PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Jayme Walmer de Freitas Doação de sangue como prestação social alternativa DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Jayme Walmer de Freitas Doação de sangue como prestação social alternativa Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito, sob orientação do Professor Doutor Marco Antonio Marques da Silva. SÃO PAULO 2012 BANCA EXAMINADORA ______________________________ ______________________________ ______________________________ ______________________________ ______________________________ Este trabalho é dedicado a cada brasileiro que clama e luta por um sistema público de saúde mais digno, justo, igualitário e humano. AGRADECIMENTOS Ao Professor Marco Antonio Marques da Silva, por sua cooperação decisiva nos tópicos mais relevantes competência deste são trabalho. marcas Seu dinamismo indeléveis de e sua personalidade a espargir admiração entre estudantes, acadêmicos e profissionais de todos os rincões deste país. Aos Professores Claudio José Langroiva Pereira e Eloísa de Souza Arruda pela significativa contribuição acadêmico. na elaboração deste trabalho RESUMO FREITAS, Jayme Walmer de. Doação de sangue como prestação social alternativa. 2012. 181 p. Tese (Doutorado em Direito) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012. O presente trabalho tem por fim oferecer diretrizes seguras de enquadramento da doação de sangue como prestação social alternativa. Desde a vigência da Constituição Federal, em 1988, a doação de sangue tornou-se bandeira para muitos como modalidade de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas. Porém, o Supremo Tribunal Federal decidiu em sentido contrário e a doutrina seguiu a interpretação dada. Este trabalho enquadra a doação de sangue, a exemplo da doação de cestas básicas, não no rol das penas restritivas típicas, mas sim no das penas alternativas inominadas previstas no artigo 45, parágrafo 2º, do diploma penal. Parte-se da premissa que não pode ser imposta por sentença condenatória, mas fruto de acordo, de consenso, nas infrações de menor e médio potencial ofensivo. Para sua adequação ao modelo sugerido, exige-se que o acusador ofereça duas ou mais propostas – uma delas contendo a doação de sangue –, para que o autor do fato ou réu, acompanhado de seu advogado, exerça sua opção, respeitando-se sua individualidade. Palavras-chave: Doação; Sangue; Prestação social alternativa. ABSTRACT FREITAS, Jayme Walmer de. Blood donation as a social alternative service rendering. 2012. 181 p. Thesis (Doctor in Law) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012. This paper aims at providing guidelines for secure framework of blood donation as a punishment involving the social alternative service rendering. As of the Federal Constitution in 1988, donating blood has become a logo for many, as a way of rendering services to the community or to public entities. However, the Supreme Court has ruled to the contrary and the doctrine has adhered to such interpretation. This paper incorporates blood donation, as in the donation of food baskets, not to the list of typical restrictive penalties, but to the unnamed alternative penalties provided for in article 45, paragraph 2, of the penal law. It starts from the premise that it cannot be imposed by a final verdict of guilty, but it is the result of an agreement, of a consensus, in minor and middle potential offense infractions. For its suitability to the suggested model, it is required two or more proposals one containing blood donation so the perpetrator or defendant, accompanied by his/her lawyer, exercises his/her option, respecting his/her individuality. Keywords: Donation; Blood; Social alternative service rendering. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABBS – Associação Brasileira de Bancos de Sangue a.C – Antes de Cristo d.C – Depois de Cristo ADN – Ácido desoxirribonucleico AIDS − Acquired Immunodeficiency Syndrome anti-HBc – Anticorpo contra o Core do vírus da Hepatite B anti-HCV – Anticorpo contra o vírus da Hepatite C anti-HIV – Anticorpo do vírus da Imunodeficiência Humana ALT – Alanina aminotransferase ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária CFF − Conselho Federal de Farmácia CLT − Consolidação das Leis do Trabalho COLSAN − Associação Beneficente de Coleta de Sangue CP − Código Penal CPP − Código de Processo Penal CRIO – Crioprecipitado FDA – Food and Drugs Administration FONAJE − Fórum Nacional dos Juizados Especiais HBV – Vírus da Hepatite B HCV – Vírus da Hepatite C HEMOBRÁS Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana HTLV – Vírus T-Linfotrópico Humano H1N1 – Influenzavirus A JECRIM − Juizado Especial Criminal MS – Ministério da Saúde NAT – Teste de Ácido Nucléico OEA – Organização dos Estados Americanos OMS – Organização Mundial da Saúde ONU – Organização das Nações Unidas RDC – Resolução de Diretoria Colegiada RE − Recurso Extraordinário REsp − Recurso Especial SBHH – Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia STJ − Superior Tribuinal de Justiça TACRIM-SP − Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo TJMG − Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais TJSP − Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo UNIFESP − Universidade Federal de São Paulo VEPEMA − Vara Privativa de Execução de Penas e Medidas Alternativas WHO – World Health Organization SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 17 1.1 A dignidade da pessoa humana e a humanidade das penas ................................................ 19 1.2 A prestação social alternativa no âmbito do princípio da individualização da pena .......... 27 1.3 A doação de sangue como prestação de serviços à comunidade e o Supremo Tribunal Federal .................................................................................................. 28 2 A HEMOTERAPIA: NASCIMENTO, DESENVOLVIMENTO E ESTÁGIO ATUAL..... 33 2.1 A história da hemoterapia ................................................................................................... 35 2.2 A hemoterapia nacional ...................................................................................................... 46 2.2.1 A hemoterapia na América Latina ................................................................................... 48 2.3 A Constituição Federal e a vedação de comercialização do sangue e seus derivados ....... 49 2.3.1 Alguns incentivos pelo mundo ........................................................................................ 59 2.4 As políticas públicas no tema ............................................................................................. 63 2.5 O doador de sangue ............................................................................................................ 70 2.6 A coleta ............................................................................................................................... 73 2.7 Por que o sangue salva vidas? ............................................................................................ 76 3 A LEGISLAÇÃO CRIMINAL VIGENTE: DOGMATISMO PARA FACEAR O DESIDERATO .................................................................................................................. 79 3.1 O Código Penal e as penas restritivas de direitos. A Lei n. 9.714/98 ................................ 79 3.1.1 A internalização ............................................................................................................... 81 3.2 Os juizados especiais no Brasil .......................................................................................... 83 3.3 Os juizados especiais criminais: introdução à Lei n. 9099/95 ............................................ 87 3.3.1 Os princípios regentes ..................................................................................................... 93 3.4 A legitimação da doação de cestas básicas como pena restritiva de direitos ..................... 95 3.4.1 A prestação social alternativa como prestação de outra natureza ................................... 98 3.4.1.1 Prestação de outra natureza ou inominada ................................................................. 100 3.4.1.2 Aceitação do beneficiário ........................................................................................... 107 3.4.1.3 Valor econômico......................................................................................................... 108 4 A DOAÇÃO DE SANGUE COMO PRESTAÇÃO SOCIAL ALTERNATIVA: PRESTAÇÃO DE OUTRA NATUREZA OU INOMINADA .......................................... 111 4.1 A doação de sangue e sua tipificação penal ..................................................................... 112 4.2 A sui generis condição do beneficiário na doação de sangue .......................................... 112 5 EFETIVIDADE .................................................................................................................. 117 5.1 O abstrato e o concreto..................................................................................................... 121 5.2 Institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais aplicáveis: a transação penal e a suspensão condicional do processo ............................................................................... 123 5.2.1 Composição civil de danos ........................................................................................... 123 5.2.2 Transação penal............................................................................................................. 124 5.2.2.1 Legitimidade .............................................................................................................. 125 5.2.2.2 Proposta...................................................................................................................... 125 5.2.2.3 Não aceitação da proposta.......................................................................................... 126 5.2.2.4 Sentença homologatória de transação penal .............................................................. 127 5.2.2.5 Recursos das sentenças .............................................................................................. 129 5.3 Suspensão condicional do processo: considerações iniciais ............................................ 129 5.3.1 Natureza jurídica ........................................................................................................... 130 5.3.2 Autonomia, âmbito e alcance ........................................................................................ 133 5.3.3 Requisitos legais ........................................................................................................... 134 5.3.3.1 Requisitos objetivos ................................................................................................... 135 5.3.3.2 Requisitos subjetivos.................................................................................................. 135 5.3.4 Procedimento. Bilateralidade do ato. Recursos cabíveis. Os modelos de propostas ministeriais .................................................................................................... 135 5.3.5 Condições legais e judiciais da doação de sangue ........................................................ 138 5.3.6 Período de prova e extinção da punibilidade ................................................................ 140 5.3.7 Causas de revogação ..................................................................................................... 140 5.3.7.1 Obrigatórias (art. 89, § 3º).......................................................................................... 140 5.3.7.2 Facultativas (art. 89, § 4º) .......................................................................................... 141 5.3.8 Prescrição (art. 89, § 6º) ................................................................................................ 142 5.4 Condições para concessão dos institutos despenalizadores ............................................. 142 5.5 Triagem inicial ................................................................................................................. 143 5.6 Juízo das execuções penais .............................................................................................. 144 6 RESULTADOS: A EXPERIÊNCIA PRÁTICA ................................................................. 151 6.1 Primeiro aniversário ......................................................................................................... 153 6.2 Outros Estados. Outras iniciativas .................................................................................... 156 7 CONCLUSÕES ................................................................................................................... 159 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 165 APÊNDICE ............................................................................................................................ 175 ANEXO 1 ............................................................................................................................... 177 ANEXO 2 ............................................................................................................................... 179 17 1 INTRODUÇÃO O ato de doar sangue reúne duas vertentes de alcance inestimável: de um lado, o desprendimento e a solidariedade do doador; de outro, a carência humana decorrente da debilidade da saúde física. No Brasil, o percentual de doadores, da ordem de 1,9% da população, pode e precisa ser incrementado, não só por meio das políticas institucionais rotineiras realizadas pelo Ministério da Saúde, mas também por novos mecanismos que o alcem ao patamar dos doadores fidelizados das nações consideradas desenvolvidas, cuja média gira em torno de 3% dos habitantes. Há países em que o percentual chega a 5%, como a Escócia1. Em qualquer país, é básica a necessidade de sangue e de seus hemoderivados na área da saúde pública, de modo que a inserção de políticas novas de coleta que elevem esse percentual sempre será bem-vinda, mormente se inseridas nos padrões de qualidade exigidos pelo Ministério da Saúde. Com a meta de criar um novo método de cooperação entre os poderes constituídos é que elaboramos este trabalho, seguros de que o Poder Judiciário detém plenas condições estruturais e legais de cooperar com a saúde pública nacional. Segundo dados do ano de 2007, publicados em novembro de 2009 em seu sítio oficial, a Organização Mundial da Saúde (OMS)2 relata cinco fatos e dados estatísticos de pesquisa sobre a segurança do sangue pelo mundo: a) 65% de todas as doações de sangue são realizadas em países desenvolvidos, representando apenas 25% da população mundial; b) Em 73 países, as taxas de doação ficam abaixo de 1% da população (o mínimo necessário para satisfazer as necessidades básicas de um país). Desses, 71 são considerados países em desenvolvimento ou em transição; c) 42 países coletam abaixo de 25% do abastecimento de sangue a partir de doadores voluntários não remunerados, que são as fontes mais seguras; d) 31 países relataram doações remuneradas em 2007, mais de um milhão de doações no total; 1 2 Disponível em: <www.scotblood.co.uk/become-a-donor.aspx>. Acesso em: 25 jan. 2012. Disponível em: <http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs279/en/index.html>. Acesso em 25 jan. 2012. 18 e) 41 países não foram capazes de filtrar todas as doações para uma ou mais das seguintes doenças transmissíveis pela transfusão: HIV, hepatite B, hepatite C e sífilis. Nosso percentual de doadores, conquanto esteja dentro dos parâmetros da OMS, é considerado aquém do ideal, tanto que exige, com frequência, dos organismos competentes a adoção de medidas urgentes para reposição dos estoques3. A maioria quase absoluta de doadores é formada por pessoas de baixo poder aquisitivo4. Equivale dizer, paradoxalmente, que as pessoas com melhor saúde não procuram os bancos de sangue. A par da dificuldade em se conseguir mais doadores fidelizados, temos em nossos políticos um incompreensível desinteresse pelas políticas voltadas para a hemoterapia. Para aquilatarmos o descaso parlamentar, nossa Constituição da República foi promulgada em 19885 e a lei que veio disciplinar a doação de sangue tão somente veio a lume treze anos após (Lei n. 10.205, de 21.03.20016). A consciência desses dados nos fez debruçar sobre o assunto e indagar: o Poder Judiciário pode ser um coadjuvante eficaz no campo da saúde? Se tantas mortes ocorrem pela falta de doadores, a criação de mecanismos de cooperação pode minimizar esse quadro de constante fragilidade e atuar como fórmula de enfrentamento desse desafio perene. No anseio de buscar algo palpável e que igualmente servisse para mostrar à população a preocupação do Poder Judiciário com o seu bem-estar, em maio de 2010, iniciamos a pesquisa sobre a possibilidade de a doação de sangue figurar como uma das modalidades de pena restritiva de direitos, de vez que a prestação social alternativa, consoante vontade do legislador ordinário, passou a ser espécie daquela. 3 Disponível em: <http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/noticia/3372/162/ministerio-lanca-banco-dedoadores-de-sangue-virtual.html>. Acesso em: 12 jan. 2012. 4 Na pesquisa constante do relatório “Perfil do doador de sangue brasileiro” patrocinado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e realizado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, apurou-se que 42,95% dos doadores fidelizados pertencem à classe C. Os resultados dessa pesquisa foram apresentados pela primeira vez durante o Congresso Brasileiro de Hematologia e Hemoterapia (Hemo 2005), em novembro, no Rio de Janeiro (BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Tecnologia e Ciências. Perfil do doador de sangue brasileiro. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/hotsite/doador_sangue/pdsbfiles/introducaod.htm>. Acesso em: 10 mar. 2012). 5 Artigo 199, § 4º: “A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” 6 Regulamenta o parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, estabelece o ordenamento institucional indispensável à execução adequada dessas atividades, e dá outras providências. 19 Para tanto, delimitamos que o trabalho deveria se centrar em duas frentes autônomas, que poderiam se entrelaçar naturalmente, quando da consecução da medida socialmente recomendável. A primeira perscrutaria o setor da saúde pública, no que tivesse pertinência com a doação de sangue. Os protagonistas mais importantes, doador e receptor, deveriam receber toda a atenção da pesquisa. Analisadas as condições pessoais de doador e receptor e resguardados seus direitos e deveres, por certo a adoção da medida atenderia a todos os requisitos predispostos na Carta Magna e na lei infraconstitucional. A segunda se cingiria à área jurídica. Por se tratar de nosso campo de atuação profissional, a indagação que não calava era: como uma medida tão útil à comunidade era desprezada pelo universo jurídico? A pessoa que doa seu sangue pratica um ato solene de solidariedade, altruísmo, magnanimidade, desprendimento, quase sem risco, potencialmente apto a salvar até três vidas, de sorte que todo o esforço para sua inserção no mundo jurídico se revelava sensata, plausível e justificável. Fixadas as premissas, o desenvolvimento da teoria sobre esses paradigmas e com os que dele derivassem era o caminho a trilhar. Alguns acréscimos se evidenciavam. Impunha-se que a teoria, a par de se amoldar ao direito positivo vigente, teria como inspiração a dignidade da pessoa humana e, por via oblíqua, a humanização e a individualização da pena. Mediante lógica rigorosa, o objetivo final seria alcançar um aperfeiçoamento que congregasse o humanitário e o direito como ciência social, viabilizando um desiderato maior: a justiça social. 1.1 A dignidade da pessoa humana e a humanidade das penas O princípio da dignidade da pessoa humana é inato ao homem e implica em liberdade, igualdade e justiça, constituindo o fundamento da organização social contemporânea7. A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.8 7 8 SILVA, Marco Antonio Marques da. Cidadania e democracia: instrumentos para a efetivação da dignidade humana. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 225. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed., rev. e atual. até a Emenda constitucional n. 67, de 22.12.2010. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 93. 20 O valor da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, da CF), impõe-se como núcleo básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação do sistema constitucional.9 Para Marco Antonio Marques da Silva, a dignidade humana há de se tornar um autêntico paradigma ético, porquanto os direitos nela ínsitos formam um dos mais importantes instrumentos de nossa civilização, “visando assegurar um convívio social digno, justo e pacífico”. E acrescenta: “A primeira geração dos direitos humanos, resultado do enfrentamento do autoritarismo e arbitrariedade do governo, compõe-se das liberdades públicas, constituindo o núcleo dos direitos fundamentais, integrados pelos direitos individuais e políticos”.10 A dignidade humana tem lançado os constitucionalistas e estudiosos de ramos correlatos a um aprofundamento cada vez mais intenso, por se constituir na fonte de todos os demais princípios que nele colhem o substrato para demarcar seu campo de incidência. José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira11 chamam a atenção para que a dignidade da pessoa humana não se circunscreva aos direitos de primeira geração ou dimensão12, alertando que: Concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativoconstitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais 9 PIOVESAN, Flávia. Dignidade humana e a proteção dos direitos sociais nos planos global, regional e local. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 408. 10 SILVA, Marco Antonio Marques da, Cidadania e democracia: instrumentos para a efetivação da dignidade humana, cit., p. 225. 11 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1984. v. 1, p. 70. 12 Na doutrina, há quem discorde da adoção das terminologias geração ou dimensão. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins sugerem os termos “categorias” ou “espécies” de direitos fundamentais. Segundo os doutrinadores o termo “geração” é incorreto, uma vez que as prestações estatais antecedem a criação de Constituições e a proclamação de direitos fundamentais. E, quanto aos direitos sociais, eles foram garantidos já nas primeiras Constituições e Declarações do século XVIII e do início do século XIX. Igualmente discordam do termo “dimensões”, por sua inexatidão terminológica, pois dimensão é palavra utilizada para indicar dois ou mais componentes ou aspectos do mesmo fenômeno ou elemento (Teoria geral dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 30-31). 21 tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais.13 Outro constitucionalista lusitano, José Carlos Vieira de Andrade, traça as mesmas diretrizes quanto à supremacia desse supraprincípio, o qual não se circunscreve aos direitos da personalidade. Refere que os direitos fundamentais são obrigatórios juridicamente, uma vez que são explicitações do princípio da dignidade da pessoa humana, que lhes dá fundamento. E esclarece que a unidade dos direitos fundamentais, como a unidade da ordem jurídica em geral, deve ser axiológica, material, que funde e legitime o seu conteúdo normativo. Tudo para justificar a defesa do valor da dignidade de cada ser humano como ser livre e responsável, único e irrepetível, pois não se trata de um produto ideológico, uma especificidade do liberalismo individualista já perimido, ao contrário, corresponde a uma potencialidade característica do ser humano, que se atualiza nas ordens jurídicas concretas. Ele ainda pondera: Por isso se afirma que a ordem dos direitos fundamentais é positiva e não idealista, já que depende de circunstâncias históricas, que são condição de sua existência, e é revelada a partir da sua previsão em preceitos jurídicos escritos ou da inserção (objectivamente determinável) na consciência jurídica da comunidade. É uma ordem de valores cultural e não uma ordem de valores natural. [...] É neste sentido que continuamos a afirmar que a Constituição portuguesa [...] integra o estatuto dos indivíduos na sociedade política num sistema de valores, em que o valor fundamental é o da dignidade da pessoa humana individual, emblematicamente afirmado no seu primeiro artigo como o valor primário em que se baseia o Estado.14 A aplicação prática desses valores implica na busca de meios para redução das diferenças sociais, dentre elas a melhoria da saúde pública, especialmente porque os mais pobres têm maior carência de sangue e hemoderivados. Nesse ponto é que defendemos a possibilidade de o Estado, por meio do Poder Judiciário, concretizar cânones, regramentos de cooperação com os órgãos afetos aos hemocentros, para maximizar os estoques dos bancos de sangue. 13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1984. v. 1, p. 70. 14 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2010. p. 106. 22 O Poder Judiciário, por intermédio de seus juízes, pode criar uma cultura de altruísmo e solidariedade entre os homens. O autor de um fato delitivo doará de seu próprio corpo para ajudar o semelhante. Embora tenha feito um mal à sociedade, viabilizam-se meios para que se autovalorize e coopere com a saúde de outro ser humano. De se concluir que toda a gama estrutural de princípios concernente aos direitos fundamentais de natureza individual, bem como de cunho social, a exemplo dos demais direitos humanos, encontra seu cerne na dignidade da pessoa humana. Os direitos individuais constituem os denominados direitos de primeira geração. Com a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX, operou-se a inserção da tecnologia da máquina a vapor no processo produtivo, provocando prejuízos econômicos e sociais de grande repercussão aos trabalhadores, de modo que o indivíduo se viu desguarnecido de instrumentos legais, ante o novo sistema econômico. Esses conflitos sociais constantes entre a classe operária e a patronal obrigaram o Estado a deixar a posição de letargia, para “adotar uma atitude positiva, conferindo ao indivíduo, enquanto membro da coletividade, os denominados direitos econômicos, sociais e culturais, de segunda geração”, na análise de Enrique Ricardo Lewandowski15, para quem o homem abstrato do passado deixou de existir, cedendo passo ao trabalhador do presente, um novo sujeito de direitos. Dentre os direitos de primeira geração estão compreendidos as liberdades públicas e os direitos políticos, isto é, direitos civis e políticos a traduzirem o valor de liberdade16. Ao tratar dos direitos e deveres individuais e coletivos, o artigo 5º, caput, da Carta Magna prevê que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Segundo Paulo Hamilton Siqueira Junior os direitos humanos de primeira e de segunda geração não são antagônicos e nem contraditórios. Segundo ele, os direitos civis e políticos (primeira geração) exigem uma prestação negativa do Estado, uma vez que são 15 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. A formação da doutrina dos direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 392. 16 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 670. 23 direitos individuais em face do Estado. De outro bordo, defende que os direitos econômicos, culturais e sociais (segunda geração) exigem uma prestação positiva do Estado, ou seja, uma intervenção política concreta para a sua implementação. E conclui: Essas duas vertentes de atuação estatal (positiva e negativa) são perfeitamente compatíveis e igualmente de real importância. A plena realização dos direitos individuais surge com a realização dos direitos sociais [...]