.
O serviço de hemoterapia deve cumprir os parâmetros para seleção de doadores
estabelecidos pelo Ministério da Saúde, em legislação vigente, visando tanto à sua proteção
quanto à do receptor, baseados em alguns requisitos mínimos, dentre outros, inclusive pela
recente regulamentação trazida pela Portaria MS n. 1.353, de 13 de junho de 2011:
- idade entre 16 e 67 anos;
- peso mínimo de 50 quilos;
- estar descansado;
- não ter ingerido bebida alcoólica nas últimas quatro horas;
- não ter recebido transfusão de sangue nos últimos 12 meses;
- não estar com febre, gripe ou resfriado.
- se mulher, não estar grávida, amamentando ou ter tido parto normal ou aborto há
menos de três meses. Em caso de cesárea, seis meses;
- após aplicar piercing, aguardar três dias para doar;
- após fazer uma tatuagem, aguardar 12 meses;
- após vacina da gripe ou rubéola, aguardar 30 dias;
- após vacina da gripe H1N1, aguardar 48 horas;
- não ter antecedentes de hepatite após 10 anos de idade;
- não ter antecedentes de doença de Chagas;
- acupuntura: sendo agulhas do próprio paciente, não há impedimento;
- sobre medicamentos: o esclarecimento deve ser feito pessoalmente ou por telefone
antes de doar;
- se esteve em áreas de alta incidência para febre amarela, malária, doar após seis
meses;
- hipertensos: podem doar dependendo da situação avaliada em entrevista clínica;
- diabéticos que não façam uso de insulina;
- tratamento dentário: tempo variado entre três dias e um mês, dependendo do caso;
- alimentação: não se deve doar em jejum prolongado.
Dessa relação de situações pessoais impedientes, forma-se uma orientação quanto à
proibição à doação, que pode ser temporária ou definitiva.
72
São considerados impedimentos temporários: as doenças infecciosas como a gripe,
sarampo, rubéola etc.; parto ou cesariana; amamentação; abortamento; ingestão de bebida
alcoólica; tatuagem; piercing; não utilização de preservativos no ato sexual com parceiros
ocasionais ou desconhecidos; a visita, estadia ou residência em regiões onde há alta
prevalência de doenças infectocontagiosas como a malária; vacinas de vírus vivos e atenuados
ou mortos; pessoas que tenham feito sexo em troca de dinheiro ou de drogas; vítimas de
estupro; homens que tiveram relações homossexuais; homens ou mulheres que tenham tido
relação sexual com pessoa com exame reagente para antiHIV, portador de hepatite B ou C ou
outra infecção de transmissão sexual ou sanguínea; pessoas presas por mais de 24 horas em
instituição carcerária ou policial; pessoas com parceiros sexuais hemodialisados; pacientes
com história de transfusão sanguínea; labirintite etc.
Os impedimentos definitivos são: evidência clínica ou laboratorial de contaminação de
doenças infecciosas transmissíveis pelo sangue, após os 10 anos de idade; AIDS (síndrome da
imunodeficiência adquirida); doenças associadas ao vírus HTLV I e HTLV II; doença de
Chagas; malária; uso de drogas ilícitas injetáveis; ter recebido hormônio de crescimento ou
outros medicamentos de origem hipofisária (entre 1980 e 1996); ter recebido transplante de
córnea ou implante de material biológico à base de duramáter; ter histórico familiar de
encefalopatia espongiforme humana etc.
Os homens podem doar sangue até quatro vezes ao ano, devendo ser respeitado o
intervalo de 60 dias entre uma doação total e outra. As mulheres podem doar até três vezes
por ano, respeitando o interregno de 90 dias entre cada doação.
O candidato à doação só será considerado apto após avaliação de todos os requisitos
estabelecidos para seleção de doadores e assinatura do termo de consentimento livre e
esclarecido, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde.
Importa consignar, de outro lado, que, nos termos da Portaria MS n. 1.353, no
acolhimento aos candidatos à doação, deve ser evitada toda e qualquer manifestação de
preconceito e discriminação por orientação sexual, identidade de gênero, hábitos de vida,
atividade profissional, condição socioeconômica, raça, cor e etnia. A orientação sexual
(heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) não deve ser usada como critério
para seleção de doadores de sangue, pois a opção sexual não constitui risco, por si só.
73
Essa mesma Portaria, em seu Anexo I, define novos patamares etários para a doação
de sangue. Assim, o doador de sangue ou componentes deve ter idade entre 18 anos
completos e 67 anos, 11 meses e 29 dias, podendo ser aceitos candidatos à doação de sangue
com idade de 16 e 17 anos, desde que com o consentimento formal do responsável legal para
cada doação. Esse consentimento deverá incluir a autorização para o cumprimento de todas as
exigências e responsabilidades previstas aos demais doadores.
No caso de inaptidão, o doador deve ser informado sobre a causa e, quando necessário,
encaminhado ao serviço de referência, de acordo com listagem preestabelecida, mantendo os
registros na ficha de triagem.
Os registros do serviço de hemoterapia devem assegurar a relação entre a doação e os
produtos ligados a ela, para que seja garantida a rastreabilidade.
A Fundação Pró-Sangue responde sobre a segurança da transfusão de sangue:
A prática de selecionar criteriosamente os doadores, bem como as rígidas
normas aplicadas para testar, transportar, estocar e transfundir o sangue
doado fizeram dele um produto muito mais seguro do que já foi
anteriormente. Apenas pessoas saudáveis e que não sejam de risco para
adquirir doenças infecciosas transmissíveis pelo sangue, como hepatites B e
C, HIV, sífilis e Chagas, podem doar sangue. Antes de toda doação, o
candidato é submetido a um teste de anemia, à aferição de seus batimentos
cardíacos, pressão arterial e temperatura e respondem a um questionário
onde é lhe perguntado detalhadamente questões sobre a sua saúde e sobre
seu comportamento. Somente após essas etapas é que o candidato estará
aprovado para a doação de sangue. Todo o sangue doado será rigorosamente
testado para as doenças passíveis de serem transmitidas pelo sangue.92
2.6 A coleta
A coleta de sangue total e de hemocomponentes vem disciplinada na seção III da
Resolução RDC 57/2010. A coleta do sangue e de seus componentes é feita por dois métodos:
coleta direta de sangue total e por aférese.
92
FUNDAÇÃO PRÓ-SANGUE. HEMOCENTRO DE SÃO PAULO. Qual é a segurança do sangue? Disponível
em: <www.prosangue.sp.gov.br/sangue-seguro>. Acesso em: 03 jan. 2012.
74
Coleta direta (comum): o volume total de sangue a ser coletado deve ser determinado
e registrado na triagem, baseado no peso do doador e na relação entre o volume de sangue
total e de anticoagulante da bolsa plástica.
A coleta de sangue deve ser realizada em condições assépticas, mediante uma só
punção venosa, em bolsas plásticas com sistema fechado, realizada por profissionais de saúde
capacitados e sob a supervisão de médico ou enfermeiro.
O horário do início e término deve ser registrado, não devendo superar quinze
minutos. Durante o horário de coleta, o serviço de hemoterapia deve contar com a presença de
profissional médico, para orientar as condutas em caso de eventos adversos à doação.
O nome do doador não deve constar da etiqueta das bolsas de sangue e componentes,
com exceção daquelas destinadas à transfusão autóloga.
Após a coleta de sangue, o serviço de hemoterapia deve orientar o doador quanto aos
cuidados pós-doação, fornecendo-lhe lanche para reposição hidroeletrolítica, devendo o
doador permanecer por um período em observação no serviço de hemoterapia, antes de ser
liberado.
Quais os cuidados a serem tomados após a doação de sangue? Evitar esforços físicos
exagerados por pelo menos 12 horas; aumentar a ingestão de líquidos; não fumar por cerca de
2 horas; evitar bebidas alcóolicas por 12 horas; manter o curativo no local da punção por pelo
menos de 4 horas; e não dirigir veículos de grande porte, trabalhar em andaimes, praticar
paraquedismo ou mergulho.
Coleta por aférese: nos termos do disposto no artigo 4º, incisos I e II, da RDC
57/2010, aférese é um processo que consiste na obtenção de determinado componente
sanguíneo de doador único, utilizando equipamento específico (máquina de aférese), com
retorno dos hemocomponentes remanescentes à corrente sanguínea; aférese terapêutica é a
remoção de determinado hemocomponente com finalidade terapêutica, com retorno dos
hemocomponentes remanescentes à corrente sanguínea do paciente.
75
Normalmente o que retorna são células vermelhas, parte do sangue que leva mais
tempo para reposição pelo próprio organismo.
A coleta de hemocomponentes por aférese deve cumprir as mesmas exigências para a
coleta de sangue total.
Os doadores de aférese devem ser submetidos aos mesmos testes de qualificação do
doador de sangue total, além dos testes específicos para cada tipo de hemocomponente
coletado. A quantidade de sangue a ser retirada é de aproximadamente 450 ml, sendo que
desse montante, a coleta não poderá exceder 8 ml/kg para mulheres e 9 ml/kg para homens.
Informa Helena Ferreira Nunes que, a despeito da maior parte das doações ocorrerem
sem qualquer contratempo, estima-se que um por cento dos doadores apresentam alguma
intercorrência. Essas reações são classificadas em três categorias: leve, moderada e severa.
Leves: nervosismo, ansiedade, queixa de calor, palidez e sudorese,
frequência cardíaca diminuída e pulso filiforme, hiperventilação, hipotensão,
náusea e ou vômito sem perda de consciência.
Moderadas: agravamento dos sistemas descritos nas reações leves, somadas
à perda de consciência.
Graves: são os mesmos sinais, acrescido de convulsões e ou problemas
cardíacos e ou respiratórios.93
No tocante às demais Seções do Capítulo II, referente ao Regulamento Sanitário, mais
especificamente: IV, que versa sobre processamento de sangue e componentes; V, que aborda
o controle de qualidade dos hemocomponentes; VI, que cuida dos exames de qualificação no
sangue do doador; VII, que trata do controle de qualidade de reagentes e testes laboratoriais;
VIII, que preconiza sobre a liberação e rotulagem das bolsas de sangue e hemocomponente;
IX, atinente ao armazenamento e conservação de sangue e hemocomponentes; X, relativa à
distribuição de hemocomponentes; XI, sobre a terapia transfusional; e XII, acerca dos eventos
adversos à transfusão, julgamos desnecessário maior aprofundamento, uma vez que não
guardam sintonia com os fins deste trabalho, que somente busca a positivação condizente com
a doação de sangue como pena restritiva de direitos, bem como porque são temas específicos
da hematologia e da hemoterapia.
93
NUNES, Helena Ferreira, Responsabilidade civil e a transfusão de sangue, cit., p. 54.
76
2.7 Por que o sangue salva vidas?
É corriqueiro ouvir dizer, nos bancos de sangue, que a doação pode salvar até três
vidas. Sempre que se tratar de doação de sangue total, essa é a resposta. É o que se colhe nos
diversos sítios ao redor do mundo.
Por exemplo, nos Estados Unidos da América, o convite feito pela American Red
Cross, por intermédio de estudantes que abraçaram a causa, é muito claro: “A sensação de ser
capaz de salvar três vidas quando faço a doação, faz-me sentir uma pessoa melhor”94. Ou
ainda, na área reservada às estatísticas: “Uma doação pode salvar a vida de até três pessoas”. 95
No Canadá idem: “As doações de sangue total são separadas em três componentes:
hemácias, plasma e plaquetas. Cada componente pode ser dado a um distinto paciente. É por
isso que uma doação tem o potencial de salvar três vidas”96
O convite feito pela Fundação Pró-Sangue, em seu sítio oficial, é deveras significativo:
A ciência avançou muito e fez várias descobertas. Mas ainda não foi
encontrado um substituto para o sangue humano. Por isso, sempre que
precisa de uma transfusão de sangue, a pessoa só pode contar com a
solidariedade de outras pessoas. Doar sangue é simples, rápido e seguro.
Mas, para quem o recebe, esse gesto não é nada simples: vale a vida. Seja
doador voluntário. Faz bem também para você. Porque a satisfação de salvar
vidas é a maior recompensa.97
Se a doação sangue não for total, mais de três vidas podem ser salvas. Cinthya Duran,
biomédica do Serviço de Hemoterapia do Hospital Beneficência Portuguesa, em entrevista,
explica que em uma única doação é possível salvar até quatro vidas, uma vez que o material é
separado em diferentes hemocomponentes: concentrado de hemácias (glóbulos vermelhos),
94
No original: “The thought of being able to help save three people’s lives every time I go makes me feel like a
better person”. Disponível em: <www.redcrossblood.org/donating-blood>. Acesso em: 03 jan. 2012 (Nossa
tradução).
95
No original: “One donation can help save the lives of up to three people”. Disponível em:
<www.redcrossblood.org/learn-about-blood/blood-facts-and-statistics>. Acesso em: 03 jan. 2012 (Nossa
tradução).
96
No original: “Whole blood donations are separated into three components: red cells, plasma and platelets.
Each component may be given to a different patient. That’s why one donation has the potential to save up to
three
lives!”.
Disponível
em:
<www.blood.ca/
centreapps/internet/uw_v502_mainengine.nsf/
page/Are_you_bloody_smart?OpenDocument>. Acesso em: 03 jan. 2012 (Nossa tradução).
97
FUNDAÇÃO PRÓ-SANGUE. HEMOCENTRO DE SÃO PAULO. Por que doar? Disponível em:
<http://www.prosangue.sp.gov.br/doacao-de-sangue/por-que-doar.htm>. Acesso em: 03 jan. 2012.
77
concentrado de plaquetas, plasma e crioprecipitado98 que podem ser utilizados em diversas
situações clínicas. “De qualquer modo, é necessária a conscientização de que a doação de
sangue precisa ser feita não apenas em épocas de campanhas para o reabastecimento de baixo
estoque, mas durante todo o ano. O sangue doado tem sempre utilidade e nunca sobra, pelo
contrário, faz falta”, completa.99
Muito embora, neste capítulo, a pesquisa tenha sido superficial, o objetivo foi o de
mostrar como nasceu a hemoterapia no Brasil e seu atual estágio, justamente para retratar que
trabalhos solidários das mais diversas entidades, estranhas ao meio médico, em prol da saúde
pública, e, agora, do Poder Judiciário, hão de ser considerados bem-vindos.
98
Segundo a Anvisa, nos termos do artigo 4º, XVIII, da RDC 57/2010, crioprecipitado é a fração de plasma
insolúvel em frio, obtida a partir do plasma fresco congelado, contendo glicoproteínas de alto peso molecular,
principalmente fator VIII, fator de Von Willebrand, fator XIII e fibrinogênio. E também: “É o
hemocomponente rico em fatores lábeis de coagulação tais como fator VIII e fibrinogênio. Utilizado por
pacientes com deficiência de fatores de coagulação ou por aumento de consumo destes fatores. Deriva do
plasma fresco congelado, após descongelamento lento e centrifugação. É indicado, por exemplo, para o
tratamento de doença cardíaca, deficiência congênita de proteína C, hemofilia A/B.” (LEITE, Érida Maria
Diniz (Org.), Dicionário digital de termos médicos 2007, cit.).
99
MADEIRA, Ana Maria. Uma única doação de sangue pode salvar até quatro vidas. Disponível em:
<www.minhavida.com.br/saude/materias/11475-uma-unica-doacao-de-sangue-pode-salvar-ate-quatro-vidas>.
Acesso em: 03 jan. 2012.
78
79
3 A LEGISLAÇÃO CRIMINAL VIGENTE: DOGMATISMO PARA
FACEAR O DESIDERATO
Neste capítulo serão estudados os institutos de direito penal e da Lei n. 9.099/95 em
sua essência, demonstrando que de sua compatibilização e interlocução é perfeitamente
interpretável que a doação de sangue está prevista no ordenamento nacional.
3.1 O Código Penal e as penas restritivas de direitos. A Lei n. 9.714/98
Diante da falência absoluta do sistema prisional brasileiro e, quiçá, mundial, a busca
de meios que possam minorar o contato entre criminosos habituais, perigosos, reincidentes,
daqueles que praticam uma infração de menor ou médio potencial ofensivo, desde a década de
80, fez com que o legislador amenizasse o rigor da exclusividade da pena privativa de
liberdade.
Com esse pensamento, promoveu a primeira mudança significativa no panorama
penal, ao instituir as penas restritivas de direitos, na alteração da Parte Geral do Código Penal
ocorrida em 1984, quando se chegava aos estertores da ditadura.
Aos críticos da reforma penal, Francisco de Assis Toledo, um dos coordenadores da
comissão de reforma do diploma penal, assim se pronunciou:
É certo que essa reforma penal tem encontrado certa resistência em algumas
esferas dominadas por um pensamento de cunho autoritário e repressivo, o
que tem dificultado a sua implementação, principalmente na área da
execução penal. [...] A esses críticos, saudosistas de instituições
reconhecidamente falidas (ou, quem sabe, de coisa pior), cabe observar que a
decantada “realidade brasileira”, em matéria de prisões e de execução da
pena, tem sido de uma notória, proclamada e brutal monstruosidade, pelo
que a reforma penal só teria mesmo significado na medida em que se
propusesse a reconstruir algo de novo nesse terreno.100
A Lei n. 7.209/84 inseriu o sistema de penas alternativas no Código Penal,
denominando-as penas restritivas de direitos, que são as seguintes: prestação de serviços à
comunidade; interdições temporárias de direito e limitação de fim de semana.
100
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva,
1991. p. 78.
80
Já nos informava Paulo José da Costa Junior que, quando visitou um presídio modelar
na Holanda, em 1960, no qual havia um funcionário para cada três detentos, distribuídos entre
várias categorias e visando à ressocialização dos reclusos  sociólogos, psiquiatras,
psicanalistas, psicólogos, educadores e assistentes sociais, clínicos gerais e endocrinologistas,
penitenciaristas e outros , ao indagar o diretor daquele estabelecimento acerca do índice de
reincidentes, obteve a resposta: pouco mais de 30%.101
Entrou em pânico, porquanto se aquele estabelecimento modelar apresentava taxa tão
elevada, o que dizer de nossos presídios, onde o ócio é forçado pela ausência de trabalho e se
adiciona a promiscuidade e a superpopulação carcerárias, sem dizer do homossexualismo e a
circulação, quase livre, de maconha?
Passou a defender, como corolário lógico de sua experiência profissional e de
doutrinador, que a pena de prisão há de ser utilizada “em casos extremos, de suma gravidade,
como ultima ratio”. E elogiou o legislador por estabelecer substitutivos penais para as penas
privativas de liberdade, com ênfase às de curta duração.102
Heleno Cláudio Fragoso, no início da década de 80, pouco antes da Reforma Penal de
1984, já abordava o tema com a mesma perspicácia, convicto de que o cárcere nada resolve e
que se mostrava urgente o legislador estabelecer medidas diversas à prisão. Seguro de que o
cárcere pouco ou nada oferece e proporciona de benéfico ao preso, anotava:
Como instituição total, a prisão necessariamente deforma a personalidade,
ajustando-a à subcultura prisional (prisonização). A reunião coercitiva de
pessoas do mesmo sexo num ambiente fechado, autoritário, opressivo e
violento, corrompe e avilta. Os internos são submetidos às leis da massa, ou
seja, ao código dos presos, onde impera a violência e a dominação de uns
sobre outros. O homossexualismo, por vezes brutal, é inevitável. A delação é
punida com a morte. Conclui-se, assim, que o problema da prisão é a própria
prisão, que apresenta um custo social demasiadamente elevado. Aos defeitos
comuns a todas as prisões, somam-se os que são comuns nas nossas:
ociosidade, superpopulação e promiscuidade.103
101
COSTA JÚNIOR, Paulo José da; COSTA, Fernando José. Código Penal comentado. 10. ed. rev., ampl. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 230.
102
Ibidem, p. 230.
103
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Alternativas à pena privativa de liberdade. Revista de Direito Penal, n. 29, p. 6,
jan./jun. 1980. Disponível em: <http://www.fragoso.com.br/ptbr/arq_pdf/direito_penal/conteudos/RDP29.pdf>.
Acesso em: 10 março 2012.
81
Prossegue, referindo que “a consequência natural da falência da prisão é o
entendimento de que ela deve ser usada o menos possível, como último recurso, no caso de
delinquentes perigosos, para os quais não haja outra solução. Formula-se assim o princípio da
ultima ratio”.104
Crítico acerbo da ineficiência do sistema prisional, enuncia todas as novidades dos
países estrangeiros e apresenta uma série de sugestões para a reforma do sistema prisional.
Além de sugerir um Código de Execução Penal, pugnava por outras medidas
despenalizadoras, dentre elas: a) a descriminalização do aborto; b) o incremento da pena de
multa (especialmente nas contravenções penais e crimes leves); c) o fim do princípio da
obrigatoriedade para o Ministério Público com a introdução do princípio da oportunidade no
exercício da ação penal; e, d) o fim da criminalidade de bagatela. Quanto ao que denomina
“criminoso residual” ou hard core offender, aqueles perigosos, multirreincidentes, em face de
todo o aparato ter sido em vão, sugere a construção de prisões menores e mais humanas, que
assegurassem o trabalho, além de respeitar os direitos do preso.105
3.1.1 A internalização
Partindo de inúmeras premissas, especialmente a de que a reincidência poderia ser
reduzida, caso fosse evitado o contato de condenados por crimes leves com os criminosos de
grosso calibre, as penas alternativas foram introduzidas em nosso ordenamento.
Foi tímida a novidade, ante o momento histórico do país, que passava por uma
ditadura, porquanto a mudança se limitou a infrações cuja pena não alcançasse o patamar de
um ano e as culposas. As penas alternativas eram de cinco modalidades: prestação de serviços
à comunidade ou a entidades públicas; proibição de exercício de cargo, função ou atividade
pública; proibição de exercício de profissão, atividade ou ofício; suspensão de autorização ou
habilitação para dirigir veículo; limitação de fim de semana; e multa.
O perfil de admissão de novas penas não privativas de liberdade acentuou-se logo
após, com a Constituição Federal, em 1988. Em seu artigo 5º, XLVI, a Carta Magna garantiu
104
105
FRAGOSO, Heleno Cláudio, Alternativas à pena privativa de liberdade, cit., p. 7.
Ibidem, p. 14-15.
82
fundamentalmente que a individualização da pena fosse disciplinada por lei ordinária e
estabeleceu como sanções, entre outras, a privação ou restrição da liberdade, a perda de bens,
a multa, a prestação social alternativa e a suspensão ou interdição de direitos.
Grifamos a expressão entre outras para demonstrar que o rol de sanções é meramente
exemplificativo, nada obstando que o legislador ordinário estabeleça outras medidas
coercitivas, obviamente desde que observados os preceitos fundamentais previstos na Carta
Magna, especialmente a dignidade humana.
Na evolução do pensamento doutrinário de mitigação do alcance da pena privativa de
liberdade, as penas restritivas de direitos receberam dez anos depois da promulgação da Carta
Magna sua mais importante inovação, por meio da Lei n. 9.714/98, que alterou o Código
Penal. O artigo 43 do Código Penal, que trata das penas restritivas de direitos, foi reescrito,
passando a prever, além daquelas mencionadas acima, as penas de prestação pecuniária, perda
de bens e valores, proibição de frequentar determinados lugares e a prestação alternativa
inominada.
Não obstante o âmbito de incidência das penas restritivas tenha sido amplificado, os
fundamentos permaneceram inalterados, isto é, as características de autonomia e
substitutividade restaram intactas. São autônomas e substituem as penas privativas de
liberdade de crime cuja pena máxima não seja superior a quatro anos e desde que não tenha
sido praticado com violência ou grave ameaça, ou se for culposo (inc. I); o réu não for
reincidente em crime doloso (inc. II) e a culpabilidade, os antecedentes, bem como os motivos
e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente (inc. III). Autônomas
porque não são acessórias, independem da imposição de sanção detentiva (reclusão, detenção
ou prisão simples), na visão de Damásio Evangelista de Jesus106; e substitutivas porque,
individualizada a pena privativa de liberdade, o magistrado poderá substituí-la pela restritiva.
O parágrafo 2º do aludido artigo 43 prevê a substituição por multa ou uma pena
restritiva de direitos na condenação igual ou inferior a um ano e substituição por uma pena
restritiva de direitos e multa, ou por duas penas restritivas de direitos, quando a pena privativa
de liberdade for superior a um ano.
106
JESUS, Damásio Evangelista de, Código Penal anotado, cit., p. 178.
83
E o parágrafo 3º impõe uma restrição: caso o condenado seja reincidente, o juiz poderá
substituir desde que a condenação anterior não se tenha operado em virtude da prática do
mesmo crime, bem como a medida seja socialmente recomendável.
No I Congresso Brasileiro de Execução de Penas e Medidas Alternativas, realizado em
Curitiba, no ano de 2005, a promotora de justiça paranaense Mônica Louise de Azevedo
citando Claus Roxin e diversos outros penalistas de renome, aponta caminhos para a
superação da pena corporal fora da clausura do sistema penitenciário, com ênfase às medidas
alternativas em infrações leves e de médio potencial ofensivo. Ponderou que o festejado
penalista alemão:
[...] observando os avanços e retrocessos dos últimos séculos da história das
ideias penais, arrisca um prognóstico para o direito penal do século XXI, que
acredita continuará existindo como fator de controle social secularizado: a
gradativa substituição da pena privativa de liberdade por outras penas ou
consequências jurídicas ao ilícito; a supressão definitiva das penas corporais,
por se constituírem em atentados contra a dignidade humana; o retrocesso da
utilização da pena de prisão e o surgimento de novas formas de controle
eletrônico e de medidas terapêuticas sociais, além da maior utilização do
trabalho comunitário e da reparação civil do dano. Justifica esta previsão
pela inexistência de vagas e recursos financeiros para executar a pena de
prisão de forma humanitária e pela impossibilidade de punir a maioria dos
delitos com ela.107
3.2 Os juizados especiais no Brasil
Ada Pellegrini Grinover, com a entrada em vigor da Constituição da República de
1988, discorreu sobre o descompasso entre a doutrina e a prática judiciária e, preocupada com
o descrédito na magistratura, alertou:
Ao extraordinário progresso científico da disciplina não correspondeu o
aperfeiçoamento do aparelho judiciário e da administração da Justiça. A
sobrecarga dos tribunais, a morosidade dos processos, seu custo, a
burocratização da Justiça, certa complicação procedimental; a mentalidade
do juiz, que deixa de fazer uso dos poderes que o Código lhe atribui; a falta
de informação e de orientação para os detentores dos interesses em conflito;
107
AZEVEDO, Mônica Louise. Em busca da legalidade das alternativas penais. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE EXECUÇÃO DE PENAS E MEDIDAS ALTERNATIVAS, 1., 2005, Curitiba, PR. Anais...