. Os direitos humanos de 2ª geração reforçam e consagram a plenitude da dignidade da pessoa humana, que é o ponto nevrálgico dos direitos fundamentais.17 Nessa vertente positiva é que o Poder Judiciário pode manejar os instrumentos legais postos à sua disposição para cooperar com o Poder Executivo, dentro de suas políticas públicas voltadas para o campo da saúde, e atuar de modo decisivo para minimizar áreas carentes. A divisão dos direitos em gerações partiu de um critério metodológico de classificação. No entanto, uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage. É o acolhimento da ideia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados.18 A Constituição da República prevê, em seu artigo 6º, que “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Além dos direitos sociais catalogados entre os artigos 7º a 11 do Texto Maior, também podem ser localizados outros no Título VIII, que trata “Da Ordem Social”. Os direitos de segunda geração constituem-se em dever do Estado de fornecer melhores condições de vida aos cidadãos, através de iguais oportunidades para o efetivo exercício dos direitos sociais e econômicos. Diz o artigo 199, caput, que “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”. Seu parágrafo 4º estabelece: “A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a 17 SIQUEIRA JUNIOR, Paulo Hamilton. A dignidade da pessoa humana no contexto da pós-modernidade. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 260. 18 PIOVESAN. Flávia. A Constituição Brasileira de 1988 e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. In: ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA (Org.). Direitos humanos: visões contemporâneas. São Paulo: Método, 2001. p. 36. 24 remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”. Exatamente aqui que detectamos viável a interferência positiva do Poder Judiciário na saúde pública, proporcionando o essencial – sangue e hemoderivados – para que menos mortes ocorram. São considerados de terceira geração os direitos de solidariedade19 concernentes à preservação ambiental e à proteção dos consumidores. Norberto Bobbio pontua, ainda, direitos humanos de quarta geração, “em função dos avanços da engenharia genética, ao colocarem em risco a própria existência humana, através da manipulação do patrimônio genético”.20 Retomando o direito das liberdades, de se pontuar que o princípio da humanização das penas vem consagrado no artigo 5º da Constituição Federal. Consoante o inciso XLIV, é assegurado “aos presos o respeito à integridade física e moral”. O inciso XLV garante “às presidiárias as condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”. Amplificando maiores garantias à pessoa, o inciso XLVII veda as penas: “a) de morte, salvo em caso de guerra externa declarada nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis”. Essa evolução do pensamento de respeito à dignidade da pessoa humana, no tocante às penas com maior carga humanitária, teve sua origem nas ideias iluministas dos séculos XVII e XVIII. Confirmando isso, Carolina Alves de Souza Lima e Oswaldo Henrique Duek Marques aludem que a “reação aos suplícios e penas cruéis e desumanas aplicadas durante o regime absolutista surgiu com a filosofia das luzes”21. Explicitam, também, que a filosofia das luzes forneceu fundamento para o desencadeamento das revoluções burguesas no final do século 19 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 11 ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 108. 20 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campos, 1992. p. 6. 21 LIMA, Carolina Alves de Souza; MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. O princípio da humanidade das penas. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 434. 25 XVII. A partir dessas revoluções, uma série de mudanças em todos os campos do conhecimento humano contribuiu de modo efetivo para a humanização do direito penal. Os autores referem que foi Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, nas entrelinhas de sua obra Dos delitos e das penas, quem passou a detectar a necessidade da abordagem do princípio da proporcionalidade na relação entre crime e pena. Para eles, essa obra inaugurou o período humanitário no direito penal. E por essa razão a Declaração Francesa prescreve que a lei deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias. Daí dizerem que pensadores como Montesquieu, Beccaria, Romagnosi, Bentham e Camignani asseguram que a pena deve ser não só a necessária como também a mínima dentre as possíveis, em relação ao objetivo da prevenção de novos delitos. Conforme Enrique Ricardo Lewandowski, somente após as lutas desencadeadas contra o absolutismo, os ideais iluministas ofereceram com clareza que: [...] a noção de que o homem possui certos direitos inalienáveis e imprescritíveis, decorrentes da própria natureza humana e existente independentemente de qualquer ação estatal. E por isso passou-se a entender, desde então, que tais direitos não poderiam ser, em hipótese alguma, vulnerados pelo Estado ou por qualquer outra instituição ou pessoa.22 O segundo período humanitário a influenciar decisivamente o direito penal consagrando os direitos humanos ocorreu na segunda metade do século XX, com o fim da Segunda Guerra Mundial. As atrocidades foram tão descomunais, a exemplo do holocausto, que se passou a uma discussão internacional acirrada sobre como atuar ante o constante e abusivo desrespeito aos direitos humanos. Foi nesse clima que nasceu a Organização das Nações Unidas (ONU), um órgão supranacional com o objetivo de desenvolver relações amistosas entre as nações, fundadas no respeito à igualdade dos povos, que pudesse adotar “medidas apropriadas ao fortalecimento da paz mundial, além de buscar a cooperação internacional na solução dos problemas internacionais, sempre com respeito aos direitos humanos”.23 22 23 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo, A formação da doutrina dos direitos fundamentais, cit., p. 390. LIMA, Carolina Alves de Souza; MARQUES, Oswaldo Henrique Duek, O princípio da humanidade das penas, p. 435. 26 Na Organização das Nações Unidas, em 1948, foi formalizada a Declaração dos Direitos Humanos, aprovada por 48 países. Na visão de Marco Antonio Marques da Silva: Após a Primeira Guerra Mundial, da qual teriam surgido ideias de negativismo e desânimo, seguiram-se dias piores, com a crise econômica e o aparecimento do fascismo, do nazismo e, então, da Segunda Guerra Mundial. Dessa desastrosa experiência, com os horrores conhecidos, houve uma resposta afirmativa em escala mundial, na qual resultou a Declaração Universal dos Direitos do Homem.24 Esse foi o marco inaugural de tantos outros documentos relevantes no plano dos direitos humanos. A ampliação foi evidente, conforme assevera Enrique Ricardo Lewandowski: “Na Europa, surgiu a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (1950) e a Carta Social Europeia (1961)”25. Acrescenta que na ONU foi aprovado o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966). De importância ímpar, de se recordar no continente americano a assinatura da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, a Carta Interamericana de Direitos Sociais e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1948), tanto quanto o Pacto de São José da Costa Rica (1969). Além desses importantes documentos, muitos outros foram produzidos até o final do século XX, visando à tutela das minorias (e.g. mulheres26, crianças27, idosos28, deficientes29). E, no âmago da proposição deste trabalho, sendo a pena um mal a ser imposto pelo Estado, pretende-se que a doação de sangue como pena restritiva de direitos mescle a punição com a solidariedade personalíssima, alcançando um resultado sem precedentes, haja vista o infrator ter em suas mãos o poder de salvar vidas. Mas que, para tal, doa de si próprio. 24 SILVA, Marco Antonio Marques da, Cidadania e democracia: instrumentos para a efetivação da dignidade humana., cit., p. 225. 25 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo, A formação da doutrina dos direitos fundamentais, cit., p. 393. 26 Por exemplo: a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher da ONU de 1979, ratificada pelo Brasil em 1984; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 1994, ratificada pelo Brasil em 1995; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) da OEA. 27 Por exemplo: a Convenção dos Direitos da Criança da ONU de 1989, ratificada pelo Brasil em 1990. 28 Por exemplo: o artigo XXV, parágrafo 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948; o artigo 11 da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher da ONU de 1979; o artigo 31, alínea c, da Carta Internacional Americana de Garantias Sociais. 29 Por exemplo: a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes da ONU de 1975. 27 1.2 A prestação social alternativa no âmbito do princípio da individualização da pena Para Aníbal Bruno, a pena para servir de retribuição estatal ao autor de uma infração penal, passará, necessariamente, por três momentos autônomos e sucessivos: cominação, aplicação e execução. Ele assevera: “A cominação é a fase legislativa, momento inicial e imprescindível, porque só a lei pode dispor sobre a punição de crimes. O legislador, ao mesmo tempo que define os fatos puníveis, prescreve a pena que deve corresponder a cada um deles”30. É a exteriorização do princípio da legalidade. Guilherme de Souza Nucci informa que a individualização da pena se dá em três diferentes níveis, a saber: a) individualização legislativa pela criação de novos tipos penais, com seus limites de intensidade; b) individualização judicial realizada pelo Poder Judiciário, quando da prolação de uma sentença condenatória; c) individualização executória vinculada ao tratamento penitenciário dispensado a cada condenado, visando à obtenção do maior número de informações possíveis, para que se trace um programa de execução adaptado a ele.31 Quanto aos três momentos ou níveis de exteriorização da atividade judicial, em que o magistrado busca na abstração legal a concreção punitiva da sanção a ser imposta e cumprida, socorremo-nos da fundamentação exarada pelo Ministro Ayres Brito em seu voto, quando o Plenário da nossa Corte Maior concluiu, incidentalmente, pela inconstitucionalidade parcial do artigo 44 da Lei de Drogas, ao pontuar que: O processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o executivo. Logo, a lei não tem força de subtrair do juiz sentenciante o poderdever de impor ao delinquente a sanção criminal que a ele, juiz, afigurar-se como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo, implicando essa ponderação em concreto a opção jurídico-positiva pela prevalência do razoável sobre o racional, ditada pelo permanente esforço do julgador para conciliar segurança jurídica e justiça material.32 30 BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral: pena e medida de segurança. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. v. 3, p. 101. 31 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 925. 32 STF HC n. 97.256/RS, Pleno, rel. Min. Ayres Brito, j. 01.09.2010. 28 Reforça o ministro, doutrinando: “O princípio da individualização da pena significa o reconhecimento de que cada ser humano é um microcosmo”, ou então, “não é senão o reconhecimento dessa magistral originalidade de cada um de nós”. Aproveita-se da definição de Nelson Hungria, para quem a individualização “é um processo que visa a retribuir o mal concreto do crime com o mal concreto da pena na concreta personalidade do criminoso”. Na fase de cálculo e aplicação da pena é que o princípio da individualização se corporifica. A tarefa do magistrado de aplicar a sanção correspondente ao ilícito praticado está milimetricamente expressa na codificação penal. Se dela desviar incidirá em inobservância de regramento vinculante que, no mais das vezes, representará nulidade insanável, absoluta, porquanto ao ofender norma de ordem pública, a prolação de outra decisão será imprescindível. A Carta da República, em seu artigo 5º, inciso XVLI, apresenta o princípio da individualização da pena, com os seguintes dizeres: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”. Na ótica de Alexandre de Moraes: O princípio da individualização da pena exige estreita observância entre a responsabilização da conduta do agente e a sanção a ser aplicada, de maneira que a pena atinja suas finalidades de prevenção e repressão. Assim, a imposição da pena depende do juízo individualizado da culpabilidade do agente (censurabilidade de sua conduta).33 1.3 A doação de sangue como prestação de serviços à comunidade e o Supremo Tribunal Federal Logo após a promulgação da Constituição Federal em 1988, os juízes passaram a considerar a doação de sangue como prestação social alternativa, com lastro no texto constitucional. Mas, como a legislação infraconstitucional, o Código Penal, nada predispunha 33 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2006. p. 103. 29 a respeito dessa modalidade de sanção, quando da substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, o magistrado determinava a doação de sangue na modalidade de prestação de serviços à comunidade. Por se tratar de imposição, ordem, determinação a alguém para doar sangue, ou seja, ato não voluntário, muitas vezes indesejado, vozes se levantaram contrariamente à medida que, a despeito de seu caráter social, atentava contra a dignidade da pessoa humana, contra o direito de locomoção do cidadão. Não tardou e o tema foi suscitado, via habeas corpus, no Supremo Tribunal Federal. Em voto da lavra do Ministro Celso de Mello, o alcance daquela pena restritiva foi perfeitamente delimitado e o sonho afastado até o início deste século. Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar acerca de sentença em que o magistrado substituíra a pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos consistente em doação de sangue.34 A sentença foi cassada, determinando-se que outra fosse prolatada. No voto, o ministro destacou o contrassenso judicial concernente à tentativa de inserir a doação de sangue como modalidade de pena restritiva, ou seja, como prestação de serviços à 34 “Habeas corpus. Prestação de serviços à comunidade. Doação de sangue. Impossibilidade. Princípio constitucional da intransmissibilidade da pena. Tema não discutido nas razões de apelação criminal e nem apreciado pelo Tribunal local. Conhecimento. Ordem concedida. A ação penal de habeas corpus não se submete, para efeito do seu conhecimento, à exigência formal do prequestionamento. A confirmação de sentença penal condenatória pelo Tribunal inferior constitui fato processual suficientemente idôneo a convertêlo em órgão coator. Tratando-se de matéria de ordem pública, impunha-se o seu exame ex officio pelo órgão judiciário de 2º grau, independentemente de expressa provocação formal do paciente. Bastaria, para tanto, o recurso criminal por ele interposto e tempestivamente deduzido. Compete, desse modo, ao Supremo Tribunal Federal, processar e julgar, em caráter originário, a ação de habeas corpus em que se suscitem nulidades processuais ou vícios e defeitos jurídicos que infirmem a validade do próprio ato decisório, ainda que tais questões não tenham constituído objeto do recurso criminal previamente interposto. A prestação de serviços à comunidade constitui sanção jurídica revestida de caráter penal. Trata-se de medida alternativa ou substitutiva da pena privativa de liberdade. Submete-se, em consequência, ao regime jurídico-constitucional das penas e sofre todas as limitações impostas pelos princípios tutelares da liberdade individual. A exigência judicial de doação de sangue não se ajusta aos parâmetros conceituais, fixados pelo ordenamento positivo, pertinentes a própria inteligência da expressão legal „prestação de serviços à comunidade‟, cujo sentido, claro e inequívoco, veicula a ideia de realização, pelo próprio condenado, de encargos de caráter exclusivamente laboral. Tratandose de exigência conflitante com o modelo jurídico-legal peculiar ao sistema de penas alternativas ou substitutivas, não há como prestigiá-la e nem mantê-la. A intransmissibilidade da pena traduz postulado de ordem constitucional. A sanção penal não passará da pessoa do delinquente. Vulnera o princípio da incontagiabilidade da pena a decisão judicial que permite ao condenado fazer-se substituir, por terceiro absolutamente estranho ao ilícito penal, na prestação de serviços à comunidade.” (STF HC n. 68309/DF, 1ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 27.11.1990, DJ, de 08.03.1991). 30 comunidade, uma vez que não tinha caráter laboral, fundamento dessa pena alternativa. O conflito era de tal modo evidente que se mostrava impossível prestigiar a boa intenção dos magistrados que adotaram a ideia. A decisão da Suprema Corte se espraiou no cenário nacional e calou todos os oponentes, transmitindo aos doutrinadores nacionais um paradigma: a doação de sangue não pode servir como modalidade de prestação de serviços à comunidade, por violar os preceitos estruturais da medida escolhida e, consequentemente, constitucionais. Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto, na linha da preservação das matrizes constitucionais, salientam: “Inexistindo penas corporais em nosso ordenamento jurídico, em respeito ao valor da dignidade da pessoa humana (CR, art. 1º, III), não se admite a doação de sangue como prestação de serviços à comunidade.”35 Para Alberto Silva Franco e Juliana Belloque, com esteio nas lições de Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Júnior, a prestação de serviços à comunidade encontra suas balizas no respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos que integram o livre desenvolvimento da personalidade individual, com todas as garantias que deles decorrem previstas na Constituição, como a liberdade de crença e culto, de convicções políticas e ideológicas. E concluem retratando que seria inconstitucional determinar a prestação de serviços à comunidade em templo religioso ou que consista em doação de sangue.36 Damásio Evangelista de Jesus alude que a doação de sangue “não pode ser admitida como prestação de serviço à comunidade”.37 Não destoam Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina, ao discorrerem sobre a imperativa observância da compatibilidade entre a aptidão do condenado e o cumprimento da pena alternativa de prestação de serviços à comunidade. A tarefa constante da decisão judicial há de condizer com os direitos fundamentais da pessoa humana (art. 46, § 35 DELMANTO, Celso et al. Código Penal comentado: acompanhado de comentários, jurisprudência, súmulas em matéria penal e legislação complementar. 7. ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 168. 36 FRANCO, Alberto Silva; BELLOQUE, Juliana. Código Penal e sua interpretação: arts. 41 a 60. In: FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (Coords.). Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 311. 37 JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal anotado. 17. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 192. 31 3º, do CP). Eles encerram, aplaudindo a jurisprudência nacional pelas glosas em função das “incontáveis imposições atentatórias à dignidade: doação de sangue, prestação de serviços em templos religiosos etc.”38 Naquela ocasião, estava claro que a jurisprudência e a doutrina eram unânimes sobre a impossibilidade da doação de sangue nos moldes praticados, por dois fundamentos: a) como prestação de serviços à comunidade; b) por imposição judicial. Destarte, em atenção ao doutrinado pelo Supremo Tribunal Federal, para que a doação de sangue como pena restritiva se revelasse adequada, haveria de atender a dois pressupostos: voluntariedade em contraposição à imposição judicial; adoção de outra modalidade de pena alternativa que não a prestação de serviços à comunidade. 38 GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito penal: parte geral. Coordenação de Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha. 2. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 567-568. (Coleção Ciências Criminais, v. 2). 32 33 2 A HEMOTERAPIA: NASCIMENTO, DESENVOLVIMENTO E ESTÁGIO ATUAL Todo o regramento atinente à hematologia e à hemoterapia está contemplado na Resolução de Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que recebeu o número 57, de 16 de dezembro de 2010 (RDC 57/2010). Essa Resolução, em seu artigo 157, revogou expressamente as Resoluções ns. 153, de 14 de junho de 2004, e 24, de 24 de janeiro de 2002. A RDC 57/2010 encontra seu fundamento na legislação infraconstitucional – Lei n. 10.205, de 21.03.2001 , que regulamenta o parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, estabelece o ordenamento institucional indispensável à execução adequada dessas atividades, e dá outras providências. De acordo com o Dicionário digital de termos médicos39, a hematologia é o ramo da medicina que estuda o sangue. A hematologia estuda particularmente os elementos figurados do sangue: hemácias (glóbulos vermelhos), leucócitos (glóbulos brancos) e plaquetas. Estuda também a produção desses elementos e os órgãos onde eles são produzidos (órgãos hematopoiéticos): medula óssea, baço e linfonodos. A hemoterapia consiste no tratamento terapêutico realizado por meio da transfusão sanguínea, seus componentes e derivados, e se trata de uma atividade assistencial de alto risco epidemiológico, uma vez que o sangue, na condição de tecido vivo, é capaz de transmitir diversas doenças40. É a terapêutica praticada pela administração de sangue, seus derivados e substitutos. 39 LEITE, Érida Maria Diniz (Org.). Dicionário digital de termos médicos 2007. Disponível em: <http://www.pdamed.com.br/diciomed/pdamed_0001_de.php>. Acesso em: 14 mar. 2012. 40 CAMARGO, Johnny Francisco Ribeiro et al. A educação continuada em enfermagem norteando a prática em hemoterapia: uma busca constante pela qualidade. Revista Prática Hospitalar, ano 9, n. 51, p. 125-131, maio/jun. 2007. Disponível em: <http://www.praticahospitalar.com.br/pratica%2051/pdfs/mat%2018.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2012. 34 O sangue é um líquido vermelho, viscoso, que circula nas artérias e veias bombeado pelo coração, transportando gases, nutrientes e elementos necessários à defesa do organismo.41 A doação de sangue pode ser homóloga ou autóloga. Aquela se dá quando um doador de sangue fornece para armazenamento em um banco de sangue para transfusão a um destinatário desconhecido (anônima). Autóloga ocorre quando uma pessoa tem sangue armazenado que será transfundido de volta para si, em data posterior, geralmente após uma cirurgia. A transfusão sanguínea é “a ação e resultado de injetar certa quantidade de sangue de uma pessoa no sistema circulatório de outra, seja diretamente de pessoa para pessoa, seja por meio de armazenamento do sangue do doador em banco de sangue”.42 A transfusão sanguínea é um procedimento terapêutico de injeção de sangue ou de um de seus componentes na corrente sanguínea de um indivíduo. É, ainda, o conjunto dos procedimentos médicos e biológicos (doação, transformação, conservação e reinjeção do sangue) que permitem a transfusão de sangue43, utilizado em pacientes que apresentam perda aguda de sangue (acidentes, cirurgias etc.) ou perda crônica (anemias crônicas, quimioterapias e outras doenças). A transfusão é um procedimento complexo, de sorte que para garantir o máximo de segurança ao paciente, é executado obedecendo rigorosamente às normas editadas pelas autoridades sanitárias do Brasil. São considerados hemoderivados os produtos oriundos do sangue total ou do plasma, obtidos por meio de processamento físico-químico ou biotecnológico. Hemocomponentes são os produtos oriundos do sangue total ou do plasma, obtidos por meio de processamento físico. 41 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 42 AULETE, Francisco J. Caldas; VALENTE, Antonio Lopes dos Santos. iDicionário Aulete. Lexikon Editora Digital Disponível em: <http:// aulete.uol.com.br/site.php?mdl= aulete_digital&op= loadVerbete&pesquisa= 1&palavra=transfus%E3o>. Acesso em: 10 mar. 2012. 43 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, cit. 35 2.1 A história da hemoterapia Preliminarmente, mostra-se conveniente um conhecimento superficial de como a hemoterapia chegou ao estágio atual no Brasil. Nesse estudo breve, podemos inferir nossa defasagem tecnológica em face dos países desenvolvidos. Como alertado no início desta tese, nosso atraso cultural é um dos fatores preponderantes a nos mobilizar no sentido de uma mudança de comportamento. De qualquer modo, é importante registrarmos o patamar alcançado e reconhecido pelos estudiosos no cenário internacional, partindo desde os primórdios da civilização. Da pesquisa da advogada Helena Ferreira Nunes44 sobre a origem da transfusão de sangue colacionaremos os tópicos mais relevantes e, porque não dizer, curiosos, sobre a sua evolução, até os nossos tempos. Também serviu de fonte para esse estudo o artigo dos médicos Pedro C. Junqueira, Jacob Rosenblit e Nelson Hamerschlak45 relativamente à história da hemoterapia no Brasil. Os médicos esclarecem que a fase científica da hemoterapia teve início no ano de 1900. Antes, as experiências, em regra, eram de caráter empírico. Conforme Helena Ferreira Nunes, a história da hemoterapia está ligada às guerras, pois o sucesso de uma batalha se relacionava com o tamanho do ferimento da tropa. Quanto maiores lesões incapacitantes de um lado, a vitória do antagonista era evidenciada. As pesquisas, segundo o relato da advogada, vêm desde o Egito antigo, por volta de 2500 a.C., quando os médicos tratavam os pacientes com sangria. Os egípcios criam que o sangue era um revigorante energético, pois já sabiam que as artérias saíam do coração e se direcionavam para todo o corpo. Na China, Huang-T, por volta de 1000 a.C., escreveu o livro de medicina chamado Livro do Imperador Amarelo, no qual enunciava que a alma se encontrava no sangue. 44 NUNES, Helena Ferreira. Responsabilidade civil e a transfusão de sangue. 2010. 170 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Médicas) – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. 45 JUNQUEIRA, Pedro C.; ROSENBLIT, Jacob; HAMERSCHLAK, Nelson. História da hemoterapia no Brasil. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, São José do Rio Preto, SP, v. 27, n. 3, p. 201-207, jul./set. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v27n3/v27n3a13.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2012. 36 Alcmaeon de Croton, pensador grego do ano 500 a.C., ao praticar dissecção animal, constatou que as veias e artérias guardavam diferenças. Para Alcmaeon, o sono era produzido pela saída de sangue da superfície do corpo por meio de veias grossas, e o despertar acontecia quando a circulação voltava a todo o corpo. Hipócrates, o pai da medicina, em 400 a.C., foi quem deu a explicação racional para justificar a doença e a saúde, por intermédio da teoria dos quatro humores corporais, segundo a qual a vida era mantida pelo equilíbrio entre os humores: sangue, flegmão (fleuma), biles amarela e biles negra, que proviam os respectivos órgãos: coração, cérebro, fígado e baço. Para o grande médico, as pessoas adoeciam quando houvesse o desequilíbrio de um desses elementos. Para Aristóteles, em 350 a.C., o coração era o centro do corpo humano, onde estava assentada a alma dos seres humanos. Em Alexandria, no ano de 300 a.C., Herophilus de Chalcedon foi um dos primeiros anatomistas gregos a assumir publicamente que dissecava cadáveres, e por isso conseguira determinar que as artérias eram mais espessas que as veias e que ambas carregavam sangue. Por volta de 270 a.C., Erisitratos, também da Alexandria, descreveu que o coração é uma bomba natural. A estudiosa aponta ainda que entre 130 e 200 a.C., Claudius Galeno, um dos médicos mais importantes da história, em suas experiências de dissecação de animais, provou que nas artérias havia sangue e sugeriu que os sistemas de veias e artérias são completamente diferentes. Defendia que o sangue era formado no fígado e transportado por todo o corpo. Verificou que o sangue arterial era criado a partir da passagem do sangue venoso entre os ventrículos por poros dos septos. Aulo Cornelius Celso, médico romano que viveu entre 14 a.C. e 37 d.C., relatou em sua obra De medicina: a) os benefícios da sangria terapêutica; b) que borrifar vinagre sobre a superfície do corte ajudava a estancar o sangramento e dissolvia coágulos que estivessem alojados no interior do crânio; c) que a ingestão de sangue quente, recém-saído da garganta de 37 um gladiador, curava epilepsia; e, d) que o derrame ocular poderia ser tratado com a aplicação de sangue de pomba, pombo-bravo ou andorinha de olho doente. Em 1242, o médico árabe Ibn Al-Nafis descobriu e relatou a circulação pulmonar. Tema muito referido pelos historiadores da medicina remonta ao ano de 1492, quando o autor romano Stefano Infessura menciona uma transfusão de sangue entre seres humanos. Na ocasião, um médico sugeriu ao Papa Inocêncio VIII a transfusão de sangue de três crianças de dez anos. Às três crianças foram prometidas moedas de ouro em quantia equivalente e um título de ducado. O procedimento falhou, pois as crianças e o papa faleceram. Outros historiadores dissentem dessa versão, aludindo que ocorreu a transfusão, porém o sangue foi ingerido pela boca e não transfundido. Há outros que acusam Infessura de antipapismo, motivo pelo qual o caso foi ocultado pela Igreja Católica durante muito tempo. Em 1628, o médico inglês Willian Harvey derrubou a teoria de Galeno, ao publicar sua obra Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus (Tratado de anatomia baseado no movimento do coração e sangue em animais), tendo sido o pioneiro em descrever corretamente e descobrir o sistema circulatório. Ele explicou o real uso das válvulas e sustentava que o sangue era bombeado pelo coração das artérias para as veias, em circuito fechado para o corpo e retornava para o coração. Prossegue a causídica, em cronologia dos eventos históricos que marcaram a transfusão sanguínea, que em 1639 deu-se o início das transfusões animal-animal, que se estendeu até o ano de 1667. Em 15 de junho, o médico francês Jean-Baptist Denis realizou a primeira transfusão de sangue animal-homem. Tratava-se de um jovem que apresentava uma febre persistente e estava sonolento. O médico retirou três onças de sangue do jovem e injetou nove onças de sangue de cordeiro. O procedimento foi bem sucedido e o menino se recuperou da letargia e engordou. Houve mais transfusões, sem sucesso comprovado, até que na quarta, realizada em um paciente com doença mental, Antoine Mauroy, com comportamento maníaco violento, houve ligeira cessação da doença, mas após os sintomas mentais retornaram. Antes de nova 38 transfusão solicitada pela esposa, Mauroy veio a falecer. Houve uma crise sem precedentes no meio médico, culminando com uma chantagem da mulher de Mauroy sobre o médico JeanBaptist, que acabou sendo absolvido pela Corte Francesa de Julgamento, em 17 de abril de 1668, pois nada se apurou de irregular em seu procedimento, bem como porque havia provas de que o falecimento se dera em razão de envenenamento cometido por sua esposa. Em face do incidente, o Parlamento francês exigiu que todas as transfusões de sangue fossem autorizadas pela Faculdade de Medicina de Paris. Em 1771, Willian Hewson, anatomista britânico, detalhou em seu livro Experimental enquiry into the properties of the blood a coagulação sanguínea. Conseguiu sucesso ao interromper a coagulação e isolar a substância coagulable lymph, hoje conhecida como fibrinogênio, tornando-se o pioneiro a concluir que o timo e o baço produziam linfócitos. A transfusão homem-homem foi realizada pela primeira vez em 1795, pelo médico Philip Syng Pysik; embora seu trabalho não tenha sido publicado, foi noticiado em uma nota de rodapé de uma revista médica. Coube a James Blundell ser o pioneiro em dizer claramente que o sangue humano deveria ser utilizado nas transfusões em seres humanos. Sua conclusão foi confirmada por Dumas e Prevot, que demonstraram que a infusão de sangue heterólogo num animal com hemorragia produzia temporariamente melhoras, mas era seguida de morte em seis dias. Blundell documentou a contento a primeira transfusão de sangue em humanos, em 26 de setembro de 1818. O paciente tinha 30 anos e era extremamente magro, em função de uma obstrução pilórica causada por um carcinoma gástrico. Ele recebeu entre 12 a 24 onças de sangue em aproximadamente 30 a 40 minutos. Apesar da aparente melhora, faleceu em dois dias. Depois teve sucesso em uma mulher que sofrera hemorragia pós-parto. De dez transfusões seguintes, cinco foram bem-sucedidas e as outras cinco malsucedidas. Normalmente utilizava o sangue doado do marido para transfundir nas pacientes. 39 A evolução dos trabalhos foi acentuada no exterior, até que em 27 de janeiro de 1879, José Marcondes Filho, em sua tese de doutoramento, fez o primeiro relato acadêmico sobre hemoterapia no Brasil. Passaremos a entremear à pesquisa da advogada a dos médicos, eis que se complementam. Os médicos relatam no tocante à tese que: Na era “pré-científica” surgiu o primeiro relato acadêmico sobre Hemoterapia no Brasil. Trata-se de uma tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 27 de setembro de 1879, de autoria de José Vieira Marcondes, filho legítimo do Barão e da Baronesa de Taubaté. Rejeitada por ser muito polêmica foi, entretanto, sustentada na Faculdade de Medicina da Bahia, em 30 de dezembro de 1879. Esta tese é uma monografia descrevendo experiências empíricas, realizadas até aquela época sobre a transfusão de sangue, onde se discute se a melhor transfusão seria a do animal para o homem ou entre os seres humanos. O aspecto interessante deste trabalho é a descrição detalhada de uma reação hemolítica aguda, com alterações renais e presença da hemoglobina na urina.46 A defensora anota que a descoberta do sistema ABO coube a Karl Landsteiner, imunologista e pesquisador do Instituto de Anatomia Patológica de Viena. Em seu estudo, o médico analisou a reação da mistura de amostras de sangue de pessoas sadias com amostra de pessoas doentes e constatou que as amostras de sangue de pessoas sadias também aglutinavam. Em 1900, publicou um artigo sobre as propriedades químicas do sangue, fluidos linfáticos e plasma, e disse que a aglutinação poderia ser causada por contaminação bacteriana ou diferenças individuais de sangue humano. E concluiu que “pode auxiliar na explicação das inúmeras consequências das terapias transfusionais de sangue”47. Suas ideias, porém, demoraram a ser divulgadas. 46 JUNQUEIRA, Pedro C.; ROSENBLIT, Jacob; HAMERSCHLAK, Nelson, História da hemoterapia no Brasil, cit., p. 202. 47 No original: “may assist in the explanation of the various consequences of therapeutical blood transfusions”. (NUNES, Helena Ferreira, Responsabilidade civil e a transfusão de sangue, cit., p. 19 – Nossa tradução). 40 Em 1901, Landsteiner publicou um documento detalhando a descoberta dos grupos sanguíneos A, B e C, que mais tarde foi denominado de O e, em 1930, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina. Em 1902, Alfred von Decastello e Adriano Sturli identificaram um quarto grupo sanguíneo, o tipo AB. A descoberta de Landsteiner abriu caminho para trabalhos importantes nos Estados Unidos e na Europa e, mais tarde, também na Rússia. No Brasil, em 1916, Isaura Leitão defendeu a tese de doutoramento intitulada Transfusão sanguínea, em que descreveu a realização de quatro casos de transfusão. Nessa época, os doadores de sangue eram remunerados em 500 réis para cada centímetro cúbico de sangue doado, quando fossem não imunizados; já os imunizados recebiam 750 réis. Os bancos de sangue não aceitavam doadores de emergência, nem voluntários ou altruístas. Essa informação foi colhida por Helena Ferreira Nunes no trabalho dos médicos Pedro C. Junqueira, Jacob Rosenblit e Nelson Hamerschlak, que nos servirá de fundamento para informarmos como prosseguiram os estudos e o aperfeiçoamento da hematologia no Brasil. Melhor esclarecendo, permitimo-nos não aprofundar a abordagem das técnicas empregadas pelos estudiosos no desvendamento dos melhores aprimoramentos, para não fugir do desiderato maior deste trabalho. De todo modo, os tópicos considerados mais marcantes dos experimentos e descobertas até a iniciação da transfusão homem-homem ficaram registrados, especialmente até o fim das experiências com animais e o início da era científica, em 1900, que traçaram os rumos da hemoterapia de nossos dias. Assim, valendo-nos desse trabalho dos médicos, além do que já foi narrado quanto à trajetória da hematologia em nosso país, analisemos os aspectos concernentes às políticas públicas correlatas. Em 1950, a partir de iniciativa do Banco de Sangue do Distrito Federal, foi promulgada a Lei n. 1.075, de 27 de março de 1950, que dispôs sobre a doação voluntária de sangue. 41 Em 1964, o Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho para estudo e regulação disciplinadora da hemoterapia no Brasil, que resultou na formação da Comissão Nacional de Hemoterapia em 1965, presidida pela Doutora Maria Brasília Leme Lopes, e com representação da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH) pelos Doutores Oswaldo Mellone, Francisco Antonáscio e, posteriormente, Jacob Rosenblit. A Comissão Nacional de Hemoterapia e o Ministério da Saúde, por meio de decretos, portarias e resoluções, estabeleceram o primado da doação voluntária de sangue e a necessidade de medidas de proteção a doadores e receptores, disciplinou o fornecimento de matéria-prima para a indústria de fracionamento plasmático e a importação e exportação de sangue e hemoderivados. Entre as suas atividades, destacam-se a implantação de registro oficial dos bancos de sangue públicos e privados, a publicação de normas básicas para atendimento a doadores e para a prestação de serviço transfusional e a determinação da obrigatoriedade dos testes sorológicos necessários para a segurança transfusional. Em 1978, pela nova organização estrutural do Ministério da Saúde, a Comissão Nacional de Hemoterapia passou a ser uma das Câmaras Técnicas (Dec. n. 79.050, de 30.12.1977). A Câmara Técnica acabou sendo desativada em 30 de dezembro de 1979, com a criação do Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados (Pró-Sangue). No período de 1964 a 1979, a hemoterapia no Brasil tinha legislação e normatização adequadas, porém ainda carecia de uma rígida fiscalização das atividades hemoterápicas e de uma política de sangue consistente. O sistema era desorganizado, com serviços públicos e privados de altíssimo nível técnico e científico convivendo com outros de péssima qualidade, alguns com interesses prioritariamente comerciais. As indústrias de hemoderivados, em geral, estimulavam a obtenção de matéria-prima de doadores remunerados e da prática da plasmaférese48. Nem sempre os cuidados com a saúde dos doadores eram prioritários. 48 A definição dada pela RDC 57/2010 é que aférese é o processo que consiste na obtenção de determinado componente sanguíneo de doador único, utilizando equipamento específico (máquina de aférese), com retorno dos hemocomponentes remanescentes à corrente sanguínea. E também: “Plasmaférese é a técnica de transfusão que permite retirar plasma sanguíneo de um doador ou de um doente; processo de purificação plasmática; método terapêutico utilizado para eliminar os anticorpos produzidos pelas doenças autoimunes como o Lúpus, Miastenia Gravis, Síndrome de Lambert-Eaton, Guillain-Barré e outras, que se assemelha à diálise, removendo o plasma do paciente através de um separador celular que centrifuga o sangue ou o faz passar por uma membrana com poros ultrafinos, pelos quais somente o plasma pode passar.” (LEITE, Érida Maria Diniz (Org.), Dicionário digital de termos médicos 2007, cit.). 42 Nessa linha, João Carlos Pina Saraiva, um dos presidentes da SBHH, em editorial sobre a história da hemoterapia no Brasil, cita algumas mazelas da remuneração da doação de sangue que denotavam a imoralidade de comportamentos profissionais. Ele dilucida: Naquela época, mesmo alguns serviços públicos remuneravam os doadores de sangue. Os fiscais do Ministério da Previdência exigiam dos serviços de hemoterapia, ainda na década de 70, a apresentação de recibos que comprovassem o pagamento dos doadores de sangue, por inferirem que o lucro do empresário não se poderia fazer à custa de doadores voluntários.49 Na opinião dos médicos hematologistas, em alguns bancos de sangue de ética questionável, indivíduos das camadas mais pobres da população, que muitas vezes não tinham reais condições físicas e mesmo nutricionais, eram estimulados a doar sangue. No ponto, ressaltam acontecimentos que culminaram na reorganização do sistema hemoterápico no Brasil, dentre eles “A Campanha de Doação Voluntária de Sangue da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia” e a Constituição de 1988. No tocante à Campanha de Doação Voluntária de Sangue, vibram com os detalhes da ação e o fim da doação remunerada. João Carlos Pina Saraiva, em seu editorial, traz adendos relevantes na luta contra a remuneração e menciona a participação efetiva de uma mulher, a presidente da Associação dos Doadores Voluntários de Sangue. Segundo ele: [...] a revolução política da especialidade estava em fermentação. A especialidade estava desacreditada pelas frequentes denúncias de comercialização, sem se referir outras denúncias bem mais graves e que chegaram a figurar nas páginas policiais. A principal interlocutora dos organismos internacionais era uma mulher, não médica – a Sra. Carlota Osório, presidente da Associação Brasileira de Doadores Voluntários de Sangue, que tinha acesso aberto aos gabinetes governamentais, inclusive no exterior, onde era considerada a principal figura brasileira contra a comercialização do sangue e conseguia influenciar ministros de estado nas políticas governamentais de saúde. A sua atuação, bastante controversa, foi fortalecida pela inércia dos agentes públicos e privados em resolverem problemas que se avolumavam na especialidade. Assim é que, nas décadas 49 SARAIVA, João Carlos Pina. A história da hemoterapia no Brasil. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, São José do Rio Preto, SP, v. 27, n. 3, p. 156, jul./set. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v27n3/v27n3a04.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2012. 43 de 70 e de 80, algumas iniciativas foram fundamentais para que a hemoterapia brasileira ultrapassasse as barreiras do compadrio e do regionalismo.50 Prossegue o trio médico, afirmando que, em 1979, a SBHH era presidida por Celso Carlos de Campos Guerra. Inconformado com a situação das doações de sangue em alguns serviços do Brasil, muitas vezes realizadas por presidiários em troca de cigarros, ou por mendigos em busca da remuneração, estimulou e liderou diversos colegas de São Paulo em uma cruzada por todo o país, que culminou em junho de 1980 com a extinção da doação remunerada de sangue no Brasil.51 Para atingir esse objetivo, Celso Carlos de Campos Guerra teve o apoio de todos os hemoterapeutas do país e contou com a ajuda da comunidade médica e órgãos de classe, como a Associação Médica Brasileira, a Associação Paulista de Medicina, a Associação Paulista de Propaganda, a Associação Brasileira de Relações Públicas e da imprensa de forma geral. Naquela ocasião, a estratégia para a obtenção do doador altruísta, a exemplo de países desenvolvidos, era conseguir o chamado doador de reposição (familiares e amigos dos pacientes), que era sensibilizado e conscientizado para o ato de doar. Aquilo que parecia impossível aconteceu sem qualquer desabastecimento, que era o principal temor dos organizadores da campanha. Aludem que o Brasil, que naquela época tinha 80% de doação remunerada, passou a ter exclusivamente doadores voluntários. O próprio Celso Carlos de Campos Guerra52 descreve, com suas letras, o difícil trajeto percorrido, no final da década de 70 e início da de 80, para superar e pôr fim à doação remunerada de sangue no Brasil. 50 SARAIVA, João Carlos Pina, A história da hemoterapia no Brasil, cit., p. 156. JUNQUEIRA, Pedro C.; ROSENBLIT, Jacob; HAMERSCHLAK, Nelson, História da hemoterapia no Brasil, cit., p 205. 52 GUERRA, Celso Carlos de Campos. Fim da doação remunerada de sangue no Brasil faz 25 anos. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, São José do Rio Preto, SP, v. 27, n. 1, p. 1-3, jan./mar. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v27n1/v27n1a01.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2012. 51 44 Conforme o então presidente da SBHH no biênio 1979-1981, dois problemas cruciais precisavam de solução: a) as leucemias agudas da infância tinham 50% de cura, enquanto no Brasil eram raros os casos de cura; b) outro problema era a falta de doadores, levando os serviços públicos à exigência de doação de sangue para internar os pacientes ou à realização de coletas de sangue em presídios. Os bancos de sangue privados, por sua vez, recorriam nas capitais e cidades de médio porte à doação remunerada, criando, assim, uma profissão, a do doador gratificado. À época, era proibida no Brasil a “solicitação de doações de parentes e amigos dos pacientes da Previdência Social, pois os sindicatos entendiam, àquela época, que o governo pagava o sangue e, por isso, não havia a necessidade de reposição dos estoques”.53 Depois de muitos ajustes políticos internos e com o Governo Federal, chegou-se à conclusão de que a criação de um “Dia D” para marcar o fim da remuneração da doação de sangue no país seria estrategicamente perfeita. E, “no dia 1º de maio de 1980 terminou a doação remunerada no Estado de São Paulo. Foi feito um documento divulgando o fim da remuneração de doadores no Estado de São Paulo e enviado às nossas Regionais a medida realizada”.54 Finda a doação remunerada, a imprensa auxiliou na divulgação de campanha voltada à doação altruística de sangue. A ação foi muito bem recebida na classe médica, resultando no reconhecimento da hemoterapia como especialidade. O então presidente elaborou um extenso documento ao Governo Federal descrevendo os aspectos positivos e negativos da ação governamental. Destacou entre os aspectos positivos o fim da doação remunerada, a unificação dos serviços de hematologia e hemoterapia, aliado ao maior investimento na área pública do setor. De negativo, a política para a indústria de hemoderivados, que levou a maioria das fábricas à inativação e ao fechamento, tal como a multinacional Hoechst, o Instituto Santa Catarina e a privada LIP. Restou o Hemope, governamental, que não se desenvolveu. 53 54 GUERRA, Celso Carlos de Campos, Fim da doação remunerada de sangue no Brasil faz 25 anos, cit., p. 1. Ibidem, p. 2. 45 Em 2005, o governo criou a Hemobrás. Com referência a essa etapa da hemoterapia, interessante retratar que apesar de o Brasil ser dependente da importação de hemoderivados, surge uma luz no fim do túnel, porquanto a Hemobrás55 construirá a maior fábrica de hemoderivados da América Latina, numa área de 48 mil metros quadrados no Município de Goiana, norte de Pernambuco, a 63 quilômetros do Recife. Será uma das âncoras do Polo Farmacoquímico de Pernambuco, cuja área de 345 hectares pode abrigar 36 indústrias. Orçada em R$ 540 milhões, a planta industrial terá capacidade para processar anualmente 500 mil litros de plasma, matéria-prima dos hemoderivados. A fábrica deve iniciar sua produção em 2014, elaborando os seguintes medicamentos: albumina, utilizada em pacientes queimados ou com cirrose e em cirurgias de grande porte; imunoglobulina, que funciona como anticorpo para pessoas com organismo sem defesa imunológica; fatores de coagulação VIII e IX, complexo protrombínico e fator de Von Willebrand, destinado a pessoas com hemofilia. Retomando e finalizando a análise do editorial de Celso Carlos de Campos Guerra, anota o ex-presidente que com o fim da doação remunerada no Brasil, coube à iniciativa privada, inclusive orientando as instituições públicas, a se deixar de coletar sangue em presídios e não exigir doação para a internação de pacientes. De outra parte, Pedro C. Junqueira, Jacob Rosenblit e Nelson Hamerschlak, como também os personagens fundamentais na história do processo de reconhecimento da atividade hematológica e hemoterápica no Brasil, no pertinente às novidades trazidas pela Constituição Federal de 1988, ponderam sobre o parágrafo 4º do artigo 199 como medida de valorização da profissão. Concluem aduzindo que apenas em 2002 (de fato foi em 2001, quando da edição da Lei n. 10.205), a regulamentação legal do parágrafo desse artigo foi aprovada, com a proibição da doação gratificada de sangue, conceituando a remuneração dos serviços por meio da cobertura de custos de processamento. 55 EMPRESA BRASILEIRA DE HEMODERIVADOS E BIOTECNOLOGIA (Hemobrás). Disponível em: <www.hemobras.gov.br/site/conteudo/fabrica.asp>. Acesso em: 03 jan. 2012. 46 2.2 A hemoterapia nacional Os serviços de hemoterapia, independentemente de seu nível de complexidade, devem estar sob a responsabilidade técnica de profissional médico, especialista em hemoterapia ou hematologia, ou qualificado por órgão competente devidamente reconhecido para esse fim pelo Sistema Estadual de Sangue, que responderá pelas atividades executadas pelo serviço. A Resolução de Diretoria Colegiada n. 151, de 21 de agosto de 2001, cuidou de regulamentar os níveis de complexidade dos serviços de hemoterapia no país. A hemorrede nacional é coordenada, no nível federal, pela Gerência Geral de Sangue, outros Tecidos e Órgãos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, e nos Estados e Distrito Federal pelo gestor do Sistema Único de Saúde (SUS). Os serviços de hemoterapia que integram a hemorrede nacional terão nomenclatura e conceituação específicas, de conformidade com a seguinte estrutura: Hemocentro Coordenador, Hemocentro Regional, Núcleo de Hemoterapia, Unidade de Coleta e Transfusão, Unidade de Coleta, Central de Triagem Laboratorial de Doadores e Agência Transfusional. O Hemocentro Coordenador é entidade de âmbito central, de natureza pública, localizada preferencialmente na capital, com a finalidade de prestar assistência e apoio hemoterápico e/ou hematológico à rede de serviços de saúde. Deverá prestar serviços de assistência às áreas a que se propõe, de ensino e pesquisa, formação de RH, controle de qualidade, suporte técnico, integração das instituições públicas e filantrópicas, e apoio técnico à Secretaria de Saúde na formulação da Política de Sangue e Hemoderivados no Estado, de acordo com o Sistema Nacional de Sangue e Hemoderivados e o Plano Nacional de Sangue e Hemoderivados e em articulação com as Vigilâncias Sanitária e Epidemiológica. O Hemocentro Regional é entidade pública de âmbito regional, para atuação macrorregional na área hemoterápica e/ou hematológica. Deverá coordenar e desenvolver as ações estabelecidas na Política de Sangue e Hemoderivados do Estado para uma macrorregião de saúde. Poderá encaminhar a uma Central de Triagem Laboratorial de Doadores as amostras 47 de sangue para realização dos exames e atuar como distribuidor de hemocomponentes para outros serviços. O Núcleo de Hemoterapia é entidade de âmbito local ou regional, de natureza pública ou privada, para atuação microrregional na área de hemoterapia e/ou hematologia. Deverá desenvolver as ações estabelecidas pela Política de Sangue e Hemoderivados no Estado. Poderá encaminhar a uma Central de Triagem Laboratorial de Doadores as amostras de sangue para realização dos exames. A Unidade de Coleta e Transfusão poderá ser uma entidade de âmbito local, de natureza pública ou privada, que realiza coleta de sangue total e transfusão, localizada em hospitais ou pequenos municípios, onde a demanda de serviços não justifique a instalação de uma estrutura mais complexa de hemoterapia. Poderá ou não processar o sangue total e realizar os testes imunohematológicos dos doadores. Deverá encaminhar para a realização da triagem laboratorial dos marcadores para as doenças infecciosas a um Serviço de Hemoterapia de referência. A Unidade de Coleta é entidade de âmbito local, que realiza coleta de sangue total, podendo ser móvel ou fixa. Sendo móvel, deverá ser pública e estar ligada a um Serviço de Hemoterapia. Sendo fixa, poderá ser pública ou privada. Deverá encaminhar o sangue total para processamento e realização dos testes imunohematológicos e de triagem laboratorial dos marcadores para as doenças infecciosas a um Serviço de Hemoterapia de referência. A Central de Triagem Laboratorial de Doadores é entidade de âmbito local, regional ou estadual, pública ou privada, que tem como competência a realização dos exames de triagem das doenças infecciosas nas amostras de sangue dos doadores coletado na própria instituição ou em outras. A realização de exames para outras instituições só será autorizada mediante convênio/contrato de prestação serviço, conforme a natureza das instituições. Por fim, a Agência Transfusional deverá ter localização preferencial em hospitais, com a função de armazenar, realizar testes de compatibilidade entre doador e receptor e transfundir os hemocomponentes liberados. O suprimento de sangue a estas agências realizar-se-á pelos Serviços de Hemoterapia de maior complexidade. 48 2.2.1 A hemoterapia na América Latina Gabriel A. Schmunis e Jose R. Cruz56 reportam minuciosamente a evolução da hemoterapia na América Latina. Aludem que a 28ª Assembleia Mundial da Saúde da Organização Mundial da Saúde aprovou a Resolução WHA 28.72, em 1975, versando sobre o fornecimento e utilização do sangue humano e hemoderivados. O documento veio instar os países membros ao desenvolvimento de políticas nacionais de sangue baseadas na doação voluntária não remunerada, bem como para a promulgação de leis regendo o funcionamento dos serviços correlatos às políticas do sangue, além de medidas destinadas à proteção de doadores e receptores de sangue e hemoderivados. Segundo os autores, contradizendo o que se colhe nos bancos de sangue brasileiros, supostamente baseados em estatísticas fornecidas na década de 90 e até 2002, na América Latina, os doadores voluntários são minoria, a despeito de mais saudáveis que os doadores remunerados ou de reposição. Refletem que os doadores remunerados, pelo benefício financeiro, tendem a omitir informações relevantes que inviabilizariam a doação ou imporiam seu adiamento. Os doadores de reposição, amigos ou familiares são recrutados para substituir o sangue usado ou a ser usado. Estes, em função da pressão exercida pelos receptores ou parentes, do mesmo modo, podem não estar dispostos a fornecer informações relevantes sobre seu real estado de saúde. Alguns dados alarmantes são descritos pelos doutrinadores57. Em 1997, mais de 89% dos doadores de sangue foram de reposição, parentes ou amigos dos pacientes, no Chile, Costa Rica, Guatemala, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Na Colômbia, Equador, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Panamá, essa proporção variou entre 57 e 80%. Em 1999, os doadores voluntários variaram entre 40 a 50%, na Costa Rica e Nicarágua; de 18 a 21%, no Equador, Guatemala e Honduras. Em 2002, a maior proporção de doadores voluntários foi encontrada na Costa Rica (48%), Colômbia e Equador (41%), seguidos de Honduras (22%). Em outros países, a porcentagem de doadores voluntários foi inferior a 10%. Consignam que, em 2002, alguns países ainda persistiam em remunerar doadores (12,55% na 56 SCHMUNIS, Gabriel A.; CRUZ, Jose R. Safety of the blood supply in Latin America. Clinical Microbiology Reviews, v. 18, no. 1, p. 12, 2005. Disponível em: <http://cmr.asm.org/content/18/3/582.full.pdf+html>. Acesso em: 14 mar. 2012. 57 Ibidem, p. 15-16. 49 Bolívia e 47% no Panamá, em 2001; 8,77% em Honduras e 3,22% no Peru), baseados em dados das Nações Unidas. Mesmo os países que informaram índice de doações voluntárias superior a 20%, em 2002 (Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Honduras, Nicarágua e Uruguai), omitiram dados acerca de serem doadores de repetição ou pela primeira vez. Apesar dos esforços iniciais de Argentina, Brasil, Colômbia, Equador, México e Uruguai em estabelecerem um sistema de notificação de incidentes e eventos adversos relacionados com a administração da hematologia, as informações sobre tais questões não foram oficialmente enviadas por esses países. Portanto, o impacto potencialmente negativo das transfusões de sangue em pacientes e na saúde pública restou desconhecido. No que toca ao envio de informações sobre infecções transmitidas nas transfusões de 1993 a 2001 e 200258, o primeiro ano em que foram disponibilizadas para todo o mundo, foi em 1993, pela Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica e El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Venezuela; 1994, pelo Equador, Panamá, Paraguai e Uruguai; 1995, pela Argentina; 1997, pelo Peru; e 1999, pelo setor público do Brasil e México. O número absoluto de doadores aumentou durante o período de 1993 a 2002, de 10% a 150%, em alguns países, como Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras, Panamá e Paraguai; manteve-se na Argentina, Chile, Costa Rica, Nicarágua e Uruguai. No Brasil, o número de doadores dobrou entre os anos base 1999 e 2002, porque a informação tornou-se disponível, também, pelo setor privado. 