Curitiba,
PR:
Ministério
Público
do
Estado
do
Paraná,
2005.
Disponível
em:
<http://www.criminal.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=516>. Acesso em 03 jan.
2012.
84
as deficiências do patrocínio gratuito, tudo leva à insuperável obstrução das
vias de acesso à Justiça, e ao distanciamento cada vez maior entre o
Judiciário e seus usuários.108
A jurista enfatizou a premência em se cunhar regras processuais eficazes na aplicação
do direito ao caso concreto, frente à crise da Justiça brasileira, tanto no campo jurisdicional,
como no extrajudicial, para que se mostrasse mais facilitado o acesso à justiça. Baseada na
obra “I procedimenti non giudiziali di conciliazione come istituzioni alternative”, de Denti,
que aborda as terminologias deformalização e delegalização, sendo esta a utilização do juízo
de equidade em substituição ao de direito, vale-se unicamente do primeiro, ou seja, da
deformalização, sob duas acepções: a deformalização do processo e a deformalização das
controvérsias, justificando seus argumentos na tentativa de buscar um processo penal mais
efetivo.
Segundo a doutrinadora, com a deformalização instrumental busca-se um “processo
mais simples, rápido, econômico, de acesso fácil e direto, apto a solucionar com eficiência
tipos particulares de conflitos de interesses”. E, com a deformalização das controvérsias
almeja-se, “de acordo com sua natureza, equivalentes jurisdicionais, como vias alternativas de
processo, capazes de evitá-lo, para solucioná-las, mediante instrumentos institucionalizados
de mediação”. E conclui: “A deformalização do processo insere-se, portanto, no filão
jurisdicional,
enquanto
a
deformalização
das
controvérsias
utiliza-se
de
meios
extrajudiciais.”109
As ideias fluem no sentido de um processo de prevalente conciliação, dentro da
máxima sempre é melhor um acordo que uma boa demanda.
Na mesma direção, Antonio Scarance Fernandes obtempera: “Expressa-se a
deformalização do processo e das controvérsias por duas vertentes de superação da crise da
justiça: a via jurisdicional e a via dos meios alternativos.”110
108
GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1990. p. 177.
109
Ibidem, p. 179.
110
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007. p. 216.
85
E resumiu os motes que passaram a ser defendidos na busca de uma justiça rápida,
eficaz e desburocratizante:
a) é necessário estimular o uso de vias alternativas para a solução de litígios,
fora do âmbito judiciário ou dentro deste, ficando a resolução clássica, mais
morosa, para as causas de maior complexidade ou relevância; b) dentro do
âmbito judiciário, deve-se preferir a via alternativa da conciliação e que, de
preferência, evite a instauração formal do processo; c) essa alternativa
conciliatória deve ser procurada até mesmo em áreas tradicionalmente
refratárias, como na área penal em países orientados pelo princípio da
obrigatoriedade; d) para a conciliação, exige-se do juiz um novo papel, pois
fica ele incumbido de estimular o acordo entre as partes na busca de uma
solução rápida e justa; e) os procedimentos devem ser marcados pela
celeridade e pela oralidade para tornar a justiça menos burocratizada; f)
devem ser chamados a participar dos debates conciliatórios não só as partes
formais da ação, mas outros interessados no litígio, como a vítima no
processo criminal; g) deve-se estimular a colaboração dos leigos na
conciliação.111
Por sua vez, Ada Pellegrini Grinover relembra:
[...] “a deformalização de certos processos com o fito de adaptá-los à
realidade sócio-jurídica englobada em determinadas controvérsias” não é
nova no Brasil, porquanto na Justiça do Trabalho, instituída pela
Constituição de 1934, e que passou a integrar o Poder Judiciário na
Constituição de 1946, “o processo do trabalho veio romper com os esquemas
tradicionais do processo civil, rigorosamente, dispositivo, abrindo caminho
para a socialização do processo, por força da atribuição de poderes de
direção e controle mais amplos ao juiz, da adoção de uma concreta igualdade
das partes (desde o acesso à Justiça até a paridade de armas dos litigantes,
implementada pelo juiz) e do esforço em busca da conciliação, num exemplo
marcante de transformação do processo rumo a um grau mais elevado de
deformalização, democratização e publicização”.112
Não se olvide que o Código de Processo Civil de 1973 abreviou procedimentos,
possibilitando o julgamento antecipado da lide e, malgrado sua rigidez, permitiu a
conciliação, ainda que timidamente. Nas causas sobre direitos patrimoniais de natureza
privada e para os processos da área do direito de família, a tentativa de conciliação era
obrigatória.
Nos dias atuais, a tentativa de conciliação, prevista no artigo 331 do Código de
Processo Civil, é uma meta a ser perseguida pelo magistrado, em apoio à ideia de otimização
111
112
FERNANDES, Antonio Scarance, Processo penal constitucional, cit., p. 217.
GRINOVER, Ada Pellegrini, Novas tendências do direito processual, cit., p. 180.
86
dos serviços do Poder Judiciário. Foi elevada à categoria de dever do magistrado. É dever do
juiz por força do disposto no artigo 125, IV, do diploma processual civil, a tentativa de
conciliação em qualquer fase do processo113. Mas, retomando a história processual brasileira,
foi com a instituição dos juizados especiais de pequenas causas pela Lei n. 7.244, de 8 de
novembro de 1984, que foi dado o passo decisivo para a incorporação de princípios que
englobassem o espírito conciliatório e propiciassem o acesso à justiça dos mais
desafortunados no país.
Para a juíza brasiliense Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto:
As despesas com custas e honorários de advogado, o tempo perdido nas
diligências preliminares ao ajuizamento da demanda, o temor de uma longa
tramitação da causa, constituíam fatores que desestimulavam os
prejudicados, mesmo pessoas de alguns recursos, de pleitear em juízo aquilo
que entendiam ser de seu direito. Temerosos de enfrentar os gastos, delongas
e dificuldades da Justiça muitos preferiam desistir, acomodavam-se e
renunciavam; ou então recorriam ao auxílio da autoridade policial ou
municipal – quando logravam alcançá-lo – ou ao desforço pessoal, ou ao
empenho de lideranças locais, numa forma de composição de conflitos alheia
à imparcialidade e segurança da tutela do Poder Judiciário.114
Informa-nos, ainda, que o nosso sistema de juizados de pequenas causas foi baseado
na experiência nova-iorquina das Small Claims Courts, consoante pesquisa do advogado
jurista João Geraldo Piquet Carneiro na Corte de Nova Iorque, em setembro de 1980. Voltado
à redução sistemática da burocratização, o causídico deparou-se com aspectos relevantes que
poderiam ser adotados entre nós, tais como “a proibição ao acesso de pessoas jurídicas como
demandantes, a não obrigatoriedade de representação por advogados, o caráter irrevogável da
arbitragem, além da informalidade e da oralidade como princípios do rito processual”.115
Cabe registrar ainda que o modelo nova-iorquino era considerado inovador mesmo
para os padrões norte-americanos, implantado em meio a um amplo debate sobre técnicas da
mediação e da arbitragem usadas nos Small Claims Courts.
113
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 11. ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 554.
114
PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. Abordagem histórica e jurídica dos juizados de pequenas
causas aos atuais juizados especiais cíveis e criminais brasileiros. p. 3. Disponível em:
<http://www.tjdft.jus.br/trib/bibli/docBibli/ideias/AborHistRicaJurDica.pdf>. Acesso em: 07 out. 2011.
115
Ibidem, p. 3.
87
Fruto de anteprojeto capitaneado por Kazuo Watanabe, a Lei de Pequenas Causas
ofereceu um conjunto de novidades, das quais não somente princípios se extraem, mas
critérios que permitiam atender aos postulados constitucionais vigentes e que passariam a
figurar na Constituição Cidadã de 1988, com ênfase na simplicidade, oralidade, economia
processual, celeridade e conciliação.
A fim de ser estimulada a conciliação, a lei previu a figura de conciliadores e árbitros
leigos como auxiliares do juízo. Por certo, a solução de um número maior de controvérsias
viabilizou-se, permitindo maior e melhor acesso à justiça.
Os juizados se tornaram uma realidade sem precedentes em nosso universo jurídico,
ao fornecer aos mais humildes meios de obter socorro rápido, bastando que batessem às portas
do Judiciário para reclamar suas pretensões. A pacificação social almejada passou a se
aproximar de todas as camadas da população, ante o fácil acesso e a reduzida burocracia.
Não é por outro motivo que Marco Antonio Marques da Silva argumentou:
A discussão acerca de modos alternativos de solução de conflitos, como um
ponto importante na efetivação do acesso à justiça, intensificou-se nos
últimos anos no Brasil, e tem sido acompanhada de algumas iniciativas
legais, como é o caso das Leis ns. 9.099, de 26 de setembro de 1995 – Lei
dos Juizados Especiais e 9.307, de 23 de setembro de 1996 – Lei de
Arbitragem.116
A Lei n. 7.244/84 foi revogada expressamente pela Lei n. 9.099/95 (art. 97).
3.3 Os juizados especiais criminais: introdução à Lei n. 9099/95
A convicção dos grandes juristas, inclusive italianos, como Pisapia, Bettiol e Vassali,
citados por Weber Martins Batista e Luiz Fux, no tocante à ineficiência reeducadora da pena e
necessidade de sua substituição por penas pecuniárias ou de trabalho obrigatório ou prestação
116
SILVA, Marco Antonio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2001. p. 100.
88
de utilidade pública em regime de liberdade ou semiliberdade, foi acolhida pelo legislador
nacional.117
Anunciara Paulo José da Costa Junior que “mesmo as moderníssimas prisões
construídas na Europa – como na Suécia, na Suíça – e nos EUA, apesar da preocupação de
pôr em prática as ideias de reforma apontadas pela doutrina, fracassaram completamente”.118
Heleno Claúdio Fragoso, como referido acima, pesquisou as modificações realizadas
em outros países, na incorporação de medidas alternativas. Lastreado em documento das
Nações Unidas, menciona algumas experiências que vinham se revelando frutíferas nesse
campo e relata as seguintes variáveis positivas:
Na Rumânia, por exemplo, lei de 1977 permitiu substituir penas de até 5
anos de prisão por penas de trabalho sem privação da liberdade. Em
consequência, a proporção das sentenças impondo a pena de prisão caiu de
66% em 1976, para 29,4% em 1979. Na Áustria, a percentagem das
sentenças de prisão diminuiu de 40% em 1971 para 23% em 1977. No Japão,
em 1977, a proporção das sentenças que impunham internação institucional
contra as que não o impunham era de 5,9% para as primeiras e 94,1% para as
outras. Na Inglaterra, relatório do Advisory Council on Penal Reform, de
1977, conduziu à tendência de reduzir a duração das condenações,
substituindo as penas longas por penas médias e custas, pois verificou-se,
pelas pesquisas realizadas, que essa orientação não teria resultados negativos
sobre o efeito intimidativo do encarceramento. Orientação semelhante foi
adotada pela Suécia e pela Finlândia. Na Alemanha Ocidental a pena mais
frequentemente imposta é a de multa. Na Inglaterra, desde o Criminal Justice
Act, de 1967, todas as infrações penais podem ser punidas com a pena de
multa, salvo os casos de cominação expressa, raros no sistema da common
law.119
Três anos antes da reforma penal, pela Lei n. 9.714/98, no tópico que mais nos
interessa – penas restritivas de direitos –, o Brasil teve a satisfação de receber em seu
ordenamento a Lei n. 9.099, de 26 de novembro de 1995, instituindo os juizados especiais
criminais, em atendimento ao disposto na Carta da República.
A Constituição Federal, por sua vez, preconiza em seu artigo 98:
117
BATISTA, Weber Martins; FUX, Luiz. Juizados especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do
processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 282.
118
COSTA JUNIOR, Paulo José da; COSTA, Fernando José, Código Penal comentado, cit., p. 281.
119
FRAGOSO, Heleno Cláudio, Alternativas à pena privativa de liberdade, cit., p. 8.
89
Artigo 98 - A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados
criarão:
I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos,
competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis
de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo,
mediante procedimento oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses
previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes
de primeiro grau;
Fernando da Costa Tourinho Neto e Joel Dias Figueira Junior esclarecem que existia
séria dúvida sobre a possibilidade de se criar juizados na esfera federal, porquanto inexistiria
previsão constitucional. Segundo os doutrinadores:
[...] editou-se a Emenda Constitucional 22/1999, acrescentando-se ao art. 98,
o parágrafo único – atual 1º, renumerado pela EC 45/2004 –, que passou a
definir que a Lei Federal haveria de dispor sobre a criação dos Juizados
Especiais no âmbito da Justiça Federal. Finalmente, em 10 de julho de 2001,
vem a lume a Lei 10.259 para tratar da matéria específica.120
No início do século XXI, foram instituídos os juizados especiais federais, cíveis e
criminais pela Lei n. n. 10.259, de 12 de julho de 2001.
Ambas as leis trataram das infrações de menor potencial ofensivo. Contudo, esta
última ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo, provocando polêmica e
debates intermináveis. Tudo porque previu em seu artigo 2º, parágrafo único, que
“consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a
que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”.
A Lei n. 9099/95, por sua vez, em seu artigo 61, definia como infrações de menor
potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não
superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.
A novidade trazida pelo ordenamento que disciplinava a área federal era mais benéfica
e contava com o apoio da doutrina, especialmente porque, ampliando o leque de delitos, seu
julgamento seria mais célere e a prestação jurisdicional mais efetiva.
120
TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Juizados especiais federais cíveis e
criminais: comentários à Lei 10.259, de 12.07.2001. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011. p. 67.
90
A despeito da divergência que se instaurou na doutrina e na jurisprudência, cinco anos
mais tarde sobreveio a unificação dos conceitos. A Lei n. 11.313, de 28 de junho de 2006, deu
nova redação ao artigo 61 da Lei n. 9.099/95, pondo fim à polêmica. O novo dispositivo, com
aplicabilidade à esfera federal, recebeu a seguinte redação: “Consideram-se infrações penais
de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a
que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”.
Dissipadas as controvérsias pela redação em apreço, os institutos despenalizadores de
composição civil de danos e transação penal são aplicáveis a todas as contravenções e crimes
punidos com pena privativa de liberdade de até 2 anos, cumulada ou não com multa,
independentemente do rito processual previsto.
Existem outras legislações que possibilitam a aplicabilidade dos institutos
despenalizadores da Lei n. 9.099/95 de forma autônoma.
O Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503, de 23.09.1997) sofreu modificações
relevantes pela Lei n. 11.705, de 20 de junho de 2008. Dentre as novidades que guardam
pertinência com o estudo das infrações de menor potencial ofensivo está a nova redação do
artigo 291, parágrafo 1º, prevendo os institutos de composição civil, transação penal e
suspensão condicional do processo (respectivamente, arts. 74, 76 e 88), em regra, aos autores
de crimes de lesão corporal culposa. A benesse, todavia, fica vedada se o agente estiver sob a
influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (inc.
I); participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de
exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela
autoridade competente (inc. II); e transitando em velocidade superior à máxima permitida
para a via em 50 km/h (inc. III). Nessas três situações, o crime passa a ser de ação pública
incondicionada, devendo a investigação ser feita por meio de inquérito policial (§ 2º).
O Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 01.10.2003), da mesma forma, permite, em seu
artigo 94, que todos os crimes com pena máxima igual ou inferior a quatro anos submetam-se
ao procedimento estatuído na Lei dos Juizados Especiais Criminais. Objetivou com isso
valorizar e propiciar maior proteção à dignidade do idoso, mediante a celeridade dada ao
processo e julgamento do fato. Não alterou o conceito de infração de menor potencial
ofensivo, somente operou uma ampliação da competência dos juizados especiais criminais,
que passaram a processar e julgar todos os crimes praticados contra idosos, à exceção de um.
91
Avaliando os tipos penais catalogados no Estatuto do Idoso, chega-se a três situações
distintas:
a) se o crime praticado tiver pena máxima igual ou inferior a dois anos (arts. 96 e §§,
97, 99, caput, 100, 101, 103, 104 e 109), todos os institutos previstos na Lei n.
9.099/95  composição civil de danos, transação penal e suspensão condicional do
processo  devem ser objeto de análise para eventual aplicação em prol do autor do
fato;
b) se o crime praticado tiver pena máxima abstratamente cominada superior a dois e
até quatro anos (arts. 98, 99, § 1º, 102, 105, 106 e 108), o procedimento da Lei n.
9.099 tem aplicabilidade, contudo sem os institutos concernentes à composição civil
de danos e transação penal. Ressalva-se a suspensão condicional do processo quando
cabível, no curso do procedimento sumaríssimo;
c) a terceira hipótese diz respeito aos crimes cuja pena máxima privativa de liberdade
supera quatro anos (arts. 99, § 2º, e 107). A esses, por excluídos do disposto no artigo
94, é aplicável o rito ordinário previsto no artigo 394, parágrafo 1º, I, do Código de
Processo Penal, sendo competente o juiz comum para processo e julgamento.
Em síntese, o Estatuto, por inovar no campo processual, ampliou a competência em
razão da matéria dos juizados especiais criminais, trazendo, por conseguinte, a possibilidade
de processar e julgar os crimes contra idosos não considerados de menor potencial ofensivo
que tenham pena máxima superior a dois anos e igual ou inferior a quatro anos.
Importante consignar que a Lei n. 9.099 não incide na hipótese de violência doméstica.
Diz o artigo 41 da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, chamada de Lei Maria da Penha, que
“aos
crimes
praticados
com
violência
doméstica
e
familiar
contra
a
mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de
1995”. As discussões doutrinárias e jurisprudenciais proliferaram, especialmente no que tange
à não aplicação dos institutos despenalizadores da transação penal e da suspensão condicional
do processo.
Veja-se, por exemplo, que no congresso realizado em São Paulo, em parceria da
Corregedoria Geral de Justiça e a Presidência do Tribunal de Justiça, das treze conclusões
extraídas, a de número 11 pugnava pela possibilidade da suspensão condicional do processo,
92
no âmbito da Lei Maria da Penha. Inclusive foi gerado o Comunicado CG n. 117/2008,
publicado em 6, 7 e 8 de fevereiro daquele ano.
No entanto, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de habeas corpus,
declarou a constitucionalidade do artigo 41 da Lei Maria da Penha e a inaplicabilidade dos
institutos despenalizadores contidos na Lei dos Juizados Especiais Criminais.121
O assunto, mais uma vez, foi submetido à Corte Suprema nacional e, definindo todos
os paradigmas referentes à Lei Maria da Penha, no julgamento de ação direta de
inconstitucionalidade, por maioria, dez votos a favor e um contra, interpretando o alcance do
artigo 41, declarou-o constitucional, vedando a aplicação dos institutos despenalizadores da
Lei dos Juizados Especiais Criminais, além de afastar a necessidade de representação no
crime de lesão corporal dolosa culposa ou leve. Ou seja, a previsão do artigo 88 da Lei dos
Juizados, que determina a representação nos crimes mencionados, igualmente foi afastada,
exatamente para dar maior segurança ao gênero feminino.122
121
“VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI N. 11.340/06 – ALCANCE. O preceito do artigo 41 da
Lei n. 11.340/06 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia
contravenção penal, como é a relativa a vias de fato. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI N.
11.340/06 – AFASTAMENTO DA LEI N. 9.099/95 – CONSTITUCIONALIDADE. Ante a opção políticonormativa prevista no artigo 98, inciso I, e a proteção versada no artigo 226, parágrafo 8º, ambos da
Constituição Federal, surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei n. 9.099/95 –
mediante o artigo 41 da Lei n. 11.340/06 – no processo-crime a revelar violência contra a mulher.” (STF  HC
n. 106212/MS, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 24.03.2011, DJe, de 13.06.2011).
122
“No mérito, evidenciou-se que os dados estatísticos no tocante à violência doméstica seriam alarmantes, visto
que, na maioria dos casos em que perpetrada lesão corporal de natureza leve, a mulher acabaria por não
representar ou por afastar a representação anteriormente formalizada. A respeito, o Min. Ricardo Lewandowski
advertiu que o fato ocorreria, estatisticamente, por vício de vontade da parte dela. Apontou-se que o agente, por
sua vez, passaria a reiterar seu comportamento ou a agir de forma mais agressiva. Afirmou-se que, sob o ponto
de vista feminino, a ameaça e as agressões físicas surgiriam, na maioria dos casos, em ambiente doméstico.
Seriam eventos decorrentes de dinâmicas privadas, o que aprofundaria o problema, já que acirraria a situação
de invisibilidade social. Registrou-se a necessidade de intervenção estatal acerca do problema, baseada na
dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), na igualdade (CF, art. 5º, I) e na vedação a qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5º, XLI). Reputou-se que a legislação
ordinária protetiva estaria em sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência
contra a Mulher e com a Convenção de Belém do Pará. Sob o ângulo constitucional, ressaltou-se o dever do
Estado de assegurar a assistência à família e de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas
relações. Não seria razoável ou proporcional, assim, deixar a atuação estatal a critério da vítima. A proteção à
mulher esvaziar-se-ia, portanto, no que admitido que, verificada a agressão com lesão corporal leve, pudesse
ela, depois de acionada a autoridade policial, recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com
essa finalidade, fazendo-o antes de recebida a denúncia. Dessumiu-se que deixar a mulher  autora da
representação  decidir sobre o início da persecução penal significaria desconsiderar a assimetria de poder
decorrente de relações histórico-culturais, bem como outros fatores, tudo a contribuir para a diminuição de sua
proteção e a prorrogar o quadro de violência, discriminação e ofensa à dignidade humana. Implicaria relevar os
graves impactos emocionais impostos à vítima, impedindo-a de romper com o estado de submissão. Entendeuse não ser aplicável aos crimes glosados pela lei discutida o que disposto na Lei 9.099/95, de maneira que, em
se tratando de lesões corporais, mesmo que de natureza leve ou culposa, praticadas contra a mulher em âmbito
doméstico, a ação penal cabível seria pública incondicionada. Acentuou-se, entretanto, permanecer a
93
A decisão do Supremo Tribunal Federal deve ser analisada como uma tentativa de
mudança de paradigmas, pois conquanto a mulher tenha uma tendência de perdoar e retirar a
representação, inviabilizando seu agressor de ser processado, basta que a notícia-crime chegue
à autoridade policial para que seja instaurado o inquérito policial e se realize a investigação
pertinente para formação da justa causa imprescindível para o oferecimento da denúncia
acusatória.
No atinente aos crimes ambientais enquadrados na órbita dos juizados especiais
criminais, a transação penal, obrigatoriamente, deverá conter prévia composição relativa à
reparação do dano ambiental (art. 27 da Lei n. 9.605, de 12.02.1998), salvo comprovada
impossibilidade de fazê-lo.
3.3.1 Os princípios regentes
A Lei n. 9.099/95 denominou-os critérios, mas são princípios porque orientam o
processo perante o juizado especial criminal. Segundo o artigo 62 do diploma em tela, “o
processo perante o juizado especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade,
economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos
sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade”. De todo modo, ainda
que não previsto, como a simplificação é uma tônica nos procedimentos que visam a
solucionar causas de menor complexidade, cíveis ou criminais, a simplicidade deve ser inserta
como um dos princípios norteadores.123
Oralidade: a oralidade se caracteriza pela oferta de declarações verbais perante o juiz,
não escritas. A oralidade traz como consequência, por decorrência lógica procedimental, a
concentração, a imediatidade e a identidade física do juiz. A concentração significa que a
instrução consubstanciada na coleta da prova oral e o julgamento, com a prolação da sentença,
serão realizados em uma única audiência, salvo exceções pontuais. A imediatidade representa
necessidade de representação para crimes dispostos em leis diversas da 9.099/95, como o de ameaça e os
cometidos contra a dignidade sexual. Consignou-se que o Tribunal, ao julgar o HC 106212/MS (DJe de
13.6.2011), declarara, em processo subjetivo, a constitucionalidade do art. 41 da Lei 11.340/2006, no que
afastaria a aplicação da Lei dos Juizados Especiais relativamente aos crimes cometidos com violência
doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista. ADI 4424/DF, rel. Min. Marco
Aurélio, 9.2.2012.” (Informativo 654 do Supremo Tribunal Federal).
123
“Artigo 2º - O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia
processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.”
94
o contato direto do juiz com as partes e as provas, colhendo os elementos que fundarão seu
decisório. A identidade física foi adotada recentemente pelo legislador, na reforma do Código
de Processo Penal pela Lei n. 11.719, de 23 de junho de 2008, que estabeleceu no parágrafo 2º
do artigo 399 que o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença.
A audiência preliminar é fundamentalmente oral. Tenta-se a conciliação civil
oralmente e, uma vez alcançada, será reduzida a escrito a composição acordada (art. 74). Não
realizado o acordo, a vítima poderá representar verbalmente (art. 75). Em caso de
impossibilidade de oferta de proposta de transação penal, ou não sendo esta aceita, a denúncia
será ofertada oralmente (art. 77, caput, e § 3º). A resposta é oral (art. 81, caput). Recebida a
denúncia, a colheita da prova, os debates e a sentença são orais, lavrando-se breve resumo do
que se produziu em audiência única. A sentença, dispensado o relatório, será proferida em
seguida (art. 81, caput, e §§).
Prolatada a sentença, havendo ponto obscuro, contradição, omissão ou dúvida, a parte
poderá interpor embargos de declaração. E, segundo prevê o artigo 83, parágrafo 1º, podem
ser formalizados oralmente ou por escrito, no prazo de cinco dias, contados da ciência da
decisão.
Informalidade: corolário do princípio da instrumentalidade das formas, prevê o artigo
65, parágrafo 1º, que “não se pronunciará qualquer nulidade sem que tenha havido prejuízo”.