2.3 A Constituição Federal e a vedação de comercialização do sangue e seus derivados A finalidade maior deste trabalho reside no encontro de positivação apta a consolidar a doação de sangue como medida jurídico-penal, em prol da salvação de vidas, mediante atos ungidos de altruísmo e solidariedade, capazes da geração subjetiva de autoestima e objetiva de justiça social. 58 SCHMUNIS, Gabriel A.; CRUZ, Jose R., Safety of the blood supply in Latin America, cit., p. 17. 50 Cada doação potencialmente pode salvar de três a quatro vidas. Com essa medida de alto alcance humanitário, o Poder Judiciário pode criar mecanismos tendentes a disseminar comportamentos de comprometimento social em que o doador e, por influência do ato benévolo, seus familiares se vinculem à causa e se tornem doadores habituais. O bem-estar físico e moral se inserem no contexto do direito fundamental “vida”. E a vida (art. 5º, caput, da CF) não há de ser considerada apenas no seu sentido biológico de incessante autoatividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder a própria identidade.59 A proteção constitucional é perene, porquanto “é mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte [...]. Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida”.60 Pelo intrínseco congresso entre o bem-estar físico e mental, ao abordar o direito à integridade física, José Afonso da Silva chama a atenção para o Texto Maior firmar como direito fundamental o respeito aos presos (art. 5º, XLIX) e vedar, genérica e expressamente, qualquer desrespeito à integridade física e moral de qualquer pessoa, declarando que “ninguém será submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III). E faz um questionamento: sendo a integridade física um direito individual, seria lícito alguém alienar membros ou órgãos de seu corpo? E responde: “Se essa alienação, onerosa ou gratuita, se faz para extração após a morte do alienante, não parece que caiba qualquer objeção. É que, em tal caso, não ocorre ofensa à vida, que já inexistirá.”61 No Brasil é vedada a comercialização de órgãos e a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, instituiu o sistema nacional de transplante. Anos depois, sofreu pequena modificação pela Lei n. 10.211, de 23 de março de 2001. A Lei n. 9.434/97 somente admite a disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de 59 SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 197. Ibidem, p. 197. 61 Ibidem, p. 200. 60 51 transplante ou tratamento. Resta sublinhar que, para os efeitos da legislação, não estão inseridos nessa limitação o sangue, o esperma e o óvulo. Quanto à gratuidade, José Afonso da Silva sublinha que: Procedeu bem a lei ao estabelecer a gratuidade para o caso. É que a vida, além de ser um direito fundamental do indivíduo, é também um interesse que, não só ao Estado, mas à própria humanidade, em função de sua conservação, cabe preservar. Do mesmo modo que a ninguém é legítimo alienar outros direitos fundamentais, como a liberdade, por exemplo, também não se lhe admite alienar a própria vida, em nenhuma de suas dimensões. É de observar, contudo, que a lei só permite a disposição de tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo para fins de transplante, quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental, e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora (art. 9º). Dá-se que a doação, em tela, tem por objetivo salvar vida, e não teria justificativa sacrificar a vida ou a vitalidade do doador extinguindo ou mutilando a própria vida.62 Paralelamente à preservação da vida, e nessa linha de raciocínio, de se ressaltar que a Lei n. 10.205/01, no artigo 14 e incisos, traça paradigmas disciplinando todas as medidas relacionadas à doação de sangue. No que toca aos requisitos da doação de sangue, especialmente a gratuidade, os incisos II e III arrimam o seguinte: A Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes: [...] II - utilização da doação voluntária, não remunerada, do sangue, cabendo ao poder público estimulá-la como ato relevante de solidariedade humana e compromisso social; III - proibição de remuneração ao doador pela doação de sangue; Sem destoar, a RDC 57/2010, que “determina o Regulamento Sanitário para Serviços que desenvolvem atividades relacionadas ao ciclo produtivo do sangue humano e componentes e procedimentos transfusionais”, recrudesce o espectro dos requisitos que envolvem a doação de sangue, para acrescentar, além do que o texto constitucional aborda (vedação de comercialização) e da lei infraconstitucional (não remuneração), outros parâmetros considerados mote da Organização Mundial da Saúde e que foram sendo 62 SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 201. 52 sucessivamente olvidados pelos aludidos diplomas legais. A resolução, em seu artigo 20, agrega àqueles requisitos que “a doação de sangue deve ser voluntária, anônima, altruísta e não remunerada, direta ou indiretamente, preservando-se o sigilo das informações prestadas”. A redação da Resolução encontra sintonia com os diplomas internacionais sobre a doação de sangue e seus pressupostos, inclusive no incremento que majora esse leque de exigências, que passamos a analisar uma a uma. Em síntese, consiste na obrigatoriedade do ato ser voluntário, anônimo, altruísta e gratuito ou não remunerado. A voluntariedade deve ser respeitada sempre, uma vez que o doador não pode ser obrigado a praticar determinado ato se sua convicção pessoal, por qual motivo for, apontar em sentido diverso. Quanto ao anonimato, a lei esclarece o seu alcance, e não há necessidade de nada mais anotar a respeito, porquanto nem receptor e nem doador devem saber a origem ou destinação do sangue, salvo em se tratando de doação autóloga. O altruísmo, termo criado pelo filósofo francês Augusto Comte por volta de 1830, significa cuidado desinteressado pelo outro, a realização de um ato humanitário abnegativo em prol do próximo. É o domínio dos instintos egoístas. Designa o amor mais amplo possível ao outro, vale dizer, a inclinação natural que nos levaria a escolher o interesse geral, de preferência aos nossos próprios interesses. Em seu sentido mais moral, por oposição a egoísmo e a egocentrismo, altruísmo designa a atitude generosa que consiste em sacrificar efetivamente seu interesse próprio em proveito do interesse do outro ou da comunidade.63 O doador de sangue pratica um ato de altruísmo, ou seja, um ato dedicado ao próximo. Um ato de filantropia, de solidariedade humana. Doa um órgão seu para terceira pessoa desconhecida. Ainda que esse doador seja estimulado pelo Poder Judiciário, o caráter altruísta da ação persiste. 63 JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 10. 53 O altruísmo pode ser provocado? Na rotina das pessoas, a decisão de doar sangue nasce como um ato humano voluntário. Essa voluntariedade do ato de abnegação é que traz ínsito o altruísmo. Não obstante, a voluntariedade pode nascer da sugestão alheia. Amigos, parentes, propaganda, tudo enfim pode colaborar para convencer a pessoa a doar. Mesmo que provocada a assim agir em face de um ato processual, não deixaria de ser altruísta. O sentimento de respeito ao próximo, de ajuda a um estranho, é um ato humanitário caracterizador do altruísmo. Quando se sugere a doação de sangue no curso de um processo, e a pessoa é informada que seu ato pode salvar vidas, para contrabalançar a fúria punitiva estatal, é sintomático que o destinatário da sugestão mescle seu interesse pessoal de se livrar da pena privativa de liberdade. Seu raciocínio é simples: doo sangue e me livro da prisão. Esse mecanismo permite ao Poder Judiciário colaborar com a cidadania, informando à pessoa sobre quais carências, nos diversos setores da sociedade, elegeu e incluiu entre suas metas. Descobre, ainda que desconheça a exata consequência da doação, que sua ação pode gerar benefícios à saúde pública. Em síntese, o altruísmo pode, sim, derivar da intervenção de terceiros, como no exemplo figurado. Passamos à narrativa de uma situação concreta por nós vivida que transmite certeza dessa convicção. Um jovem estava para ser sentenciado por um crime de furto leve. A ele havia sido proposto o benefício do sursis processual, mas recusara. Confesso, o jovem seria condenado inequivocamente. No entanto, antes de prolatar a sentença, foi-lhe indagado se não queria repensar sobre o benefício recusado, aventando-se a possibilidade de o órgão ministerial modificar a proposta, inclusive oferecendo-lhe a oportunidade de doar sangue. O jovem, humilde por demais, sempre permaneceu cabisbaixo. De repente, pede a palavra e diz: “Senhor juiz, se eu der sangue, posso salvar uma vida, não?” Aquelas palavras comoveram todos na sala de audiência. Diante do inusitado causado pelas palavras do jovem, foi esclarecido que sim, uma doação de sangue pode salvar até três vidas. “Então, eu aceito”, disse ele. Em nosso sentir, esse jovem desconhecia lexicamente o significado da palavra altruísmo, todavia a sua reação espelha o brotar desse sentimento inato e magnânimo. Aceitou doar porque podia salvar uma vida... 54 Cremos que inexiste óbice algum em o Poder Judiciário servir de elo entre o autor do fato e o banco de sangue, como forma de estímulo a desabrochar o altruísmo na pessoa, em seus familiares e amigos. Essa virtude varia de pessoa para pessoa, a exemplo dos valores morais e éticos. Se os ilícitos são praticados por toda sorte de pessoas, é sensato que muitas podem ter noção do significado de altruísmo, outras não. O altruísmo entre membros de uma mesma família é uma realidade quase que obrigatória; fora dela é que existe a relutância, porquanto a pessoa, em seu íntimo, acredita que sofre alguma espécie de prejuízo com tal empreendimento. Mas a semente, uma vez plantada, tende a trazer bons frutos. Nessa linha de credo, estudiosos vêm se posicionando no sentido de que o altruísmo, em oposição ao egoísmo, pode frutificar em um grupo social, em uma comunidade. Em entrevista, o economista Samuel Bowles, autor de diversos trabalhos sobre a evolução genética e cultural dos humanos, publicados em revistas como Nature e Science, põe em dúvida a teoria da evolução de Charles Darwin e a ideia de que os homens são inteiramente egoístas64. Defensor da tese de que a gentileza foi e é fundamental para a evolução humana, em contraposição à teoria da sobrevivência do mais apto, em face das inúmeras pesquisas que realizou na África, Ásia e em países da América Latina, concluiu que a seleção natural pode produzir espécies altruístas e cooperativas, ao invés de seres humanos inteiramente egoístas, como defendia Charles Darwin. O pesquisador responde, nos seguintes termos, à questão: “O altruísmo pode ser aprendido?”: Certamente. Acreditava-se, no passado, que o comportamento altruísta ficava restrito a membros de uma mesma tribo ou vila ou limitado a grupos linguísticos. Mas, agora, sabemos que o altruísmo pode se estender pelo mundo todo. Muitos de nossos valores são influenciados pela nossa constituição genética. Mas também somos seres culturais, aprendemos através de exemplos – com as lições de nossos pais, professores, vizinhos, líderes nacionais e internacionais. Tenho 71 anos. Na minha juventude, era 64 AZEVEDO, Solange. Samuel Bowles: “Charles Darwin estava errado”. IstoÉ, São Paulo, n. 2.158, de 18.03.2011. Isto É Entrevista. Disponível em: <http:// www.istoe.com.br/ assuntos/ entrevista/ detalhe/ 129045_CHARLES+DARWIN+ESTAVA+ERRADO+>. Acesso em: 14 mar. 2012. 55 impossível imaginar que um afro-americano seria eleito presidente dos Estados Unidos, já que alguns tipos de espírito cívico não existiam nos anos 1950 e 1960.65 Instado sobre como o comportamento altruísta influenciou a evolução cultural e genética dos homens, alude: A pessoa é altruísta, de acordo com biólogos e também segundo a minha definição, se ajuda aos outros sacrificando a si mesma. Para os biólogos, isso significa ajudar as outras pessoas a se adaptar, produzir mais crianças e cuidar delas até que elas próprias possam se reproduzir. Para os biólogos, no entanto, esse tipo de sacrifício só seria possível entre irmãos ou parentes próximos. Porque, se a pessoa abrir mão do próprio sucesso reprodutivo para ajudar um desconhecido, seu tipo altruísta é eliminado. O problema é que essa teoria desconsidera uma questão importantíssima: seres humanos vivem em grupos e nós sobrevivemos por causa disso. Se estivéssemos num grupo em que todos são egoístas, ele funcionaria precariamente e acabaria extinto.66 Prossegue ainda, afiançando pesquisas reveladoras de que se as pessoas forem tratadas como entes egoístas, isso pode ser um incentivo para que ajam de modo egoísta. Por isso, defende que países e empresas poderiam ser mais bem administrados à luz de sua teoria. Evoca e critica Maquiavel (1469-1527), para quem o mundo é perverso e a raiva torna as pessoas engenhosas, motivo pelo qual somente a lei as tornaria boas. A elaboração frequente de leis levando em conta o pressuposto de que as pessoas são completamente egoístas, como filósofos e advogados vêm produzindo, está equivocada. Para provar seu raciocínio, cita um exemplo em Israel de que, entre várias creches, uma delas impôs multa para os pais que chegassem atrasados mais de dez minutos para buscar seus filhos; a proporção de atrasos dobrou a partir da edição da regra. Em contrapartida, nas creches em que a regra não foi imposta, a proporção de atraso permaneceu inalterada. E conclui: “Quando não havia multa, os pais sentiam estar violando uma norma ética e atrapalhando o andamento da escola e a rotina dos professores. Depois, chegar atrasado virou uma mercadoria que os pais poderiam comprar.”67 No encerramento de sua entrevista, defende que o mundo está se tornando mais altruísta, senão de espírito mais público. 65 AZEVEDO, Solange, Samuel Bowles: “Charles Darwin estava errado”, cit. Ibidem. 67 Ibidem. 66 56 Não se quer criticar Charles Darwin ou enaltecer Samuel Bowles, mas somente explorar o raciocínio de um reconhecido profissional da área da evolução genética e cultural dos seres humanos, ao ponderar, com coerência, que o altruísmo pode ser estimulado, pelo simples motivo de que cada ser humano é distinto do outro, em quase todos os aspectos, especialmente nos morais e éticos, de modo que os mais privilegiados precisam cooperar com o aperfeiçoamento do próximo. De se ressaltar que o juiz é um educador, motivo por que há de instar os jurisdicionados a cooperarem com o meio social em que habitam. A tendência é que se torne um voluntário dessa cruzada do bem, estimulando as pessoas que tiveram qualquer problema com a Justiça a doarem sangue como prestação social alternativa. Se o ato é altruísta, inquestionavelmente é um estímulo à autoestima. Tome-se o exemplo anterior do jovem que aceitou a doação de sangue, dentre outras condições relativas ao sursis processual. Quando foi indagado sobre o motivo pelo qual se negara a receber o benefício, respondeu que nada merecia, senão a punição estatal. A pena era o que entendia adequado a si próprio. Desejava ser punido pelo mal causado. Contudo, ao se dar conta que podia salvar vidas com algo seu, uma doação exclusivamente pessoal, certamente sua autopunição foi mitigada. Percebeu que podia ser útil à sociedade. Não era um estorvo. Um arquétipo domiciliar pode bem retratar esse delineamento e aclarar o alcance da autoestima. Um pai, zangado com o filho que fez estripulia exagerada, ao invés de pô-lo de castigo, determina que o ajude a guardar as compras ou outra tarefa domiciliar importante. O filho não ficará enclausurado em um quarto. Ao contrário, produzirá algo útil para o bem-estar familiar. Assim agindo, a criança tem condições de ganhar respeito dos familiares e se sentir valorizada. Remuneração é o ato ou efeito de remunerar. É a retribuição por serviço ou favor prestado, recompensa, prêmio. É a gratificação, geralmente em dinheiro, por trabalho realizado, salário ou recompensa.68 68 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, cit. 57 A recompensa pode ser qualificada, na esfera jurídica, como “pagamento que corresponde à promessa feita no sentido de retribuir aquele que conseguisse determinado resultado”.69 Prêmio é: a) retribuição em dinheiro por um serviço prestado; b) quantia em dinheiro ou objeto de valor real dado a quem fez jus; c) distinção conferida a quem se destaca por méritos, feitos ou trabalhos, galardão, condecoração.70 As terminologias encontram assento na normatização exarada pela Anvisa. Porém, a vedação à remuneração tem por objetivo maior evitar o pagamento em espécie de qualquer ação solidária feita pelo doador. É a luta contra uma das principais mazelas da história da hemoterapia nacional. Como se sabe, os mais humildes e os presidiários eram convidados a fazer o ato de filantropia e recebiam por isso. O Governo Federal remunerava em dinheiro o ato benevolente praticado. Essa era a política de fomento daquele momento histórico. Com a remuneração fora da política adotada para a coleta de sangue, enquanto o legislador infraconstitucional destaca sua impossibilidade, os técnicos da Anvisa decidiram amplificar seu sentido, para proibir não só a monetária, mas todo e qualquer tipo de remuneração, direta ou indireta, no corpo da Resolução. Em outros termos: toda e qualquer forma de contratação realizada entre doador e o profissional da saúde deve ser considerada ilícita e, portanto, vedada. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a cada um de seus Estados membros desenvolver serviços de transfusão de sangue baseados na doação regular não remunerada, conforme Resolução n. 28.72, adotada em 1975, na Assembleia Mundial da Saúde.71 A OMS fixou em 1997 a meta de que toda a doação seria não remunerada em seus países membros. No entanto, em 2006, somente 49 dos 124 países pesquisados adotaram essa prática. Há países que dependem de doadores remunerados para manter os bancos de sangue. 69 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, cit. Ibidem. 71 WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Blood transfusion safety: voluntary non-remunerated blood donation. Disponível em: <http://www.who.int/bloodsafety/voluntary_donation/en/>. Acesso em: 14.03.2012. 70 58 Nos Estados Unidos, a doação de sangue é obrigatoriamente voluntária e não remunerada; já os doadores de plasma são remunerados, entre U$ 9 e U$ 20 por doação.72 Para o farmacêutico Osnei Okumoto, conselheiro federal pelo Mato Grosso do Sul e diretor da hemorrede do seu Estado, o Brasil adota uma política da barganha pela doação de sangue, o que é equivocado. Explica que, dependendo dos hábitos e das condições físicas percebidas na triagem, o candidato não poderá doar. Ele alerta “O perigo da barganha é que o doador não apto pode mentir para o médico e se arriscar, ao doar sangue para ganhar as contrapartidas oferecidas.”73 Toda sua preocupação se dá porque, em alguns Estados, o doador devidamente cadastrado tem isenção das taxas de inscrição em concursos públicos, ganha folga no trabalho e um farto lanche no dia em que faz a coleta. Se considerarmos que o Brasil tem grande número de pessoas desempregadas e que vivem em situação de extrema pobreza, sem ter o que comer, significa que um lanche e a possibilidade de prestar concurso público de graça são chamarizes eficazes, mas que podem ser muito perigosos. Aborda ainda: Em países como os Estados Unidos, França e Japão, existe uma cultura de doação de sangue. Por isso, esses países apresentam os melhores estoques reguladores de sangue. Lá, a doação é verdadeiramente voluntária e altruísta. Os cidadãos desses países doam por caridade e porque entendem a importância desse ato, sem esperar nada em troca. Aqui, é diferente.74 Mas, esse radicalismo do profissional contra a fórmula de fomento que o Poder Público encontrou para melhorar o estoque dos bancos de sangue não se coaduna com tudo o que é feito ao redor do mundo. Se excessos existem, eles decorrem da boa vontade política daqueles que pretendem cooperar com a saúde pública. Caso extrapolem os paradigmas 72 Os valores pagos aos doadores vão diretamente para cada centro de coleta autorizado, cuja inspeção, fiscalização e investigação criminal ficam por conta da American Blood Resources Association, ligada à Food and Drugs Administration (FDA). A propaganda, que é livre, informa: “One recent study of over 400 college students, age 18 to 22, found that 10 percent have sold their blood plasma at least once for cash payments of from $9 to $20 per donation. Of that group, three out of five are former Red Cross donors who stopped donating blood for a lollipop and a t-shirt when they started selling their plasma for cash!” (NATIONAL PLASMA CENTERS. Disponível em: <www.nationalplasmacenters.com>. Acesso em: 03 jan. 2012). 73 OKUMOTO, Osnei, citado em: RANGEL, Priscila; BRANDÃO, Aloísio. Doação: entre o altruísmo e a barganha. Pharmacia Brasileira, Brasília, Conselho Federal de Farmácia (CFF), n. 49, p. 35, ago./set. 2005. Disponível em: <http://www.cff.org.br/sistemas/geral/revista/pdf/18/doaAAo.pdf>. Acesso em 14 mar. 2012. 74 OKUMOTO, Osnei citado em: RANGEL, Priscila; BRANDÃO, Aloísio. Doação: entre o altruísmo e a barganha, cit., p. 35. 59 éticos, morais e legais, os profissionais da área hão de atuar em sentido contrário para refutar ações do gênero. Induvidosamente, o ideal é que os doadores homólogos pratiquem o ato por pura caridade e altruísmo. Nessa seara, o Estado promove políticas públicas tendentes a estimular e incentivar a doação gratuita, especialmente por meio de campanhas institucionais nas épocas de maior carência do estoque. De outro lado, provocando cada pessoa em seu íntimo, nos mais diversos países, não só no Brasil, o incentivo mais adotado é a concessão do dia de folga no trabalho para quem estiver empregado. 2.3.1 Alguns incentivos pelo mundo Consoante o Departamento do Trabalho do Estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos, a Lei Trabalhista, na seção 202-j determina que os empregadores ofereçam o tempo necessário para que os empregados doem sangue.75 Na Itália, a Lei 219, de 21 de outubro de 2005, que trata da nova disciplina da atividade transfusional e da produção nacional dos hemoderivados, prevê em seu artigo 8.1 que o dia da doação será como um feriado remunerado.76 A Sociedade Cruz Vermelha de Cingapura presenteia o doador voluntário que fizer determinado número de doações, dentro do programa denominado de Recrutamento do Doador Voluntário, começando com uma medalha de bronze quando alcançar 25 doações (homem ou mulher). Ao atingir 50 doações o homem e 35 a mulher, faz jus a medalha de prata. Se 75 o homem e 50 a mulher, ganha a medalha de rubi. Chegando a 100 o homem e 75 a mulher, concede-se a medalha de ouro; 125 o homem e 100 a mulher, medalha de diamante; 75 GUIDELINES for implementation of employee blood donation leave. Disponível em: <www.labor.state.ny.us/workerprotection/laborstandards/PDFs/Blood%20guidelinesFINAL.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2012. 76 “Art. 8. (Astensione dal lavoro). 1. I donatori di sangue e di emocomponenti con rapporto di lavoro dipendente, ovvero interessati dalle tipologie contrattuali di cui al decreto legislativo 10 settembre 2003, n. 276, hanno diritto ad astenersi dal lavoro per l’intera giornata in cui effettuano la donazione, conservando la normale retribuzione per l’intera giornata lavorativa. I relativi contributi previdenziali sono accreditati ai sensi dell’articolo 8 della legge 23 aprile 1981, n. 155.” 60 150 o homem e 125 a mulher, o prêmio campeão dos campeões; e, por fim, 200 vezes o homem e 150 a mulher, o Prêmio Humanitário da Cruz Vermelha.77 No Brasil, o trabalhador sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho poderá deixar de comparecer ao serviço, sem prejuízo do salário, por um dia em cada 12 meses de trabalho, em caso de doação voluntária de sangue devidamente comprovada (art. 473, inc. IV, da CLT78). Os funcionários públicos civis federais, sem qualquer prejuízo, podem se ausentar do serviço por um dia para doação de sangue, sem limite anual de doações (art. 97, inc. I, da Lei n. 8.112/199079). É política adotada em todos os cantos do planeta disseminar medidas que visem à mitigação das deficiências da saúde pública na área da hematologia, especialmente aquelas que aumentem a população de doadores fidelizados ou não, com ênfase, repita-se, às campanhas institucionais veiculadas pela imprensa. Em nosso país, os parlamentares tentam, por sua vez, criar novos incentivos de cooperação, elaborando projetos de lei diretamente visando a beneficiar os doadores de sangue. Como exemplo recente, podemos citar o Projeto de Lei n. 2.137/2011, de autoria do deputado federal Wilson Filho, apresentado em 25 de agosto de 2011. Nele, o parlamentar apresenta uma série de benefícios para quem realizar “pelo menos três doações, no caso de homens, e de duas no caso de mulheres, no período de doze meses antecedentes à data em que for pleiteado qualquer dos incentivos enumerados nesta lei”. E os incentivos são isenção de pagamento de: taxa de inscrição em concursos públicos para provimento de cargos ou empregos públicos, eletivos ou temporários, da administração pública federal, estadual ou municipal, bem como de suas autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista; taxa de inscrição em vestibulares públicos, para ingresso nas instituições federais, estaduais ou municipais de ensino; taxas de exames e provas para registro em conselhos ou outras entidades de fiscalização do exercício profissional, desde que tais entidades autorizem previamente tal isenção como forma de parceria no incentivo à doação de sangue. 77 Disponível em: <http://www.redcross.org.sg/articles/honour-roll-2009>. Acesso em 25 jan. 2012. “Artigo 473 - O empregado poderá deixar de comparecer ao serviço sem prejuízo do salário: [...] IV - por 1 (um) dia, em cada 12 (doze) meses de trabalho, em caso de doação voluntária de sangue devidamente comprovada; (Inciso acrescentado pelo Dec.-Lei n. 229, de 28.02.1967) [...].” 79 “Artigo 97 - Sem qualquer prejuízo, poderá o servidor ausentar-se do serviço: I - por 1 (um) dia, para doação de sangue; [...].” 78 61 Nesse projeto de lei ainda propõe o parlamentar vantagens ao doador funcionário público, bem como alteração na Consolidação das Leis do Trabalho, permitindo até quatro doações em um ano. E vai mais longe: prevê modificação da Lei de Execuções Penais, sugerindo que o condenado que cumpre pena em regime fechado ou semiaberto, que for doador de sangue, poderá diminuir o tempo de execução na razão de um dia para cada doação realizada, dentro do limite de quatro dias para homens e três para as mulheres, a cada ano. Na justificativa de seu projeto de lei, o parlamentar salienta que suas proposições não se confundem com comercialização, ao contrário, “representam formas de estimular os brasileiros a praticarem a doação voluntária e altruísta”. A iniciativa do parlamentar é elogiável em quase todos os aspectos, no entanto, dentro da exegese das prerrogativas mínimas de garantia de saúde para o receptor, deve ser evitada a doação de sangue de pessoas que foram ou estão encarceradas. O risco do dano que egressos pode provocar é imenso. Mais prudente que sejam excluídos os que permaneceram recolhidos em estabelecimentos penitenciários. Dentro da filosofia de cooperação e criação de incentivos para redução do déficit de sangue e hemoderivados nos bancos de sangue, a nosso juízo, o Poder Judiciário deve se irmanar a essa política de fomento criando, do mesmo modo, mecanismos que minimizem essa carência. E na estratégia que ora defendemos, não há troca de favores ou outra forma indireta de remuneração. Vejamos. Quando o Poder Judiciário homologa a transação ou a suspensão condicional do processo, ou qualquer outra forma de ato consensual, visa à despenalização, ou seja, abre mão de seu poder de punir, do jus puniendi, permitindo que o agente mantenha intocada sua liberdade, ao substituí-la por uma pena alternativa. Objetiva com isso atingir os fins da pena justa e adequada, proporcionando a ressocialização da pessoa humana. Não se trata de um negócio entre o Ministério Público e a defesa, donde se poderia cogitar de remuneração, mas de forma de despenalização através de concessões recíprocas, em que o Estado cede de um lado para o cidadão abdicar parcela de sua liberdade, sem clausura, para pagar o mal cometido. Nessa perda parcial de sua liberdade de locomoção, na qual, por exemplo, presta serviços à comunidade, tem limitado o seu fim de semana, ou é 62 obrigado a pagar uma prestação pecuniária, submete-se ao poder estatal para o devido cumprimento de sua pena. Nas três hipóteses alvitradas neste trabalho para doação de sangue, com a participação efetiva do Poder Judiciário, a consensualidade se faz presente. Não há imposição, mas proposições que permitem discussão entre o agente, acompanhado de seu patrono, e o acusador, gerando um resultado de mútuo consenso, a ser homologado judicialmente. Se o agente obtém vantagem de não perder sua liberdade, o Estado recebe o sangue que tem destinação certa. A doutrina é unânime em asseverar que a transação é uma forma de despenalização. Diga-se o mesmo quanto à suspensão condicional do processo. Não se trata da malfadada barganha dos negócios de natureza privada, mas de consenso visando a preservar a liberdade e a dignidade, cooperando para que os cárceres não fiquem mais entulhados de pessoas. A doação de sangue, ao figurar como modalidade de prestação social alternativa, significa que o Poder Judiciário, por meio do Estado-juiz, aplica uma sanção prevista em lei ao autor do fato, ao homologar uma proposta de transação penal, ou impõe condições ao réu, ao homologar propostas ministeriais em uma suspensão condicional do processo. Em ambas as situações, inclusive numa terceira, em fase de execução penal, quando se propõe ao condenado em infração de menor ou médio potencial ofensivo a substituição da prestação pecuniária por prestação de outra natureza, incogitável falar-se em remuneração ou subespécie dela. A composição entre as partes que digladiam no processo – Ministério Público e autor do fato ou réu –, devidamente submetida e aceita pelo Poder Judiciário, tem por objeto a não imposição de pena privativa liberdade, a suspensão da ação penal e o não enclaustramento do condenado. A concordância do cidadão diante de uma potencial perda da liberdade ou de instauração da ação penal contra si não pode ser confundida com remuneração direta ou indireta por doação de sangue. Ela nada mais é do que um singelo elo da corrente no contexto da sanção cabível pela infração praticada. 63 O exercício da opção pela proposta mais conveniente pode ser a mais benéfica à saúde pública. De qualquer modo, somente fazem jus aos benefícios da transação penal e da suspensão condicional do processo, bem como da pena substitutiva da pecuniária, o cidadão primário, sem antecedentes e, por conseguinte, portador de um passado virgem no campo criminal, independentemente de sua condição financeira, que não tenha habitado o cárcere. Podemos adiantar que, em mais de um ano de aplicação da sanção alternativa, é comum pessoas admitirem portar doenças, medos, seguir credo religioso que veda a doação de sangue, e optarem por outra proposição ou até sugerirem uma terceira ou quarta. Ademais, sempre é bom lembrar que se trata de proposta de acordo, de consenso, na qual a negociação está à disposição do cidadão e de seu advogado para tentar mitigar o elastério das sanções pretendidas pelo acusador. Nosso pleito tem por fim transformar essas ideias em uma nova política de fomento à doação de sangue voluntária, não remunerada, altruísta e anônima, nos moldes dos predicados em que a normatização infraconstitucional finca como requisitos obrigatórios para esse ato de desprendimento de valor inestimável. 2.4 As políticas públicas no tema Informa Helena Ferreira Nunes80, em 1992, o Governo do Estado de São Paulo foi pioneiro na inserção de novo teste sorológico, haja vista o enorme desgaste que os vírus da AIDS e da hepatite C vinham provocando na saúde pública nacional. Por meio da Portaria CVS n. 1, de 30 de junho de 1992, tornou-se obrigatória a realização de prova sorológica individualizada para hepatite C em todo sangue doado para fins transfusionais e industriais. Em 1993, o Ministério da Saúde publicou a Portaria MS n. 1.376/93, tornando obrigatória a realização de provas sorológicas para HIV, hepatite B, hepatite C, HTLV I, HTLV II, doença de Chagas, sífilis, malárias (em regiões endêmicas) e dosagem de ALT. Sem embargo, a tecnologia utilizada para a realização dos exames de sangue é criticada e tida como superada, especialmente após a entrada do teste NAT, em franco uso nos 80 NUNES, Helena Ferreira, Responsabilidade civil e a transfusão de sangue, cit., p. 34-35. 64 países desenvolvidos e financeiramente mais poderosos. No Brasil, o seu ingresso se restringiu à área privada. Apurou-se que o teste atualmente realizado não detecta a presença do vírus, e sim a presença de anticorpos formados para combater o vírus. Por esse motivo, o espaço de tempo entre a contaminação pelo vírus e a formação dos anticorpos para combatêlo, conhecida como janela imunológica, varia de 22 dias para o vírus da AIDS (HIV) e 72 dias para o vírus da hepatite C (HCV). A nova tecnologia, conhecida como teste NAT (teste de ampliação e de detecção de ácidos nucléicos), detecta a presença do vírus da AIDS (HIV) e hepatite C (HCV) em menor espaço de tempo entre a contaminação e a formação de anticorpos, ou seja, a janela imunológica tem seu lapso temporal reduzido.81 Em 2002, o Ministério da Saúde publicou a Portaria MS n. 262, em 5 de fevereiro, tornando obrigatório o uso dos testes de amplificação e detecção de ácidos nucléicos (NAT), para HIV e HCV, pelos serviços de hemoterapia do país, em todas as amostras de sangue para fins transfusionais. Essa Portaria acabou revogada pela de Portaria MS n. 1.407, de 1º de agosto de 2002, que também foi revogada pela de Portaria MS n. 79, de 31 de janeiro de 2003, que igualmente acabou revogada pela de Portaria MS n. 112, de 29 de janeiro de 2004. A Portaria MS n. 112/2004, diante da realidade nacional de que os recursos do Ministério da Saúde são parcos e que ano após ano tem o seu orçamento drasticamente reduzido, houve por bem determinar a implantação em etapas, no âmbito da Hemorrede Nacional, da realização dos testes de amplificação e de detecção de ácidos nucléicos (NAT), para HIV e para HCV, nas amostras de sangue de doadores. Determina que a implantação seja gradativa, devendo a primeira etapa se dar em número restrito de Serviços de Hemoterapia públicos, a ser definida pelo Ministério da Saúde, respeitando-se critérios epidemiológicos, sanitários, área física e outros, além de exigir técnicos de níveis superior e médio, capacitados e disponíveis para serem treinados. O teste NAT vem sendo maciçamente utilizado pelos serviços de hemoterapia da área privada em sua rotina de provas sorológicas e, em contrapartida, em ínfimo percentual na área pública. 81 Janela imunológica é o período em que após uma pessoa ser contaminada por um vírus ou bactéria, seu organismo apresenta certo lapso temporal para reagir e produzir quantidade suficiente de anticorpos necessários para serem detectados nos exames sorológicos. Nesse lapso, ainda que os testes não sejam reagentes para a doença contraída, o sangue se contaminou e poderá ser transmitido. 65 Várias ações civis públicas foram ajuizadas pelo Brasil com o fito de obrigar os serviços públicos e privados de saúde a adquirirem o teste NAT, visando a reduzir o risco de doações de sangue contaminado e, simultaneamente, o período da janela imunológica. Nesse aspecto, foi importante a atuação firme da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS) e do Ministério Público do Estado de Goiás. Aliás, a SBHH defende a popularização do teste em questão, conforme agudizam os médicos Silvano Wendell, José E. Levi, Paulo T. Almeida e Guilherme Fujita Neto.82 Note-se que com o teste NAT, os prazos são sensivelmente reduzidos. A detecção do vírus HIV tem o prazo reduzido de 22 para 11 dias; do HCV, de 72 para 20 dias; do HVB, de 56 para 31 dias. Infelizmente, pelos recursos insuficientes, sequer temos o NAT, mas o mercado americano já conta com um superior, o teste NAT Procleix Ultrio (introduzido em clínicas particulares no Brasil em 2010). O objetivo americano é o de eliminar qualquer risco aos receptores. Cesar Almeida Rodrigues, diretor da empresa responsável pela introdução desse produto no mercado nacional, destaca em entrevista: O Brasil conta com aproximadamente 100 hemocentros que testam 3,7 milhões de doações de sangue por ano. Entre eles, nove hemocentros utilizam a tecnologia NAT, representando cerca de 8% do total de doações no Brasil. [...] o teste Procleix Ultrio, o primeiro teste NAT 3-em-1 com marca CE e aprovado pela Food and Drug Administration (FDA), que testa, simultaneamente, a presença de HIV-1, hepatite B e hepatite C em amostras de sangue doado. [...] Para o Brasil, que está ativamente concentrado no avanço das políticas e dos programas de assistência à saúde, o Procleix Ultrio pode ser um complemento importante dos testes sorológicos tradicionais, que também são usados para testar o sangue doado. [...] Com o teste NAT, os hemocentros de todo o Brasil podem ajudar a reduzir ainda mais o risco associado aos vírus de HIV e de hepatite B e C transmitidos por meio de sangue doado.83 82 WENDELL, Silvano et al. Introdução do NAT no Brazil: algumas considerações adicionais. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 112-113, mar./abr. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v31n2/a14v31n2.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2012. 83 PALUMBO, Luciano. Novartis traz novo teste NAT ao Brasil. Pacientes Online, São Paulo, 18 jan. 2011. Entrevista com Cesar Almeida Rodrigues, diretor da Novartis Diagnostics do Brasil. Disponível em: <www.pacientesonline.com.br/ultimas-noticias/item/8618-teste-pode-identificarr-tres-tipos-de-virusdiferentes-de-uma-so-vez-tecnologia-detecta-estagios-precoces-de-infeccao>. Acesso em: 10 mar. 2012. 66 O Brasil, no momento, caminha para introduzir o teste NAT integralmente no país. Essa afirmativa decorre de campanha criada pelo Ministério da Saúde, informada em 14 de junho de 2011, no Dia Mundial do Doador de Sangue, ocasião em que o Ministro Alexandre Padilha anunciou a expansão do teste NAT para todos os hemocentros brasileiros. A meta da campanha é atingir 4 milhões de voluntários até 2012, o que representa 2,1% da população brasileira. O percentual da população envolvida atualmente com essa mobilização é de 1,9%. A campanha 2011 também terá como meta conquistar voluntários regulares, que são aquelas pessoas que doam duas vezes ou mais vezes no período de um ano.84 Esse percentual de 1,9% está dentro do parâmetro da OMS de 1 a 3% da população , no entanto o Ministério considera que é urgente e possível aumentar o número de brasileiros doadores: se cada pessoa doasse duas vezes ao ano, não faltaria sangue para transfusão no país. Para avaliarmos o quadro nacional, não só em números, como também em atividades voltadas à conscientização da doação voluntária da população, segue um breve panorama do que ocorre nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e no Distrito Federal. Desse retrato, tem-se uma inferência de como todos estão debruçados na causa da coleta de sangue e hemoderivados e seus fins curativos para a causa da saúde pública. O Governo estadual paulista informa no sítio oficial da Secretaria da Saúde sobre a Fundação Pró-Sangue, entidade sem fins lucrativos ligada à Secretaria de Estado da Saúde e à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que mantém com esta cooperação acadêmica e técnico-científica.85 A Fundação Pró-Sangue coleta em média 12.000 bolsas mensalmente, volume de sangue equivalente a aproximadamente 32% do sangue consumido na Região Metropolitana de São Paulo, 16 % do Estado e 4% do Brasil. 84 MINISTÉRIO lança campanha para atingir 4 milhões de doadores de sangue. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/aplicacoes/noticias/default.cfm?pg=dspDetalheNoticia&id_area=124&CO_N OTICIA=12762>. Acesso em: Acesso em: 12 jan. 2012. 85 FUNDAÇÃO PRÓ-SANGUE. HEMOCENTRO DE SÃO PAULO. Disponível em: <www.saude.sp.gov.br/ses/institucional/fundacoes/fundacao-pro-sangue-hemocentro-de-sao-paulo>. Acesso em: 03 jan. 2012. 67 A Fundação Hemominas, de Belo Horizonte, tem números mais significativos, haja vista ser o órgão que centraliza os dados de coleta estadual: a) responsável por 91% do sangue transfundido no Estado; b) 29.000 candidatos à doação de sangue/mês; c) 23.000 coletas/mês; d) 103.000 hemocomponentes produzidos/mês; e) 187.000 exames sorológicos realizados/mês; f) 186.000 exames processados/mês; e, g) 5.700 consultas médicas/mês.86 O Hemorio, no Estado do Rio de Janeiro, abastece com sangue e derivados cerca de 200 unidades de saúde. Recebe uma média de 350 doadores voluntários de sangue por dia. Além disso, possui um serviço de hematologia, com mais de 10 mil pacientes ativos, que realizam tratamentos de doenças hematológicas.87 Tem um interessante programa, denominado Jovens Salva-Vidas, que consiste em um trabalho realizado por profissionais do Hemorio com educadores e educandos para desenvolver a cultura da doação voluntária de sangue na nossa sociedade. No mesmo diapasão, a Fundação Hemocentro de Brasília desenvolve um programa destinado a estimular entre os jovens de 18 a 20 anos de idade a doação de sangue, criando oportunidades de desenvolverem hábitos saudáveis de vida, valores humanos, altruísticos e éticos.88 Nos finais de ano, o Ministério da Saúde enfrenta uma preocupação maior, porque o estoque é reduzido em 30%, em função das férias escolares. Para minimizar a falta de estoque, as campanhas de doação são frequentes em todo o país. Essas campanhas não se restringem à esfera oficial, ou seja, extrapolam o âmbito de supervisão do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais de Saúde. Entidades, instituições, empresas, igrejas, times de futebol, associações de bairro, clubes de serviços, enfim, toda espécie de grupo social se mobiliza, embrenhada no espírito de solidariedade dessas campanhas, para acudir e auxiliar os bancos de sangue. 86 Disponível em: <www.hemominas.mg.gov.br/hemominas/menu/aInstituicao/historico.html>. Acesso em: 03 jan. 2012. 87 Disponível em: <www.hemorio.rj.gov.br>. Acesso em: 03 jan. 2012. 88 Disponível em: <www.fhb.df.gov.br>. Acesso em: 03 jan. 2012. 68 Vejamos alguns exemplos de solidariedade e altruísmo de entidades em prol da doação: dirigentes de Rotary Club, Lions, Clube de Castores, Leo Clubes etc., ao cooptarem associados e familiares, bem como pessoas da sociedade para esse fim; o Exército Brasileiro, ao orientar os jovens que ingressam nos Tiros de Guerra a comparecer, pelo menos um dia por ano, para fazerem a doação; os recém-ingressos (bichos) nas faculdades fazem trotes solidários; os bombeiros fazem campanha entre seus integrantes por todo o país; as faculdades/universidades fazem campanhas anuais, bem como as igrejas, católicas e evangélicas, as torcidas organizadas dos clubes de futebol, masculino e feminino etc. É óbvio que essas campanhas, independente de sua origem oficial ou privada, têm o mesmo fim, ainda que estimuladas por qualquer nas inúmeras organizações não governamentais pelo país afora. A propósito, o desabafo da Doutora Maria Angélica Soares, coordenadora do Hemocentro do Hospital São Paulo da Universidade Federal de São Paulo, em entrevista concedida a Dráuzio Varella: Ninguém está livre de precisar de uma transfusão de sangue. Ninguém está livre de sofrer um acidente, de passar por uma cirurgia ou por um procedimento médico em que a transfusão seja absolutamente indispensável. Como não existe sangue sintético produzido em laboratórios, quem precisa de transfusão tem de contar com a boa vontade de doadores, uma vez que nada substitui o sangue verdadeiro retirado das veias de outro ser humano. Todos sabem que é importante doar sangue. Mas, quando chega a nossa vez, sempre encontramos uma desculpa – Hoje está frio ou não estou disposto; nesses últimos dias tenho trabalhado muito e ando cansado; será que esse sangue não me vai fazer falta... e vamos adiando a doação que poderia salvar a vida de uma pessoa. Sempre é bom frisar que o sangue doado não faz a menor falta para o doador. Consequentemente, nada justifica que as pessoas deixem de doá-lo. O processo é simples, rápido e seguro.89 Interessante notar que o problema é mundial e não somente brasileiro. Na página oficial do sítio da Cruz Vermelha Americana é feito o clamor: A cada minuto de cada dia, alguém necessita de sangue. Sangue que somente pode vir de um doador voluntário, uma pessoa como você que pode optar pela doação. Inexiste substituição para a sua doação. Quando você faz a doação de sangue, se junta a um grupo seleto. Atualmente somente três em cada cem americanos doam sangue.90 89 SOARES, Maria Angélica. Doação de sangue: entrevista concedida a Dráuzio Varella. Disponível em: <www.drauziovarella.com.br>. Acesso em: 03 jan. 2012. 90 AMERICAN NATIONAL RED CROSS. Give blood. Disponível em: <www.redcross.org/donate/give>. Acesso em: 03 jan. 2012. 69 Outros dados significativos são colhidos nas estatísticas do sítio oficial da Cruz Vermelha americana: Da necessidade: a cada dois segundos, alguém nos EUA necessita de sangue; mais de 38.000 doadores de sangue são necessários a cada dia; mais de um milhão de novas pessoas são diagnosticadas com câncer cada ano, muitas delas necessitam sangue, às vezes diariamente, durante o tratamento de quimioterapia; a vítima de um simples acidente de carro pode exigir até cem litros de sangue. Dos doadores: a razão principal porque os doadores dizem doar sangue é que eles “querem ajudar o próximo”; dois motivos comuns citados pelas pessoas que não doam sangue são: “nunca pensei sobre isso” e “eu não gosto de agulhas”; uma doação pode ajudar a salvar as vidas de até três pessoas; se você começar a doar sangue aos 17 anos e doar a cada 56 dias até alcançar 76, você terá doado quantidade provável para salvar mais de 1.000 vidas; a Cruz Vermelha Americana aceita doação de sangue somente de doadores voluntários.91 Nos Estados Unidos da América, três a cada cem americanos doam sangue. Na Escócia, esse número é de cinco. Dentro dessa premissa de que todos os segmentos podem dar o seu percentual de cooperação com a causa da doação de sangue e hemoderivados, o Poder Judiciário, do mesmo modo, tem condições de sobra para cooperar com a saúde pública, por meio de uma ação útil, solidária, despretensiosa e cooperativa. Útil porque, ainda que sejam poucos os doadores, dissemina-se o interesse e o altruísmo em prol da ação. Solidária porque, além de colaborar com os bancos de sangue de cada localidade, o juiz formará opiniões favoráveis à ação. Despretensiosa porque ninguém precisa mostrar resultados. Cooperativa porque, se há ações voltadas para a caridade na maior diversidade de áreas, como a doação de cestas básicas, de roupas, cobertores, de livros e de remédios, a doação de sangue, respeitadas opiniões divergentes, supera qualquer delas, por contar com o diferencial que tem o poder real de salvar vidas. Com um pouco de noção do que é doar sangue, percebe-se que o juiz tem um ferramental impressionante para cooperar com o quadro atual, ao estimular cidadãos envolvidos com a Justiça criminal. 91 AMERICAN NATIONAL RED CROSS. Blood Facts and Statistics. Disponível <www.redcrossblood.org/learn-about-blood/blood-facts-and-statistics>. Acesso em: 03 jan. 2012. em: 70 Se juízes e membros do Ministério Público, espalhados pelos mais distantes rincões, unirem seus esforços para inserir a doação de sangue como pena alternativa à prisão, nas hipóteses fincadas na Lei n. 9.099/1995 – transação penal e suspensão condicional do processo –, por certo milhares de vidas serão poupadas, sem se olvidar do juiz das execuções penais nas infrações médias e leves. Em outros termos, sob a ótica do sistema acusatório, o juiz, representando o Poder Judiciário, o Ministério Público ou o querelante oferecendo sua proposta, representando o jus puniendi, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil, representando e ao lado do autor do fato, forma-se o tripé de solidariedade em prol de pessoas que necessitam de sangue para sobreviver. Uma vez que o ideal de todos esteja focado na probabilidade efetiva de se salvar vidas, basta agir. 2.5 O doador de sangue A doação de sangue vem disciplinada na RDC 57/2010, em seus artigos 21 e seguintes. Para o ato, o candidato deve apresentar documento de identificação, com fotografia, emitido por órgão oficial, para registro no serviço de hemoterapia. O candidato à doação de sangue deve ser informado sobre as condições básicas e desconfortos associados à doação, devendo ser avisado sobre a realização de testes laboratoriais de triagem para doenças infecciosas transmitidas pelo sangue e sobre fatores que podem aumentar os riscos aos receptores, bem como sobre a importância de suas respostas na triagem clínica. A cada doação, o candidato deve ser avaliado quanto aos seus antecedentes e ao seu estado de saúde atual, por meio de entrevista individual, realizada por profissional de saúde de nível superior, sob supervisão médica, em sala que garanta a privacidade e o sigilo das informações, para determinar se a coleta pode ser realizada sem causar-lhe prejuízo e para que 71 a transfusão dos hemocomponentes obtidos a partir dessa doação não venha a causar problemas aos receptores. O serviço de hemoterapia deve cumprir os parâmetros para seleção de doadores estabelecidos pelo Ministério da Saúde, em legislação vigente, visando tanto à sua proteção quanto à do receptor, baseados em alguns requisitos mínimos, dentre outros, inclusive pela recente regulamentação trazida pela Portaria MS n. 1.353, de 13 de junho de 2011: - idade entre 16 e 67 anos; - peso mínimo de 50 quilos; - estar descansado; - não ter ingerido bebida alcoólica nas últimas quatro horas; - não ter recebido transfusão de sangue nos últimos 12 meses; - não estar com febre, gripe ou resfriado. - se mulher, não estar grávida, amamentando ou ter tido parto normal ou aborto há menos de três meses. Em caso de cesárea, seis meses; - após aplicar piercing, aguardar três dias para doar; - após fazer uma tatuagem, aguardar 12 meses; - após vacina da gripe ou rubéola, aguardar 30 dias; - após vacina da gripe H1N1, aguardar 48 horas; - não ter antecedentes de hepatite após 10 anos de idade; - não ter antecedentes de doença de Chagas; - acupuntura: sendo agulhas do próprio paciente, não há impedimento; - sobre medicamentos: o esclarecimento deve ser feito pessoalmente ou por telefone antes de doar; - se esteve em áreas de alta incidência para febre amarela, malária, doar após seis meses; - hipertensos: podem doar dependendo da situação avaliada em entrevista clínica; - diabéticos que não façam uso de insulina; - tratamento dentário: tempo variado entre três dias e um mês, dependendo do caso; - alimentação: não se deve doar em jejum prolongado. Dessa relação de situações pessoais impedientes, forma-se uma orientação quanto à proibição à doação, que pode ser temporária ou definitiva. 72 São considerados impedimentos temporários: as doenças infecciosas como a gripe, sarampo, rubéola etc.; parto ou cesariana; amamentação; abortamento; ingestão de bebida alcoólica; tatuagem; piercing; não utilização de preservativos no ato sexual com parceiros ocasionais ou desconhecidos; a visita, estadia ou residência em regiões onde há alta prevalência de doenças infectocontagiosas como a malária; vacinas de vírus vivos e atenuados ou mortos; pessoas que tenham feito sexo em troca de dinheiro ou de drogas; vítimas de estupro; homens que tiveram relações homossexuais; homens ou mulheres que tenham tido relação sexual com pessoa com exame reagente para antiHIV, portador de hepatite B ou C ou outra infecção de transmissão sexual ou sanguínea; pessoas presas por mais de 24 horas em instituição carcerária ou policial; pessoas com parceiros sexuais hemodialisados; pacientes com história de transfusão sanguínea; labirintite etc. Os impedimentos definitivos são: evidência clínica ou laboratorial de contaminação de doenças infecciosas transmissíveis pelo sangue, após os 10 anos de idade; AIDS (síndrome da imunodeficiência adquirida); doenças associadas ao vírus HTLV I e HTLV II; doença de Chagas; malária; uso de drogas ilícitas injetáveis; ter recebido hormônio de crescimento ou outros medicamentos de origem hipofisária (entre 1980 e 1996); ter recebido transplante de córnea ou implante de material biológico à base de duramáter; ter histórico familiar de encefalopatia espongiforme humana etc. Os homens podem doar sangue até quatro vezes ao ano, devendo ser respeitado o intervalo de 60 dias entre uma doação total e outra. As mulheres podem doar até três vezes por ano, respeitando o interregno de 90 dias entre cada doação. O candidato à doação só será considerado apto após avaliação de todos os requisitos estabelecidos para seleção de doadores e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Importa consignar, de outro lado, que, nos termos da Portaria MS n. 1.353, no acolhimento aos candidatos à doação, deve ser evitada toda e qualquer manifestação de preconceito e discriminação por orientação sexual, identidade de gênero, hábitos de vida, atividade profissional, condição socioeconômica, raça, cor e etnia. A orientação sexual (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) não deve ser usada como critério para seleção de doadores de sangue, pois a opção sexual não constitui risco, por si só. 73 Essa mesma Portaria, em seu Anexo I, define novos patamares etários para a doação de sangue. Assim, o doador de sangue ou componentes deve ter idade entre 18 anos completos e 67 anos, 11 meses e 29 dias, podendo ser aceitos candidatos à doação de sangue com idade de 16 e 17 anos, desde que com o consentimento formal do responsável legal para cada doação. Esse consentimento deverá incluir a autorização para o cumprimento de todas as exigências e responsabilidades previstas aos demais doadores. No caso de inaptidão, o doador deve ser informado sobre a causa e, quando necessário, encaminhado ao serviço de referência, de acordo com listagem preestabelecida, mantendo os registros na ficha de triagem. Os registros do serviço de hemoterapia devem assegurar a relação entre a doação e os produtos ligados a ela, para que seja garantida a rastreabilidade. A Fundação Pró-Sangue responde sobre a segurança da transfusão de sangue: A prática de selecionar criteriosamente os doadores, bem como as rígidas normas aplicadas para testar, transportar, estocar e transfundir o sangue doado fizeram dele um produto muito mais seguro do que já foi anteriormente. Apenas pessoas saudáveis e que não sejam de risco para adquirir doenças infecciosas transmissíveis pelo sangue, como hepatites B e C, HIV, sífilis e Chagas, podem doar sangue. Antes de toda doação, o candidato é submetido a um teste de anemia, à aferição de seus batimentos cardíacos, pressão arterial e temperatura e respondem a um questionário onde é lhe perguntado detalhadamente questões sobre a sua saúde e sobre seu comportamento. Somente após essas etapas é que o candidato estará aprovado para a doação de sangue. Todo o sangue doado será rigorosamente testado para as doenças passíveis de serem transmitidas pelo sangue.92 2.6 A coleta A coleta de sangue total e de hemocomponentes vem disciplinada na seção III da Resolução RDC 57/2010. A coleta do sangue e de seus componentes é feita por dois métodos: coleta direta de sangue total e por aférese. 