A balizar a informalidade, Ada Pellegrini Grinover e outros lecionam que:
[...] só serão feitos registros escritos de atos considerados essenciais (art. 65,
§ 3º), dispensa-se o relatório da sentença (art. 81, § 2º), não se exige o exame
de corpo de delito, para o oferecimento da denúncia, admitindo-se a prova da
materialidade por boletim médico ou prova equivalente (art. 77, § 1º).124
Ricardo Cunha Chimenti e Marisa Ferreira dos Santos acrescentam outros exemplos
de que os atos processuais serão considerados válidos sempre que atingirem o fim para os
quais foram realizados. São eles:
Não é necessária a elaboração do inquérito policial, bastando que a
autoridade policial elabore um termo circunstancial da ocorrência e
imediatamente encaminha a peça ao juizado [...]. A prática de atos
124
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 5.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 83.
95
processuais em outras comarcas pode ser solicitada por qualquer meio hábil
de comunicação (inclusive fax e o telefone), dispensando-se assim a
formalização do instrumento denominado carta precatória [...]. A citação
(obrigatoriamente pessoal, nos termos do art. 66, da Lei n. 9.099/95), sempre
que possível, será feita no próprio juizado. Quando necessário é feita por
mandado. Não há citação por edital no JECrim, razão por que, não sendo o
acusado encontrado para citação, as peças são encaminhadas para o Juízo
comum.125
Economia processual e celeridade: consoante Weber Martins Batista e Luiz Fux,
mostra-se simples inferir que esses princípios guardam conexão entre si para harmonizar o
procedimento porque:
A primeira implica obter o máximo resultado com o mínimo de atividade. O
processo constitui um mal para o ofendido, o ofensor e o próprio Estado. Por
isso mesmo, eliminar ou simplificar todos os atos que podem ser eliminados
ou simplificados constitui um bem de valor inestimável.126
Diz-se célere porque nenhum ato será adiado e, caso necessário, o juiz determina a
condução coercitiva de quem deva comparecer. Célere porque a prestação jurisdicional será
breve, sem prejuízo à segurança jurídica, mormente depois da Emenda Constitucional n.
45/2004, em que se tornou preceito constitucional a razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação (art. 5º, inc. LXXVIII, da CF).
Objetivos do diploma legal: eles advêm de previsão expressa da lei e traçam como
desideratos maiores a reparação de danos e a aplicação de pena não privativa de liberdade
(art. 62, in fine). Praticamente repete o contido no artigo 2º da Lei, ressalvando que aquela
(reparação de danos) será obtida na composição civil (conciliação) e esta na transação penal.
3.4 A legitimação da doação de cestas básicas como pena restritiva de
direitos
As tentativas malogradas de se inserir a doação de sangue 127 como pena restritiva na
modalidade de prestação de serviços à comunidade não intimidaram juízes e membros do
125
SANTOS, Marisa Ferreira dos; CHIMENTI, Ricardo Cunha. Juizados especiais cíveis e criminais federais e
estaduais. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 268. (Sinopses Jurídicas, v. 15, t. 2).
126
BATISTA, Weber Martins; FUX, Luiz, Juizados especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do
processo penal, cit., p. 286.
127
Ver item 1.3.
96
Ministério Público a persistirem na proposta e homologação de doação de cestas básicas a
instituições de caridade, malgrado a ausência de amparo legal.
Correspondente à reprimenda de prestação social alternativa, admitida pela
Constituição Federal, artigo 5º, XLVI, “d”, a pena de prestação de serviços à comunidade
consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado.
A doação de cestas básicas é medida de amplo espectro social e de inquestionável
valia e utilidade, e, conquanto seu frequente emprego estivesse fora de sintonia com o direito
positivado, pois era catalogado como forma de prestação de serviços à comunidade, o que
ofendia o espírito dessa pena restritiva, os operadores do direito por todo o país persistiam em
sua aplicação.
Por qual motivo a doação de cestas básicas não podia ser inserida no âmbito da
prestação de serviços à comunidade? É que a prestação de serviços vem disciplinada no
Código Penal (art. 46) e na Lei de Execuções Penais (art. 149). É modalidade que tem como
fim precípuo a prestação de tarefas gratuitas, de cunho laboral, a uma instituição pública ou à
comunidade.
Prestar serviços à comunidade, na letra do artigo 46, parágrafo 1º, “consiste na
atribuição de tarefas gratuitas ao condenado”, prestadas “em entidades assistenciais, hospitais,
escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou
estatais” (§ 2º), e que “serão atribuídas conforme as aptidões do condenado, devendo ser
cumpridas à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não
prejudicar a jornada normal de trabalho” (§ 3º).
Igualmente, o artigo 149 da Lei de Execuções Penais estatui, com clareza, que:
Caberá ao juiz da execução:
I - designar a entidade ou programa comunitário ou estatal, devidamente
credenciado ou convencionado, junto ao qual o condenado deverá trabalhar
gratuitamente, de acordo com as suas aptidões;
II - determinar a intimação do condenado, cientificando-o da entidade, dias e
horário em que deverá cumprir a pena;
III - alterar a forma de execução, a fim de ajustá-la às modificações
ocorridas na jornada de trabalho.
97
§ 1º - O trabalho terá a duração de oito horas semanais e será realizado aos
sábados, domingos e feriados, ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a
jornada normal de trabalho, nos horários estabelecidos pelo Juiz.
§ 2º - A execução terá início a partir da data do primeiro comparecimento.
Significa dizer que prestar serviços é empregar desforço físico sobre alguma coisa.
Trata-se de jornada de trabalho, manifestada pelo labor individual, de modo que o
oferecimento de bens ou produtos não guarda pertinência com o lavor, comumente
desempenhado na faina diária.
A prestação de serviços, inclusive, encontra previsão no Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. E mantendo o mesmo desiderato de não
encarceramento, em seu artigo 117, prevê o seguinte:
Art. 117 - A prestação de serviços comunitários consiste na realização de
tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses,
junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos
congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais.
Parágrafo único - As tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do
adolescente, devendo ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas
semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não
prejudicara frequência à escola ou jornada normal de trabalho.
O Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990,
igualmente admite a pena substitutiva, ao disciplinar no artigo 78 que “além das penas
privativas de liberdade e de multa, podem ser impostas, cumulativa ou alternadamente,
observado o disposto nos artigos 44 a 47, do Código Penal: [...] III - a prestação de serviços à
comunidade”.
Em síntese, como já discutido128, o Supremo Tribunal Federal decidira pela
inadequação técnico-jurídica da doação de sangue no contexto das penas restritivas de
direitos, como prestação de serviços à comunidade. Idêntica interpretação haveria de ser dada
à doação de cestas básicas.
128
Ver item 1.3.
98
3.4.1 A prestação social alternativa como prestação de outra natureza
Urgia, por conseguinte, inserir a doação de cestas básicas em um contexto de
legalidade e, justamente para dar legitimidade à ação de integrantes do órgão ministerial e do
Poder Judiciário, veio à luz a Lei n. 9.714, de 25 de novembro de 1998, que promoveu
alterações substanciais no capítulo das penas restritivas de direitos, inserto no Código Penal, e
viabilizou a criação das prestações de outra natureza.
Conhecida como Lei das Penas Alternativas, tinha como um de seus propósitos
solucionar a controvérsia. Para tanto, manteve as medidas da década de 80 e inseriu
novidades, dando nova roupagem ao tema, fundamentalmente pela permissão expressa da
adoção de sanções alternativas sem previsão no ordenamento.
Na Mensagem n. 1.447 que acompanhou a publicação do diploma, para justificar o
veto da pena restritiva de recolhimento domiciliar, por contrariar o interesse público, a
Presidência da República enunciou a desvalia da pena privativa de liberdade e enalteceu a
nova filosofia que incorporava ao Código Penal, com os seguintes fundamentos:
Constatada, cientificamente, a inadequação das penas privativas de liberdade
para atender aos fins a que se destinam, o Direito Penal evoluiu no sentido
de que novos métodos de repressão ao crime deveriam ser instituídos,
mediante a previsão de sanções de natureza alternativa, que ao juiz seriam
facultadas impor ao condenado, em caráter substitutivo às penas de detenção
e de reclusão, desde que atendidos alguns requisitos relacionados com a
pessoa do delinquente e com o ilícito por ele perpetrado.
Perfilhando essas diretrizes, o projeto de lei em questão, ao propor a
instituição de novas penas alternativas ao elenco já existente no
ordenamento, não se descurou em preservar o caráter substitutivo que lhes é
conatural, assim como estabeleceu requisitos objetivos e subjetivos,
concernentes ao delito praticado e à pessoa do criminoso, a serem
necessariamente considerados pelo juiz, segundo seu prudente arbítrio, para
a imposição de pena restritiva de direitos, em substituição à pena privativa
de liberdade objeto da condenação criminal.
A mais expressiva novidade da reforma penal residiu na criação da sanção
denominada prestação de outra natureza ou inominada, espécie do gênero prestação social
alternativa e substitutiva da prestação pecuniária, outra inovação ao rol das penas restritivas
de direitos.
99
No artigo 43, inciso I, foi instituída a pena restritiva de direitos de prestação
pecuniária, regulamentada no artigo 45, parágrafo 1º, nos seguintes termos:
A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus
dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de
importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem
superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será
deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil,
se coincidentes os beneficiários.
Pois bem, a determinação do beneficiário da prestação pecuniária deve seguir a ordem
de prioridade estabelecida pelo artigo 45, parágrafo 1º, do Código Penal, que contempla em
primeiro lugar a vítima e sua família, não podendo o magistrado sentenciante determinar o
pagamento a entidade pública ou privada, quando houver aqueles.
Segundo César Roberto Bitencourt, in verbis:
Preferencialmente, o montante da condenação, nesta sanção, destina-se à
vítima ou a seus dependentes. Só excepcionalmente, em duas hipóteses, o
resultado dessa condenação em prestação pecuniária poderá ter outro
destinatário: (a) se não houver dano a reparar ou (b) não houver vítima
imediata ou seus dependentes. Nesses casos, e somente nesses casos, o
montante da condenação destinar-se-á a entidade pública ou privada com
destinação social.129
A excepcionalidade dessa possível destinação secundária prende-se ao caráter
indenizatório que essa medida repressiva traz na sua finalidade última. Por isso, primeiro
deverá reparar o dano ou prejuízo causado à vítima ou seus dependentes, e somente em sua
ausência, cogitar-se-á na destinação do produto resultante da condenação destinar-se a
entidade pública ou privada com destinação social.130
129
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1, p.
518-519.
130
Nesse sentido: “PENAS ALTERNATIVAS  PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA  RECOLHIMENTO DA
MULTA EM FAVOR DA ENTIDADE PÚBLICA OU PRIVADA COM DESTINAÇÃO SOCIAL QUANDO
HÁ PESSOA FÍSICA COMO VÍTIMA  IMPOSSIBILIDADE. A prestação pecuniária aplicada nos termos
da Lei n. 9.714/98 deve, em princípio, ser concedida em favor da vítima e seus dependentes, mesmo que esta
não tenha sofrido prejuízos, posto que sofreu um dano moral, de sorte que apenas nos crimes em que o sujeito
passivo for a coletividade a pena poderá ser aplicada em favor de entidade pública ou privada com destinação
social.” (TACRIM-SP  Ap. 1.224.215/9, 4ª C., rel. Juiz Marco Nahum, DOESP, de 01.02.2001).
100
Repise-se: pela sua natureza indenizatória, a prestação pecuniária destina-se a reparar
os danos de cunho material e moral sofridos pela vítima. Tanto ela como seus dependentes
podem ser os destinatários finais do montante em dinheiro proveniente da pena alternativa.
Secundariamente, poderão figurar como beneficiárias entidades públicas ou privadas, com
destinação social, ocasião em que a prestação passa a ter cunho beneficente.131
3.4.1.1 Prestação de outra natureza ou inominada
Qual a alternativa legal se o condenado não possuir recursos financeiros para honrar a
prestação pecuniária? O legislador criou uma saída discutível, do ponto de vista da legalidade.
Previu que a prestação pecuniária pode transmudar-se em prestação de outra natureza. Para
que não ocorram prisões, engenhosamente programou um subterfúgio no parágrafo 2º,
segundo o qual o condenado se obriga a uma obrigação de dar. Permite a substituição da
prestação pecuniária por outra que deve ter o mesmo perfil finalístico. O novel texto dispôs
que “no caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a prestação
pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza”. Para Paulo José da Costa Junior e
Fernando José da Costa, “caso o condenado não disponha de recursos para o pagamento da
prestação pecuniária não haverá conversão para pena privativa de liberdade. Ad impossibilia
nemo tenetur (ninguém é obrigado a fazer o impossível)”.132
Criou-se uma pena restritiva de natureza subsidiária, batizada de “inominada” ou de
“outra natureza”.
Foi a opção legal concedida ao condenado sem lastro financeiro para facear a pena
restritiva imposta. Com isso, restaram legitimadas aquelas prestações alternativas que não
encontravam assentamento na codificação penal. A Exposição de Motivos da Lei n. 9.714
fornece dois exemplos de prestação inominada: a doação de cestas básicas e a prestação de
mão de obra.
131
GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, Antonio, Direito penal: parte geral, cit.,
p. 562.
132
COSTA JUNIOR, Paulo José da; COSTA, Fernando José, Código Penal comentado, cit., p. 236.
101
Naquele momento histórico, a doação de cestas básicas era a coqueluche das varas
criminais, por todo o país. E uma vez regulamentada, sobreveio a legitimação. Formou-se,
então, um adensamento doutrinário de que a doação de cestas básicas tem a natureza jurídica
de prestação inominada, não mais um viés da prestação de serviços à comunidade. Não
obstante, a doutrina pondera que a pena de prestação alternativa inominada, tal qual posta no
diploma penal, ofende princípios basilares de direito penal, relevando-se inconstitucional,
especialmente por sua indeterminabilidade.
Renato Marcão, respaldado em Cezar Roberto Bitencourt e Damásio Evangelista de
Jesus anota que:
A pena de prestação de outra natureza ou inominada padece de flagrante
inconstitucionalidade, já que equivale a uma pena indeterminada,
contrariando o princípio da reserva legal albergado no art. 1º do Código
Penal, de prestígio constitucional, conforme decorre do disposto no art. 5º,
XXXIX, da Constituição Federal.133
E mais adiante:
Conforme asseverou Cezar Roberto Bitencourt, “em termos de sanções
criminais são inadmissíveis, pelo princípio da legalidade, expressões vagas,
equívocas ou ambíguas. E a nova redação desse dispositivo, segundo
Damásio de Jesus, comina sanção de conteúdo vago, impreciso e incerto”.134
Cezar Roberto Bitencourt, mesmo após criticar a pena inominada por ser
indeterminada e, por conseguinte, violadora do princípio da reserva legal, arremata afirmando
que essa pena seria, na realidade, “uma espécie substituta da substituta da pena de prisão!”. E,
como a substituição da prestação pecuniária se dá por uma prestação de outra natureza e
dependente da aceitação do beneficiário, certamente é dotada de caráter consensual. E quem
seria o favorecido da pena convertida? Defende, com razão, que é “o beneficiário do resultado
da aplicação dessa pena pecuniária, que, como afirmamos, tem caráter indenizatório”.135
133
MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 267.
Ibidem, p. 267.
135
BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de direito penal: parte geral, cit., p. 518-519.
134
102
No mesmo sentido, René Ariel Dotti pondera que: “O Juiz não pode aplicar pena que
não esteja expressamente prevista na lei. Trata-se de reafirmar o princípio da anterioridade da
lei quanto à definição do crime e o estabelecimento da sanção.”136
De se citar, outrossim, a crítica acerba lançada por Miguel Reale Junior, para quem a
modalidade instituída é reprovável, porquanto não tem o condão de restaurar o mal praticado
na esfera social, não alcançando o fim reparatório da pena. Em seu sentir:
Trata-se de mais uma das questões controvertidas da Lei n. 9.714/98, pois
realiza-se uma compensação em prejuízo da sociedade e do Estado, titular do
poder-dever de punir, visto que se pode substituir uma pena privativa de
liberdade a ser deduzida de eventual reparação civil, anulando-se assim a
sanção penal imposta. A punição se desfaz e passa a ser parte de reparação
do dano no plano civil. O condenado leva vantagem, a vítima tem reparado o
dano, mas a pena privativa de liberdade decompõe-se, pois privatiza-se a
resposta penal. Por um lado, há o dado positivo de se satisfazer a vítima,
contanto que não se sancione com cesta básica, mas de outro, retira-se o
caráter de reprovação, referido à culpabilidade, perdendo-se também o cunho
educativo da sanção penal.137
Em contraponto a tais entendimentos, encontramos respeitáveis opiniões, com as quais
nos irmanamos.
Damásio Evangelista de Jesus, ao discorrer sobre o indigitado polêmico parágrafo e
discutir as críticas sobre sua redação, defende que prestação de qualquer natureza, como está
na lei, significa, de fato, pecuniária ou não. E contradiz a maioria da doutrina, ao asseverar
que o dispositivo se encontra em consonância com as Regras de Tóquio, uma vez que estas
recomendam ao juiz a aplicação se necessário e conveniente de qualquer medida que não
envolva detenção pessoal. E acrescenta:
Medida liberal corresponde, entretanto, ao ideal de justiça, pela qual ao juiz,
nas infrações de menor gravidade lesiva cometidas por acusados não
perigosos, atribuir-se-ia o poder de aplicar qualquer pena, respeitados os
princípios de segurança social e da dignidade, desde que adequada ao fato e
às condições pessoais do delinquente.138
136
DOTTI, René Ariel. Penas restritivas de direitos: críticas e comentários às penas alternativas: Lei 9.714, de
25.11.1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 100.
137
REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.
59.
138
JESUS, Damásio Evangelista de, Código Penal anotado, cit., p. 188-189.
103
Frise-se que as Regras de Tóquio são um documento internacional, não um tratado, de
modo que existem divergências sobre seu caráter cogente. Não obstante, as Leis ns. 9.099/95
e 9.714/98 são a pura expressão da adoção dos postulados nelas contidos.
Sempre é bom inferir que nosso Código Penal, em seu artigo 5º, estabelece que
“aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito
internacional, ao crime cometido no território nacional”. Nelson Hungria pontuava que nosso
diploma penal criou um
[...] temperamento à impenetrabilidade do direito interno ou à exclusividade
da ordem jurídica do Estado sobre o seu território, permitindo e
reconhecendo, em determinados casos, a validez da lei de outro Estado. É
em obséquio à boa convivência internacional, e quase sempre sob a condição
de reciprocidade, que o território do Estado se torna penetrável pelo
exercício de alheia soberania.139
Dentro dessa concepção, pode-se concluir que o caráter cogente recai sobre o que
constar das Regras, desde que não contrarie o disposto em nossa Constituição Federal e nas
leis penais internas.
Por conseguinte, é mais adequada a interpretação de que a prestação inominada pode
ter natureza pecuniária ou não, pois a lei, ao preconizar a substituição da prestação pecuniária
por prestação de outra natureza, permitiu aos envolvidos no negócio jurídico a ser travado
entre as partes escolher uma pena que correspondesse aos ideais preconizados pela Carta
Magna, desde que não encarcerante e ajustada à realidade do agente.
No ponto, ao abordar, no item 14, a disciplina e desrespeito pelas condições de
tratamento, as Regras de Tóquio preveem regramentos a serem observados pelo juiz das
execuções. Segundo o subitem 14.1, inteiramente adotado pela codificação penal: “O
desrespeito das condições a observar pelos delinquentes pode conduzir à modificação ou à
revogação da medida não privativa de liberdade”. No atinente aos demais subitens, temos sua
inteira aplicabilidade ao estudo ora desenvolvido. O subitem 14.2 preconiza: “A modificação
ou a revogação da medida não privativa de liberdade só pode ser decidida pela autoridade
competente depois de um exame pormenorizado dos factos relatados pelo funcionário
139
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. 1, t.
1, p. 145-146.
104
encarregado da vigilância e pelo delinquente”. Na sequência, o subitem 14.3 alerta e orienta:
“O insucesso de uma medida não privativa de liberdade não deve conduzir automaticamente a
uma medida de prisão”. E, coroando a necessidade de evitar o aprisionamento, o subitem 14.4
estabelece: “Em caso de modificação ou de revogação da medida não privativa de liberdade, a
autoridade competente esforça-se por encontrar uma solução de substituição adequada. Uma
pena privativa de liberdade só pode ser pronunciada se não existirem outras medidas
adequadas”.
Luiz Flávio Gomes faz referência à inovação legal arrimada nas Regras de Tóquio,
aquilatando a competência para a aplicação das medidas despenalizadoras trazidas pela n. Lei
9.714. Em seu sentir:
Se de um lado não deixa de ser verdadeiro que até mesmo o modelo penal
clássico já contava com medidas alternativas despenalizadoras (livramento
condicional, sursis, remição de pena, multa alternativa etc.), de outro,
tampouco pode-se negar que no nosso país, agora de modo patente, a latere
do direito clássico, está implantado (com aspiração de definitividade) um
novo e alternativo modelo penal que ocupa, por enquanto, não o lugar do
sistema clássico (que não morreu, obviamente), senão uma posição
excepcionadora que, para além de conceber a prisão como extrema ratio e
que só se justifica para fatos de especial gravidade (Regras de Tóquio, 14.4),
se caracteriza pela introdução no nosso ordenamento jurídico de um dos
programas mais avançados, ao menos no plano formal, de penas e medidas
alternativas.
Doravante, para bem se compreender o sistema de Justiça Penal brasileiro
deve-se partir da premissa de que dentro dele existem dois subsistemas: o
clássico, que privilegia o encarceramento porque acredita na função
dissuasória da prisão, e o alternativo, que procura sancionar o infrator
conforme a gravidade da infração, com penas e medidas alternativas, isto é,
sem retirá-lo do convívio familiar, profissional e social.140
Celso Delmanto et al. orientam que excluída a prestação pecuniária, a prestação de
outra natureza “poderá consistir, v.g., na doação de cestas básicas ou em serviços de mão de
obra”.141
Sem destoar, Mirabete declinava que “se houver aceitação do beneficiário, ou seja, do
ofendido ou da entidade pública ou privada com destinação social, a prestação pecuniária
140
GOMES, Luiz Flávio. Nova lei de penas alternativas: a competência para sua aplicação.
<http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/10431-10431-1-PB.htm>. Acesso em: 03 jan. 2012.
141
DELMANTO, Celso et al., Código Penal comentado, cit., p. 165.
105
poderá constituir-se, por decisão do juiz, em prestação de outra natureza, como o
fornecimento de cestas básicas, por exemplo”.142
Também Fernando Capez sustenta, ao cuidar da prestação inominada, que:
[...] a prestação pecuniária poderá consistir em prestação de outra natureza,
como, por exemplo, entrega de cestas básicas a carentes, em entidades
públicas ou privadas. A interpretação, aqui, deve ser a mais ampla possível,
sendo, no entanto, imprescindível o consenso do beneficiário quando o crime
tiver como vítima pessoa determinada.143
O Pleno do Supremo Tribunal Federal deu por correta a decisão judicial que
homologou a doação de cestas básicas como pena alternativa, fundamentando que:
O crime investigado é daqueles que admitem a transação penal e o indiciado
cumpre os demais requisitos legais do benefício. Embora haja controvérsia
sobre a possibilidade de a prestação pecuniária efetivar-se mediante a oferta
de bens, a pena alternativa proposta pelo Ministério Público  doação
mensal de cestas básicas e resmas de papel braile a entidade destinada à
assistência dos deficientes visuais, pelo período de seis meses  atinge à
finalidade da transação penal e confere rápida solução ao litígio, atendendo
melhor aos fins do procedimento criminal.144
O Superior Tribunal de Justiça tem como fora de discussão que a doação de cestas
básicas consiste em modalidade distinta da prestação de serviços à comunidade, tanto que a
rejeita como substitutiva desta em sede de execução, caso inviável seu cumprimento por parte
do condenado. Se o condenado não puder cumprir a prestação de serviços estipulada, deverá o
juiz das execuções impor-lhe outra, adaptada à sua aptidão, sem substituí-la pela doação de
cestas. Veja-se o seguinte aresto:
A competência do Juízo das Execuções Criminais limita-se à alteração da
forma de cumprimento da pena de prestação de serviços à comunidade
aplicada pelo Juízo Criminal processante (CP, art. 59, inc. IV), ajustando-a
às condições pessoais do condenado e às características do estabelecimento,
da entidade ou do programa comunitário ou estatal‟ (Lei 7.210/84, art. 148),
sem, contudo, substituí-la por pena restritiva de direitos diversa.145
142
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal interpretado. São Paulo: Atlas, 1999. p. 295.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. v. 1, p. 358.
144
STF  INQ n. 2.721/DF, Pleno, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 08.10.2009.
145
STJ  HC n. 38.052/SP, 5ª Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de 10.04.2006.
143
106
Sem embargo das respeitáveis críticas doutrinárias, o texto legal propiciou a abertura
de um novo horizonte de penas alternativas, evitando o encarceramento e atendendo, de um
modo mais ameno, à exigência estatal do cumprimento da pena. A liberdade do condenado
deve prevalecer sempre que o juiz tiver uma lacuna ou uma alternativa para tanto.
Importante ostentar que a minirreforma penal de 1998 visou, em um primeiro
momento, a legalizar as doações de cestas básicas, nas transações penais em infrações de
menor potencial ofensivo, contudo atingiu efetivamente o juiz das execuções penais, que é o
competente para analisar e decidir acerca da substituição da pena pecuniária imposta em sede
de sentença por outra que se amolde às condições pessoais do condenado. Conferiu ao juiz
das execuções um poder ilimitado de estabelecer a pena que lhe aprouvesse. Essa abertura
imensa receberá, naturalmente, as limitações da jurisprudência.
Como sopesado, se em sede de execução da pena tratar-se de condenado cujo passado
é liberto de máculas, essa substituição poderá incluir a doação de sangue como substitutiva da
substitutiva. Em outros termos, se o condenado estiver obrigado a saldar uma prestação
pecuniária e, por um revés financeiro, não puder fazê-lo, a substituição por doação de sangue
e prestação de serviços à comunidade bem satisfaria os fins da pena.
A jurisprudência, por sua vez, é vacilante em aceitar a prestação de outra natureza.