92 FUNDAÇÃO PRÓ-SANGUE. HEMOCENTRO DE SÃO PAULO. Qual é a segurança do sangue? Disponível em: <www.prosangue.sp.gov.br/sangue-seguro>. Acesso em: 03 jan. 2012. 74 Coleta direta (comum): o volume total de sangue a ser coletado deve ser determinado e registrado na triagem, baseado no peso do doador e na relação entre o volume de sangue total e de anticoagulante da bolsa plástica. A coleta de sangue deve ser realizada em condições assépticas, mediante uma só punção venosa, em bolsas plásticas com sistema fechado, realizada por profissionais de saúde capacitados e sob a supervisão de médico ou enfermeiro. O horário do início e término deve ser registrado, não devendo superar quinze minutos. Durante o horário de coleta, o serviço de hemoterapia deve contar com a presença de profissional médico, para orientar as condutas em caso de eventos adversos à doação. O nome do doador não deve constar da etiqueta das bolsas de sangue e componentes, com exceção daquelas destinadas à transfusão autóloga. Após a coleta de sangue, o serviço de hemoterapia deve orientar o doador quanto aos cuidados pós-doação, fornecendo-lhe lanche para reposição hidroeletrolítica, devendo o doador permanecer por um período em observação no serviço de hemoterapia, antes de ser liberado. Quais os cuidados a serem tomados após a doação de sangue? Evitar esforços físicos exagerados por pelo menos 12 horas; aumentar a ingestão de líquidos; não fumar por cerca de 2 horas; evitar bebidas alcóolicas por 12 horas; manter o curativo no local da punção por pelo menos de 4 horas; e não dirigir veículos de grande porte, trabalhar em andaimes, praticar paraquedismo ou mergulho. Coleta por aférese: nos termos do disposto no artigo 4º, incisos I e II, da RDC 57/2010, aférese é um processo que consiste na obtenção de determinado componente sanguíneo de doador único, utilizando equipamento específico (máquina de aférese), com retorno dos hemocomponentes remanescentes à corrente sanguínea; aférese terapêutica é a remoção de determinado hemocomponente com finalidade terapêutica, com retorno dos hemocomponentes remanescentes à corrente sanguínea do paciente. 75 Normalmente o que retorna são células vermelhas, parte do sangue que leva mais tempo para reposição pelo próprio organismo. A coleta de hemocomponentes por aférese deve cumprir as mesmas exigências para a coleta de sangue total. Os doadores de aférese devem ser submetidos aos mesmos testes de qualificação do doador de sangue total, além dos testes específicos para cada tipo de hemocomponente coletado. A quantidade de sangue a ser retirada é de aproximadamente 450 ml, sendo que desse montante, a coleta não poderá exceder 8 ml/kg para mulheres e 9 ml/kg para homens. Informa Helena Ferreira Nunes que, a despeito da maior parte das doações ocorrerem sem qualquer contratempo, estima-se que um por cento dos doadores apresentam alguma intercorrência. Essas reações são classificadas em três categorias: leve, moderada e severa. Leves: nervosismo, ansiedade, queixa de calor, palidez e sudorese, frequência cardíaca diminuída e pulso filiforme, hiperventilação, hipotensão, náusea e ou vômito sem perda de consciência. Moderadas: agravamento dos sistemas descritos nas reações leves, somadas à perda de consciência. Graves: são os mesmos sinais, acrescido de convulsões e ou problemas cardíacos e ou respiratórios.93 No tocante às demais Seções do Capítulo II, referente ao Regulamento Sanitário, mais especificamente: IV, que versa sobre processamento de sangue e componentes; V, que aborda o controle de qualidade dos hemocomponentes; VI, que cuida dos exames de qualificação no sangue do doador; VII, que trata do controle de qualidade de reagentes e testes laboratoriais; VIII, que preconiza sobre a liberação e rotulagem das bolsas de sangue e hemocomponente; IX, atinente ao armazenamento e conservação de sangue e hemocomponentes; X, relativa à distribuição de hemocomponentes; XI, sobre a terapia transfusional; e XII, acerca dos eventos adversos à transfusão, julgamos desnecessário maior aprofundamento, uma vez que não guardam sintonia com os fins deste trabalho, que somente busca a positivação condizente com a doação de sangue como pena restritiva de direitos, bem como porque são temas específicos da hematologia e da hemoterapia. 93 NUNES, Helena Ferreira, Responsabilidade civil e a transfusão de sangue, cit., p. 54. 76 2.7 Por que o sangue salva vidas? É corriqueiro ouvir dizer, nos bancos de sangue, que a doação pode salvar até três vidas. Sempre que se tratar de doação de sangue total, essa é a resposta. É o que se colhe nos diversos sítios ao redor do mundo. Por exemplo, nos Estados Unidos da América, o convite feito pela American Red Cross, por intermédio de estudantes que abraçaram a causa, é muito claro: “A sensação de ser capaz de salvar três vidas quando faço a doação, faz-me sentir uma pessoa melhor”94. Ou ainda, na área reservada às estatísticas: “Uma doação pode salvar a vida de até três pessoas”. 95 No Canadá idem: “As doações de sangue total são separadas em três componentes: hemácias, plasma e plaquetas. Cada componente pode ser dado a um distinto paciente. É por isso que uma doação tem o potencial de salvar três vidas”96 O convite feito pela Fundação Pró-Sangue, em seu sítio oficial, é deveras significativo: A ciência avançou muito e fez várias descobertas. Mas ainda não foi encontrado um substituto para o sangue humano. Por isso, sempre que precisa de uma transfusão de sangue, a pessoa só pode contar com a solidariedade de outras pessoas. Doar sangue é simples, rápido e seguro. Mas, para quem o recebe, esse gesto não é nada simples: vale a vida. Seja doador voluntário. Faz bem também para você. Porque a satisfação de salvar vidas é a maior recompensa.97 Se a doação sangue não for total, mais de três vidas podem ser salvas. Cinthya Duran, biomédica do Serviço de Hemoterapia do Hospital Beneficência Portuguesa, em entrevista, explica que em uma única doação é possível salvar até quatro vidas, uma vez que o material é separado em diferentes hemocomponentes: concentrado de hemácias (glóbulos vermelhos), 94 No original: “The thought of being able to help save three people’s lives every time I go makes me feel like a better person”. Disponível em: <www.redcrossblood.org/donating-blood>. Acesso em: 03 jan. 2012 (Nossa tradução). 95 No original: “One donation can help save the lives of up to three people”. Disponível em: <www.redcrossblood.org/learn-about-blood/blood-facts-and-statistics>. Acesso em: 03 jan. 2012 (Nossa tradução). 96 No original: “Whole blood donations are separated into three components: red cells, plasma and platelets. Each component may be given to a different patient. That’s why one donation has the potential to save up to three lives!”. Disponível em: <www.blood.ca/ centreapps/internet/uw_v502_mainengine.nsf/ page/Are_you_bloody_smart?OpenDocument>. Acesso em: 03 jan. 2012 (Nossa tradução). 97 FUNDAÇÃO PRÓ-SANGUE. HEMOCENTRO DE SÃO PAULO. Por que doar? Disponível em: <http://www.prosangue.sp.gov.br/doacao-de-sangue/por-que-doar.htm>. Acesso em: 03 jan. 2012. 77 concentrado de plaquetas, plasma e crioprecipitado98 que podem ser utilizados em diversas situações clínicas. “De qualquer modo, é necessária a conscientização de que a doação de sangue precisa ser feita não apenas em épocas de campanhas para o reabastecimento de baixo estoque, mas durante todo o ano. O sangue doado tem sempre utilidade e nunca sobra, pelo contrário, faz falta”, completa.99 Muito embora, neste capítulo, a pesquisa tenha sido superficial, o objetivo foi o de mostrar como nasceu a hemoterapia no Brasil e seu atual estágio, justamente para retratar que trabalhos solidários das mais diversas entidades, estranhas ao meio médico, em prol da saúde pública, e, agora, do Poder Judiciário, hão de ser considerados bem-vindos. 98 Segundo a Anvisa, nos termos do artigo 4º, XVIII, da RDC 57/2010, crioprecipitado é a fração de plasma insolúvel em frio, obtida a partir do plasma fresco congelado, contendo glicoproteínas de alto peso molecular, principalmente fator VIII, fator de Von Willebrand, fator XIII e fibrinogênio. E também: “É o hemocomponente rico em fatores lábeis de coagulação tais como fator VIII e fibrinogênio. Utilizado por pacientes com deficiência de fatores de coagulação ou por aumento de consumo destes fatores. Deriva do plasma fresco congelado, após descongelamento lento e centrifugação. É indicado, por exemplo, para o tratamento de doença cardíaca, deficiência congênita de proteína C, hemofilia A/B.” (LEITE, Érida Maria Diniz (Org.), Dicionário digital de termos médicos 2007, cit.). 99 MADEIRA, Ana Maria. Uma única doação de sangue pode salvar até quatro vidas. Disponível em: <www.minhavida.com.br/saude/materias/11475-uma-unica-doacao-de-sangue-pode-salvar-ate-quatro-vidas>. Acesso em: 03 jan. 2012. 78 79 3 A LEGISLAÇÃO CRIMINAL VIGENTE: DOGMATISMO PARA FACEAR O DESIDERATO Neste capítulo serão estudados os institutos de direito penal e da Lei n. 9.099/95 em sua essência, demonstrando que de sua compatibilização e interlocução é perfeitamente interpretável que a doação de sangue está prevista no ordenamento nacional. 3.1 O Código Penal e as penas restritivas de direitos. A Lei n. 9.714/98 Diante da falência absoluta do sistema prisional brasileiro e, quiçá, mundial, a busca de meios que possam minorar o contato entre criminosos habituais, perigosos, reincidentes, daqueles que praticam uma infração de menor ou médio potencial ofensivo, desde a década de 80, fez com que o legislador amenizasse o rigor da exclusividade da pena privativa de liberdade. Com esse pensamento, promoveu a primeira mudança significativa no panorama penal, ao instituir as penas restritivas de direitos, na alteração da Parte Geral do Código Penal ocorrida em 1984, quando se chegava aos estertores da ditadura. Aos críticos da reforma penal, Francisco de Assis Toledo, um dos coordenadores da comissão de reforma do diploma penal, assim se pronunciou: É certo que essa reforma penal tem encontrado certa resistência em algumas esferas dominadas por um pensamento de cunho autoritário e repressivo, o que tem dificultado a sua implementação, principalmente na área da execução penal. [...] A esses críticos, saudosistas de instituições reconhecidamente falidas (ou, quem sabe, de coisa pior), cabe observar que a decantada “realidade brasileira”, em matéria de prisões e de execução da pena, tem sido de uma notória, proclamada e brutal monstruosidade, pelo que a reforma penal só teria mesmo significado na medida em que se propusesse a reconstruir algo de novo nesse terreno.100 A Lei n. 7.209/84 inseriu o sistema de penas alternativas no Código Penal, denominando-as penas restritivas de direitos, que são as seguintes: prestação de serviços à comunidade; interdições temporárias de direito e limitação de fim de semana. 100 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 78. 80 Já nos informava Paulo José da Costa Junior que, quando visitou um presídio modelar na Holanda, em 1960, no qual havia um funcionário para cada três detentos, distribuídos entre várias categorias e visando à ressocialização dos reclusos sociólogos, psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, educadores e assistentes sociais, clínicos gerais e endocrinologistas, penitenciaristas e outros , ao indagar o diretor daquele estabelecimento acerca do índice de reincidentes, obteve a resposta: pouco mais de 30%.101 Entrou em pânico, porquanto se aquele estabelecimento modelar apresentava taxa tão elevada, o que dizer de nossos presídios, onde o ócio é forçado pela ausência de trabalho e se adiciona a promiscuidade e a superpopulação carcerárias, sem dizer do homossexualismo e a circulação, quase livre, de maconha? Passou a defender, como corolário lógico de sua experiência profissional e de doutrinador, que a pena de prisão há de ser utilizada “em casos extremos, de suma gravidade, como ultima ratio”. E elogiou o legislador por estabelecer substitutivos penais para as penas privativas de liberdade, com ênfase às de curta duração.102 Heleno Cláudio Fragoso, no início da década de 80, pouco antes da Reforma Penal de 1984, já abordava o tema com a mesma perspicácia, convicto de que o cárcere nada resolve e que se mostrava urgente o legislador estabelecer medidas diversas à prisão. Seguro de que o cárcere pouco ou nada oferece e proporciona de benéfico ao preso, anotava: Como instituição total, a prisão necessariamente deforma a personalidade, ajustando-a à subcultura prisional (prisonização). A reunião coercitiva de pessoas do mesmo sexo num ambiente fechado, autoritário, opressivo e violento, corrompe e avilta. Os internos são submetidos às leis da massa, ou seja, ao código dos presos, onde impera a violência e a dominação de uns sobre outros. O homossexualismo, por vezes brutal, é inevitável. A delação é punida com a morte. Conclui-se, assim, que o problema da prisão é a própria prisão, que apresenta um custo social demasiadamente elevado. Aos defeitos comuns a todas as prisões, somam-se os que são comuns nas nossas: ociosidade, superpopulação e promiscuidade.103 101 COSTA JÚNIOR, Paulo José da; COSTA, Fernando José. Código Penal comentado. 10. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 230. 102 Ibidem, p. 230. 103 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Alternativas à pena privativa de liberdade. Revista de Direito Penal, n. 29, p. 6, jan./jun. 1980. Disponível em: <http://www.fragoso.com.br/ptbr/arq_pdf/direito_penal/conteudos/RDP29.pdf>. Acesso em: 10 março 2012. 81 Prossegue, referindo que “a consequência natural da falência da prisão é o entendimento de que ela deve ser usada o menos possível, como último recurso, no caso de delinquentes perigosos, para os quais não haja outra solução. Formula-se assim o princípio da ultima ratio”.104 Crítico acerbo da ineficiência do sistema prisional, enuncia todas as novidades dos países estrangeiros e apresenta uma série de sugestões para a reforma do sistema prisional. Além de sugerir um Código de Execução Penal, pugnava por outras medidas despenalizadoras, dentre elas: a) a descriminalização do aborto; b) o incremento da pena de multa (especialmente nas contravenções penais e crimes leves); c) o fim do princípio da obrigatoriedade para o Ministério Público com a introdução do princípio da oportunidade no exercício da ação penal; e, d) o fim da criminalidade de bagatela. Quanto ao que denomina “criminoso residual” ou hard core offender, aqueles perigosos, multirreincidentes, em face de todo o aparato ter sido em vão, sugere a construção de prisões menores e mais humanas, que assegurassem o trabalho, além de respeitar os direitos do preso.105 3.1.1 A internalização Partindo de inúmeras premissas, especialmente a de que a reincidência poderia ser reduzida, caso fosse evitado o contato de condenados por crimes leves com os criminosos de grosso calibre, as penas alternativas foram introduzidas em nosso ordenamento. Foi tímida a novidade, ante o momento histórico do país, que passava por uma ditadura, porquanto a mudança se limitou a infrações cuja pena não alcançasse o patamar de um ano e as culposas. As penas alternativas eram de cinco modalidades: prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; proibição de exercício de cargo, função ou atividade pública; proibição de exercício de profissão, atividade ou ofício; suspensão de autorização ou habilitação para dirigir veículo; limitação de fim de semana; e multa. O perfil de admissão de novas penas não privativas de liberdade acentuou-se logo após, com a Constituição Federal, em 1988. Em seu artigo 5º, XLVI, a Carta Magna garantiu 104 105 FRAGOSO, Heleno Cláudio, Alternativas à pena privativa de liberdade, cit., p. 7. Ibidem, p. 14-15. 82 fundamentalmente que a individualização da pena fosse disciplinada por lei ordinária e estabeleceu como sanções, entre outras, a privação ou restrição da liberdade, a perda de bens, a multa, a prestação social alternativa e a suspensão ou interdição de direitos. Grifamos a expressão entre outras para demonstrar que o rol de sanções é meramente exemplificativo, nada obstando que o legislador ordinário estabeleça outras medidas coercitivas, obviamente desde que observados os preceitos fundamentais previstos na Carta Magna, especialmente a dignidade humana. Na evolução do pensamento doutrinário de mitigação do alcance da pena privativa de liberdade, as penas restritivas de direitos receberam dez anos depois da promulgação da Carta Magna sua mais importante inovação, por meio da Lei n. 9.714/98, que alterou o Código Penal. O artigo 43 do Código Penal, que trata das penas restritivas de direitos, foi reescrito, passando a prever, além daquelas mencionadas acima, as penas de prestação pecuniária, perda de bens e valores, proibição de frequentar determinados lugares e a prestação alternativa inominada. Não obstante o âmbito de incidência das penas restritivas tenha sido amplificado, os fundamentos permaneceram inalterados, isto é, as características de autonomia e substitutividade restaram intactas. São autônomas e substituem as penas privativas de liberdade de crime cuja pena máxima não seja superior a quatro anos e desde que não tenha sido praticado com violência ou grave ameaça, ou se for culposo (inc. I); o réu não for reincidente em crime doloso (inc. II) e a culpabilidade, os antecedentes, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente (inc. III). Autônomas porque não são acessórias, independem da imposição de sanção detentiva (reclusão, detenção ou prisão simples), na visão de Damásio Evangelista de Jesus106; e substitutivas porque, individualizada a pena privativa de liberdade, o magistrado poderá substituí-la pela restritiva. O parágrafo 2º do aludido artigo 43 prevê a substituição por multa ou uma pena restritiva de direitos na condenação igual ou inferior a um ano e substituição por uma pena restritiva de direitos e multa, ou por duas penas restritivas de direitos, quando a pena privativa de liberdade for superior a um ano. 106 JESUS, Damásio Evangelista de, Código Penal anotado, cit., p. 178. 83 E o parágrafo 3º impõe uma restrição: caso o condenado seja reincidente, o juiz poderá substituir desde que a condenação anterior não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime, bem como a medida seja socialmente recomendável. No I Congresso Brasileiro de Execução de Penas e Medidas Alternativas, realizado em Curitiba, no ano de 2005, a promotora de justiça paranaense Mônica Louise de Azevedo citando Claus Roxin e diversos outros penalistas de renome, aponta caminhos para a superação da pena corporal fora da clausura do sistema penitenciário, com ênfase às medidas alternativas em infrações leves e de médio potencial ofensivo. Ponderou que o festejado penalista alemão: [...] observando os avanços e retrocessos dos últimos séculos da história das ideias penais, arrisca um prognóstico para o direito penal do século XXI, que acredita continuará existindo como fator de controle social secularizado: a gradativa substituição da pena privativa de liberdade por outras penas ou consequências jurídicas ao ilícito; a supressão definitiva das penas corporais, por se constituírem em atentados contra a dignidade humana; o retrocesso da utilização da pena de prisão e o surgimento de novas formas de controle eletrônico e de medidas terapêuticas sociais, além da maior utilização do trabalho comunitário e da reparação civil do dano. Justifica esta previsão pela inexistência de vagas e recursos financeiros para executar a pena de prisão de forma humanitária e pela impossibilidade de punir a maioria dos delitos com ela.107 3.2 Os juizados especiais no Brasil Ada Pellegrini Grinover, com a entrada em vigor da Constituição da República de 1988, discorreu sobre o descompasso entre a doutrina e a prática judiciária e, preocupada com o descrédito na magistratura, alertou: Ao extraordinário progresso científico da disciplina não correspondeu o aperfeiçoamento do aparelho judiciário e da administração da Justiça. A sobrecarga dos tribunais, a morosidade dos processos, seu custo, a burocratização da Justiça, certa complicação procedimental; a mentalidade do juiz, que deixa de fazer uso dos poderes que o Código lhe atribui; a falta de informação e de orientação para os detentores dos interesses em conflito; 107 AZEVEDO, Mônica Louise. Em busca da legalidade das alternativas penais. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EXECUÇÃO DE PENAS E MEDIDAS ALTERNATIVAS, 1., 2005, Curitiba, PR. Anais... Curitiba, PR: Ministério Público do Estado do Paraná, 2005. Disponível em: <http://www.criminal.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=516>. Acesso em 03 jan. 2012. 84 as deficiências do patrocínio gratuito, tudo leva à insuperável obstrução das vias de acesso à Justiça, e ao distanciamento cada vez maior entre o Judiciário e seus usuários.108 A jurista enfatizou a premência em se cunhar regras processuais eficazes na aplicação do direito ao caso concreto, frente à crise da Justiça brasileira, tanto no campo jurisdicional, como no extrajudicial, para que se mostrasse mais facilitado o acesso à justiça. Baseada na obra “I procedimenti non giudiziali di conciliazione come istituzioni alternative”, de Denti, que aborda as terminologias deformalização e delegalização, sendo esta a utilização do juízo de equidade em substituição ao de direito, vale-se unicamente do primeiro, ou seja, da deformalização, sob duas acepções: a deformalização do processo e a deformalização das controvérsias, justificando seus argumentos na tentativa de buscar um processo penal mais efetivo. Segundo a doutrinadora, com a deformalização instrumental busca-se um “processo mais simples, rápido, econômico, de acesso fácil e direto, apto a solucionar com eficiência tipos particulares de conflitos de interesses”. E, com a deformalização das controvérsias almeja-se, “de acordo com sua natureza, equivalentes jurisdicionais, como vias alternativas de processo, capazes de evitá-lo, para solucioná-las, mediante instrumentos institucionalizados de mediação”. E conclui: “A deformalização do processo insere-se, portanto, no filão jurisdicional, enquanto a deformalização das controvérsias utiliza-se de meios extrajudiciais.”109 As ideias fluem no sentido de um processo de prevalente conciliação, dentro da máxima sempre é melhor um acordo que uma boa demanda. Na mesma direção, Antonio Scarance Fernandes obtempera: “Expressa-se a deformalização do processo e das controvérsias por duas vertentes de superação da crise da justiça: a via jurisdicional e a via dos meios alternativos.”110 108 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 177. 109 Ibidem, p. 179. 110 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 216. 85 E resumiu os motes que passaram a ser defendidos na busca de uma justiça rápida, eficaz e desburocratizante: a) é necessário estimular o uso de vias alternativas para a solução de litígios, fora do âmbito judiciário ou dentro deste, ficando a resolução clássica, mais morosa, para as causas de maior complexidade ou relevância; b) dentro do âmbito judiciário, deve-se preferir a via alternativa da conciliação e que, de preferência, evite a instauração formal do processo; c) essa alternativa conciliatória deve ser procurada até mesmo em áreas tradicionalmente refratárias, como na área penal em países orientados pelo princípio da obrigatoriedade; d) para a conciliação, exige-se do juiz um novo papel, pois fica ele incumbido de estimular o acordo entre as partes na busca de uma solução rápida e justa; e) os procedimentos devem ser marcados pela celeridade e pela oralidade para tornar a justiça menos burocratizada; f) devem ser chamados a participar dos debates conciliatórios não só as partes formais da ação, mas outros interessados no litígio, como a vítima no processo criminal; g) deve-se estimular a colaboração dos leigos na conciliação.111 Por sua vez, Ada Pellegrini Grinover relembra: [...] “a deformalização de certos processos com o fito de adaptá-los à realidade sócio-jurídica englobada em determinadas controvérsias” não é nova no Brasil, porquanto na Justiça do Trabalho, instituída pela Constituição de 1934, e que passou a integrar o Poder Judiciário na Constituição de 1946, “o processo do trabalho veio romper com os esquemas tradicionais do processo civil, rigorosamente, dispositivo, abrindo caminho para a socialização do processo, por força da atribuição de poderes de direção e controle mais amplos ao juiz, da adoção de uma concreta igualdade das partes (desde o acesso à Justiça até a paridade de armas dos litigantes, implementada pelo juiz) e do esforço em busca da conciliação, num exemplo marcante de transformação do processo rumo a um grau mais elevado de deformalização, democratização e publicização”.112 Não se olvide que o Código de Processo Civil de 1973 abreviou procedimentos, possibilitando o julgamento antecipado da lide e, malgrado sua rigidez, permitiu a conciliação, ainda que timidamente. Nas causas sobre direitos patrimoniais de natureza privada e para os processos da área do direito de família, a tentativa de conciliação era obrigatória. Nos dias atuais, a tentativa de conciliação, prevista no artigo 331 do Código de Processo Civil, é uma meta a ser perseguida pelo magistrado, em apoio à ideia de otimização 111 112 FERNANDES, Antonio Scarance, Processo penal constitucional, cit., p. 217. GRINOVER, Ada Pellegrini, Novas tendências do direito processual, cit., p. 180. 86 dos serviços do Poder Judiciário. Foi elevada à categoria de dever do magistrado. É dever do juiz por força do disposto no artigo 125, IV, do diploma processual civil, a tentativa de conciliação em qualquer fase do processo113. Mas, retomando a história processual brasileira, foi com a instituição dos juizados especiais de pequenas causas pela Lei n. 7.244, de 8 de novembro de 1984, que foi dado o passo decisivo para a incorporação de princípios que englobassem o espírito conciliatório e propiciassem o acesso à justiça dos mais desafortunados no país. Para a juíza brasiliense Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto: As despesas com custas e honorários de advogado, o tempo perdido nas diligências preliminares ao ajuizamento da demanda, o temor de uma longa tramitação da causa, constituíam fatores que desestimulavam os prejudicados, mesmo pessoas de alguns recursos, de pleitear em juízo aquilo que entendiam ser de seu direito. Temerosos de enfrentar os gastos, delongas e dificuldades da Justiça muitos preferiam desistir, acomodavam-se e renunciavam; ou então recorriam ao auxílio da autoridade policial ou municipal – quando logravam alcançá-lo – ou ao desforço pessoal, ou ao empenho de lideranças locais, numa forma de composição de conflitos alheia à imparcialidade e segurança da tutela do Poder Judiciário.114 Informa-nos, ainda, que o nosso sistema de juizados de pequenas causas foi baseado na experiência nova-iorquina das Small Claims Courts, consoante pesquisa do advogado jurista João Geraldo Piquet Carneiro na Corte de Nova Iorque, em setembro de 1980. Voltado à redução sistemática da burocratização, o causídico deparou-se com aspectos relevantes que poderiam ser adotados entre nós, tais como “a proibição ao acesso de pessoas jurídicas como demandantes, a não obrigatoriedade de representação por advogados, o caráter irrevogável da arbitragem, além da informalidade e da oralidade como princípios do rito processual”.115 Cabe registrar ainda que o modelo nova-iorquino era considerado inovador mesmo para os padrões norte-americanos, implantado em meio a um amplo debate sobre técnicas da mediação e da arbitragem usadas nos Small Claims Courts. 113 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 11. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 554. 114 PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. Abordagem histórica e jurídica dos juizados de pequenas causas aos atuais juizados especiais cíveis e criminais brasileiros. p. 3. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br/trib/bibli/docBibli/ideias/AborHistRicaJurDica.pdf>. Acesso em: 07 out. 2011. 115 Ibidem, p. 3. 