Uma ínfima parcela de Tribunais estaduais a interpreta por inconstitucional146, em
contraposição à majoritária parcela de entendimentos favoráveis 147, especialmente no
Superior Tribunal de Justiça.148
146
“A fixação de pena alternativa de „fornecimento de cestas-básicas‟, na forma do artigo 45, § 2º, do Código
Penal, é flagrantemente inconstitucional, uma vez que não se encontra prévia e taxativamente cominada na lei
penal. Em que pese judicioso posicionamento em sentido contrário, é entendimento pacífico desta câmara que
a pena de multa deve ser alterada, sempre que necessário, para guardar estrita proporcionalidade com a pena
corporal. Recurso parcialmente provido.” (TJMG  AC n. 1.0433.06.202.656-5/001, 5ª Câmara Criminal, rel.
Hélcio Valentim, j. 01.07.2008, DJ, de 12.07.2008).
147
“Tese defensiva pugnando a absolvição por atipicidade, alegando falta de dolo. Subsidiariamente pleiteia a
alteração da pena substitutiva pelo fornecimento de apenas uma cesta básica no valor de meio salário mínimo,
bem como o cancelamento da taxa judiciária. Recurso parcialmente provido para substituir a pena privativa de
liberdade por somente uma restritiva de direitos, consistente na doação de uma cesta básica a entidade
beneficente, no valor de um salário mínimo.” (TJSP –AC n. 990101068516/SP, 15ª Câmara Criminal, rel.
Pedro Gagliardi, j. 09.09.2010, DJe, de 20.09.2010).
148
“2. Comprovada a impossibilidade financeira do paciente, que ensejaria o descumprimento justificado da
pena restritiva de direitos, impõe-se a sua alteração, por outra que melhor se ajuste à sua situação. 3.
Concederam a ordem para que seja substituída a pena de prestação pecuniária por outra condizente com a
condição financeira do réu.” (STJ – n. HC 82.544/RS, 5ª T., rel. Des. Jane Silva, j. 27.09.2007, DJ, de
15.10.2007, p. 326).
107
No entanto, se existem divergências quanto à ampliação ad infinitum de alternativas ao
juiz das execuções, não se pode dizer o mesmo quanto à aplicação dessas penas de cunho
social, perfeitamente bem recebidas no seio da comunidade e da doutrina, no campo dos
juizados especiais criminais. Quando parte significativa da doutrina se opunha à pena
restritiva de direitos consistente em doação de cestas básicas, ao interpretar o artigo 76 da Lei
n. 9.099/95, essa apreciação deixou de ter fundamento, uma vez que as cestas básicas, assim
como sanções de outra natureza, passaram a ser cristalinamente legalizadas.149
3.4.1.2 Aceitação do beneficiário
A prestação inominada ou de outra natureza exige o consenso do beneficiário. E esse é
a vítima do crime? Não necessariamente. Orienta Rogério Greco que “a vítima e seus
dependentes têm prioridade no recebimento da prestação pecuniária, não podendo o juiz
determinar o seu pagamento a entidade pública ou privada quando houver aqueles” 150. E
prossegue: “Nas infrações penais onde não haja vítima, a exemplo do delito de formação de
quadrilha ou bando (Código Penal, artigo 288), poderá a prestação pecuniária ser dirigida a
entidade pública ou privada com destinação social”. Para estas, segundo o autor, efetivamente
é ressarcida quando a prestação pecuniária é imposta e aceita pelo condenado. Tanto que se
descumprida injustificadamente, nos termos no artigo 44, parágrafo 4º, do Código Penal, pode
ser convertida em privativa de liberdade. É o que a difere da pena de multa (art. 49 do CP),
que não saldada descabe a conversão em privativa de liberdade (art. 51 do CP), já que sua
natureza jurídica passou a ser de dívida de valor para fins de execução, aplicando-se as
normas correlatas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas
suspensivas e interruptivas do prazo prescricional.
No que diz respeito à recepção de cestas básicas, o magistrado criminal cadastra uma
série de instituições aptas e com estrutura ao recebimento e distribuição das mercadorias aos
mais carentes da comunidade. Conveniente que essa instituição seja reconhecidamente de
utilidade pública e prestigiada nos meios sociais pelo seu trabalho em favor dos mais
necessitados. Com esse pré-requisito fundamental, preenche-se o tópico do dispositivo.
149
150
GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, Direito penal: parte geral, cit., p. 564.
GRECO, Rogério. Código Penal comentado. 5. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2011. p. 140.
108
A proposta ministerial de doação de cestas básicas, aceita pelo autor do fato e seu
advogado, tem como destinatário uma entidade de utilidade pública cadastrada na vara. Uma
vez homologado judicialmente, esse acordo tem o condão de materializar uma pena restritiva
de direitos inominada. Nesse consenso, o autor da infração assume a obrigação de entregar,
dentro de certo lapso temporal, determinada quantidade.
A doação de cestas básicas ganhou status de prestação alternativa inominada não
pecuniária.
Na interpretação de Guilherme de Souza Nucci, somente o fornecimento de mão de
obra implicaria em concordância do beneficiário, “pois é mais difícil encontrar entidades ou
vítimas dispostas a receber serviços diretos por parte do condenado” e sugere redobrada
cautela do magistrado na imposição dessa pena alternativa.151
Caso a vítima seja a destinatária, torna-se desnecessária sua concordância, porquanto
tem direito líquido e certo à reparação do dano sofrido pela conduta criminosa.
3.4.1.3 Valor econômico
Pela natureza finalística do parágrafo 1º (prestação pecuniária), exige-se que a
prestação inominada ou de outra natureza, do parágrafo 2º, possua valor econômico? Como
restou evidenciado pelos posicionamentos anteriores, não há dúvida. A doutrina se inclina
nesse sentido.
Se a prestação pecuniária tem caráter monetário, o fim do ressarcimento do dano
moral e material em espécie (dinheiro vivo), a prestação inominada ou de outra natureza pode
ter fim semelhante porque o condenado se obriga a fazer algo, mas não mediante o pagamento
em espécie. Cumprirá o seu propósito de outra forma. Os exemplos formulados na Exposição
de Motivos são mera referência, visto que nada obsta o condenado se comprometer a entregar
medicamentos, roupas e/ou cobertores a entidades carentes, resmas de papel a entidades que
cuidam de deficientes visuais, livros à Biblioteca Municipal etc.
151
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. p. 244.
109
Alberto Silva Franco discorda da destinação de valores a entidades cadastradas, por
julgar que não cabe ao Poder Judiciário sustentar organismos assistenciais carentes, mas sim
ao Estado. Na lição do magistrado:
Nessa linha de entendimento, não se pode fugir à conclusão de que o § 2º do
art. 45 do CP infelizmente legalizou – embora isso signifique a total
banalização da Justiça Penal – a prática do pagamento da prestação em
cestas básicas. Não é tarefa da Justiça Penal manter entidades assistenciais
necessitadas de recursos financeiros. Isso é incumbência do Estado, através
de adequadas políticas sociais e da comunidade, quando sai de seu papel de
estado letárgico e assume seu ativo papel de articulação social. É lamentável
que se assista, na atualidade, à montagem de uma rede de entidades
favorecidas por cestas básicas e se entenda que seja isso uma forma de
realização da justiça. Para quem disponha de dinheiro, a cesta básica ficou
reduzida a uma compra confortável em qualquer supermercado, a algo que
não produz efeito algum, aflitivo ou preventivo, do condenado.152
No que toca à parte final da conclusão do eminente desembargador, com a vênia que
merece, permitimo-nos fazer um adendo, ou melhor, uma imprescindível amplificação à sua
conclusão.
Como é conhecido por todos que militam na área criminal, a doação de cestas básicas
tornou-se a modalidade mais figurada de pena alternativa, dada sua capacidade de auxílio
direto e efetivo aos mais carentes. Não obstante, salvo raríssimas exceções, como as
contravenções penais de pequena expressão, a simples doação de cestas não pode ser a única
medida substitutiva para o cumprimento da pena prevista no tipo penal incriminador. Em
outros termos, se é certo que a imposição de sanção consistente na exclusiva doação de cestas
básicas transmite a sensação de impunidade, basta que o magistrado tenha a sensibilidade de
fazê-la se tornar um plus de outra pena restritiva, por exemplo: prestação serviços à
comunidade + doação de cestas básicas; prestação de serviços à comunidade + doação de
cobertores ou de roupas etc.
A simples e exclusiva doação de cestas básicas não exerce papel algum na reeducação
e ressocialização do agente. Por si só, é desproporcional e desarrazoada. É salutar lembrar que
o juiz exerce o papel de educador, em praticamente toda sua vida profissional, e por ser
conhecedor do direito – jura novit curia –, jamais deve banalizar a pena. É inconcebível o
autor de um crime deixar o fórum dando de ombros, zombando de todo o aparato estruturado
152
FRANCO, Alberto Silva; BELLOQUE, Juliana, Código Penal e sua interpretação: arts. 41 a 60. cit., p. 304.
110
para recebê-lo, e expressar em alto e bom som que dará duas ou três cestas básicas e sua pena
estará cumprida.
René Ariel Dotti anota que: “A pena deve retribuir juridicamente a culpabilidade do
agente. Em última instância ela é o efeito de uma causa e deve guardar a relação de
proporcionalidade entre o mal do ilícito e o mal devido ao infrator.”153
O Ministério Público deve refletir sobre esse alerta quando da formalização de suas
propostas consensuais e os magistrados hão de ponderar sobre o desvalor da conduta e qual ou
quais devem ser as medidas correspondentes suficientes para a reprovação e consequente
ressarcimento social.
153
DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1998. p. 212.
111
4
A
DOAÇÃO
ALTERNATIVA:
DE
SANGUE
PRESTAÇÃO
COMO
DE
PRESTAÇÃO
OUTRA
SOCIAL
NATUREZA
OU
INOMINADA
Soa estranho figurar a doação de sangue com caráter punitivo. Contudo, quando se
concebe o ideário de que se trata de um ato voluntário, altruísta e apto a elevar a autoestima
do doador e beneficiar terceira pessoa, inclusive podendo salvar vidas, infere-se que estamos
diante de uma prestação social alternativa, nos moldes previstos da Carta da República.
Não se pode olvidar que essa modalidade de sanção, tal como as demais penas
restritivas de direitos, insere-se no panorama maior de pleno respeito à dignidade da pessoa
humana, supraprincípio norteador dos demais princípios e normas constitucionais e
infraconstitucionais. Por esse motivo, não pode ser desconsiderado em nenhum ato de
interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas.154
O operador do direito deve necessariamente conduzir sua atuação pessoal e
profissional com os olhos voltados para a produção de um bem para a sociedade, por meio das
normas penais e processuais penais, sempre com o desiderato maior da punição dos que
transgridem o direito posto. E para a produção desse bem-estar social, atualmente tem ao seu
deu dispor sanções não caracterizantes de segregação pessoal, denominadas restritivas de
direitos, bem como as prestações sociais alternativas, inseridas no diploma penal com a
denominação de prestação de outra natureza ou inominada, consoante já esposado. Como as
penas restritivas têm cabimento nas infrações de menor e médio potencial ofensivo, a par de
múltiplas exigências de natureza pessoal, quando de sua implementação, ao mesmo tempo
que oferece alternativas ao autor do fato, permite que o Estado seja ressarcido, por meio de
ações frutíferas para a sociedade.
Isso porque toda e qualquer sanção deve atender aos postulados da dignidade da
pessoa humana. Como já salientado e ora reprisamos, na ótica de Rizzatto Nunes, a dignidade
154
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. A dignidade da pessoa humana e o papel do julgador. In: MIRANDA, Jorge;
SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo:
Quartier Latin, 2008. p. 423.
112
da pessoa humana é “considerada como o primeiro fundamento de todo o sistema
constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos fundamentais”.155
4.1 A doação de sangue e sua tipificação penal
Identificados os óbices, a meta consiste em encontrar um mecanismo cujos critérios
atendam aos princípios constitucionais correlatos, com ênfase à dignidade humana, à
individualização da pena e sua humanização e legalidade. E esses critérios hão de estruturar
um microssistema apto a respaldar a doação de sangue como modalidade de pena restritiva de
direitos e, concomitantemente, adequar-se às orientações trilhadas pelos organismos de saúde,
fundamentalmente no que tange às condições pessoais do doador e à salvaguarda dos direitos
da saúde do receptor, e inserindo-se nas demais hipóteses de prestação social alternativa.
Se o órgão acusador, o autor do fato e seu defensor, bem como o magistrado
concordarem com determinada pena inominada, atendendo aos princípios fundantes de um
Estado Democrático, inexistirá motivo para sua repugnância.
Dentro desses parâmetros, concluímos que a doação de sangue pode figurar, desde que
guardadas determinadas especificidades técnicas, como uma das modalidades de prestação
social alternativa de outra natureza ou inominada.
4.2 A sui generis condição do beneficiário na doação de sangue
Como analisado156, ao permitir a substituição da pena restritiva de direitos de
prestação pecuniária por uma de outra natureza, o legislador preconiza, para sua
materialização, um acordo entre o Poder Judiciário e o increpado. Esse acordo, nos termos do
artigo 45, parágrafo 2º, exige ainda a aceitação do beneficiário.
Em se tratando de doação de cestas básicas, medicamentos, cobertores, roupas, resmas
de papel, livros etc., basta que o magistrado cadastre a instituição e, ato contínuo, estando esta
ciente do compromisso assumido, terá a incumbência de fornecer o comprovante
155
156
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto, A dignidade da pessoa humana e o papel do julgador, cit., p. 421.
Ver item 3.4.
113
correspondente. Assim, por exemplo, caso o autor do fato se comprometa a doar dez cestas
básicas em cinco meses (duas por vez), a cada entrega, de posse do recibo, entregá-lo-á no
cartório da vara, dando quitação parcial de sua obrigação.
Na doação de sangue também é exigida a aceitação do beneficiário? Em atendimento
ao disposto no diploma penal, a resposta teria que ser positiva. Contudo, estudemos a origem
desse beneficiário para tirarmos a conclusão.
A Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados precede em muitos
lustros a data de criação das penas restritivas de direitos no Brasil, em 1984.
Atualmente, a Lei n. 10.205, de 21 de março de 2001, regulamenta o parágrafo 4º do
artigo 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e
aplicação do sangue, seus componentes e derivados, estabelece o ordenamento institucional
indispensável à execução adequada dessas atividades, e dá outras providências.
Na narrativa sobre a evolução da hemoterapia no Brasil, pudemos fazer o cotejo de
datas. Vimos que Pedro C. Junqueira, Jacob Rosenblit e Nelson Hamerschlak informam que a
transfusão de sangue teve dois períodos: um empírico, que chega até 1900; e outro científico,
após aquele marco. Na visão desses médicos, a iniciativa nacional foi marcada pela
necessidade dos feridos em combate na Segunda Guerra Mundial, de modo que:
Até a década de 40, já existiam no Brasil vários serviços de transfusão, mas
um merece destaque: o Serviço de Transfusão de Sangue (STS), fundado no
Rio de Janeiro, em 1933. [...] O sucesso deste modelo e a eficiência do
atendimento resultaram na criação, em 1937, de várias filiais, entre elas a de
Juiz de Fora [...]. Na década de 40, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a
Hemoterapia brasileira começou a se caracterizar como uma especialidade
médica. Em 07 de dezembro de 1942, foi inaugurado o primeiro Banco de
Sangue no Instituto Fernandes Figueira, Rio de Janeiro, visando obter
sangue para este hospital e atender ao esforço de guerra, mandando plasma
humano para os hospitais de frentes de batalha. 157
Em 1942 também era fundado o de Porto Alegre.
157
JUNQUEIRA, Pedro C.; ROSENBLIT, Jacob; HAMERSCHLAK, Nelson, História da hemoterapia no
Brasil, cit., p. 201-207.
114
Em 1945, o de Botafogo, também no Rio de Janeiro, diferente dos demais, porquanto
o primeiro banco de sangue privado da nação, cujo fim era fornecer sangue aos médicos
responsáveis pelas transfusões.
Em 1943, Oswaldo Mellone fundou e foi chefe do Banco de Sangue do Hospital das
Clínicas ligado à Universidade de São Paulo. E assim foram nascendo outros bancos, sempre
com o objetivo precípuo de minorar a deficiência de sangue e hemoderivados.
Divergindo parcialmente quanto a dados e datas, Cláudia M. F. Ribeiro pondera o
seguinte:
Na década de 40, a hemoterapia começa a ser vista como especialidade
médica e vários “bancos de sangue” foram inaugurados em diversas capitais
brasileiras. O primeiro “banco de sangue” público foi criado na cidade de
Porto Alegre, em 1941; em seguida, foi o do Rio de Janeiro, sendo o terceiro
inaugurado em 1942, em Recife.158
Feitas essas breves considerações e ponderado que a modificação legislativa
introduzindo as prestações de outra natureza na codificação penal foi inspirada nas doações de
cestas básicas mantida pelos magistrados e promotores de justiça na década de 90,
entendemos desnecessária a prévia aceitação do beneficiário, leia-se hemocentros e
hemonúcleos e todas as demais entidades autorizadas a realizarem a coleta.
Diferentemente das outras entidades que foram criadas para fins filantrópicos e
atividades múltiplas, os bancos de sangue o foram com a finalidade específica de coletar e
realizar os demais procedimentos correlatos ao sangue e hemoderivados, tais como
processamento, estocagem, distribuição e aplicação, de modo que a aceitação se mostra
dispensável. Assim não fosse e os bancos de sangue poderiam passar a discriminar os
doadores, como se uma pessoa de bem que cometeu um único erro em sua vida, mesmo sendo
primário e sem qualquer antecedente negativo em seu passado, pudesse minar a qualidade do
produto ou pôr em risco a saúde do futuro receptor.
158
RIBEIRO, Cláudia M. F. A hemoterapia no Brasil até 1980 e a criação dos hemocentros públicos nacionais,
apud
FUNDAÇÃO
HEMOMINAS.
Sangue:
breve
história.
Disponível
em:
<http://www.hemominas.mg.gov.br/hemominas/menu/cidadao/doacao/breve_historia.html?print=true>.
Acesso em: 30 dez. 2011.
115
A doação de sangue feita por alguém que fez um acordo com o órgão acusador
homologado pelo Poder Judiciário não guarda nenhuma diferença para com a doação feita por
todos os demais cidadãos desta nação. Como já analisado, se diversos organismos não
governamentais, associações de classe, clubes de serviço, torcidas organizadas e outros o
fazem, inexistiria fundamento para se repudiar essa medida de alcance tão benéfico à saúde
pública nacional.
Na esteira dessa conclusão, basta ao magistrado, após o increpado e seu advogado
aceitarem a proposta formulada, adotar os procedimentos correspondentes à futura doação e
encaminhá-lo ao local indicado. Concluída a doação, o cidadão receberá o comprovante,
cabendo-lhe entregar na serventia da vara, como cumprimento total ou parcial das obrigações
assumidas.
É induvidoso que se o magistrado optar por interpretar o direito positivado como uma
ordem manterá prévio contato com o responsável pelo banco de sangue em sua comarca,
cidade ou bairro.
Ademais, não faz sentido qualquer contato prévio com um banco de sangue, se este foi
criado para um único fim e o que se determina se amolda a tanto.
116
117
5 EFETIVIDADE
Neste capítulo abordaremos a implantação da nova modalidade de pena restritiva na 1ª
Vara Criminal de Sorocaba.
Finalizados os estudos e vislumbrada, em nossa ótica, a pertinência da pretensão,
demos os primeiros passos para alcançar sua efetividade. Para tanto, promovemos reuniões
com os representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública oficiantes na Vara, para
lhes apresentar o detalhamento do empreendimento.
Atentem que a Defensoria Pública, conforme o artigo 134 da Carta Magna, é
instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a
defesa, em todos os graus, dos necessitados ou hipossuficientes, na forma do artigo 5º,
LXXIV. Segundo a Defensoria Pública atuante na 1ª Vara Criminal, a grande maioria dos
entrevistados tende a optar pela doação de sangue, pois não despenderá valor algum e, ao
mesmo tempo, fará um grande bem para seu semelhante.159
Foi-lhes passado que a doação de sangue como prestação social alternativa encontrava
amparo constitucional, porém o legislador penal, na alteração do microssistema das penas
alternativas, ao invés de criar uma modalidade específica, inseriu no rol das penas restritivas
de direitos a prestação de outra natureza ou inominada. E fundamental seria que os direitos
inalienáveis do suposto infrator fossem aprioristicamente garantidos, para respaldo da futura
medida político-jurídica. E, para tanto, como a doação de sangue tem como pressuposto
maior, como incessantemente pontuado pelas normas da Vigilância Sanitária, a
voluntariedade, à plêiade formada pelos integrantes do actum trium personarum caberia
iniciar sua atuação observando esses pré-requisitos.
159
Na pesquisa “Perfil do Doador de Sangue Brasileiro”, entre a população doadora, 62,39% são homens e
49,03% são solteiros. A faixa etária predominante (28,25%) é de 30 a 39 anos. A pesquisa identificou, ainda,
que 53,47% dos doadores já fizeram no mínimo cinco doações, o que indica um alto índice de fidelização. No
que se refere à questão da identificação com o ato de doação, para 58,32% das pessoas entrevistadas, o sangue
representa vida (BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA);
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Tecnologia e Ciências. Perfil do doador de sangue
brasileiro. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/hotsite/doador_sangue/pdsbfiles/introducaod.htm>.
Acesso em: 10 mar. 2012).
118
O respeito à voluntariedade traz subjacente a imprescindível realização de um ato
consensual, no qual o autor do fato tenha oportunidade de se expressar e exercer o direito de
opção frente a um pedido acusatório (Ministério Público ou querelante).
Tivemos preocupação com a reação dos advogados, mas um episódio, aliás dois, que
ocorreram na semana do feriado de 15 de novembro de 2010, servem para que se possa
avaliar o alcance do que representa a doação de sangue, na opinião dos operadores do direito.
Um advogado de fora da terra e desconhecedor da novidade orientou seu patrocinado a
aceitar, dentre as propostas apresentadas, aquela que continha a doação de sangue e, ao final
da tarde, procurou-nos. Estava feliz com o acordo homologado, pois se tratava de um caso
difícil, no qual seu cliente fora preso por violência doméstica e as condições da suspensão
condicional do processo (atualmente inviável, pelo posicionamento exarado pelo Supremo
Tribunal Federal na ADI n. 4.424/DF) não só atendiam ao interesse de ambos, como retornava
um benefício concreto para a comunidade sorocabana.
Naquela mesma data, um réu indagado novamente durante a audiência de instrução
processual de um crime de furto tentado, pois recusara a suspensão condicional do processo
anteriormente, ao tomar ciência da possibilidade de doação de sangue, e orientado por seu
patrono, indagou-nos: “Senhor Juiz, eu posso salvar uma vida, não?”. Seu advogado o
orientou a aceitar o benefício.160
E fora das linhas do processo penal, a opinião dos protagonistas das infrações incitava
nossa curiosidade. E esse interesse foi dissipado há pouco. Em 30 de junho de 2012, o jornal
Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, em matéria intitulada “Duas mil penas alternativas são
decretadas em cinco meses”, na qual a doação de sangue foi alvitrada como uma das opções
de reinserção social, o jornalista José Antonio Rosa ouviu a concordância com a medida por
dois réus, no seguinte teor:
J., de 38 anos, respondeu a processo por lesão corporal de natureza leve, e
disse que, quando foi consultado sobre a possibilidade de doação de sangue,
não pensou duas vezes. “Eu confesso que, naquele momento, fiquei
surpreso, mas, depois, entendi que estaria contribuindo com uma causa
maior e aceitei”. R., 42, foi processado por ter cometido furto de pequeno
valor. Na audiência, soube que poderia doar sangue, se concordasse. “Na
hora pareceu estranho. Perguntei ao advogado, e ele disse que a decisão
cabia exclusivamente a mim. Doar sangue foi a melhor coisa que fiz para
160
Ver item 5.3.2.
119
pagar a minha dívida com a sociedade. Hoje, sinto-me mais valorizado
porque percebi que o sistema acredita na minha recuperação. E eu, tenho de
fazer a minha parte para receber essa confiança”.
Esse quadro favorável nos deixou mais confiante, até porque, mais tarde, a adesão dos
advogados da 24ª Subseção de Sorocaba foi expressiva, tanto que apoiaram declaradamente a
iniciativa.
No Brasil, as hipóteses de consenso ficam reservadas às infrações de menor e médio
potencial ofensivo, consoante previsão da Lei n. 9.099/95161. E para se acomodar a pretensão
acusatória com a voluntariedade do autor do fato, impõe-se que o acusador apresente mais de
uma proposta de acordo, seja na transação penal, seja na suspensão condicional do processo.
Por que mais de uma proposta? Justamente para que o autor do fato exerça o direito de
escolha e preserve sua privacidade. Podendo escolher uma entre duas ou três propostas de
acordo, passa a realizar um ato voluntário. Não sofre qualquer imposição.
Por mais de uma vez foi aludido que a doação de sangue deve ser de livre escolha.
Aliás, é dogma inserto em toda e qualquer manifestação exarada pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária. O respeito à privacidade é imperativo para que o requisito da
voluntariedade seja atendido. A imposição à doação de sangue se contrapõe a esse postulado
e, portanto, deve ser coibida a todo custo.
Vários fatores levam uma pessoa a discordar da doação de sangue como uma das
medidas propostas. Ou seja, ainda que a doação de sangue não caracterize ontologicamente
uma sanção, ao contrário, é ato dadivoso pleno de apreço ao próximo, o fato de estar inserida
em um contexto de transação penal assim deve ser vista, pois representa uma obrigação de
fazer em prol da coletividade. No entanto, as fobias em geral constituem uma barreira e se
transformam em fator preponderante de inviabilização da proposta que contenha o ato
161
Ver itens 1.6 et seq. e Capítulo 2.
120
nobilíssimo, como, por exemplo, medo de agulha, de sangue, de ambiente hospitalar 162 etc.,
circunstâncias que defendemos como caracterizadoras do direito à privacidade da pessoa.163
Porém, a mais emblemática causa de resistência se relaciona à liberdade religiosa.
Com efeito, narra Nelson Nery Junior, em parecer técnico-jurídico destinado à proteção ao
direito individual da liberdade de crença, que: “Nessa perspectiva, o Estado, seja por meio de
leis ou por meio de decisões judiciais, não pode impor ao cidadão uma conduta atentatória à
sua convicção religiosa e à sua dignidade”. E acrescenta:
[...] quando um praticante da religião Testemunhas de Jeová manifesta
recusa a se submeter a tratamentos que envolvam transfusão de sangue, está
ele exercendo seu direito público subjetivo de liberdade de religião,
porquanto está se negando a realizar uma prática atentatória à sua liberdade
religiosa e à sua dignidade. Nesse passo, quando esse cidadão exerce esta
recusa ele invoca seus direitos fundamentais, conduta esta que em nenhuma
hipótese atenta contra direito fundamental de outrem. Afinal, qual direito
fundamental de outrem essa recusa pelo paciente Testemunha de Jeová
violaria? Ou seja, quando o praticante dessa religião exerce seu
consentimento informado e se recusa a realizar qualquer procedimento
médico ou cirúrgico que envolva transfusão de sangue, em hipótese alguma
está atentando ou pondo em risco direito fundamental de outrem.164
162
Na pesquisa “Perfil do Doador de Sangue Brasileiro”, pela primeira vez foi revelado o perfil do não doador
de sangue: 56,27% são do sexo feminino; 54,60% são solteiros e a maioria tem entre 20 e 24 anos (23,92%).
Do total de entrevistados, 36,15% disseram que o medo é o principal motivo para não doarem sangue
(Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/hotsite/doador_sangue/pdsbfiles/introducaod.htm>. Acesso em: 10
mar. 2012).
163
A doutrina cuida da intimidade como espécie de privacidade, seu gênero. A intimidade, por ser mais restrita
que a privacidade, o que lhe é privado pode chegar ao conhecimento dos que vivem em sua companhia,
contudo, o que é íntimo restringe-se a ela. A conceituação de cada um dos institutos pode ser trabalhada,
outrossim, na teoria dos círculos concêntricos, segundo a qual o círculo maior é a privacidade, e o menor,
dentro dele, a intimidade. Privacidade é o que o indivíduo não quer que seja de conhecimento público, embora
aceite que algumas pessoas participem dessas particularidades. A intimidade, em contrapartida, é o núcleo
essencial da privacidade, ao se referir a tudo que se encerre na sua esfera mais reservada da pessoa humana.
Robert Alexy dá uma conotação mais ampla, abarcando três círculos concêntricos, ou como prefere denominar,
teoria das esferas, segundo a qual é possível distinguir cada uma de conformidade com a intensidade de
proteção. Quais sejam: a esfera mais interna (âmbito último intangível da liberdade humana), caracterizando-se
por ser o âmbito mais íntimo, a esfera íntima intangível e conforme interpretação do Tribunal Constitucional
alemão, o âmbito núcleo absolutamente protegido da organização da vida privada, compreendendo os assuntos
mais secretos que não devem chegar ao conhecimento dos outros devido à sua natureza extremamente
reservada; a esfera privada ampla, que abarca o âmbito privado, na medida que não pertença à esfera mais
interna, incluindo assuntos que o indivíduo leva ao conhecimento de outra pessoa de sua confiança, ficando
excluído o resto da comunidade; e a esfera social, que engloba tudo o que não for incluído na esfera privada
ampla, ou seja, todas as matérias relacionadas com as notícias que a pessoa deseja excluir do conhecimento de
terceiros (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. 3. reimpr. Madrid: Centro de Estúdios
Políticos y Constitucionales, 2002. p. 350).
164
NERY JUNIOR, Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes testemunhas de Jeová:
como exercício harmônico de direitos fundamentais (Parecer). São Paulo: Associação das Testemunhas Cristãs
de Jeová, 2009.
121
Como se sabe, a questão da recusa pelo crente da religião Testemunha de Jeová em se
submeter a determinados tratamentos, em especial a transfusão de sangue, porquanto estariam
em discussão seus valores mais relevantes, é sempre motivo de polêmica, e esse não é o palco
para se discorrer a respeito. Na verdade, busca-se aqui exatamente não polemizar, não criar
situações conflituosas, simplesmente acatar o direito fundamental de livre exercício da
religião escolhida, bem como das liturgias condutoras ao seu bem-estar moral e espiritual do
homem.
O Brasil é um país laico. Desde o advento da República existe a separação entre
Estado e Igreja, inexistindo uma religião oficial. Dessume-se do disposto no artigo 5º, VI, da
Carta Magna a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o
livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto
e a suas liturgias.165
Parafraseando Montesquieu ao definir liberdade em um Estado, isto é, em uma
sociedade na qual há leis, a liberdade consiste em poder fazer o que a pessoa quer e não ser
obrigado a fazer o que não deseja.166
Destarte, retomando o contexto de uma audiência preliminar, em que é ofertada a
transação penal, ou audiência de suspensão, entre duas ou mais propostas formuladas pelo
órgão acusador nasce para o acusado o direito de escolha e, consequentemente, de permanecer
intocada a sua voluntariedade, privacidade e liberdade de consciência e de crença.
5.1 O abstrato e o concreto
Como alertamos, para que se caminhasse rumo à efetivação da pretensão de
materialização da doação de sangue como prestação social alternativa, além do respeito à
privacidade do autor de um fato, mostrava-se imponível não desviar da decisão do Supremo
Tribunal Federal.167
165
LENZA, Pedro, Direito constitucional esquematizado, cit., p. 685.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a
divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. 3. ed. aum. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 162163.
167
Ver item 1.3.
166
122
Se, naquele dado momento da história, 1990, uma porta fora fechada pelo Supremo
Tribunal Federal, em decisão indiscutivelmente sensata, em face da dissonância técnica
empregada pelo magistrado ao catalogar a doação de sangue como prestação de serviços à
comunidade, a procura de adequação da hipótese em uma modalidade diversa, isto é, de
prestação de outra natureza ou inominada, propiciou a abertura ou reabertura de um
verdadeiro portal em prol do pranteado alvo: doação de sangue como como prestação social
alternativa.
No exercício da jurisdição, o Poder Judiciário utiliza o direito e o processo penal para
apurar o fato e punir o delinquente, após a conclusão de um devido processo legal. Contudo,
para fazer justiça social, humanizar a pena, incrementando ou estimulando a solidariedade e o
altruísmo nas pessoas, sem deixar de cumprir sua tarefa precípua de aplicar o direito ao caso
concreto, o juiz pode ir além da letra da lei, balizando-se nos postulados maiores da dignidade
da pessoa humana, da liberdade de expressão e do devido processo legal, e inovar. Para isso é
necessário interpretar o ordenamento, colher nele mais que as diretrizes propostas, e criar
mecanismos que alterem o panorama tradicional.
O juiz pode construir novos paradigmas. É o ativismo judicial na seara criminal.
Nesse passo, conquanto abordando outro tema, mas por guardar identidade com o
escopo deste trabalho, José Renato Nalini sustenta o seguinte, ao que denomina
consequencialismo:
O mais experimentado especialista em direito é o juiz. Sua experiência não é
destinada a propiciar mais clientela, nem a obter fama, gloríolas tão a gosto
desta sociedade do espetáculo, ou prestígio mundano. O juiz existe para
fazer justiça. E não faz justiça o juiz que – podendo aperfeiçoar sua atividade
– permanece passivamente à espera de que as coisas aconteçam.168
E, para consecução, bastaria que o órgão acusador abraçasse a temática e desse início à
apresentação das propostas alternativas.
168
NALINI, José Renato. Duração razoável do processo e dignidade da pessoa humana. In: MIRANDA, Jorge;
SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo:
Quartier Latin, 2008. p. 200.
123
Não houve dificuldade, ao contrário, todos se convenceram a partilhar esforços pelo
argumento central de que o Poder Judiciário pode colaborar com as deficiências da saúde
pública, mais especificamente em cooperar com a hemoterapia, proporcionando maior
estoque aos bancos de sangue, bastando uma mínima modificação na ritualística do
procedimento adotado na transação penal e na suspensão condicional do processo.
5.2 Institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais aplicáveis: a
transação penal e a suspensão condicional do processo
Em se tratando de infração de menor potencial ofensivo, o rito procedimental a ser
obedecido é aquele determinado pela lei específica, a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de
1995, como demonstramos a seguir.
Levada a conhecimento da autoridade policial a infração praticada, é lavrado o termo
circunstanciado. Em seguida, essa autoridade encaminhará ao juizado o autor do fato e a
vítima, requisitando os exames periciais necessários.
Imperativo recordar que, nos termos do artigo 69, parágrafo único da Lei n. 9.099, é
vedada prisão em flagrante ou exigência de fiança se o autor do fato se comprometer a
comparecer ao juizado. E, em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como
medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.
O juízo designa audiência preliminar, determinando a intimação do Ministério
Público, do autor do fato, da vítima (se for o caso, seu responsável civil), acompanhados de
seus advogados.
A audiência preliminar (arts. 72 a 74) é concentrada, composta de dois momentos
processuais distintos: composição civil de danos e transação penal.
5.2.1 Composição civil de danos
O acordo entre autor do fato e vítima, em crimes de ação penal privada e pública
condicionada à representação, gera repercussão nos campos penal – extinção da punibilidade
124
do autor do fato – e civil – sentença homologatória. A composição civil deve ser realizada na
presença das partes, com seus advogados e responsável civil, se necessário. Do ajuste entre as
partes, assessoradas por advogados e mediante o acompanhamento do Ministério Público, na
qualidade de fiscal da lei, lavrar-se-á termo a ser homologado, por sentença, pelo juiz. Essa
sentença homologatória equivale a título executivo judicial, é irrecorrível e acarreta a renúncia
tácita ao direito de queixa ou de representação, com a extinção da punibilidade do autor do
fato, somente podendo ser desconstituída por ação anulatória, de competência do juízo cível.
Se o valor a ser executado for de até quarenta salários mínimos, a ação pode ser intentada no
juizado cível (art. 3º, inc. I, da Lei 9.099/95).
A composição civil em crime de ação pública incondicionada traz unicamente solução
total ou parcial de evitar nova demanda no âmbito civil, porque não impedirá no campo penal
a sequência do procedimento.
Se as partes não chegarem a nenhum acordo, se crime de ação privada, deve o juiz
indagar ao querelante se oferece proposta de transação; em caso negativo, deverá oferecer
queixa oral. No particular, o Enunciado Criminal n. 90 do Fórum Nacional dos Juizados
Especiais (FONAJE) firmou entendimento de que na ação penal privada cabe a transação
penal, bem como a suspensão condicional do processo, a despeito da ausência de previsão
legal.
No caso de crime de ação pública condicionada à representação, sem acordo,
imediatamente o juiz indagará ao ofendido se deseja representar, o que será reduzido a escrito.
Não o querendo naquele momento, será cientificado que poderá fazê-lo no prazo de seis
meses contados da data em que teve ciência da autoria do fato, conforme prescrevem os
artigos 38 do Código de Processo Penal e 103 do Código Penal.
5.2.2 Transação penal
No dizer de Damásio Evangelista de Jesus “não se trata de negócio entre o Ministério
Público e a defesa: cuida-se de um instituto que permite ao juiz, de imediato, aplicar uma
125
pena alternativa ao autuado, justa para a acusação e para a defesa, encerrando o
procedimento”.169
É direito público subjetivo do autor do fato não sofrer pena privativa de liberdade,
condicionado à proposta ministerial de aplicação de pena restritiva de direitos ou multa, desde
que presentes os requisitos objetivos e subjetivos favoráveis.
5.2.2.1 Legitimidade
É do Ministério Público. Caso o órgão acusador se recuse a ofertar a proposta, não
pode o juiz fazê-lo de ofício, pois não é parte. Se o fizer, o autor do fato pode se rebelar,
mostrar seu inconformismo e impetrar habeas corpus. Prevalece o entendimento de que, na
hipótese, pode o magistrado se valer do princípio da devolução, albergado no artigo 28 do
Código de Processo Penal, em analogia ao disposto na Súmula n. 696 do Supremo Tribunal
Federal.170
Para aperfeiçoamento da transação penal, é indispensável a aceitação da proposta pelo
autor do fato e seu defensor.
Em ação penal privada, quem tem legitimidade para transacionar? Na esfera privada,
vigem os princípios da disponibilidade e da oportunidade, de sorte que o juiz somente indaga
ao querelante se deseja oferecer proposta; caso negue, o feito prossegue; se a fizer, será ela
submetida ao querelado e seu patrono. Note-se que o Ministério Público atua na qualidade de
custos legis, pois o Estado conferiu a legitimidade exclusiva ao particular de acionar o autor
do fato em crimes de natureza privada.
5.2.2.2 Proposta
A Lei n. 9.099/95 veda a proposição de pena privativa de liberdade nas medidas
despenalizadoras. Seria um contrassenso se dispusesse de modo diverso. Fica para o acusador
169
JESUS, Damásio Evangelista de. Lei dos Juizados Especiais Criminais anotada. 10 ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2007. p. 57.
170
Súmula n. 696 do STF: “Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo,
mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao ProcuradorGeral, aplicando-se por analogia o artigo 28 do Código de Processo Penal.”
126
propor penas pecuniárias e restritivas de direitos. Consoante assinala Ada Pellegrini Grinover
e outros, “ao incluir entre as penas restritiva de direitos a prestação pecuniária, a Lei
9.714/98 deixou superada questão relativa à possibilidade de ser objeto da transação penal a
chamada prestação social alternativa (como, por exemplo, a entrega de cestas básicas,
vestuário ou remédios à coletividade carente ou a instituições assistenciais)”.171
Exige-se que a proposta do acusador seja clara e precisa, para delimitar com exatidão
o alcance da pretensão e propiciar ao autor do fato e seu defensor perfeita ciência e avaliação
de seu interesse na aceitação plena ou produzir contra-argumentos almejando mitigá-la.
Assim, por exemplo, se o Ministério Público apresentou proposta de prestação de serviços à
comunidade por seis meses por contravenção penal de vias de fato 172, com esteio no princípio
da proporcionalidade, o advogado tem elementos para pleitear a redução se, na comarca, em
crimes de lesão corporal dolosa, as propostas de prestação de serviços variam até o máximo
de três meses.
Vejamos alguns modelos de propostas adotados pelos representantes do Ministério
Público atuantes na 1ª Vara Criminal de Sorocaba: proposta 1: doação de sangue por duas
vezes no período de seis meses + entrega de três cestas básicas à entidade beneficente a ser
designada pelo juízo; proposta 2: prestação de serviços à comunidade pelo período de seis
meses, por oito horas semanais + entrega de três cestas básicas à entidade a ser designada pelo
juízo. Ou, ainda: proposta 1: doação de sangue por uma vez no período de seis meses +
entrega de três cestas básicas à entidade beneficente a ser designada pelo juízo; proposta 2:
prestação de serviços à comunidade pelo período de três meses, por oito horas semanais +
entrega de três cestas básicas à entidade a ser designada pelo juízo.
5.2.2.3 Não aceitação da proposta
Na hipótese de recusa à proposta formulada, reza o ordenamento que será ofertada
denúncia oral, por parte do órgão acusador. A recusa à proposta pode estar fundada na busca
do reconhecimento judicial de inocência, circunstância que marcantemente permeia a negativa
a qualquer forma de conciliação. A recusa à consensualidade se constitui em uma das
171
GRINOVER, Ada Pellegrini et al., Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995, cit.,
p. 158.
172
“Vias de fato: Art. 21 - Praticar vias de fato contra alguém: Pena - prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3
(três) meses, ou multa, se o fato não constitui crime.”
127
possibilidades que conduzem ao procedimento sumaríssimo, previsto no artigo 81 da Lei.
Uma vez oferecida denúncia e apresentada a contrariedade, o juiz decide pelo recebimento ou
rejeição da peça inaugural. Em caso de recebimento, avaliará se é caso de cabimento da
suspensão condicional do processo, ocasião em que será aberta a palavra ao acusador para se
manifestar. E somente o fará se o réu for portador de um passado limpo, imaculado. Do
contrário, passa à instrução, debates e julgamento. Se o acusador ofertar proposta de
suspensão condicional do processo, fundada na recusa à transação penal, é provável que o réu
não aceite qualquer das propostas, porquanto, como apontado, seu interesse é buscar a
absolvição. A proposta de sursis processual será objeto de análise no próximo item.
5.2.2.4 Sentença homologatória de transação penal
Em sendo aceita a proposta, ou se as partes alcançarem um acordo sobre as sanções
cabíveis, a superveniência da homologação é a regra. A sentença homologatória de transação
penal não gera qualquer efeito penal contra o autor do fato. Vale dizer, não gera reincidência,
nem constará de registros criminais, mas imporá limitações quanto ao cumprimento da pena
cominada e impede nova transação no prazo de cinco anos. Não gera efeitos de natureza civil,
devendo o interessado ajuizar a ação de conhecimento no juízo respectivo (juizado cível ou
Justiça comum) para buscar eventual reparação de danos. Em caso de descumprimento da
pena imposta, é necessário analisar: se o réu não pagou a pena pecuniária imposta na
transação penal, esta deve ser cobrada em execução penal, nos moldes do artigo 51 do Código
Penal, não sendo admissível o oferecimento de denúncia; se descumpriu a pena restritiva de
direitos, a jurisprudência tem adotado três entendimentos: a) conversão em pena pecuniária;
b) conversão em pena privativa de liberdade; e, c) oferecimento de denúncia. Sustentamos que
a última medida é a mais adequada, especialmente se o magistrado não homologou a proposta
de transação e decidiu ficar no aguardo do cumprimento da sanção imposta.
Ao juiz é vedado homologar a transação, caso discorde da proposta formulada,
agravando a qualidade ou o quantum da pena proposta e aceita. Pode, no entanto, reduzi-la,
caso lhe pareça excessivamente gravosa ao autor do fato. Nesse sentido: Damásio Evangelista
de Jesus173. Dessa decisão cabe o recurso de apelação. O artigo 76, em seu parágrafo 1º, reza
que se a pena de multa for a única aplicada, o juiz poderá reduzi-la de até metade.
173
JESUS, Damásio Evangelista de, Lei dos Juizados Especiais Criminais anotada, cit., p. 66.
128
O Superior Tribunal de Justiça vinha adotando o entendimento de que o
descumprimento da sanção imposta em transação penal não autorizaria o oferecimento de
denúncia, uma vez que a sentença homologatória faria coisa julgada formal e material.
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal decidiu, de forma consistente e uniforme, no
sentido da possibilidade de oferecimento de denúncia, independentemente da transação ser
passível de futura homologação. Nessa linha, a Corte Maior, em 19.11.2009, dando
definitividade à discussão do tema, por repercussão geral decidiu que na hipótese cabe o
oferecimento de denúncia.174
A decisão da Corte Suprema é correta tanto no aspecto moral como no políticojurídico do ato. A persistir entendimento diverso, bastaria ao autor do fato iludir o magistrado
e o órgão ministerial afirmando aceitar a proposta formulada e, na sequência, dar de ombros e
descumpri-la. Trata-se de total desrespeito às instituições, especialmente ao Poder Judiciário,
e deve ser coibido. A malícia não pode beneficiar quem a pratica.175
Importante consignar que o Superior Tribunal de Justiça, após a decisão exarada pela
Corte Suprema, decidiu rever seu posicionamento. O Ministro Jorge Mussi, em 20.10.2011,
ao tecer considerações sobre o decisório da Corte Suprema, entendeu conveniente unificar-se
o entendimento, em que pese não exista caráter vinculante no instituto da repercussão geral,
notadamente porque seu desiderato é o de unir a interpretação constitucional, valendo-se dos
seguintes argumentos:
Embora a aludida decisão, ainda que de reconhecida repercussão geral, seja
desprovida de qualquer caráter vinculante, é certo que se trata de
posicionamento adotado pela unanimidade dos integrantes da Suprema
Corte, órgão que detém a atribuição de guardar a Constituição Federal e,
portanto, dizer em última instância quais situações são conformes ou não
com as disposições colocadas na Carta Magna.
174
“Juizados Especiais Criminais. Transação penal. Artigo 76 da Lei n. 9.099/95. Condições não cumpridas.
Propositura de ação penal. Possibilidade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso
extraordinário improvido. Aplicação do artigo 543-B, parágrafo 3º, do CPC. Não fere os preceitos
constitucionais a propositura de ação penal em decorrência do não cumprimento das condições estabelecidas
em transação penal.” (STF  QO-RG RE n. 602.072, rel. Min. Cezar Peluso, j. 19.11.2009, DJe, 26.02.2010).
175
Para Ada Pellegrini Grinover e outros, a sentença na transação penal não é condenatória e nem absolutória, é
simplesmente homologatória “passível de fazer coisa julgada material, dela derivando o título executivo penal.
Por isso, se não houver cumprimento da obrigação assumida pelo autor do fato, nada se poderá fazer, a não ser
executá-la, nos expressos termos da lei” (Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de
26.09.1995, cit., p. 169).
129
Desta forma, o posicionamento até então adotado por este Superior Tribunal
de Justiça deve ser revisto, para que passe a incorporar a interpretação
constitucional dada ao caso pela Suprema Corte, já que não se pode negar
que o oferecimento de denúncia na hipótese de descumprimento das
condições impostas em transação penal não ofende os princípios do
contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, pois a decisão que
homologa o acordo não faz coisa julgada material, tendo força de título
executivo judicial que fica “submetido à condição resolutiva estampada no
descumprimento do que pactuado” (HC 79572, Relator(a): Min. Marco
Aurélio, Segunda Turma, julgado em 29/02/2000).
Com efeito, consoante consignado pelo eminente Ministro Cezar Peluso,
descumpridas as cláusulas da transação penal, “retorna-se ao status quo ante,
possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal
(situação diversa daquela em que se pretende a conversão automática deste
descumprimento em pena privativa de liberdade” (RE 602072 QO-RG,
Relator(a): Min. Cezar Peluso, julgado em 19/11/2009).
Assim, atentando-se para a finalidade do instituto da repercussão geral, que é
o de uniformizar a interpretação constitucional, e em homenagem à função
pacificadora da jurisprudência, é imperiosa a revisão do posicionamento até
então adotado por esta Corte Superior de Justiça, passando-se a admitir o
oferecimento de denúncia e o prosseguimento da ação penal em caso de
descumprimento das condições da transação penal.176
5.2.2.5 Recursos das sentenças
Da sentença homologatória de transação penal caberá apelação, sempre endereçada à
Turma Recursal, na esfera estadual, ou à Turma Recursal Federal, no âmbito federal.
Exceções: contra a não homologação judicial da transação, admite-se mandado de segurança
pelo Ministério Público e habeas corpus pelo autor do fato ou pelo órgão acusador em seu
favor.
Da sentença de mérito, o recurso é o de apelação, endereçado à Turma Recursal da
circunscrição ou Tribunal de Justiça, na falta daquela. Na esfera federal, o recurso será
encaminhado à Turma Recursal Federal ou Tribunal Regional Federal, na falta daquela.
Os embargos de declaração são admissíveis contra sentença ou acórdão, quando
houver obscuridade, contradição, omissão ou dúvida.
5.3 Suspensão condicional do processo: considerações iniciais
O instituto da suspensão condicional do processo é também conhecido por sursis
processual.
176
STJ  HC n. 188.959/DF, rel. Min. Jorge Mussi, j. 20.10.2011.
130
Para todo e qualquer crime, salvo militar, cuja pena mínima cominada for igual ou
inferior a um ano (exemplos: furto, apropriação indébita, estelionato, receptação dolosa, todos
na forma simples etc.), o acusador, oferecendo a denúncia ou queixa, poderá propor a
suspensão do processo, estando presentes determinadas condições legais. Recebida a inicial e
designada audiência especial para o momento solene, caso haja aceitação pelo réu da proposta
formulada, suspende-se, paralisa-se o andamento do feito, por prazo determinado, com
probabilidade de extinção da punibilidade pelo atendimento às condições impostas. Com a
reforma processual penal, a suspensão condicional do processo poderá ocorrer em caso de
mutatio ou emendatio libelli, se o novo tipo penal incriminador permitir a concessão do
benefício, como na desclassificação de roubo para furto na forma simples; de furto
qualificado para furto na forma fundamental; de apropriação indébita agravada para a forma
simples etc.
Pode-se conceituar o instituto despenalizador como uma alternativa à pena privativa
de liberdade, consistente na submissão do acusado a certas condições legais ou judiciais que
lhe permitirão a final, ultrapassado prazo previamente determinado, não sofrer sanção penal
alguma, com extinção da punibilidade.
Apresenta diferenças com o sursis anglo-americano, o probation system, que exige
prova da culpabilidade do acusado para se suspender o decreto condenatório; o juiz colhe as
provas e, diante da responsabilidade penal, propõe a suspensão da condenação. Na suspensão
condicional do processo não há consideração a respeito da acusação imputada ao réu, o feito
ficará suspenso de dois a quatro anos, no aguardo do cumprimento das condições acordadas,
quando, a final, extingue-se a punibilidade.
No sursis processual não há imposição de pena, diferente da transação penal.
5.3.1 Natureza jurídica
Formaram-se duas correntes distintas: a) direito público subjetivo do réu; b) faculdade
ministerial.
131
Pela primeira corrente, trata-se de direito público subjetivo de liberdade do réu de não
ter contra si o desenvolvimento da ação penal com futura sentença, uma vez preenchidos os
requisitos legais da Lei n. 9.099/95. Para esta, não configura faculdade ministerial. A segunda
prevalece. Tanto doutrina como jurisprudência são firmes em que a propositura se trata de
faculdade do órgão ministerial, que é o único legitimado a elaborar a proposta de sursis
processual. A diferença não é sutil, traz consequências decisivas para o regular andamento do
processo, pois se é um poder-dever, a recusa à propositura, fazendo-se presentes os requisitos
legais, autorizaria o juiz a ofertar a proposta de ofício; tratando-se de faculdade, a recusa na
proposição retira do juiz essa alternativa benéfica ao réu.
A inteligência de que a proposta se reveste de faculdade, inclusive foi sufragada no
Pretório Excelso177. Portanto, negando-se o órgão acusatório a oferecer a proposta,
entendendo o magistrado que se fazem presentes os requisitos legais, deverá aplicar o
princípio da devolução (art. 28 do CPP), remetendo os autos ao chefe da instituição respectiva
para análise da recusa em ofertar a proposta178. Aliás, a Súmula n. 696 do STF enuncia que
“reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se
recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao
Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o artigo 28 do Código de Processo Penal”.
Caso a Procuradoria Geral concorde com a negativa, o processo prosseguirá, devendo
o magistrado dar o regular andamento ao feito. O juiz é inerte, e tal qual no pedido de
arquivamento do inquérito policial mantido pelo chefe da instituição, deve acatar a posição do
único legitimado originariamente para oferecer a proposta de suspensão.