87 Fruto de anteprojeto capitaneado por Kazuo Watanabe, a Lei de Pequenas Causas ofereceu um conjunto de novidades, das quais não somente princípios se extraem, mas critérios que permitiam atender aos postulados constitucionais vigentes e que passariam a figurar na Constituição Cidadã de 1988, com ênfase na simplicidade, oralidade, economia processual, celeridade e conciliação. A fim de ser estimulada a conciliação, a lei previu a figura de conciliadores e árbitros leigos como auxiliares do juízo. Por certo, a solução de um número maior de controvérsias viabilizou-se, permitindo maior e melhor acesso à justiça. Os juizados se tornaram uma realidade sem precedentes em nosso universo jurídico, ao fornecer aos mais humildes meios de obter socorro rápido, bastando que batessem às portas do Judiciário para reclamar suas pretensões. A pacificação social almejada passou a se aproximar de todas as camadas da população, ante o fácil acesso e a reduzida burocracia. Não é por outro motivo que Marco Antonio Marques da Silva argumentou: A discussão acerca de modos alternativos de solução de conflitos, como um ponto importante na efetivação do acesso à justiça, intensificou-se nos últimos anos no Brasil, e tem sido acompanhada de algumas iniciativas legais, como é o caso das Leis ns. 9.099, de 26 de setembro de 1995 – Lei dos Juizados Especiais e 9.307, de 23 de setembro de 1996 – Lei de Arbitragem.116 A Lei n. 7.244/84 foi revogada expressamente pela Lei n. 9.099/95 (art. 97). 3.3 Os juizados especiais criminais: introdução à Lei n. 9099/95 A convicção dos grandes juristas, inclusive italianos, como Pisapia, Bettiol e Vassali, citados por Weber Martins Batista e Luiz Fux, no tocante à ineficiência reeducadora da pena e necessidade de sua substituição por penas pecuniárias ou de trabalho obrigatório ou prestação 116 SILVA, Marco Antonio Marques da. Acesso à justiça penal e estado democrático de direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p. 100. 88 de utilidade pública em regime de liberdade ou semiliberdade, foi acolhida pelo legislador nacional.117 Anunciara Paulo José da Costa Junior que “mesmo as moderníssimas prisões construídas na Europa – como na Suécia, na Suíça – e nos EUA, apesar da preocupação de pôr em prática as ideias de reforma apontadas pela doutrina, fracassaram completamente”.118 Heleno Claúdio Fragoso, como referido acima, pesquisou as modificações realizadas em outros países, na incorporação de medidas alternativas. Lastreado em documento das Nações Unidas, menciona algumas experiências que vinham se revelando frutíferas nesse campo e relata as seguintes variáveis positivas: Na Rumânia, por exemplo, lei de 1977 permitiu substituir penas de até 5 anos de prisão por penas de trabalho sem privação da liberdade. Em consequência, a proporção das sentenças impondo a pena de prisão caiu de 66% em 1976, para 29,4% em 1979. Na Áustria, a percentagem das sentenças de prisão diminuiu de 40% em 1971 para 23% em 1977. No Japão, em 1977, a proporção das sentenças que impunham internação institucional contra as que não o impunham era de 5,9% para as primeiras e 94,1% para as outras. Na Inglaterra, relatório do Advisory Council on Penal Reform, de 1977, conduziu à tendência de reduzir a duração das condenações, substituindo as penas longas por penas médias e custas, pois verificou-se, pelas pesquisas realizadas, que essa orientação não teria resultados negativos sobre o efeito intimidativo do encarceramento. Orientação semelhante foi adotada pela Suécia e pela Finlândia. Na Alemanha Ocidental a pena mais frequentemente imposta é a de multa. Na Inglaterra, desde o Criminal Justice Act, de 1967, todas as infrações penais podem ser punidas com a pena de multa, salvo os casos de cominação expressa, raros no sistema da common law.119 Três anos antes da reforma penal, pela Lei n. 9.714/98, no tópico que mais nos interessa – penas restritivas de direitos –, o Brasil teve a satisfação de receber em seu ordenamento a Lei n. 9.099, de 26 de novembro de 1995, instituindo os juizados especiais criminais, em atendimento ao disposto na Carta da República. A Constituição Federal, por sua vez, preconiza em seu artigo 98: 117 BATISTA, Weber Martins; FUX, Luiz. Juizados especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 282. 118 COSTA JUNIOR, Paulo José da; COSTA, Fernando José, Código Penal comentado, cit., p. 281. 119 FRAGOSO, Heleno Cláudio, Alternativas à pena privativa de liberdade, cit., p. 8. 89 Artigo 98 - A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante procedimento oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; Fernando da Costa Tourinho Neto e Joel Dias Figueira Junior esclarecem que existia séria dúvida sobre a possibilidade de se criar juizados na esfera federal, porquanto inexistiria previsão constitucional. Segundo os doutrinadores: [...] editou-se a Emenda Constitucional 22/1999, acrescentando-se ao art. 98, o parágrafo único – atual 1º, renumerado pela EC 45/2004 –, que passou a definir que a Lei Federal haveria de dispor sobre a criação dos Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal. Finalmente, em 10 de julho de 2001, vem a lume a Lei 10.259 para tratar da matéria específica.120 No início do século XXI, foram instituídos os juizados especiais federais, cíveis e criminais pela Lei n. n. 10.259, de 12 de julho de 2001. Ambas as leis trataram das infrações de menor potencial ofensivo. Contudo, esta última ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo, provocando polêmica e debates intermináveis. Tudo porque previu em seu artigo 2º, parágrafo único, que “consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”. A Lei n. 9099/95, por sua vez, em seu artigo 61, definia como infrações de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial. A novidade trazida pelo ordenamento que disciplinava a área federal era mais benéfica e contava com o apoio da doutrina, especialmente porque, ampliando o leque de delitos, seu julgamento seria mais célere e a prestação jurisdicional mais efetiva. 120 TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Juizados especiais federais cíveis e criminais: comentários à Lei 10.259, de 12.07.2001. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 67. 90 A despeito da divergência que se instaurou na doutrina e na jurisprudência, cinco anos mais tarde sobreveio a unificação dos conceitos. A Lei n. 11.313, de 28 de junho de 2006, deu nova redação ao artigo 61 da Lei n. 9.099/95, pondo fim à polêmica. O novo dispositivo, com aplicabilidade à esfera federal, recebeu a seguinte redação: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”. Dissipadas as controvérsias pela redação em apreço, os institutos despenalizadores de composição civil de danos e transação penal são aplicáveis a todas as contravenções e crimes punidos com pena privativa de liberdade de até 2 anos, cumulada ou não com multa, independentemente do rito processual previsto. Existem outras legislações que possibilitam a aplicabilidade dos institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/95 de forma autônoma. O Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503, de 23.09.1997) sofreu modificações relevantes pela Lei n. 11.705, de 20 de junho de 2008. Dentre as novidades que guardam pertinência com o estudo das infrações de menor potencial ofensivo está a nova redação do artigo 291, parágrafo 1º, prevendo os institutos de composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo (respectivamente, arts. 74, 76 e 88), em regra, aos autores de crimes de lesão corporal culposa. A benesse, todavia, fica vedada se o agente estiver sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (inc. I); participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente (inc. II); e transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h (inc. III). Nessas três situações, o crime passa a ser de ação pública incondicionada, devendo a investigação ser feita por meio de inquérito policial (§ 2º). O Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 01.10.2003), da mesma forma, permite, em seu artigo 94, que todos os crimes com pena máxima igual ou inferior a quatro anos submetam-se ao procedimento estatuído na Lei dos Juizados Especiais Criminais. Objetivou com isso valorizar e propiciar maior proteção à dignidade do idoso, mediante a celeridade dada ao processo e julgamento do fato. Não alterou o conceito de infração de menor potencial ofensivo, somente operou uma ampliação da competência dos juizados especiais criminais, que passaram a processar e julgar todos os crimes praticados contra idosos, à exceção de um. 91 Avaliando os tipos penais catalogados no Estatuto do Idoso, chega-se a três situações distintas: a) se o crime praticado tiver pena máxima igual ou inferior a dois anos (arts. 96 e §§, 97, 99, caput, 100, 101, 103, 104 e 109), todos os institutos previstos na Lei n. 9.099/95 composição civil de danos, transação penal e suspensão condicional do processo devem ser objeto de análise para eventual aplicação em prol do autor do fato; b) se o crime praticado tiver pena máxima abstratamente cominada superior a dois e até quatro anos (arts. 98, 99, § 1º, 102, 105, 106 e 108), o procedimento da Lei n. 9.099 tem aplicabilidade, contudo sem os institutos concernentes à composição civil de danos e transação penal. Ressalva-se a suspensão condicional do processo quando cabível, no curso do procedimento sumaríssimo; c) a terceira hipótese diz respeito aos crimes cuja pena máxima privativa de liberdade supera quatro anos (arts. 99, § 2º, e 107). A esses, por excluídos do disposto no artigo 94, é aplicável o rito ordinário previsto no artigo 394, parágrafo 1º, I, do Código de Processo Penal, sendo competente o juiz comum para processo e julgamento. Em síntese, o Estatuto, por inovar no campo processual, ampliou a competência em razão da matéria dos juizados especiais criminais, trazendo, por conseguinte, a possibilidade de processar e julgar os crimes contra idosos não considerados de menor potencial ofensivo que tenham pena máxima superior a dois anos e igual ou inferior a quatro anos. Importante consignar que a Lei n. 9.099 não incide na hipótese de violência doméstica. Diz o artigo 41 da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, chamada de Lei Maria da Penha, que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995”. As discussões doutrinárias e jurisprudenciais proliferaram, especialmente no que tange à não aplicação dos institutos despenalizadores da transação penal e da suspensão condicional do processo. Veja-se, por exemplo, que no congresso realizado em São Paulo, em parceria da Corregedoria Geral de Justiça e a Presidência do Tribunal de Justiça, das treze conclusões extraídas, a de número 11 pugnava pela possibilidade da suspensão condicional do processo, 92 no âmbito da Lei Maria da Penha. Inclusive foi gerado o Comunicado CG n. 117/2008, publicado em 6, 7 e 8 de fevereiro daquele ano. No entanto, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de habeas corpus, declarou a constitucionalidade do artigo 41 da Lei Maria da Penha e a inaplicabilidade dos institutos despenalizadores contidos na Lei dos Juizados Especiais Criminais.121 O assunto, mais uma vez, foi submetido à Corte Suprema nacional e, definindo todos os paradigmas referentes à Lei Maria da Penha, no julgamento de ação direta de inconstitucionalidade, por maioria, dez votos a favor e um contra, interpretando o alcance do artigo 41, declarou-o constitucional, vedando a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais Criminais, além de afastar a necessidade de representação no crime de lesão corporal dolosa culposa ou leve. Ou seja, a previsão do artigo 88 da Lei dos Juizados, que determina a representação nos crimes mencionados, igualmente foi afastada, exatamente para dar maior segurança ao gênero feminino.122 121 “VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI N. 11.340/06 – ALCANCE. O preceito do artigo 41 da Lei n. 11.340/06 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia contravenção penal, como é a relativa a vias de fato. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI N. 11.340/06 – AFASTAMENTO DA LEI N. 9.099/95 – CONSTITUCIONALIDADE. Ante a opção políticonormativa prevista no artigo 98, inciso I, e a proteção versada no artigo 226, parágrafo 8º, ambos da Constituição Federal, surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei n. 9.099/95 – mediante o artigo 41 da Lei n. 11.340/06 – no processo-crime a revelar violência contra a mulher.” (STF HC n. 106212/MS, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 24.03.2011, DJe, de 13.06.2011). 122 “No mérito, evidenciou-se que os dados estatísticos no tocante à violência doméstica seriam alarmantes, visto que, na maioria dos casos em que perpetrada lesão corporal de natureza leve, a mulher acabaria por não representar ou por afastar a representação anteriormente formalizada. A respeito, o Min. Ricardo Lewandowski advertiu que o fato ocorreria, estatisticamente, por vício de vontade da parte dela. Apontou-se que o agente, por sua vez, passaria a reiterar seu comportamento ou a agir de forma mais agressiva. Afirmou-se que, sob o ponto de vista feminino, a ameaça e as agressões físicas surgiriam, na maioria dos casos, em ambiente doméstico. Seriam eventos decorrentes de dinâmicas privadas, o que aprofundaria o problema, já que acirraria a situação de invisibilidade social. Registrou-se a necessidade de intervenção estatal acerca do problema, baseada na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), na igualdade (CF, art. 5º, I) e na vedação a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5º, XLI). Reputou-se que a legislação ordinária protetiva estaria em sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e com a Convenção de Belém do Pará. Sob o ângulo constitucional, ressaltou-se o dever do Estado de assegurar a assistência à família e de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Não seria razoável ou proporcional, assim, deixar a atuação estatal a critério da vítima. A proteção à mulher esvaziar-se-ia, portanto, no que admitido que, verificada a agressão com lesão corporal leve, pudesse ela, depois de acionada a autoridade policial, recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com essa finalidade, fazendo-o antes de recebida a denúncia. Dessumiu-se que deixar a mulher autora da representação decidir sobre o início da persecução penal significaria desconsiderar a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais, bem como outros fatores, tudo a contribuir para a diminuição de sua proteção e a prorrogar o quadro de violência, discriminação e ofensa à dignidade humana. Implicaria relevar os graves impactos emocionais impostos à vítima, impedindo-a de romper com o estado de submissão. Entendeuse não ser aplicável aos crimes glosados pela lei discutida o que disposto na Lei 9.099/95, de maneira que, em se tratando de lesões corporais, mesmo que de natureza leve ou culposa, praticadas contra a mulher em âmbito doméstico, a ação penal cabível seria pública incondicionada. Acentuou-se, entretanto, permanecer a 93 A decisão do Supremo Tribunal Federal deve ser analisada como uma tentativa de mudança de paradigmas, pois conquanto a mulher tenha uma tendência de perdoar e retirar a representação, inviabilizando seu agressor de ser processado, basta que a notícia-crime chegue à autoridade policial para que seja instaurado o inquérito policial e se realize a investigação pertinente para formação da justa causa imprescindível para o oferecimento da denúncia acusatória. No atinente aos crimes ambientais enquadrados na órbita dos juizados especiais criminais, a transação penal, obrigatoriamente, deverá conter prévia composição relativa à reparação do dano ambiental (art. 27 da Lei n. 9.605, de 12.02.1998), salvo comprovada impossibilidade de fazê-lo. 3.3.1 Os princípios regentes A Lei n. 9.099/95 denominou-os critérios, mas são princípios porque orientam o processo perante o juizado especial criminal. Segundo o artigo 62 do diploma em tela, “o processo perante o juizado especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade”. De todo modo, ainda que não previsto, como a simplificação é uma tônica nos procedimentos que visam a solucionar causas de menor complexidade, cíveis ou criminais, a simplicidade deve ser inserta como um dos princípios norteadores.123 Oralidade: a oralidade se caracteriza pela oferta de declarações verbais perante o juiz, não escritas. A oralidade traz como consequência, por decorrência lógica procedimental, a concentração, a imediatidade e a identidade física do juiz. A concentração significa que a instrução consubstanciada na coleta da prova oral e o julgamento, com a prolação da sentença, serão realizados em uma única audiência, salvo exceções pontuais. A imediatidade representa necessidade de representação para crimes dispostos em leis diversas da 9.099/95, como o de ameaça e os cometidos contra a dignidade sexual. Consignou-se que o Tribunal, ao julgar o HC 106212/MS (DJe de 13.6.2011), declarara, em processo subjetivo, a constitucionalidade do art. 41 da Lei 11.340/2006, no que afastaria a aplicação da Lei dos Juizados Especiais relativamente aos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista. ADI 4424/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 9.2.2012.” (Informativo 654 do Supremo Tribunal Federal). 123 “Artigo 2º - O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.” 94 o contato direto do juiz com as partes e as provas, colhendo os elementos que fundarão seu decisório. A identidade física foi adotada recentemente pelo legislador, na reforma do Código de Processo Penal pela Lei n. 11.719, de 23 de junho de 2008, que estabeleceu no parágrafo 2º do artigo 399 que o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. A audiência preliminar é fundamentalmente oral. Tenta-se a conciliação civil oralmente e, uma vez alcançada, será reduzida a escrito a composição acordada (art. 74). Não realizado o acordo, a vítima poderá representar verbalmente (art. 75). Em caso de impossibilidade de oferta de proposta de transação penal, ou não sendo esta aceita, a denúncia será ofertada oralmente (art. 77, caput, e § 3º). A resposta é oral (art. 81, caput). Recebida a denúncia, a colheita da prova, os debates e a sentença são orais, lavrando-se breve resumo do que se produziu em audiência única. A sentença, dispensado o relatório, será proferida em seguida (art. 81, caput, e §§). Prolatada a sentença, havendo ponto obscuro, contradição, omissão ou dúvida, a parte poderá interpor embargos de declaração. E, segundo prevê o artigo 83, parágrafo 1º, podem ser formalizados oralmente ou por escrito, no prazo de cinco dias, contados da ciência da decisão. Informalidade: corolário do princípio da instrumentalidade das formas, prevê o artigo 65, parágrafo 1º, que “não se pronunciará qualquer nulidade sem que tenha havido prejuízo”. A balizar a informalidade, Ada Pellegrini Grinover e outros lecionam que: [...] só serão feitos registros escritos de atos considerados essenciais (art. 65, § 3º), dispensa-se o relatório da sentença (art. 81, § 2º), não se exige o exame de corpo de delito, para o oferecimento da denúncia, admitindo-se a prova da materialidade por boletim médico ou prova equivalente (art. 77, § 1º).124 Ricardo Cunha Chimenti e Marisa Ferreira dos Santos acrescentam outros exemplos de que os atos processuais serão considerados válidos sempre que atingirem o fim para os quais foram realizados. São eles: Não é necessária a elaboração do inquérito policial, bastando que a autoridade policial elabore um termo circunstancial da ocorrência e imediatamente encaminha a peça ao juizado [...]. A prática de atos 124 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 83. 95 processuais em outras comarcas pode ser solicitada por qualquer meio hábil de comunicação (inclusive fax e o telefone), dispensando-se assim a formalização do instrumento denominado carta precatória [...]. A citação (obrigatoriamente pessoal, nos termos do art. 66, da Lei n. 9.099/95), sempre que possível, será feita no próprio juizado. Quando necessário é feita por mandado. Não há citação por edital no JECrim, razão por que, não sendo o acusado encontrado para citação, as peças são encaminhadas para o Juízo comum.125 Economia processual e celeridade: consoante Weber Martins Batista e Luiz Fux, mostra-se simples inferir que esses princípios guardam conexão entre si para harmonizar o procedimento porque: A primeira implica obter o máximo resultado com o mínimo de atividade. O processo constitui um mal para o ofendido, o ofensor e o próprio Estado. Por isso mesmo, eliminar ou simplificar todos os atos que podem ser eliminados ou simplificados constitui um bem de valor inestimável.126 Diz-se célere porque nenhum ato será adiado e, caso necessário, o juiz determina a condução coercitiva de quem deva comparecer. Célere porque a prestação jurisdicional será breve, sem prejuízo à segurança jurídica, mormente depois da Emenda Constitucional n. 45/2004, em que se tornou preceito constitucional a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (art. 5º, inc. LXXVIII, da CF). Objetivos do diploma legal: eles advêm de previsão expressa da lei e traçam como desideratos maiores a reparação de danos e a aplicação de pena não privativa de liberdade (art. 62, in fine). Praticamente repete o contido no artigo 2º da Lei, ressalvando que aquela (reparação de danos) será obtida na composição civil (conciliação) e esta na transação penal. 3.4 A legitimação da doação de cestas básicas como pena restritiva de direitos As tentativas malogradas de se inserir a doação de sangue 127 como pena restritiva na modalidade de prestação de serviços à comunidade não intimidaram juízes e membros do 125 SANTOS, Marisa Ferreira dos; CHIMENTI, Ricardo Cunha. Juizados especiais cíveis e criminais federais e estaduais. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 268. (Sinopses Jurídicas, v. 15, t. 2). 126 BATISTA, Weber Martins; FUX, Luiz, Juizados especiais cíveis e criminais e suspensão condicional do processo penal, cit., p. 286. 127 Ver item 1.3. 96 Ministério Público a persistirem na proposta e homologação de doação de cestas básicas a instituições de caridade, malgrado a ausência de amparo legal. Correspondente à reprimenda de prestação social alternativa, admitida pela Constituição Federal, artigo 5º, XLVI, “d”, a pena de prestação de serviços à comunidade consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado. A doação de cestas básicas é medida de amplo espectro social e de inquestionável valia e utilidade, e, conquanto seu frequente emprego estivesse fora de sintonia com o direito positivado, pois era catalogado como forma de prestação de serviços à comunidade, o que ofendia o espírito dessa pena restritiva, os operadores do direito por todo o país persistiam em sua aplicação. Por qual motivo a doação de cestas básicas não podia ser inserida no âmbito da prestação de serviços à comunidade? É que a prestação de serviços vem disciplinada no Código Penal (art. 46) e na Lei de Execuções Penais (art. 149). É modalidade que tem como fim precípuo a prestação de tarefas gratuitas, de cunho laboral, a uma instituição pública ou à comunidade. Prestar serviços à comunidade, na letra do artigo 46, parágrafo 1º, “consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado”, prestadas “em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais” (§ 2º), e que “serão atribuídas conforme as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho” (§ 3º). Igualmente, o artigo 149 da Lei de Execuções Penais estatui, com clareza, que: Caberá ao juiz da execução: I - designar a entidade ou programa comunitário ou estatal, devidamente credenciado ou convencionado, junto ao qual o condenado deverá trabalhar gratuitamente, de acordo com as suas aptidões; II - determinar a intimação do condenado, cientificando-o da entidade, dias e horário em que deverá cumprir a pena; III - alterar a forma de execução, a fim de ajustá-la às modificações ocorridas na jornada de trabalho. 97 § 1º - O trabalho terá a duração de oito horas semanais e será realizado aos sábados, domingos e feriados, ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho, nos horários estabelecidos pelo Juiz. § 2º - A execução terá início a partir da data do primeiro comparecimento. Significa dizer que prestar serviços é empregar desforço físico sobre alguma coisa. Trata-se de jornada de trabalho, manifestada pelo labor individual, de modo que o oferecimento de bens ou produtos não guarda pertinência com o lavor, comumente desempenhado na faina diária. A prestação de serviços, inclusive, encontra previsão no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. E mantendo o mesmo desiderato de não encarceramento, em seu artigo 117, prevê o seguinte: Art. 117 - A prestação de serviços comunitários consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais. Parágrafo único - As tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do adolescente, devendo ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicara frequência à escola ou jornada normal de trabalho. O Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, igualmente admite a pena substitutiva, ao disciplinar no artigo 78 que “além das penas privativas de liberdade e de multa, podem ser impostas, cumulativa ou alternadamente, observado o disposto nos artigos 44 a 47, do Código Penal: [...] III - a prestação de serviços à comunidade”. Em síntese, como já discutido128, o Supremo Tribunal Federal decidira pela inadequação técnico-jurídica da doação de sangue no contexto das penas restritivas de direitos, como prestação de serviços à comunidade. Idêntica interpretação haveria de ser dada à doação de cestas básicas. 128 Ver item 1.3. 98 3.4.1 A prestação social alternativa como prestação de outra natureza Urgia, por conseguinte, inserir a doação de cestas básicas em um contexto de legalidade e, justamente para dar legitimidade à ação de integrantes do órgão ministerial e do Poder Judiciário, veio à luz a Lei n. 9.714, de 25 de novembro de 1998, que promoveu alterações substanciais no capítulo das penas restritivas de direitos, inserto no Código Penal, e viabilizou a criação das prestações de outra natureza. Conhecida como Lei das Penas Alternativas, tinha como um de seus propósitos solucionar a controvérsia. Para tanto, manteve as medidas da década de 80 e inseriu novidades, dando nova roupagem ao tema, fundamentalmente pela permissão expressa da adoção de sanções alternativas sem previsão no ordenamento. Na Mensagem n. 1.447 que acompanhou a publicação do diploma, para justificar o veto da pena restritiva de recolhimento domiciliar, por contrariar o interesse público, a Presidência da República enunciou a desvalia da pena privativa de liberdade e enalteceu a nova filosofia que incorporava ao Código Penal, com os seguintes fundamentos: Constatada, cientificamente, a inadequação das penas privativas de liberdade para atender aos fins a que se destinam, o Direito Penal evoluiu no sentido de que novos métodos de repressão ao crime deveriam ser instituídos, mediante a previsão de sanções de natureza alternativa, que ao juiz seriam facultadas impor ao condenado, em caráter substitutivo às penas de detenção e de reclusão, desde que atendidos alguns requisitos relacionados com a pessoa do delinquente e com o ilícito por ele perpetrado. Perfilhando essas diretrizes, o projeto de lei em questão, ao propor a instituição de novas penas alternativas ao elenco já existente no ordenamento, não se descurou em preservar o caráter substitutivo que lhes é conatural, assim como estabeleceu requisitos objetivos e subjetivos, concernentes ao delito praticado e à pessoa do criminoso, a serem necessariamente considerados pelo juiz, segundo seu prudente arbítrio, para a imposição de pena restritiva de direitos, em substituição à pena privativa de liberdade objeto da condenação criminal. A mais expressiva novidade da reforma penal residiu na criação da sanção denominada prestação de outra natureza ou inominada, espécie do gênero prestação social alternativa e substitutiva da prestação pecuniária, outra inovação ao rol das penas restritivas de direitos. 