Com a devida vênia ao posicionamento francamente majoritário, defendemos que um
benefício da magnitude da suspensão condicional, do qual o réu se vê livre de responder a um
177
“Suspensão condicional do processo penal (L. 9.099/95, art. 89): natureza consensual: recusa do Promotor:
aplicação, mutatis mutandis, do art. 28 CPP. A natureza consensual da suspensão condicional do processo –
ainda quando se dispense que a proposta surja espontaneamente do Ministério Público – não prescinde do seu
assentimento, embora não deva este sujeitar-se ao critério individual do órgão da instituição em cada caso. Por
isso, a fórmula capaz de compatibilizar, na suspensão condicional do processo, o papel insubstituível do
Ministério Público, a independência funcional dos seus membros e a unidade da instituição é aquela que – uma
vez reunidos os requisitos objetivos de admissibilidade do sursis processual (art. 89, caput), ad instar do art. 28
do CPP – impõe ao juiz submeter à Procuradoria-Geral a recusa de assentimento do Promotor à sua pactuação,
que há de ser motivada.” (STF  HC n. 75.343/MG, Tribunal Pleno, rel. Octavio Galotti, j. 11.11.1997, DJ, de
18.06.2001).
178
Enunciado n. 86 do FONAJE: “Em caso de não oferecimento de proposta de transação penal ou de suspensão
condicional do processo pelo Ministério Público, aplica-se, por analogia, o disposto no artigo 28 do CPP.”
132
processo-crime, bem como de ser julgado, constitui-se em direito público subjetivo
inafastável, de modo que a proposta do Ministério Público não se constitui em faculdade, mas
dever. Recusando-se a oferecer a proposta, o órgão ministerial deve fundamentar sua
negativa179 para que o réu e a defesa técnica se valham do remédio legal cabível para
manifestar seu inconformismo e contrastar o entendimento ministerial. No caso, o habeas
corpus é a válvula a ser acionada.
Para nós, a concessão de ofício ou a pedido do próprio réu terá cabimento quando o
representante do Ministério Público não oferecer a proposta e, simultaneamente, deixar de
motivar sua recusa. Perante a inércia ministerial, mormente se provocado e permanecer
omisso, patenteados os requisitos legais, não há porque o juiz se submeter ao posicionamento
do chefe da instituição ministerial, malgrado seja o Ministério Público o único legitimado a
ofertar a proposta de transação. Ao juiz caberá efetuar a proposta do instituto despenalizador,
porquanto atenderá a toda a principiologia aplicável aos juizados especiais criminais180.
Damásio Evangelista de Jesus amparado na 13ª conclusão da Comissão Nacional de
Interpretação da Lei n. 9.099/95, realizada na Escola Nacional da Magistratura, em Brasília,
em outubro de 1995; na conferência proferida no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, em São Paulo, no dia 29 de novembro de 1995; no
Enunciado n. 6 do VII Encontro Nacional de Coordenadores de Juizados Especiais, Vila
Velha-ES, em 27 de maio de 2000; e em diversos julgados, defende que:
[...] nos termos dos princípios da informalidade e celeridade processual: o
juiz, desde que presentes as condições legais, deve, de ofício, suspender o
processo, cabendo recurso de apelação. [...]. Se o juiz pode aplicar o sursis,
que tem natureza punitiva e sancionatória, inclusive em face da discordância
do Ministério Público, o mesmo deve ocorrer na suspensão condicional do
processo, forma de despenalização. Se o juiz pode aplicar de ofício a medida
mais grave, seria estranho que não o pudesse na mais leve. Além disso, toda
medida que afasta o processo da direção da imposição da pena detentiva
atende à finalidade da Lei nova. E o formalismo, atrelando a inovação à
provocação do Ministério Público, não atende ao anseio de celeridade e
simplicidade181
179
A fundamentação da negativa encontra fundamento nos artigo 129, VIII, parte final, da Constituição Federal e
43, III, da Lei n. 8.625/93.
180
“Concessão de ofício excepcional. [...] Se conspiram todos os requisitos legais da suspensão condicional do
processo, deve o Ministério Público formular a proposta, conforme o art. 89 da Lei n. 9.099/95. Em caso de
recusa, ao Juiz tocará fazê-lo de ofício.” (TACrimSP  Revisão n. 440.202/9/São Paulo, 8º Grupo de Câmaras,
rel. Carlos Biasotti, j. 09.10.2003, v.u.).
181
JESUS, Damásio Evangelista de, Lei dos Juizados Especiais Criminais anotada, cit., p. 115.
133
5.3.2 Autonomia, âmbito e alcance
Vejamos as principais regras. São elas:
a) O sursis processual é aplicável tanto a crimes da competência do juizado especial
criminal como do juízo comum. A única exceção fica por conta dos crimes militares, vedados
nos termos do artigo 90-A da Lei dos Juizados Criminais.
b) A pena mínima cominada deve ser igual ou inferior a um ano. Se ao crime for
agregada uma causa de aumento de pena, caberá a suspensão condicional do processo?
Depende, pois as causas de aumento de pena, de diminuição de pena e as qualificadoras serão
levadas em consideração para efeito de verificação do cabimento da medida. Assim, um furto
simples agravado pelo repouso noturno não autoriza a concessão, de vez que a pena mínima
abstrata superará um ano. Em contrapartida, a pena mínima abstrata será obtida pelo
percentual máximo da causa de redução da pena, de modo que com arrependimento posterior
em furto qualificado, aplicado o redutor de dois terços, chega-se a uma pena privativa de
liberdade inferior a um ano. A mesma interpretação dar-se-á nos crimes tentados, pois não há
impedimento em se admitir a suspensão, caso aplicado o redutor máximo para obtenção da
pena mínima, ela ficar aquém ou igual a um ano, como no furto qualificado.
De outro lado, a suspensão é inaplicável às infrações penais cometidas em concurso
material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada
ultrapassar o limite de um ano, pelo somatório ou pela incidência da majorante. Segundo a
Súmula n. 723 do STF, não se admite a suspensão condicional do processo por crime
continuado se a somatória da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de
um sexto superar a um ano. No mesmo diapasão, a Súmula n. 243 do STJ:
O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às
infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou
continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório,
seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.
A lei omite os crimes de ação penal privada, no entanto não há óbice algum na
concessão da suspensão a tais crimes, até para não ferir a isonomia constitucionalmente
prevista, bastando a presença dos requisitos legais. O Supremo Tribunal Federal já decidiu
134
sobre o tema, inclusive afirmando a legitimidade do querelante para efetuar a proposta, haja
vista ser ele o titular para a propositura da demanda privada. Na ótica do relator Ministro
Sepúlveda Pertente, é cabível a suspensão condicional do processo instaurado mediante ação
penal privada, mostrando-se “acertada, no caso, a admissibilidade, em tese, da suspensão, a
legitimação para propô-la ou nela assentir é do querelante, não, do Ministério Público”. 182
Alguns crimes da competência do júri, como o autoaborto e o aborto provocado com o
consentimento da gestante, admitem o sursis processual. Caso seja revogada a suspensão, o
réu será submetido a julgamento pelos jurados.
A aplicação é idêntica ao reconhecimento das demais causas que provocam a extinção
da punibilidade, pois o Estado perde o jus puniendi. Se o réu foi beneficiado com o perdão
judicial em processo anterior, pelos dizeres da Súmula n. 18 do STJ (“A sentença concessiva
do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito
condenatório”), não estará impedida a concessão da suspensão condicional do processo.
Por derradeiro, o instituto não é aplicável às infrações abarcadas pela Lei Maria da
Penha (Lei n. 11.340/2006).183
c) Regra geral: uma vez concedido o benefício, o feito ficará paralisado (suspenso) por
tempo determinado, denominado período de prova até o cumprimento das condições.
Excepcionalmente, o benefício será concedido ao final do processo, após a regular instrução,
mas antes da sentença, em face da inovação penal desclassificatória ou emendadora (arts. 383
e 384 do CPP). Em qualquer hipótese, cumpridas as condições, extingue-se a punibilidade e o
juiz determina o arquivamento dos autos, uma vez transitada em julgado a decisão.
5.3.3 Requisitos legais
Encontram sua previsão nos artigos 77 do Código Penal e 89, caput, da Lei n.
9.099/95. São de ordem objetiva e subjetiva.
STF  HC n. 81.720/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 26.03.2002, p. 19.04.2002. Nesse sentido, o
Enunciado n. 112 do FONAJE: “Na ação penal privada de iniciativa privada, cabem transação penal e a
suspensão condicional do processo, mediante proposta do Ministério Público.”
183
Ver item 3.3.
182
135
5.3.3.1 Requisitos objetivos
1) Qualidade da pena: a regra é a proposta recair sobre infração punida abstratamente
com pena privativa de liberdade mínima igual ou inferior a um ano, prevista ou não na Lei n.
9.099/95. Nada veda, contudo, a proposta ao autor do fato, que não aceitou transação penal
em contravenção penal apenada com multa. Assim, qualquer modalidade de pena admite, em
tese, a suspensão condicional do processo.
2) Quantidade da pena: o mínimo não pode superar um ano de privação de liberdade.
No caso de concurso de crimes, conforme analisado, as penas devem ser consideradas
isoladamente para se conceder o sursis processual. As súmulas dos Tribunais Superiores bem
direcionam a interpretação.
5.3.3.2 Requisitos subjetivos
Não esteja respondendo a processo ou não tenha sido condenado por outro crime. O
legislador foi exigente, determinando como condição negativa estar o réu respondendo a um
simples processo por crime culposo ou doloso. Pior se condenado anteriormente pela prática
de qualquer tipo de crime. Em nossa visão, responder a processo por contravenção penal ou
ter sofrido condenação por contravenção penal não inviabiliza a concessão do instituto
despenalizador.
Note-se que para a concessão do benefício, além do requisito temporal e ter um
passado limpo, deverá o juiz se certificar que os requisitos subjetivos previstos no artigo 77
do Código Penal, inciso I (não ser o acusado reincidente em crime doloso) e inciso II (a
culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os
motivos e as circunstâncias), autorizam a concessão do benefício.
5.3.4 Procedimento. Bilateralidade do ato. Recursos cabíveis. Os modelos de
propostas ministeriais
O juiz, recebendo a denúncia e verificando a legalidade da proposta ministerial,
designará data para realização da audiência de suspensão. Uma vez instalada, o acusado e seu
defensor serão consultados sobre a proposta, na presença do juiz. Se recusada, o processo
136
prosseguirá em todos os seus ulteriores termos (art. 89, § 7º). Caso aceita, o juiz poderá
suspender o processo, submetendo o acusado ao período de prova. O cumprimento das
condições do benefício pelo lapso de tempo, mínimo de dois e máximo de quatro anos,
atinentes ao período, tem por fundamento a gravidade do delito, a personalidade do agente e a
política criminal da comarca.
Durante o período de prova, respeitado o contraditório, nada obsta que as condições
sejam modificadas pela concordância das partes. Ao conceder a benesse, o juiz profere
decisão interlocutória com força de definitiva, sobrestando o andamento do processo. Da
decisão concessiva ou denegatória, o recurso cabível é a apelação, ante a previsão do artigo 82
do diploma especial, mormente porque nenhum outro recurso é previsto184. No entanto, os
tribunais, em especial o Superior Tribunal de Justiça, têm se posicionado pelo cabimento do
recurso em sentido estrito, justamente por se tratar de decisão interlocutória mista.185
Defende Fernando Capez que a decisão é irrecorrível. Segundo o autor, descabe a
aplicação do artigo 581, XI, do Código de Processo Penal, uma vez que não é certa a
argumentação de que cabe esse recurso contra a concessão ou denegação da suspensão
condicional da pena, pois o instituto é viabilizado ou não na sentença, de modo que o recurso
cabível é a apelação. Em seu sentir, a decisão que concede a suspensão condicional do
processo tem natureza de interlocutória simples, porquanto não põe fim ao processo e nem a
uma fase do procedimento, simplesmente suspende o curso do processo. Lembra que a Lei
dos Juizados Especiais Criminais não previu recurso algum para a hipótese, daí conclui pelo
descabimento de qualquer recurso. E acrescenta que caso haja ofensa a direito líquido e certo,
“Juizado Especial Criminal  Sentença que concede o sursis processual  Recurso cabível  Apelação  Lei
n. 9.099/95, artigo 89  CPP, artigo 593, II. Tendo natureza de interlocutória mista com força definitiva (não
terminativa), a decisão que suspende o processo, nos termos do artigo 89 da Lei n. 9.099/95, impugnável é, por
via de recurso de apelação (artigo 593, II, do CPP).” (STJ  HC n. 16.377/SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j.
20.09.2001, DJ, de 04.02.2002).
185
Interessante observar que o mesmo relator, Ministro Hamilton Carvalhido, alterou seu posicionamento, em
voto prolatado alguns meses após o constante da nota de rodapé precedente, in verbis: “1. Na letra do artigo
581, inciso XI, do Código de Processo Penal, cabe recurso em sentido estrito da decisão que conceder, negar
ou revogar a suspensão condicional da pena, havendo firme entendimento, não unânime, de que se cuida de
enumeração exaustiva, a inibir hipótese de cabimento outra que não as expressamente elencadas na lei. 2. Tal
disposição, contudo, por força da impugnabilidade recursal da decisão denegatória do sursis, prevista no artigo
197 da Lei de Execuções Penais, deve ter sua compreensão dilargada, de maneira a abranger também a
hipótese de suspensão condicional do processo, admitida a não revogação parcial da norma inserta no Código
de Processo Penal. 3. Desse modo, cabe a aplicação analógica do inciso XI do artigo 581 do Código de
Processo Penal aos casos de suspensão condicional do processo, viabilizada, aliás, pela subsidiariedade que o
artigo 92 da Lei n. 9.099/95 lhe atribui. 4. A recorribilidade das decisões é essencial ao Estado de Direito, que
não exclui a proteção da sociedade, ela mesma. 5. Recurso conhecido.” (STJ  REsp n. 263.544
(2000/0059806-2), 6ª T., rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 12.03.2002, DJ, de 19.12.2002).
184
137
como, por exemplo, no caso de o juiz fixar ex officio o benefício, procedendo ao acordo
contra a vontade de uma das partes, ou de serem impostas condições claramente atentatórias à
dignidade humana, poderá ser impetrado mandado de segurança pelo órgão ministerial ou
habeas corpus (condições abusivas), dependendo da hipótese.186
Malgrado o entendimento do doutrinador, pensamos que o recurso cabível é o de
apelação, por ser o único previsto no ordenamento especial para eventual inconformismo
contra decisões e sentenças proferidas no âmbito dos juizados especiais criminais. Tendo sido
o inciso XI do artigo 581 do Código de Processo Penal de há muito revogado implicitamente
pela Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984, descabe falar-se em sua aplicação. Até porque,
como explanou Fernando Capez, a suspensão condicional da pena é avaliada pela parte em
sede de sentença, quando o recurso cabível é a apelação, nas hipóteses alvitradas pelo artigo
593 do diploma processual penal.187
Uma vez ajustadas as condições em audiência especialmente designada para esse fim,
o juiz determina a lavratura do termo de suspensão, documentando e orientando o acusado
sobre as condições a cumprir durante o período de provas e sobre as causas que podem
provocar a revogação do benefício.
No caso de divergência de vontades entre o réu e seu advogado, prevalece a vontade
daquele. É a 15ª conclusão da Comissão Nacional de Interpretação da Lei n. 9.099/95 da
Escola Nacional da Magistratura, de outubro de 1995, na cidade de Brasília.
A fiscalização consistirá na observância das condições impostas e ficará a cargo do
juiz processante, salvo se outro for o domicílio do réu. Se residir em outro domicílio, o juiz
processante remeterá precatória para que lá sejam cumpridas as condições acordadas.
Concluído o cumprimento das condições, compete ao juízo deprecado devolver a precatória,
para que o juízo processante extinga a punibilidade do réu.
186
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 557.
O Enunciado n. 48 do FONAJE prevê: “O recurso em sentido estrito é incabível em sede de Juizados
Especiais Criminais.”
187
138
5.3.5 Condições legais e judiciais da doação de sangue
Legais são as condições expressamente previstas no artigo 89, parágrafo 1º: reparação
do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; proibição de frequentar determinados lugares;
proibição de ausentar-se da comarca onde reside sem autorização do juiz e comparecimento
pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.
Judiciais são as condições que o juiz impõe por julgar adequadas ao fato e à situação
pessoal do acusado (art. 89, § 2°). As prestações sociais alternativas constantes do diploma
penal, no artigo 45, parágrafo 2º, e objeto deste estudo, inserem-se nessa modalidade. O órgão
ministerial que simpatizar com a ideia ora lançada ofertará as propostas de suspensão
condicional do processo e, em uma delas, incluirá a doação de sangue como condição judicial
a ser cumprida durante o período de prova.
No ponto, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Filho e Antonio Scarance
Fernandes defendem que a parte final do parágrafo 2º, do artigo 89, ao prescrever que as
condições judiciais sejam “adequadas ao fato e à situação do acusado”, significa a aplicação
do princípio da adequação, “que deita suas raízes na proporcionalidade. O princípio da
adequação, aliás, está para a suspensão como o princípio da individualização está para a
pena”, dizem os autores. E acrescentam que “o que o legislador quer, em suma, é que haja
proporcionalidade entre o fato e o seu autor, de um lado, e as condições da suspensão, de
outro”.188
São apresentados a seguir exemplos de sugestões de propostas oferecidas pelos
representantes do Ministério Público que oficiam na 1ª Vara Criminal de Sorocaba:
1º Exemplo:
Proposta 1: não mudar de residência, nem ausentar-se de seu domicílio por mais de
oito dias sem a prévia comunicação ao juízo; não frequentar bares, lupanares, boates e
estabelecimentos congêneres; comparecer em juízo sempre que intimado; comparecer
188
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. As
nulidades no processo penal. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 347.
139
bimestralmente em juízo a fim de justificar suas atividades e doar sangue por quatro vezes
(duas por ano), até o término do período de prova.
Proposta 2: não mudar de residência, nem ausentar-se de seu domicílio por mais de
oito dias sem a prévia comunicação ao juízo; não frequentar bares, lupanares, boates e
estabelecimentos congêneres; comparecer em juízo sempre que intimado; comparecimento
mensal a juízo para informar e justificar suas atividades; e entrega de dez cestas básicas a
entidade beneficente indicada pelo juízo.
2º Exemplo: nos crimes de embriaguez ao volante em que o réu comprovadamente não
é alcoólatra, são ofertadas até três propostas:
Proposta 1: não mudar de residência, nem ausentar-se de seu domicílio por mais de
oito dias sem a prévia comunicação ao juízo; não frequentar bares, lupanares, boates e
estabelecimentos congêneres; comparecer em juízo sempre que intimado; prestação de
serviços à comunidade pelo prazo de dez meses; suspensão da habilitação para dirigir pelo
prazo de seis meses; e frequência a curso de reciclagem ministrado pelos órgãos de trânsito.
Proposta 2: não mudar de residência, nem ausentar-se de seu domicílio por mais de
oito dias sem a prévia comunicação ao juízo; não frequentar bares, lupanares, boates e
estabelecimentos congêneres; comparecer em juízo sempre que intimado; entregar dez cestas
básicas à entidade beneficente indicada pelo juízo; suspensão da habilitação para dirigir pelo
prazo de seis meses; frequência a curso de reciclagem ministrado pelos órgãos de trânsito.
Proposta 3: não mudar de residência, nem ausentar-se de seu domicílio por mais de
oito dias sem a prévia comunicação ao juízo; não frequentar bares, lupanares, boates e
estabelecimentos congêneres; comparecer em juízo sempre que intimado; comparecimento
bimestral a juízo para informar e justificar suas atividades; doar sangue por quatro vezes (duas
vezes no primeiro ano e duas vezes no segundo ano); frequência a curso de reciclagem
ministrado pelos órgãos de trânsito.
140
5.3.6 Período de prova e extinção da punibilidade
Tal qual a suspensão condicional da pena, como já abordado, o período é de dois a
quatro anos. O quantum do lapso temporal pode levar em conta o crime, a personalidade do
acusado, bem como a cominação abstrata da pena, e até as peculiaridades da comarca.
Compete ao juiz do local da residência do réu promover a fiscalização do cumprimento das
condições impostas e aceitas. Se o acusado ultrapassou o período de prova sem revogação,
será extinta a punibilidade. Essa é mais uma modalidade entre as causas de extinção da
punibilidade catalogadas no artigo 107 do Código Penal.
5.3.7 Causas de revogação
A Lei n. 9.099/95 traz quatro causas de revogação do benefício, sendo duas de
natureza obrigatória e duas facultativas. Em caso de revogação da suspensão, a consequência
é que o processo fluirá até final julgamento.
5.3.7.1 Obrigatórias (art. 89, § 3º)
Se, no período de prova, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não
efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano, a revogação é obrigatória. Se vier a ser
processado por contravenção, é causa facultativa. Esgotando-se o período de prova, ainda que
exista inquérito policial pela prática de crime, não há óbice à extinção da punibilidade.
Na rotina do procedimento, quando o prazo estiver se expirando ou expirado, o
Ministério Público será consultado sobre a extinção da punibilidade. Solicitará a vinda aos
autos da folha de antecedentes do beneficiário, para aferir sua situação pessoal. Constando
dado desabonador, ou seja, que esteja sendo processado pela prática de crime ocorrido antes
ou durante o período de provas, pedirá a revogação do benefício. A revogação constitui
decisão interlocutória com força de definitividade e, como tal, desafia o recurso de apelação.
Caso a notícia desabonadora venha depois de expirado o prazo do período de prova,
revoga-se o benefício? A nosso ver, deve ser feita uma distinção fundamental. Se o fato
desabonador for anterior ao noticiado no processo em curso, caso o réu tenha cumprido todas
141
as condições impostas, mostra-se um contrassenso puni-lo pela incompetência do Poder
Judiciário e do órgão fiscalizador em checar seu passado quando da concessão do benefício.
Contudo, se concedido o benefício, e durante o período de prova o réu vier a responder por
outro processo, será caso de revogação.
A incúria da Justiça não pode redundar em nova punição – responder a processo penal
– ao réu que cumpriu todas as suas obrigações convencionadas. É certo que há decisões
contrárias, inclusive nos Tribunais Superiores. Porém, o juiz deve ponderar que o réu
compareceu vinte e quatro vezes ao fórum, além de ter se submetido, eventualmente, a outras
condições, e bastaria a juntada da folha de antecedentes antes do término do prazo para se
cassar a benesse. Fazê-lo quando expirado o biênio é ultrajar e apequenar a própria Justiça.
Por certo, se a sentença extintiva foi prolatada, e posteriormente descobre-se motivo
para a revogação, nada mais poderá ser feito, porque a decisão transitou em julgado e inexiste
entre nós a revisão pro societate.
Também é causa de revogação obrigatória a não reparação do dano. Se o réu, sem
motivo justo, descumpri-la, o juiz deverá revogar o benefício legal. Atente-se que se houve a
homologação do acordo em valor inferior ao débito estimado pela vítima, nada obsta que esta,
com ou sem cumprimento, promova ação civil para ressarcimento do restante.
5.3.7.2 Facultativas (art. 89, § 4º)
Caso o acusado venha a ser processado, no curso do prazo, por contravenção, ou
descumprir qualquer outra condição imposta, é faculdade judicial a revogação da benesse.
É aqui que pode ser analisado o descumprimento da doação de sangue como condição
judicial imposta na audiência de suspensão condicional do processo. Ficará a critério do
magistrado a revogação. De todo modo, como se trata de uma condição judicial, nada impede
que o magistrado a substitua por outra que seja adequada ao fato e às condições pessoais do
acusado.
Além das situações previstas no ordenamento, a doutrina menciona outras ocorrentes
no curso da suspensão e que podem redundar na revogação obrigatória do benefício. São elas:
142
a) Aditamento da denúncia pelo Ministério Público. Se novas provas surgirem e
obrigarem o órgão ministerial a aditar a denúncia, agravando a situação do acusado para crime
que inadmite a suspensão (exemplo: de furto simples para roubo), no caso de recebimento do
aditamento, o juiz deve determinar o cancelamento da benesse.
b) E se o réu for preso? O artigo 89, parágrafo 3º, é taxativo ao fixar como causa
obrigatória de revogação do sursis processual o fato do sujeito vir a ser processado por outro
crime. Assim, se da prisão sobrevier denúncia e ela for recebida, sobrevém causa obrigatória
de revogação.
c) E os crimes ambientais? A extinção da punibilidade não é automática. O juiz só
poderá declará-la depois de comprovada a reparação do dano ambiental, salvo se impossível
sua realização (art. 28 da Lei n. 9.605/98).
A revogação da suspensão do processo conduz à instrução da causa.
5.3.8 Prescrição (art. 89, § 6º)
Conforme previsão do dispositivo, durante o período de prova não fluirá o prazo
prescricional, restando obstaculizada a extinção de punibilidade.
5.4 Condições para concessão dos institutos despenalizadores
A Lei n. 9.099/95, em seu artigo 76, parágrafo 2º, disciplina que não se admite a
transação penal, se ficar comprovado:
I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, a pena
privativa de liberdade, por sentença definitiva;
II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de 05 (cinco) anos,
pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;
III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do
agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente
a adoção da medida.
O mesmo diploma legal expressamente detalha, no artigo 89, caput, que a suspensão
condicional do processo somente poderá ser oferecida ao acusado que não estiver sendo
processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que
autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do CP). Em outras palavras, além de
143
não estar respondendo a nenhum processo, deve ser primário, portador de bons antecedentes,
a conduta social e sua personalidade, bem como os motivos e as circunstâncias autorizarem a
concessão do benefício. Se essas mesmas condições subjetivas forem reconhecidas em sede
de sentença, será possível ao condenado, na hipótese preconizada pelo artigo 45, parágrafo 2º,
caso não possua condição financeira para arcar com o pagamento da prestação pecuniária,
aceitar proposta defensiva ou ministerial de substituição por doação de sangue.
5.5 Triagem inicial
No caso de o autor do fato, na audiência preliminar, em transação penal, ou o réu, na
audiência de suspensão, aceitarem a proposta que contenha a doação de sangue, a título de
cautela, para resguardo do futuro receptor, é feita uma triagem prévia, com algumas perguntas
sobre sua condição de saúde, bem como se reúne elementos razoáveis de percepção para a
futura ação beneficente.
Questionário prévio:
Questionário para seleção de doadores de sangue
SIM NÃO
Você ingere bebida alcoólica todos os dias?
Você já teve doença que transmite por sexo (doença venérea)?
Você tem doença de Chagas?
Você tem/teve malária ou sífilis?
Você tem AIDS ou hepatite?
Você já usou drogas ilícitas (de fumar, cheirar ou injetar)?
Você já esteve preso?
Você tem ou teve convulsão (epilepsia)?
Fez tatuagem nos últimos 12 meses?
Nesse quadro estão alguns impedimentos temporários e outros definitivos para a
doação de sangue. De se observar que as questões foram formuladas em conjunto com o Dr.
Frederico Brandão, um dos médicos responsáveis pela Associação Beneficente de Coleta de
144
Sangue (Colsan) na cidade de Sorocaba. A Colsan é uma entidade civil paulista, sem fins
lucrativos, que atua na área de hemoterapia, promovendo a captação de doadores, coleta,
análise e processamento do sangue e, posteriormente a distribuição dos hemocomponentes,
bem como os procedimentos pré-transfusionais, e é ligada à Unifesp.
Se porventura a resposta for negativa para os quesitos formulados, o cidadão estará
teoricamente habilitado a realizar a doação de sangue.
Receberá, então, o endereço do órgão autorizado a realizar a coleta. Na cidade de
Sorocaba, são dois, a Colsan e a Santa Casa de Misericórdia, locais em que será submetido a
triagem clínica mais aprofundada, realizada por profissional habilitado, tal qual já
explicitado.189
Caso o cidadão, comparecendo ao banco de sangue, seja considerado inabilitado para
fazer a doação, deverá retornar ao cartório da vara e, juntamente com seu advogado,
peticionar ao juízo, formulando opção por outra proposta. Pode, do mesmo modo, requerer a
realização de uma nova audiência.
Ao fazer a doação de sangue, receberá um comprovante, a ser levado à serventia,
evidenciando o cumprimento da pena ou condição.
Em se tratando de infração de menor potencial ofensivo, o cumprimento das sanções
acarretará a extinção de sua pena. Já o cumprimento de todas as condições, na suspensão
condicional do processo, acarreta a extinção da punibilidade.
5.6 Juízo das execuções penais
Considerando que o fundamento maior para a doação de sangue reside no bem-estar
físico e mental do doador, bem como em seu passado casto na seara criminal, para que
remanesça resguardada a saúde do futuro receptor, sempre ponderamos que seu cabimento se
restringiria às hipóteses estatuídas na Lei n. 9.099/95, como exposto neste capítulo.
189
Ver item 2.5.
145
Todavia, esse leque naturalmente tende a ser ampliado, na medida que a implantação
for se efetivando. Os operadores do direito, isto é, os responsáveis pela regulamentação da
prestação social alternativa, fatalmente encontrarão novas situações, igualmente legais, para
aplicação da doação de sangue. Foi o que ocorreu conosco, após a iniciativa completar um
ano na cidade de Sorocaba. Em conversa com outros colegas, surgiu a ideia de se implementar
na fase de execução da pena, bastando que todos os requisitos sejam observados. Assim, pode
alcançar os condenados por crimes considerados leves e médios, em que a pena imposta tenha
sido substituída por pena restritiva de direitos, nos termos do artigo 44 do Código Penal,
consistente no pagamento de pena pecuniária à vítima ou a entidade beneficente.
A prestação pecuniária, consoante artigos 43, inciso I, e 45, parágrafo 1º, do Código
Penal, consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública
ou privada, com destinação social, de importância fixada pelo juiz.
O juiz, ao fixar na sentença o quantum para o pagamento da prestação pecuniária,
pauta-se pelo prejuízo sofrido pela vítima em face do ato ilícito cometido, em razão de seu
caráter eminentemente reparatório ou indenizatório, como se extrai de voto do Ministro José
Arnaldo da Fonseca190. No entanto, para chegar a esse montante, o juiz conta somente com os
dados disponíveis no processo, uma vez que não existe previsão específica de procedimento
para calcular-se o prejuízo resultante da prática do crime.
O artigo 44, parágrafo 2º, do Código Penal estatui:
Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por
multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena
privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos
e multa ou por duas restritivas de direitos.
Quando o julgador, levando em conta a pena imposta, optar pela substituição por uma
ou duas penas restritivas de direitos, e escolher a modalidade de prestação pecuniária, é que
estamos diante da situação posta.
Ao ser executada essa sanção, se o condenado não reunir condições financeiras para
honrar o valor determinado, visando ao seu não recolhimento ao cárcere, nada impede que o
defensor requeira a substituição, exatamente, nos termos do artigo 45, parágrafo 2º, acima
190
STJ  HC n. 17.582/MS, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU, de 04.02.2002.
146
estudado. Ou seja, o condenado roga pela substituição da pena substitutiva por uma que se lhe
pareça proporcional com o crime praticado e com sua situação pessoal.
Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance
Fernandes tecem considerações sobre a função jurisdicional, ao lado da função administrativa,
afetas ao juiz das execuções penais. Para bem explicitar o exercício jurisdicional, lembram
que:
Realmente, não há como negar que o juiz da execução é chamado
frequentemente a exercer, em sua plenitude e pureza, a função jurisdicional.
A sentença condenatória penal contém implícita a cláusula rebus sic
stantibus, como sentença determinativa que é: o juiz fica, assim, autorizado,
pela natureza mesma da sentença, a agir por equidade, operando a
modificação objetiva da sentença sempre que haja mutação nas
circunstâncias fáticas. [...]. É assim que se explica, processualmente, o
fenômeno das modificações da sentença condenatória penal trânsita em
julgado, daí derivando a extensa gama de atividades jurisdicionais no
processo de execução penal, em cujo curso as modificações operam.191
É exatamente em tais situações de controvérsia que esse magistrado será instado a
decidir sobre a substituição de uma pena restritiva por outra.
Para sanar eventual dúvida sobre a possibilidade da substituição, imperativa a
lembrança de acórdão da lavra do desembargador Antonio Carlos Mathias Coltro, quando
atuava como juiz do antigo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Na ocasião, foi instado
a julgar agravo em execução em que a Promotoria de Justiça se revelava inconformada com a
decisão judicial que autorizara a substituição da prestação pecuniária por cestas básicas.
Valendo-nos dos principais aspectos do voto que sensibilizaram os doutrinadores da
família Delmanto, faremos essa transcrição, extraindo o mesmo teor:
O entendimento dirigido à impossibilidade de ser estipulada a pena restritiva
segundo critério determinante da entrega de cestas básicas a quem a lei
determina não é absoluto, encontrando na jurisprudência precedentes em
sentido diverso [...] em especial quando tanto se debate a respeito do
princípio da intervenção mínima e inclusive o da despenalização [...].
Entende-se a preocupação do recorrente em ver cumprida a lei nos estritos
191
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance, As
nulidades no processo penal, cit., p. 370.
147
termos nos quais editada, o que, todavia, não pode superar a realidade dos
fatos [...] Se a lei está morta, o mesmo não ocorre com o juiz, como
assinalado por Anatole France, cabendo interpretá-la da forma que melhor
atenda aos anseios do bem comum e, em especial, daquele a quem ela se
dirige no caso concreto (TACrSP, AgEx 1.270.877/0, rel. Juiz A. C. Mathias
Coltro, j. 7.11.2001, m.v. – in Bol. IBCCr 119/652).192
Neste ponto, lembramos nossa adesão à posição defendida por Damásio Evangelista
de Jesus, para quem as prestações sociais alternativas que consistirem em prestação de outra
natureza ou inominadas estão albergadas nas Regras de Tóquio.193
Dessume-se do lançado que a competência para aplicação da prestação de outra
natureza ou inominada é do juízo das execuções penais. Compete-lhe, pois, transformar a
prestação pecuniária em prestação de outra natureza, caso ela não seja paga, por absoluta
impossibilidade financeira.
Nessa linha, adverte Guilherme de Souza Nucci sobre a cautela judicial, na espécie,
nos seguintes termos:
[...] se o magistrado da condenação perceber que o réu não tem condições de
arcar com esse tipo de pena, por ser pobre, deve optar por outra, dentre as
previstas no Código Penal, pois não terá como fixar prestação de “outra
natureza” sem ouvir, antes, o beneficiário. Ouvindo, estará transformando,
indevidamente, sua sentença numa autêntica transação.194
Em que pese a advertência do autor, não raro vemos julgados contrastando a previsão
legal, justamente pelo entendimento de que a prestação pecuniária pode, já na sentença, sofrer
a substituição, numa espécie de aplicação do princípio da economia processual às avessas195.
Os magistrados de primeiro grau substituem a pena privativa de liberdade pela prestação
pecuniária e, de plano, impõem o número de cestas básicas que entendem compatível com a
situação econômica do réu. E, como visto, os tribunais as mantêm, senão aplicam por conta
própria, afrontando a finalidade para qual foi criada a pena restritiva em apreço.
192
DELMANTO, Celso et al., Código Penal comentado, cit., p. 167.
Ver item 3.4.1.
194
NUCCI, Guilherme de Souza, Código Penal comentado, cit., p. 244.
195
Por exemplo: “Porte ilegal de arma de fogo. Revólver calibre 32. Réu confesso. Testemunhas confirmando.
Perícia atestando eficácia da arma, apreendida municiada, num bar. [...]. Apelo provido para substituir a
reclusiva por dez dias-multa e prestação pecuniária de duas cestas básicas.” (TJSP  ACR n.
1100027350000000/SP, 2ª Câmara de Direito Criminal, rel. Ivan Marques, j. 01.12.2008, p. 19.12.2008). No
mesmo sentido: TJSP  ACR n. 1092492350000000/SP, 2ª Câmara de Direito Criminal, rel. Almeida Sampaio,
DJ, de 30.01.2009.
193
148
Os tribunais entendem como ilegal a interpretação dos juízes de execuções penais que
substituem a pena restritiva de prestação de serviços à comunidade por prestação de outra
natureza. As reformas de tais sentenças são rotineiras, diante da ausência de previsão legal
para tanto.196
Conquanto juízes de primeiro grau e desembargadores, a nosso aviso, atropelem o
normatizado e interpretem que a cesta básica – espécie de pena restritiva de direitos, na
modalidade de prestação de outra natureza – pode ser imposta em sede de sentença ou de
acórdão, no bojo da prestação pecuniária, como se moeda corrente fosse, essa substituição é
de competência exclusiva do juízo das execuções. Equivale dizer, na fase de execução da
pena, sim, mostra-se adequada a substituição da prestação pecuniária pela entrega de cestas
básicas.
Quando da fase executiva da pena, vemos total pertinência na substituição da
prestação pecuniária por doação de sangue.
Inovando dentro da ideia proposta, será objeto de apreciação, no item 6.1, a Portaria n.
1/2011, baixada pelo Juiz da 1ª Vara Criminal e das Execuções Criminais de Assis, em São
Paulo, Adugar Quirino do Nascimento Junior. Na normatização, o magistrado traz uma
espécie de remição para os condenados que receberam pena substitutiva, na modalidade de
prestação de serviços à comunidade e que não foram recolhidos ao cárcere. Para cada doação,
o sentenciado abaterá dezesseis horas do montante a cumprir. Obviamente, a adesão é
voluntária e somente fará a doação o condenado que se sentir habilitado a tanto.
196
“Execução Penal. Recurso especial. Art. 148 da LEP e art. 45, § 2º, do CP. Substituição da pena de prestação
de serviços à comunidade por pagamento de cesta básica. Impossibilidade. Aplicada a pena restritiva de
direito, consistente na prestação de serviços à comunidade, após o trânsito em julgado da condenação, só é
permitido ao Juiz da Execução, a teor do disposto no art. 148 da LEP, alterar a forma de cumprimento,
ajustando-as às condições pessoais do condenado e às características do estabelecimento, vedada a substituição
da pena aplicada (Precedente desta Corte). Recurso provido.” (STJ  REsp n. 884.323/RS (2006/0166285-4),
5ª T., rel. Min. Felix Fischer, j. 19.04.2007, DJ, de 13.08.2007). No mesmo sentido: “Penal. Processual.
Apelação criminal. Apropriação indébita previdenciária. Materialidade e autoria comprovadas. Desnecessidade
da comprovação do dolo específico. Dificuldades financeiras e inexigibilidade de conduta diversa não
comprovadas. Condenação mantida. Pena substitutiva: prestação de serviços à comunidade: pedido de
substituição por pagamento de cestas básicas: argumento: conveniência do condenado: impossibilidade. [...].
As dificuldades financeiras, para caracterizar a inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de
exclusão de punibilidade, devem ser de ordem a colocar em risco a existência da empresa, contemporânea aos
fatos e devidamente comprovada [...] O juiz das execuções penais pode especificar a prestação de serviços à
comunidade de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho do apenado, desde que mantenha a razão
de uma hora por dia da pena substituída. Apelação a que se nega provimento.” (TRF-3ª Região 
2005.61.15.000092-2/SP, 2ª T., rel. Des. Fed. Henrique Herkenhoff, DJ, de 13.07.2010).
149
Este não é o momento adequado para avaliar a legalidade da medida proposta pelo
magistrado de Assis, contudo, pelo que se tem notícia, a Corregedoria Geral de Justiça não se
opôs à sua decisão.
Ademais, na cidade de Limeira, por iniciativa do magistrado Luiz Antonio Barrichello
Neto, propaga-se esta mesma medida, conforme projeto instituído em 22 de junho de 2012 e
anexado ao final.
150
151
6 RESULTADOS: A EXPERIÊNCIA PRÁTICA
A implantação da proposta de trabalho teve início no mês de setembro de 2010. Como
esperado, a novidade exige adaptação dos sujeitos processuais197, secundários198 e terceiros199.
Nos juizados especiais criminais, a figura do conciliador é de crucial importância para o
melhor desenvolvimento da atividade jurisdicional e para auxiliar no desafogo do elevado
número de processos nas unidades judiciárias.
O artigo 60 da Lei n. 9.099/95 preceitua que “o Juizado Especial Criminal, provido
por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a
execução das infrações penais de menor potencial ofensivo”. Os juízes leigos são auxiliares
do juiz togado e podem participar exclusivamente da fase conciliatória. É exigível que sejam
pessoas dotadas de conhecimentos técnico-jurídicos para que, tomando conhecimento dos
fatos que deram causa ao litígio, busquem o consenso entre as partes. É vedado ao conciliador
praticar qualquer ato decisório, reserva restrita ao juiz togado.
Consoante prevê o artigo 73, parágrafo único: “Os conciliadores são auxiliares da
Justiça, recrutados, na forma da lei local, preferentemente entre bacharéis em Direito,
excluídos os que exerçam funções na administração da Justiça Criminal.”
Não se olvide que quando a Lei n. 9.099 entrou em vigor, no final do ano de 1995, e
nos primeiros anos seguintes, não se instalaram varas especializadas em infrações de menor
potencial ofensivo, ficando, por conseguinte, às varas criminais sua aplicabilidade. Aos
poucos foram se instalando. Ainda hoje não são muitas as varas especializadas,
197
No trato dos sujeitos processuais, José Frederico Marques leciona que o juiz “é a figura central do processo,
representa e encarna o Estado, na relação processual, como órgão jurisdicional a quem incumbe aplicar os
preceitos da ordem jurídica para compor a lide”. Para ele: “Partes, por outro lado, são aqueles que pedem ou
contra quem se pede a prestação jurisdicional do Estado qua juiz. De modo geral, partes são o sujeito ativo e o
sujeito passivo, respectivamente, da pretensão e da lide.” (Tratado de direito processual penal. São Paulo:
Saraiva, 1980. v. 2, p. 168-169).
198
Sujeitos secundários ou acessórios ou colaterais são os que têm direitos perante o processo. São facultativos,
pois podem existir ou não, uma vez que não afetam a relação processual, caso não existam. Ex.: o ofendido
como assistente da acusação e o fiador do réu.
199
Terceiros são aqueles que não têm direitos processuais, mas intervêm e cooperam para o desenvolvimento da
relação jurídico-processual, sem se converterem em sujeitos ou partes (MARQUES, José Frederico. Tratado de
direito processual penal, cit., p. 172). Os terceiros podem ser interessados, como o Ministro da Justiça que
requisita a ação penal nos crimes de ação pública condicionada à sua requisição, e não interessados, como as
testemunhas, peritos, intérpretes, tradutores e auxiliares da justiça.
152
remanescendo, por ora, a competência cumulativa das varas criminais para aplicação dos
institutos de composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo.
As varas e os juizados especiais criminais conciliam, julgam e executam as infrações
penais de menor potencial ofensivo. Os juizados federais criminais, igualmente, processam,
julgam e executam as mesmas causas, se de sua competência. Em qualquer caso, as varas e os
juizados devem respeitar as regras de conexão – quando as infrações possuem vínculo entre si
– e continência  quando um fato criminoso contém outros. Significa que na determinação da
competência nos casos de conexão ou continência, aplica-se a regra geral estatuída nos artigos
76, 77 e 78, I, do Código de Processo Penal. Em outras palavras, havendo conexão ou
continência entre crime de competência da Justiça comum ou de competência do júri com
infração de menor potencial ofensivo, prevalecem aquelas. Por exemplo: em conexão entre
crimes de roubo e porte de drogas ou homicídio doloso e ameaça, ambos serão processados e
julgados perante a Justiça comum e vara do júri, respectivamente. De qualquer modo, o juízo
competente aplicará os institutos da transação penal e da composição dos danos civis, se
cabíveis, à infração de menor potencial ofensivo. No atinente à Justiça Federal, as regras são
idênticas quanto à reunião de processos perante o juízo comum ou o tribunal do júri federal,
decorrentes da aplicação das regras de unificação dos processos.200
Em suma, quando todos os atores envolvidos tiveram ciência das inovações, a
implantação teve origem.
No início, o ceticismo tomou conta dos operadores, em especial dos juízes, porquanto
dentro do desenvolvimento do programa estabelecido se mostrava essencial a movimentação
do magistrado, no sentido de convencer os promotores de justiça na seara estadual, ou os
procuradores da república na esfera federal, a passarem a oferecer mais de uma proposta de
acordo, eis que somente com duas ou três respeita-se a privacidade e a voluntariedade do
cidadão.
200
A Lei n. 11.313, de 28 de junho de 2006, deu nova redação ao artigo 60, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95 e
parágrafo único do artigo 2º da Lei n. 10.259, que versa sobre a criação dos Juizados Especiais Federais, nos
seguintes termos: na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da
aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição
dos danos civis.
153
A grande maioria dos juízes preferiu aguardar algum resultado palpável do projeto
lançado. No entanto, alguns operadores, ao lerem o teor do artigo publicado sobre a matéria,
se afinaram com os propósitos ali contemplados e convenceram magistrados e membros do
Ministério Público a darem início. Assim aconteceu em Campinas, na 3ª Vara Criminal de
Sorocaba e na Vara Criminal Federal de Sorocaba.
O artigo doutrinário foi publicado em sítios jurídicos eletrônicos e revistas
especializadas do Ministério Público e Magistraturas estadual e federal, pelo Brasil. 201
Vários simpatizantes optaram somente pelo aplauso, mantendo inalteradas as medidas
tradicionais. Outros pediram o material utilizado e o adotaram; assim foi o caso de Taubaté e,
mais tarde, de São Paulo, no Juizado Especial Criminal do Ipiranga.
Alguns promotores, sponte sua, acertaram com os juízes com quem atuam e
desfraldaram a nova pena alternativa. É o caso de Itapecerica da Serra e São José do Rio
Preto.
6.1 Primeiro aniversário
Em setembro de 2011, a doação de sangue como pena restritiva de direitos completou
um ano. No levantamento do número de doações contratado entre os autores de fatos e réus,
chegou-se a 415.
A matéria foi divulgada pelos meios de comunicação local e estadual. Segue a
abordagem feita pelo jornal Diário de Sorocaba, no dia 29.09.2011.
201
Alguns
sítios
jurídicos
eletrônicos:
<www.saraivajur.com.br>;
<www.epm.tjsp.jus.br>;
<www.novacriminologia.com.br>; <www.lfg.com.br>; <www.jus.com.br>; <www.jusbrasil.com.br>;
<www.ejef.tjmg.jus.br>. Algumas revistas e cadernos jurídicos impressos: Cadernos Jurídicos da Escola
Paulista da Magistratura, n. 33, maio/ago. 2011; Revista da Escola do Ministério Público do Estado de Goiás,
n. 21, jan./jun. 2011; Revista da Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região, v. 15, ago. 2011.
154
Doação de sangue como pena alternativa completa um ano
O Poder Judiciário pode ajudar a saúde pública. Com essa premissa, o juiz
titular da Primeira Vara Criminal de Sorocaba, Jayme Walmer de Freitas,
estudou e passou a adotar como pena alternativa, de prestação de serviços à
comunidade, a doação de sangues para pessoas que tenham cometido
contravenções ou crimes de menor e médio potencial ofensivo.
Em um ano, foram 415 doações de quase 200 condenados a penas leves. A
alternativa é oferecida a pessoas que cometeram contravenções penais como
jogos de azar (caça-níqueis) ou crimes de menor potencial ofensivo como
lesão corporal leve, ameaça, desacato, constrangimento ilegal, lesão corporal
de trânsito, dirigir sem CNH, etc.
Sabendo que o promotor é legitimado para propor negociação e que é
necessário haver mais de uma proposta de prestação de serviços à
comunidade, Jayme Walmer de Freitas percebeu que a escolha se tornava
voluntária. Com isso, a doação de sangue, que precisa ser de livre e
espontânea vontade, apresentou-se como uma forma de prestar um serviço e
também de incentivar a solidariedade.
Desse período, ele guarda a história de um rapaz de 19 anos que, durante o
julgamento, estava cabisbaixo, indeciso sobre a decisão que ia tomar para
pagar pelo seu erro. Após a fala do juiz, o jovem perguntou: “Se eu doar
sangue, posso salvar uma vida, doutor?”. Jayme respondeu que até três
pessoas poderiam ser salvas com uma doação. “A pessoa sente que pode ser
útil à sociedade e pode adquirir valores éticos que não tinha”, disse o juiz.
Quem for “condenado” a doar sangue, terá de fazê-lo de duas a seis vezes.
Entre os que praticaram crimes de menor potencial ofensivo, 70% das
doações foram de pessoas contraventores penais, 20% de pessoas que
responderam ao Código Penal, 9% de infratores de trânsito e 1% que
cometeram crimes ambientais. Para potencial ofensivo médio, 55%
desrespeitaram o Código de Trânsito Brasileiro, 44% o Código Penal e 1%
era de criminosos ambientais.
O juiz fez questão de frisar a defesa do receptor desse sangue. “A pena só
pode ser aplicada a quem não teve mácula anterior, ou seja, tem um passado
limpo e não foi preso ou tem registro criminal”, explica. E a pena nunca é
imposta, mas proposta. “A pessoa pode ter medo de agulha, de sangue, ter
alguma doença impeditiva, ter feito uma tatuagem ou, até mesmo, pertencer
a alguma religião que não permita a doação. Mas os resultados têm sido
gratificantes”, conta.
O quadro demonstrativo das estatísticas reportadas leva em conta as infrações de
menor potencial ofensivo, divididas em contravenções penais e crimes, estes do Código Penal
e de leis especiais. Dentre as de médio potencial ofensivo, ficam restritas ao Código Penal e
leis especiais:
155
LEI
N.
9.099/95
INSTITUTO
INFRAÇÃO E PERCENTUAL
Nº
DE
DESPENALIZA
DOAÇÕES
DOR
DE SANGUE
MENOR
TRANSAÇÃO
a) Contravenção penal – 70%
POTENCIAL
PENAL (ART. 76)
b) Crimes previstos no Código Penal
Nº
DE
PESSOAS
177
103
238
53
415
156
– 20%
OFENSIVO
c) Crimes de trânsito – 9%
d) Outros – 1%
MÉDIO
SUSPENSÃO
a) Crimes previstos no Código Penal
POTENCIAL
CONDICIONAL
– 44%
OFENSIVO
DO
b) Crimes de trânsito – 55%
PROCESSO
(ART. 89)
c) Outros – 1%
TOTAL
Essa matéria foi divulgada entre os juízes paulistas, o que levou alguns a adotá-las. Foi
o caso de Tupã, Tatuí, Limeira, Ribeirão Pires, Votorantim e Salto de Pirapora. Por último, a
cidade de Bebedouro.
Em aula ministrada a juízes vitaliciandos, no dia 20 de outubro de 2011, na Escola
Paulista da Magistratura, tecemos considerações sobre a lei das prisões e sobre a doação de
sangue. Ela foi retransmitida para outros Estados, dentre eles Tocantins e Acre. Alguns juízes
desses Estados solicitaram o material por nós usado e o repassaram para os demais colegas da
esfera criminal.
A Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, por meio do Ofício n.
3301/FVSG/DICOGE 2.1, de 24 de outubro de 2011, solicitou-nos o material empregado nas
audiências consensuais, “a fim de melhor conhecer a doação de sangue como pena alternativa,
bem como avaliar a ação como boa prática a ser adotada por outros juízos, inclusive com
cópias de decisões respectivas, eventuais relatórios e outros dados que puderem contribuir
para eventual futura recomendação da prática”.
Como dito alhures, na cidade de Assis, consoante notícia divulgada em 22 de
dezembro de 2011, o juiz corregedor dos presídios, Adugar Quirino do Nascimento Souza
Junior, por meio da Portaria n. 1/2011, criou o “Programa de Doação de Sangue por
156
Reeducandos da Vara de Execuções Criminais de Assis/SP”. A medida atinge os condenados
que não tenham sido encarcerados e que receberam pena substitutiva, na modalidade de
prestação de serviço à comunidade, que voluntariamente doarem sangue ao Banco de Sangue
de Assis, nos termos da Portaria; os que comprovarem a doação à Central de Penas e Medidas
Alternativas de Assis terão o abatimento da pena de prestação de serviços à comunidade na
proporção de 16 horas de por doação de sangue feita.202
6.2 Outros Estados. Outras iniciativas
Tão logo nos debruçamos sobre o estudo do tema, em 2010, constatamos que nos
Estados do Rio de Janeiro e Paraná houve iniciativas semelhantes.
No Estado do Rio de Janeiro, coube à então juíza titular da Vara do Juizado Criminal
de Nova Iguaçu, Rosana Navega Chagas, a iniciativa que, em poucos meses, sucumbiu em
face de liminar em mandado de segurança obtida no Tribunal de Justiça por representantes do
Ministério Público que discordaram da fórmula adotada, qual seja, a imposição da medida. A
doação de sangue em Nova Iguaçu durou poucos meses.203
Em Curitiba, os juizados especiais criminais, sob a batuta do então juiz, hoje
desembargador, José Laurindo de Souza Netto, firmaram convênio, no ano de 2002, com o
Centro de Hematologia do Paraná, estabelecendo a doação de sangue como alternativa ao
cumprimento de sentença por pequenos atos infracionais. Conquanto o idealizador tenha
recebido prêmios por sua iniciativa, pouco tempo durou o trabalho. O motivo da
descontinuidade nos é desconhecido, malgrado todos os esforços pessoais deste subscritor
para deslindá-lo.
Em Vitória, o juiz da Vara Privativa de Execução de Penas e Medidas Alternativas
(VEPEMA), Carlos Eduardo Ribeiro Lemos, baixou, em 4 de março de 2011, a Portaria n.
1/2011, instituindo a doação de sangue como pena restritiva de direitos, determinando que o
202
REEDUCANDOS que prestam serviços à comunidade podem doar sangue no HR e ter desconto de 16 horas
nas suas penas. Disponível em: <http://www.assiscity.com/?id=81-11515>. Acesso em: 20 fev. 2012.
203
Para melhor conhecimento da proposta, sugerimos a leitura do artigo jurídico escrito pela juíza: CHAGAS,
Rosana Navega. Doações voluntárias de sangue: uma alternativa para a pena e para a vida. Revista da EMERJ,
Rio
de
Janeiro,
v.
8,
n.
29,
p.
168-178,
jan./mar.
2005.
Disponível
em:
<http://www.tj.rj.gov.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_penal/doacoes_voluntarias_sangue.pdf
>. Acesso em: 10 mar. 2012.
157
condenado com pena de prestação de serviços à comunidade poderá requerer o benefício da
substituição de horas de prestação por doação de sangue, na proporção de 7 horas da pena de
prestação para cada doação feita, deixando claro que a doação de sangue será feita de forma
voluntária e não o vinculará com nenhuma obrigação em continuar como doador.204
Como apontado acima, na cidade de Assis, a adoção de medida similar vem surtindo
bons efeitos, contudo o abatimento é maior.
Sem estabelecer parâmetros, como se infere do Anexo 2, Limeira adotou a mesma
medida.
204
Os fundamentos do magistrado para edição da Portaria merecem cuidadosa atenção, haja vista o descaso da
Secretaria de Saúde estadual (ver Anexo 1).
158
159
7 CONCLUSÕES
1. A doação de sangue como prestação social alternativa e espécie de pena restritiva de
direitos atende aos postulados de direitos fundamentais e sociais firmados na Constituição
Federal, porquanto ancorada no supraprincípio da dignidade da pessoa humana e no princípio
da individualização da pena. Reverencia a pessoa do doador e contribui com a saúde pública,
preservando a vida e a integridade física do receptor. No patamar infraconstitucional, por se
inserir no rol das medidas de despenalização e se adequar às exigências legal e regulamentar,
amolda-se à Lei n. 10.205/2001 e à Resolução de Diretoria Colegiada n. 57/2010 da Anvisa.
Do mesmo modo, tem sua aplicabilidade dentro dos paradigmas das Regras de Tóquio,
porquanto é uma medida alternativa à prisão.
2. A prestação social alternativa é uma das modalidades de sanção estatal prevista na
Constituição Federal, na alínea “d” do inciso XVLVI do artigo 5º, figurando ao lado da pena
privativa ou restritiva da liberdade, perda de bens, multa e suspensão ou interdição de direitos.
O legislador ordinário não acolheu a nomenclatura no Código Penal, preferindo inseri-la no
contexto das penas restritivas de direitos, sob a rubrica de prestação de outra natureza ou
prestação inominada.
3. O rol de penas restritivas de direitos de 1984 era o seguinte: prestação de serviços à
comunidade ou a entidades públicas; proibição de exercício de cargo, função ou atividade
pública; proibição de exercício de profissão, atividade ou ofício; suspensão de autorização ou
habilitação para dirigir veículo; limitação de fim de semana; e multa. Em 1998, a Lei n. 9.714,
alterou o panorama e reescreveu o artigo 43, passando a prever, além das mencionadas, as
penas de prestação pecuniária, perda de bens e valores, proibição de frequentar determinados
lugares e a prestação alternativa inominada. O legislador encontrou na criação da prestação de
outra natureza ou inominada a fórmula para legitimar a doação de cestas básicas como pena
restritiva de direitos, a qual vinha sendo adotada pelos operadores de direito sem amparo
técnico-jurídico.
4. A prestação de outra natureza, conhecida como inominada, é pena substitutiva da
prestação pecuniária, na hipótese em que o condenado não possui condição financeira para
facear a determinação judicial, dependendo, em regra, de aceitação do beneficiário. A partir
160
de então, toda espécie de prescrição punitiva criada por operadores de direito sintonizava-se
com essa previsão. É o que se viu na doação de cobertores, roupas, medicamentos, livros,
resmas de papel, mão de obra em prol do beneficiário.
5. A carência dos bancos de sangue é um dilema perene, somente minorada mediante
campanhas institucionais constantes realizadas pelo Ministério da Saúde pela imprensa e
pelos doadores de reposição, considerando que o percentual de doador fidelizado não é
expressivo. O Poder Judiciário encontra na prestação de outra natureza o trilho para cooperar
com a saúde pública, encaminhando os autores de infrações de menor e médio potencial
ofensivo para os bancos de sangue espalhados pelo país.
6. Considerando que existem varas criminais (leia-se também: juizados especiais
criminais) em praticamente todos os cantos do Brasil, ao se adotar essa boa prática, o aumento
do número de doadores, embora de primeira vez, recrudescerá enormemente e a tendência
será a de reduzir a escassez de estoque verificada nos bancos de sangue. Como nosso
percentual de doadores é de 1,9%, e o ideal é 3%, segundo a OMS, as previsões do Ministério
da Saúde, especialmente a última, de quatro milhões de doadores, que equivalem a 2,1%,
pode tornar-se viável, sem maiores dificuldades.
7. O doador obrigatoriamente será pessoa de passado imaculado, que jamais tenha tido
contato com o cárcere. Se na década de 1980 a dedicação de médicos abnegados culminou
com o fim da doação de sangue por sentenciados, mendigos e pessoas remuneradas,
atualmente esse cuidado deve ser mantido e redobrado, não obstante a melhoria dos testes de
coleta, exatamente para a preservação do futuro receptor. Além de não ter sido enclausurado
anteriormente, o doador deve preencher uma série de outros quesitos, denominados
impedimentos definitivos e transitórios, de molde a resguardar a saúde dele e do receptor.
8. A doação de sangue, no formato proposto, leva-nos a concluir que está predisposta
em um tripé de requisitos: voluntariedade, altruísmo e não remuneração.
9. Voluntária porque afeta a um ato de vontade da pessoa. Ato que está sob o seu
controle, que pode optar por fazer ou não. Não se concebe alguém ser obrigado, instado
compulsoriamente, a doar sangue. A voluntariedade é inerente à doação de sangue. Como na
década de 1990, os juízes determinavam, em sede de sentença, ao acusado ou condenado doar
161
sangue, prestando serviços à comunidade, ferido estava esse pressuposto. A doação de sangue
deve ser fruto de opção de escolha do cidadão em uma audiência eminentemente consensual.
Isto é, fica-lhe facultado assumir o encargo para não responder a um processo-crime ou não
ser submetido ao cárcere. Preservam-se sua privacidade e intimidade, dogmas constitucionais
de natureza individual. Fica, pois, reservado ao órgão acusador, Ministério Público ou
querelante, formular mais de uma proposta ao autor do fato, quando se tratar de transação
penal ou suspensão condicional do processo. E a ele próprio, quando na fase de execução da
pena. Sendo tais propostas legais e de acordo com a moral e a ética, inexiste fundamento para
que o juiz não as homologue.
10. Altruísta porque consiste em doar ao próximo desinteressadamente o que cada
pessoa possui. O Poder Judiciário, por meio do homem-juiz, ciente que cada qual tem em
essência a tendência, ainda que mínima, de fazer o bem ao próximo, serve como agente
catalisador, estimulando mudanças e comportamentos, acelerando o processo de inserção
social do futuro doador. O altruísmo pode ser estimulado, uma vez que é inato ao homem,
bastando que se abra caminho para seu desabrochar e desenvolvimento.
11. Não remunerada porque a Constituição Federal veda a comercialização do sangue,
ou, em outros termos, exige que o ato seja não remunerado. O tema central deste trabalho
aborda a doação de sangue como prestação social alternativa, ou seja, impõe ao cidadão uma
obrigação de fazer em prol de terceiro desconhecido, a fim de que não tenha sua liberdade
retirada. Em outras palavras, permite ao autor de infração de menor e médio potencial
ofensivo transacionar com o Estado, nos moldes preconizados pela Lei n. 9.099/95, com o
adendo de, ao mesmo tempo, doar sangue.
12. Autoestima. É curial que, na área criminal, o autor de um crime nutra o
autodesprezo, isto é, insatisfação consigo próprio por ter infringido um regramento. A prática
de uma infração projeta na pessoa intenso constrangimento e desconfiança em seus atos e
julgamentos. É dever do Poder Judiciário melhorar essa negatividade, oferecendo meios para
transformar e proporcionar a redenção do criminoso perante a sociedade. Como pontuado, a
falência do sistema prisional não tem o condão de recuperar ou de reinserir o condenado no
meio social. Ao contrário, a convivência nefasta com criminosos de alto calibre ocasiona um
desvirtuamento moral maior. Por essa razão, é comum os doutrinadores aclamarem que as
cadeias são escolas de pós-graduação do crime. A pessoa sai em condições piores. Não raro,
162
ali passam a integrar uma das diversas facções do crime organizado. Cientes dessa mazela
gravíssima de nossos estabelecimentos prisionais, a tolerância legal com quem cometeu
infração de menor ou médio potencial ofensivo, sujeitando-o a sanções não privativas de
liberdade catalogadas na codificação penal, substitutivas da pena privativa da liberdade, por si
só é fator desencadeante de confiança em medidas mais eficazes de valorização da pessoa
humana. A prática de um delito e os danos causados geralmente levam o autor a potencializar
arrependimento pelas sequelas provocadas no seio da comunidade. Pois bem, ao ser instado a
reparar o mal causado com um bem de alcance incomensurável, a doação de sangue surge
como uma possibilidade real de contrabalançar o mal praticado com o bem,
independentemente da classe social e cultural do cidadão.
13. Momentos processuais. Um dado inseparável e insuperável da pessoa do doador
deve preceder ao ato: o agente deve ser portador de um passado imaculado, indene de
envolvimentos na seara criminal. O futuro receptor não pode sofrer riscos maiores porque o
doador é oriundo de um processo-crime. E cabe ao Poder Judiciário preocupar-se com as
circunstâncias e consequências do ato jurídico que patrocinará, inadmitindo doadores que
optam pela sanção, por lhe ser financeiramente mais favorável. Em se tratando de pessoa com
o passado isento de qualquer nódoa, a ela pode ser feita a proposta. Essa doação de sangue se
identificará com qualquer outra realizada no país, por pessoas voluntárias, cadastradas ou não
nos bancos de sangue. E as três hipóteses em que o acordo judicial pode se materializar são:
a) nas transações penais; b) na suspensão condicional da pena; e, c) na execução da pena
quando a pena privativa de liberdade foi substituída por restritivas de direitos, nos termos do
artigo 44 do Código Penal. Mais especificamente, o autor do fato, nas infrações de menor
potencial ofensivo, em transações penais; o réu, nas infrações de médio potencial ofensivo,
nas suspensões condicionais do processo; e o condenado, nas infrações de menor ou médio
potencial ofensivo, na substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, na
modalidade de prestação de outra natureza ou inominada. Em qualquer dessas hipóteses, o
cidadão se livra do cárcere. Esses institutos processuais se materializam comumente em três
momentos distintos: um pré-processual relativo à transação penal; outro processual
concernente à suspensão condicional do processo; e, por fim, na fase de execução da pena,
quando não tendo condições de arcar com a prestação pecuniária imposta, o sentenciado
requer substituí-la por outra em que se insira a doação de sangue. Da concordância
ministerial, o juiz pode acatar a pretensão e deferir o pedido.
163
14. O potencial de efetiva cooperação do Poder Judiciário com a saúde pública pode
ser medido a partir do número de varas criminais e de juizados especiais criminais existentes
no país. Consoante levantamento realizado pelo Setor de Pesquisas do Tribunal de Justiça do
Estado em cada tribunal, esse total é de 1.880, sendo 1.294 varas criminais e 586 juizados
especiais criminais. Considerando que cada juiz pode alcançar um número médio de 150
doadores/ano, tomando por base a realidade da 1ª Vara Criminal de Sorocaba, mostra-se
viável alcançar quase 300.000 doadores/ano. Na medida que a população brasileira era de
190.732.654, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010205, o
Poder Judiciário cooperaria para a elevação do percentual atual de doadores de 1,9%, cerca de
3.600.000, para 2,04%, aproximadamente 3.900.000. Ainda que pareça utópico, é uma
realidade palpável que não pode ser desprezada por quem pretende cooperar com a realidade
atual e melhorar os estoques dos bancos de sangue. Tomando o exemplo da área de
hematologia que, numa luta incessante, vem tentando atender aos anseios da Organização
Mundial da Saúde, cumpre ao Poder Judiciário espraiar entre os juízes criminais brasileiros e
explorar esse filão tão profícuo para o bem-estar do próximo.
15. A proposta telada permite ao Poder Judiciário figurar como parceiro do Poder
Executivo, dentro das políticas públicas desenvolvidas pelo Ministério da Saúde na área da
doação de sangue e hemoderivados, visando a auxiliar, de forma constante, o suprimento dos
bancos de sangue e seus componentes, em todo o território nacional, materializando o
princípio constitucional de harmonização dos poderes, ao permitir a interpenetração em prol
do bem comum.
16. A justiça social assentada na potencial salvação de vidas humanas se torna o
objetivo maior da tarefa a ser desempenhada pelos magistrados criminais de todo o país, ao
conceberem a doação de sangue como prestação social alternativa.
205
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766>.
Acesso em: 10 mar. 2012.
164
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174
175
APÊNDICE
QUADRO GERAL DE VARAS CRIMINAIS E DE JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS DA
JUSTIÇA ESTADUAL BRASILEIRA (Posição em março de 2012)*
TRIBUNAL
VARAS
VARAS DE JUIZADO
FONTE
CRIMINAIS
ESPECIAL CRIMINAL
INFORMAÇÃO
14
3
DE
Ana (Biblioteca)
(68) 3211.5357
20
21
Site
ALAGOAS
24
5
Pedro (CGJ)
AMAZONAS
(92) 2129-6675
8
4
Telma (CGJ)
AMAPÁ
(96) 3312-3300
43
30
Site
BAHIA
33
59
Raquel (CGJ)
CEARÁ
(85) 3207-7146
36
30
Site
DISTRITO FEDERAL
71
23
Site
ESPÍRITO SANTO
38
63
Site
GOIÁS
16
5
Fábio (CGJ)
MARANHÃO
(98) 3221-8501
110
78
Dilmo (CEINFO)
MINAS GERAIS
(31) 3237-6254
34
1
Wilma
MATO GROSSO
(65) 3117-3740
21
8
Site
MATO GROSSO DO SUL
22
34
Site
PARÁ
20
6
Gina – Gerência de Apoio
PARAÍBA
Operacional
(83) 3216.1678
88
16
Site
PERNAMBUCO
13
22
Site
PIAUÍ
49
21
Site
PARANÁ
100
25
Site
RIO DE JANEIRO
67
14
Site
RIO GRANDE DO NORTE
23
5
Site
RONDÔNIA
8
5
Site
RORAIMA
105
11
Site
RIO GRANDE DO SUL
58
15
e-mail
SANTA CATARINA
11
1
e-mail
SERGIPE
214
58
DIMA (e-mail)
SÃO PAULO
48
13
Pablo (CGJ)
TOCANTINS
(63) 3218-4503
* Foram considerados somente as varas e os juizados criminais, excluídas as varas de entrância inicial e as
ACRE
federais.
176
177
ANEXO 1
5ª Vara Criminal de Vitória – Privativa de Execução de Penas e Medidas Alternativas VEPEMA
PORTARIA Nº 001/11
O Doutor CARLOS EDUARDO RIBEIRO LEMOS, MM. Juiz de Direito Titular da Vara de
Execuções de Penas e Medidas Alternativas, no uso de suas atribuições legais e por nomeação
na forma da Lei etc.
CONSIDERANDO a competência desta Vara Privativa em Execução de Penas e Medidas
Alternativas, instituída por meio da Lei Complementar Estadual nº 364/06;
CONSIDERANDO que segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde) a cada 3 segundos
alguém precisa de sangue e na maioria das vezes essa pessoa não consegue doador compatível
e acaba morrendo nos leitos hospitalares;
CONSIDERANDO que aqueles que precisam de transfusão têm de contar com a boa vontade
de doadores, uma vez que nada substitui o sangue verdadeiro retirado das veias de outro ser
humano e que muitas vezes vários tipos de sangue não são encontrados no banco de sangue
dos hospitais;
CONSIDERANDO que a previsão legal das prestações de serviços à comunidade atende a
uma nova ordem mundial e constitucional: a socialização das penas alternativas como o seu
principal requisito;
CONSIDERANDO que a doação de sangue poderá ajudar na inclusão social dos beneficiados
com prestação de serviços à comunidade como conseqüência da exteriorização da extrema
solidariedade do ato, que inclusive é considerado pela Lei 1.075/50 como sendo “ato de
louvor”, que gera dispensa em 1 dia de serviço para qualquer trabalhador;
CONSIDERANDO o grande potencial de vidas a serem salvas em toda a Grande Vitória
como conseqüência da aplicação das doações voluntárias de sangue pela VEPEMA;
CONSIDERANDO a voluntariedade da doação de sangue ora proposta, pela livre opção dos
prestadores de serviços à comunidade, diante de outra oferta de pena de natureza societária;
CONSIDERANDO que desde o ano de 2009 este Juízo vem tentando firmar parceria com a
Secretaria de Saúde do Estado, que até hoje não deu resposta a este Juízo, e enquanto o Estado
tarda pessoas morrem por falta de sangue;
CONSIDERANDO que a presente portaria não atinge apenados presos, mas somente os
apenados que receberam penas alternativas na modalidade de prestação de serviços à
comunidade;
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RESOLVE:
1) Instituir esta portaria, direcionada a todos os beneficiários encaminhados a este Juízo pelas
Varas Criminais Comuns ou dos Juizados Especiais Criminais, apenados com prestação de
serviços à comunidade, criando o “PROGRAMA DE DOAÇÃO DE SANGUE POR
REEDUCANDOS DA VEPEMA NA GRANDE VITÓRIA”.
2) Que o Apenado com PSC (Prestação de Serviços à Comunidade) poderá requerer o
benefício da substituição de horas de prestação POR DOAÇÃO DE SANGUE na proporção
de 7 horas de PSC para cada doação feita, deixando claro que a doação de sangue será feita de
forma voluntária pelo Apenado e não o vinculará com nenhuma obrigação em continuar como
doador.
3) Que a doação só poderá substituir horas de PSC após a expressa autorização deste Juízo,
que analisará requerimentos formulados junto ao SSP ou diretamente pela Defesa do
Apenado.
4) Que as doações referidas nesta portaria para efeito de abatimento de PSC deverão respeitar
prazo mínimo entre uma doação de sangue total e outra de 60 dias para os homens e de 90
dias para mulheres. Para doadores com idade entre 60 e 64 anos, o intervalo será de 6 meses,
tudo em conformidade com as normas da OMS, Organização Mundial de Saúde.
5) Que após cada doação o Reeducando deverá apresentar comprovante de doação em juízo,
idêntico àquele fornecido para dispensa ao trabalho no dia do ato;
6) Dê-se ciência da presente portaria ao Excelentíssimo Senhor Desembargador Corregedor
Geral da Justiça, ao Excelentíssimo Senhor Desembargador Supervisor das Varas de
Execução Penal, bem como ao Membro do Ministério Público e a Representante da
Defensoria Pública em atuação na VEPEMA;
7) Determino que seja a presente registrada e arquivada no Cartório desta Quinta Vara
Criminal – VEPEMA – anexando-se cópia da mesma no mural da entrada do prédio da Vara,
bem como no mural da entrada do SSP.
8) Publique-se no Diário da Justiça;
“Cumpra-se”.
Dado e passado no Gabinete do Juiz da Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas,
Comarca da Capital, Estado do Espírito Santo, aos quatro (4) dias do mês de março (03) do
ano de dois mil e onze (2011).
CARLOS EDUARDO RIBEIRO LEMOS
JUIZ DE DIREITO
179
ANEXO 2
DOAÇÃO DE SANGUE COMO MEDIDA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
INTRODUÇÃO
No Brasil, as penas restritivas de direito iniciaram após a reforma de 1984, cujo pena
não alcançasse o patamar de um ano e as culposas. O perfil das penas alternativas à liberdade
foi acentuado logo após com a Constituição Federal em 1988 e teve relativa inovação através
da Lei 9.714/98 que alterou o Código Penal. As penas restritivas de direitos passaram a prever
as penas de prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviço à comunidade
ou entidades públicas, proibição de frequentar determinados lugares e prestação alternativa
inominada.
A prestação de serviço à comunidade ou a entidade públicas é o que mais aproxima o
autor do fato, respeitando o homem em sua dignidade e adequando as habilidades das pessoas
em favor da comunidade.
Em setembro de 2010 no judiciário paulista surgiu a doação voluntária de sangue
como outra modalidade de pena alternativa inominada, a exemplo das cestas básicas e
encontra o seu fundamento jurídico no art. 45, parágrafo, 2°, do Código Penal. Para autores de
infrações de menor e médio potencial ofensivo.
As técnicas da Central de Medidas e Penas Alternativas, após orientações do
Excelentíssimo Juiz Dr. Luiz Antonio Barrichello Neto, entraram em contato com o
responsável Dr. Fábio José Lella Piazza do Banco de Sangue de Limeira a fim de fomentar o
ideal de implantação da doação voluntária de sangue como proposta de conciliação com a
pena de prestação de serviço á comunidade ou a pena pecuniária.
No contato estabelecido, foi informado dos requisitos necessários para um cidadão ser
doador de sangue. Dentre os requisitos, o Ministério da Saúde orienta através da Portaria
1.353, de 13 de junho de 2011, que o doador deverá comparecer para efetuar a doação com
um documento oficial de identidade com foto; estar bem de saúde; ter entre 18 e 65 anos;
pesar mais de 50 kg; não estar de jejum; e, evitar apenas alimentos gordurosos nas 4 horas que
antecedem a doação.
Assim, através da ação iniciada no município de Sorocaba, o juiz Dr. Barrichello,
juntamente com a Central de Penas e o Banco de Sangue, pensando como auxílio à
comunidade, dará início a sugestão da doação voluntária de sangue como uma forma de
cumprimento de pena, mas não como uma sentença condenatória.
JUSTIFICATIVA
No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, apenas 1,9% da população é doadora
de sangue. Apesar da porcentagem estar dentro dos padrões da Organização Mundial de
Saúde, o Ministério considera que é urgente e possível aumentar o número de doadores.
180
Considerando que a pena restritiva de direito é uma pena de caráter social, a doação
voluntária de sangue caracterizaria mais forma de cumprimento, beneficiando a comunidade
no aumento da coleta efetuada pelo Banco de Sangue do município.
OBJETIVOS

Aumentar o número de doadores voluntários de sangue no município de
Limeira/SP;

Possibilitar, através da doação voluntária de sangue, mais uma opção para o
cumprimento da pena alternativa com caráter social;

Promover a continuidade da participação consciente do indivíduo mesmo após
o cumprimento da pena.
METODOLOGIA
O projeto será desenvolvido pela equipe técnica da Central em parceria com o Poder
Judiciário e o Banco de Sangue de Limeira.
Os prestadores serão entrevistados, informados e orientados sobre a possibilidade de
solicitarem a doação voluntária de sangue como forma de cumprimento da pena alternativa.
Responderão um questionário estruturado, elaborado através dos requisitos da Portaria 1.353.
E, após a manifestação por escrito do próprio beneficiário, a Central encaminhará os
documentos ao Juiz da Comarca de Limeira-SP.
Após o deferimento do pedido, o prestador deverá comparecer no Banco de Sangue,
onde passará pelos procedimentos necessários e retornará à Central de Penas e Medidas
Alternativas com uma declaração da doação efetuada.
Os prestadores que estiverem aptos a serem doadores serão acompanhados pela
Central através de reuniões mensais e em grupo realizadas na sede.
Avaliação do projeto será bimestral com os beneficiários através de questionário e da
participação do grupo.
CRITÉRIOS DE INCLUSÃO
 O beneficiário deve ter sido condenado a uma pena alternativa ou ter como condição
do regime aberto a prestação de serviço á comunidade ou a pena pecuniária.
 Ter sido condenado pelo Juiz da Comarca de Limeira-SP e a doação deverá ser feita
no Banco de Sangue do município.
 O futuro doador deverá estar cumprindo seu primeiro processo.
 O beneficiário deve cumprir pelo menos a metade da pena estipulada pelo Juiz, ou
seja, prestação de serviço a comunidade ou pena pecuniária.
181
 Estar dentro dos critérios estipulados pelo Ministério da Saúde, Portaria 1.353, de 13
de junho de 2011, passando por entrevista na Central e após no Banco de Sangue do
município.
 Participação do beneficiário mensalmente em reuniões com a equipe da Central,
conforme os horários estipulados pela equipe.
CRITÉRIOS DE EXCLUSÃO
 Não responder positivamente os critérios da Portaria 1.353, de 13 de junho de 2011.
Limeira, 22 de junho de 2012
Daniela Waseda Caetano
Psicóloga
Claudia Maria Dias Zaminato
Assistente Social
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Doação de sangue como prestação social alternativa