99 No artigo 43, inciso I, foi instituída a pena restritiva de direitos de prestação pecuniária, regulamentada no artigo 45, parágrafo 1º, nos seguintes termos: A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários. Pois bem, a determinação do beneficiário da prestação pecuniária deve seguir a ordem de prioridade estabelecida pelo artigo 45, parágrafo 1º, do Código Penal, que contempla em primeiro lugar a vítima e sua família, não podendo o magistrado sentenciante determinar o pagamento a entidade pública ou privada, quando houver aqueles. Segundo César Roberto Bitencourt, in verbis: Preferencialmente, o montante da condenação, nesta sanção, destina-se à vítima ou a seus dependentes. Só excepcionalmente, em duas hipóteses, o resultado dessa condenação em prestação pecuniária poderá ter outro destinatário: (a) se não houver dano a reparar ou (b) não houver vítima imediata ou seus dependentes. Nesses casos, e somente nesses casos, o montante da condenação destinar-se-á a entidade pública ou privada com destinação social.129 A excepcionalidade dessa possível destinação secundária prende-se ao caráter indenizatório que essa medida repressiva traz na sua finalidade última. Por isso, primeiro deverá reparar o dano ou prejuízo causado à vítima ou seus dependentes, e somente em sua ausência, cogitar-se-á na destinação do produto resultante da condenação destinar-se a entidade pública ou privada com destinação social.130 129 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1, p. 518-519. 130 Nesse sentido: “PENAS ALTERNATIVAS PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA RECOLHIMENTO DA MULTA EM FAVOR DA ENTIDADE PÚBLICA OU PRIVADA COM DESTINAÇÃO SOCIAL QUANDO HÁ PESSOA FÍSICA COMO VÍTIMA IMPOSSIBILIDADE. A prestação pecuniária aplicada nos termos da Lei n. 9.714/98 deve, em princípio, ser concedida em favor da vítima e seus dependentes, mesmo que esta não tenha sofrido prejuízos, posto que sofreu um dano moral, de sorte que apenas nos crimes em que o sujeito passivo for a coletividade a pena poderá ser aplicada em favor de entidade pública ou privada com destinação social.” (TACRIM-SP Ap. 1.224.215/9, 4ª C., rel. Juiz Marco Nahum, DOESP, de 01.02.2001). 100 Repise-se: pela sua natureza indenizatória, a prestação pecuniária destina-se a reparar os danos de cunho material e moral sofridos pela vítima. Tanto ela como seus dependentes podem ser os destinatários finais do montante em dinheiro proveniente da pena alternativa. Secundariamente, poderão figurar como beneficiárias entidades públicas ou privadas, com destinação social, ocasião em que a prestação passa a ter cunho beneficente.131 3.4.1.1 Prestação de outra natureza ou inominada Qual a alternativa legal se o condenado não possuir recursos financeiros para honrar a prestação pecuniária? O legislador criou uma saída discutível, do ponto de vista da legalidade. Previu que a prestação pecuniária pode transmudar-se em prestação de outra natureza. Para que não ocorram prisões, engenhosamente programou um subterfúgio no parágrafo 2º, segundo o qual o condenado se obriga a uma obrigação de dar. Permite a substituição da prestação pecuniária por outra que deve ter o mesmo perfil finalístico. O novel texto dispôs que “no caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza”. Para Paulo José da Costa Junior e Fernando José da Costa, “caso o condenado não disponha de recursos para o pagamento da prestação pecuniária não haverá conversão para pena privativa de liberdade. Ad impossibilia nemo tenetur (ninguém é obrigado a fazer o impossível)”.132 Criou-se uma pena restritiva de natureza subsidiária, batizada de “inominada” ou de “outra natureza”. Foi a opção legal concedida ao condenado sem lastro financeiro para facear a pena restritiva imposta. Com isso, restaram legitimadas aquelas prestações alternativas que não encontravam assentamento na codificação penal. A Exposição de Motivos da Lei n. 9.714 fornece dois exemplos de prestação inominada: a doação de cestas básicas e a prestação de mão de obra. 131 GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, Antonio, Direito penal: parte geral, cit., p. 562. 132 COSTA JUNIOR, Paulo José da; COSTA, Fernando José, Código Penal comentado, cit., p. 236. 101 Naquele momento histórico, a doação de cestas básicas era a coqueluche das varas criminais, por todo o país. E uma vez regulamentada, sobreveio a legitimação. Formou-se, então, um adensamento doutrinário de que a doação de cestas básicas tem a natureza jurídica de prestação inominada, não mais um viés da prestação de serviços à comunidade. Não obstante, a doutrina pondera que a pena de prestação alternativa inominada, tal qual posta no diploma penal, ofende princípios basilares de direito penal, relevando-se inconstitucional, especialmente por sua indeterminabilidade. Renato Marcão, respaldado em Cezar Roberto Bitencourt e Damásio Evangelista de Jesus anota que: A pena de prestação de outra natureza ou inominada padece de flagrante inconstitucionalidade, já que equivale a uma pena indeterminada, contrariando o princípio da reserva legal albergado no art. 1º do Código Penal, de prestígio constitucional, conforme decorre do disposto no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal.133 E mais adiante: Conforme asseverou Cezar Roberto Bitencourt, “em termos de sanções criminais são inadmissíveis, pelo princípio da legalidade, expressões vagas, equívocas ou ambíguas. E a nova redação desse dispositivo, segundo Damásio de Jesus, comina sanção de conteúdo vago, impreciso e incerto”.134 Cezar Roberto Bitencourt, mesmo após criticar a pena inominada por ser indeterminada e, por conseguinte, violadora do princípio da reserva legal, arremata afirmando que essa pena seria, na realidade, “uma espécie substituta da substituta da pena de prisão!”. E, como a substituição da prestação pecuniária se dá por uma prestação de outra natureza e dependente da aceitação do beneficiário, certamente é dotada de caráter consensual. E quem seria o favorecido da pena convertida? Defende, com razão, que é “o beneficiário do resultado da aplicação dessa pena pecuniária, que, como afirmamos, tem caráter indenizatório”.135 133 MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 267. Ibidem, p. 267. 135 BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de direito penal: parte geral, cit., p. 518-519. 134 102 No mesmo sentido, René Ariel Dotti pondera que: “O Juiz não pode aplicar pena que não esteja expressamente prevista na lei. Trata-se de reafirmar o princípio da anterioridade da lei quanto à definição do crime e o estabelecimento da sanção.”136 De se citar, outrossim, a crítica acerba lançada por Miguel Reale Junior, para quem a modalidade instituída é reprovável, porquanto não tem o condão de restaurar o mal praticado na esfera social, não alcançando o fim reparatório da pena. Em seu sentir: Trata-se de mais uma das questões controvertidas da Lei n. 9.714/98, pois realiza-se uma compensação em prejuízo da sociedade e do Estado, titular do poder-dever de punir, visto que se pode substituir uma pena privativa de liberdade a ser deduzida de eventual reparação civil, anulando-se assim a sanção penal imposta. A punição se desfaz e passa a ser parte de reparação do dano no plano civil. O condenado leva vantagem, a vítima tem reparado o dano, mas a pena privativa de liberdade decompõe-se, pois privatiza-se a resposta penal. Por um lado, há o dado positivo de se satisfazer a vítima, contanto que não se sancione com cesta básica, mas de outro, retira-se o caráter de reprovação, referido à culpabilidade, perdendo-se também o cunho educativo da sanção penal.137 Em contraponto a tais entendimentos, encontramos respeitáveis opiniões, com as quais nos irmanamos. Damásio Evangelista de Jesus, ao discorrer sobre o indigitado polêmico parágrafo e discutir as críticas sobre sua redação, defende que prestação de qualquer natureza, como está na lei, significa, de fato, pecuniária ou não. E contradiz a maioria da doutrina, ao asseverar que o dispositivo se encontra em consonância com as Regras de Tóquio, uma vez que estas recomendam ao juiz a aplicação se necessário e conveniente de qualquer medida que não envolva detenção pessoal. E acrescenta: Medida liberal corresponde, entretanto, ao ideal de justiça, pela qual ao juiz, nas infrações de menor gravidade lesiva cometidas por acusados não perigosos, atribuir-se-ia o poder de aplicar qualquer pena, respeitados os princípios de segurança social e da dignidade, desde que adequada ao fato e às condições pessoais do delinquente.138 136 DOTTI, René Ariel. Penas restritivas de direitos: críticas e comentários às penas alternativas: Lei 9.714, de 25.11.1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 100. 137 REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 59. 138 JESUS, Damásio Evangelista de, Código Penal anotado, cit., p. 188-189. 103 Frise-se que as Regras de Tóquio são um documento internacional, não um tratado, de modo que existem divergências sobre seu caráter cogente. Não obstante, as Leis ns. 9.099/95 e 9.714/98 são a pura expressão da adoção dos postulados nelas contidos. Sempre é bom inferir que nosso Código Penal, em seu artigo 5º, estabelece que “aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional”. Nelson Hungria pontuava que nosso diploma penal criou um [...] temperamento à impenetrabilidade do direito interno ou à exclusividade da ordem jurídica do Estado sobre o seu território, permitindo e reconhecendo, em determinados casos, a validez da lei de outro Estado. É em obséquio à boa convivência internacional, e quase sempre sob a condição de reciprocidade, que o território do Estado se torna penetrável pelo exercício de alheia soberania.139 Dentro dessa concepção, pode-se concluir que o caráter cogente recai sobre o que constar das Regras, desde que não contrarie o disposto em nossa Constituição Federal e nas leis penais internas. Por conseguinte, é mais adequada a interpretação de que a prestação inominada pode ter natureza pecuniária ou não, pois a lei, ao preconizar a substituição da prestação pecuniária por prestação de outra natureza, permitiu aos envolvidos no negócio jurídico a ser travado entre as partes escolher uma pena que correspondesse aos ideais preconizados pela Carta Magna, desde que não encarcerante e ajustada à realidade do agente. No ponto, ao abordar, no item 14, a disciplina e desrespeito pelas condições de tratamento, as Regras de Tóquio preveem regramentos a serem observados pelo juiz das execuções. Segundo o subitem 14.1, inteiramente adotado pela codificação penal: “O desrespeito das condições a observar pelos delinquentes pode conduzir à modificação ou à revogação da medida não privativa de liberdade”. No atinente aos demais subitens, temos sua inteira aplicabilidade ao estudo ora desenvolvido. O subitem 14.2 preconiza: “A modificação ou a revogação da medida não privativa de liberdade só pode ser decidida pela autoridade competente depois de um exame pormenorizado dos factos relatados pelo funcionário 139 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. 1, t. 1, p. 145-146. 104 encarregado da vigilância e pelo delinquente”. Na sequência, o subitem 14.3 alerta e orienta: “O insucesso de uma medida não privativa de liberdade não deve conduzir automaticamente a uma medida de prisão”. E, coroando a necessidade de evitar o aprisionamento, o subitem 14.4 estabelece: “Em caso de modificação ou de revogação da medida não privativa de liberdade, a autoridade competente esforça-se por encontrar uma solução de substituição adequada. Uma pena privativa de liberdade só pode ser pronunciada se não existirem outras medidas adequadas”. Luiz Flávio Gomes faz referência à inovação legal arrimada nas Regras de Tóquio, aquilatando a competência para a aplicação das medidas despenalizadoras trazidas pela n. Lei 9.714. Em seu sentir: Se de um lado não deixa de ser verdadeiro que até mesmo o modelo penal clássico já contava com medidas alternativas despenalizadoras (livramento condicional, sursis, remição de pena, multa alternativa etc.), de outro, tampouco pode-se negar que no nosso país, agora de modo patente, a latere do direito clássico, está implantado (com aspiração de definitividade) um novo e alternativo modelo penal que ocupa, por enquanto, não o lugar do sistema clássico (que não morreu, obviamente), senão uma posição excepcionadora que, para além de conceber a prisão como extrema ratio e que só se justifica para fatos de especial gravidade (Regras de Tóquio, 14.4), se caracteriza pela introdução no nosso ordenamento jurídico de um dos programas mais avançados, ao menos no plano formal, de penas e medidas alternativas. Doravante, para bem se compreender o sistema de Justiça Penal brasileiro deve-se partir da premissa de que dentro dele existem dois subsistemas: o clássico, que privilegia o encarceramento porque acredita na função dissuasória da prisão, e o alternativo, que procura sancionar o infrator conforme a gravidade da infração, com penas e medidas alternativas, isto é, sem retirá-lo do convívio familiar, profissional e social.140 Celso Delmanto et al. orientam que excluída a prestação pecuniária, a prestação de outra natureza “poderá consistir, v.g., na doação de cestas básicas ou em serviços de mão de obra”.141 Sem destoar, Mirabete declinava que “se houver aceitação do beneficiário, ou seja, do ofendido ou da entidade pública ou privada com destinação social, a prestação pecuniária 140 GOMES, Luiz Flávio. Nova lei de penas alternativas: a competência para sua aplicação. <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/10431-10431-1-PB.htm>. Acesso em: 03 jan. 2012. 141 DELMANTO, Celso et al., Código Penal comentado, cit., p. 165. 105 poderá constituir-se, por decisão do juiz, em prestação de outra natureza, como o fornecimento de cestas básicas, por exemplo”.142 Também Fernando Capez sustenta, ao cuidar da prestação inominada, que: [...] a prestação pecuniária poderá consistir em prestação de outra natureza, como, por exemplo, entrega de cestas básicas a carentes, em entidades públicas ou privadas. A interpretação, aqui, deve ser a mais ampla possível, sendo, no entanto, imprescindível o consenso do beneficiário quando o crime tiver como vítima pessoa determinada.143 O Pleno do Supremo Tribunal Federal deu por correta a decisão judicial que homologou a doação de cestas básicas como pena alternativa, fundamentando que: O crime investigado é daqueles que admitem a transação penal e o indiciado cumpre os demais requisitos legais do benefício. Embora haja controvérsia sobre a possibilidade de a prestação pecuniária efetivar-se mediante a oferta de bens, a pena alternativa proposta pelo Ministério Público doação mensal de cestas básicas e resmas de papel braile a entidade destinada à assistência dos deficientes visuais, pelo período de seis meses atinge à finalidade da transação penal e confere rápida solução ao litígio, atendendo melhor aos fins do procedimento criminal.144 O Superior Tribunal de Justiça tem como fora de discussão que a doação de cestas básicas consiste em modalidade distinta da prestação de serviços à comunidade, tanto que a rejeita como substitutiva desta em sede de execução, caso inviável seu cumprimento por parte do condenado. Se o condenado não puder cumprir a prestação de serviços estipulada, deverá o juiz das execuções impor-lhe outra, adaptada à sua aptidão, sem substituí-la pela doação de cestas. Veja-se o seguinte aresto: A competência do Juízo das Execuções Criminais limita-se à alteração da forma de cumprimento da pena de prestação de serviços à comunidade aplicada pelo Juízo Criminal processante (CP, art. 59, inc. IV), ajustando-a às condições pessoais do condenado e às características do estabelecimento, da entidade ou do programa comunitário ou estatal‟ (Lei 7.210/84, art. 148), sem, contudo, substituí-la por pena restritiva de direitos diversa.145 142 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal interpretado. São Paulo: Atlas, 1999. p. 295. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. v. 1, p. 358. 144 STF INQ n. 2.721/DF, Pleno, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 08.10.2009. 145 STJ HC n. 38.052/SP, 5ª Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de 10.04.2006. 143 106 Sem embargo das respeitáveis críticas doutrinárias, o texto legal propiciou a abertura de um novo horizonte de penas alternativas, evitando o encarceramento e atendendo, de um modo mais ameno, à exigência estatal do cumprimento da pena. A liberdade do condenado deve prevalecer sempre que o juiz tiver uma lacuna ou uma alternativa para tanto. Importante ostentar que a minirreforma penal de 1998 visou, em um primeiro momento, a legalizar as doações de cestas básicas, nas transações penais em infrações de menor potencial ofensivo, contudo atingiu efetivamente o juiz das execuções penais, que é o competente para analisar e decidir acerca da substituição da pena pecuniária imposta em sede de sentença por outra que se amolde às condições pessoais do condenado. Conferiu ao juiz das execuções um poder ilimitado de estabelecer a pena que lhe aprouvesse. Essa abertura imensa receberá, naturalmente, as limitações da jurisprudência. Como sopesado, se em sede de execução da pena tratar-se de condenado cujo passado é liberto de máculas, essa substituição poderá incluir a doação de sangue como substitutiva da substitutiva. Em outros termos, se o condenado estiver obrigado a saldar uma prestação pecuniária e, por um revés financeiro, não puder fazê-lo, a substituição por doação de sangue e prestação de serviços à comunidade bem satisfaria os fins da pena. A jurisprudência, por sua vez, é vacilante em aceitar a prestação de outra natureza. Uma ínfima parcela de Tribunais estaduais a interpreta por inconstitucional146, em contraposição à majoritária parcela de entendimentos favoráveis 147, especialmente no Superior Tribunal de Justiça.148 146 “A fixação de pena alternativa de „fornecimento de cestas-básicas‟, na forma do artigo 45, § 2º, do Código Penal, é flagrantemente inconstitucional, uma vez que não se encontra prévia e taxativamente cominada na lei penal. Em que pese judicioso posicionamento em sentido contrário, é entendimento pacífico desta câmara que a pena de multa deve ser alterada, sempre que necessário, para guardar estrita proporcionalidade com a pena corporal. Recurso parcialmente provido.” (TJMG AC n. 1.0433.06.202.656-5/001, 5ª Câmara Criminal, rel. Hélcio Valentim, j. 01.07.2008, DJ, de 12.07.2008). 147 “Tese defensiva pugnando a absolvição por atipicidade, alegando falta de dolo. Subsidiariamente pleiteia a alteração da pena substitutiva pelo fornecimento de apenas uma cesta básica no valor de meio salário mínimo, bem como o cancelamento da taxa judiciária. Recurso parcialmente provido para substituir a pena privativa de liberdade por somente uma restritiva de direitos, consistente na doação de uma cesta básica a entidade beneficente, no valor de um salário mínimo.” (TJSP –AC n. 990101068516/SP, 15ª Câmara Criminal, rel. Pedro Gagliardi, j. 09.09.2010, DJe, de 20.09.2010). 148 “2. Comprovada a impossibilidade financeira do paciente, que ensejaria o descumprimento justificado da pena restritiva de direitos, impõe-se a sua alteração, por outra que melhor se ajuste à sua situação. 3. Concederam a ordem para que seja substituída a pena de prestação pecuniária por outra condizente com a condição financeira do réu.” (STJ – n. HC 82.544/RS, 5ª T., rel. Des. Jane Silva, j. 27.09.2007, DJ, de 15.10.2007, p. 326). 107 No entanto, se existem divergências quanto à ampliação ad infinitum de alternativas ao juiz das execuções, não se pode dizer o mesmo quanto à aplicação dessas penas de cunho social, perfeitamente bem recebidas no seio da comunidade e da doutrina, no campo dos juizados especiais criminais. Quando parte significativa da doutrina se opunha à pena restritiva de direitos consistente em doação de cestas básicas, ao interpretar o artigo 76 da Lei n. 9.099/95, essa apreciação deixou de ter fundamento, uma vez que as cestas básicas, assim como sanções de outra natureza, passaram a ser cristalinamente legalizadas.149 3.4.1.2 Aceitação do beneficiário A prestação inominada ou de outra natureza exige o consenso do beneficiário. E esse é a vítima do crime? Não necessariamente. Orienta Rogério Greco que “a vítima e seus dependentes têm prioridade no recebimento da prestação pecuniária, não podendo o juiz determinar o seu pagamento a entidade pública ou privada quando houver aqueles” 150. E prossegue: “Nas infrações penais onde não haja vítima, a exemplo do delito de formação de quadrilha ou bando (Código Penal, artigo 288), poderá a prestação pecuniária ser dirigida a entidade pública ou privada com destinação social”. Para estas, segundo o autor, efetivamente é ressarcida quando a prestação pecuniária é imposta e aceita pelo condenado. Tanto que se descumprida injustificadamente, nos termos no artigo 44, parágrafo 4º, do Código Penal, pode ser convertida em privativa de liberdade. É o que a difere da pena de multa (art. 49 do CP), que não saldada descabe a conversão em privativa de liberdade (art. 51 do CP), já que sua natureza jurídica passou a ser de dívida de valor para fins de execução, aplicando-se as normas correlatas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas suspensivas e interruptivas do prazo prescricional. No que diz respeito à recepção de cestas básicas, o magistrado criminal cadastra uma série de instituições aptas e com estrutura ao recebimento e distribuição das mercadorias aos mais carentes da comunidade. Conveniente que essa instituição seja reconhecidamente de utilidade pública e prestigiada nos meios sociais pelo seu trabalho em favor dos mais necessitados. Com esse pré-requisito fundamental, preenche-se o tópico do dispositivo. 149 150 GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, Direito penal: parte geral, cit., p. 564. GRECO, Rogério. Código Penal comentado. 5. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2011. p. 140. 108 A proposta ministerial de doação de cestas básicas, aceita pelo autor do fato e seu advogado, tem como destinatário uma entidade de utilidade pública cadastrada na vara. Uma vez homologado judicialmente, esse acordo tem o condão de materializar uma pena restritiva de direitos inominada. Nesse consenso, o autor da infração assume a obrigação de entregar, dentro de certo lapso temporal, determinada quantidade. A doação de cestas básicas ganhou status de prestação alternativa inominada não pecuniária. Na interpretação de Guilherme de Souza Nucci, somente o fornecimento de mão de obra implicaria em concordância do beneficiário, “pois é mais difícil encontrar entidades ou vítimas dispostas a receber serviços diretos por parte do condenado” e sugere redobrada cautela do magistrado na imposição dessa pena alternativa.151 Caso a vítima seja a destinatária, torna-se desnecessária sua concordância, porquanto tem direito líquido e certo à reparação do dano sofrido pela conduta criminosa. 3.4.1.3 Valor econômico Pela natureza finalística do parágrafo 1º (prestação pecuniária), exige-se que a prestação inominada ou de outra natureza, do parágrafo 2º, possua valor econômico? Como restou evidenciado pelos posicionamentos anteriores, não há dúvida. A doutrina se inclina nesse sentido. Se a prestação pecuniária tem caráter monetário, o fim do ressarcimento do dano moral e material em espécie (dinheiro vivo), a prestação inominada ou de outra natureza pode ter fim semelhante porque o condenado se obriga a fazer algo, mas não mediante o pagamento em espécie. Cumprirá o seu propósito de outra forma. Os exemplos formulados na Exposição de Motivos são mera referência, visto que nada obsta o condenado se comprometer a entregar medicamentos, roupas e/ou cobertores a entidades carentes, resmas de papel a entidades que cuidam de deficientes visuais, livros à Biblioteca Municipal etc. 151 NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 244. 109 Alberto Silva Franco discorda da destinação de valores a entidades cadastradas, por julgar que não cabe ao Poder Judiciário sustentar organismos assistenciais carentes, mas sim ao Estado. Na lição do magistrado: Nessa linha de entendimento, não se pode fugir à conclusão de que o § 2º do art. 45 do CP infelizmente legalizou – embora isso signifique a total banalização da Justiça Penal – a prática do pagamento da prestação em cestas básicas. Não é tarefa da Justiça Penal manter entidades assistenciais necessitadas de recursos financeiros. Isso é incumbência do Estado, através de adequadas políticas sociais e da comunidade, quando sai de seu papel de estado letárgico e assume seu ativo papel de articulação social. É lamentável que se assista, na atualidade, à montagem de uma rede de entidades favorecidas por cestas básicas e se entenda que seja isso uma forma de realização da justiça. Para quem disponha de dinheiro, a cesta básica ficou reduzida a uma compra confortável em qualquer supermercado, a algo que não produz efeito algum, aflitivo ou preventivo, do condenado.152 No que toca à parte final da conclusão do eminente desembargador, com a vênia que merece, permitimo-nos fazer um adendo, ou melhor, uma imprescindível amplificação à sua conclusão. Como é conhecido por todos que militam na área criminal, a doação de cestas básicas tornou-se a modalidade mais figurada de pena alternativa, dada sua capacidade de auxílio direto e efetivo aos mais carentes. Não obstante, salvo raríssimas exceções, como as contravenções penais de pequena expressão, a simples doação de cestas não pode ser a única medida substitutiva para o cumprimento da pena prevista no tipo penal incriminador. Em outros termos, se é certo que a imposição de sanção consistente na exclusiva doação de cestas básicas transmite a sensação de impunidade, basta que o magistrado tenha a sensibilidade de fazê-la se tornar um plus de outra pena restritiva, por exemplo: prestação serviços à comunidade + doação de cestas básicas; prestação de serviços à comunidade + doação de cobertores ou de roupas etc. A simples e exclusiva doação de cestas básicas não exerce papel algum na reeducação e ressocialização do agente. Por si só, é desproporcional e desarrazoada. É salutar lembrar que o juiz exerce o papel de educador, em praticamente toda sua vida profissional, e por ser conhecedor do direito – jura novit curia –, jamais deve banalizar a pena. É inconcebível o autor de um crime deixar o fórum dando de ombros, zombando de todo o aparato estruturado 152 FRANCO, Alberto Silva; BELLOQUE, Juliana, Código Penal e sua interpretação: arts. 41 a 60. cit., p. 304. 110 para recebê-lo, e expressar em alto e bom som que dará duas ou três cestas básicas e sua pena estará cumprida. René Ariel Dotti anota que: “A pena deve retribuir juridicamente a culpabilidade do agente. Em última instância ela é o efeito de uma causa e deve guardar a relação de proporcionalidade entre o mal do ilícito e o mal devido ao infrator.”153 O Ministério Público deve refletir sobre esse alerta quando da formalização de suas propostas consensuais e os magistrados hão de ponderar sobre o desvalor da conduta e qual ou quais devem ser as medidas correspondentes suficientes para a reprovação e consequente ressarcimento social. 153 DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 212. 111 4 A DOAÇÃO ALTERNATIVA: DE SANGUE PRESTAÇÃO COMO DE PRESTAÇÃO OUTRA SOCIAL NATUREZA OU INOMINADA Soa estranho figurar a doação de sangue com caráter punitivo. Contudo, quando se concebe o ideário de que se trata de um ato voluntário, altruísta e apto a elevar a autoestima do doador e beneficiar terceira pessoa, inclusive podendo salvar vidas, infere-se que estamos diante de uma prestação social alternativa, nos moldes previstos da Carta da República. Não se pode olvidar que essa modalidade de sanção, tal como as demais penas restritivas de direitos, insere-se no panorama maior de pleno respeito à dignidade da pessoa humana, supraprincípio norteador dos demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. Por esse motivo, não pode ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas.154 O operador do direito deve necessariamente conduzir sua atuação pessoal e profissional com os olhos voltados para a produção de um bem para a sociedade, por meio das normas penais e processuais penais, sempre com o desiderato maior da punição dos que transgridem o direito posto. E para a produção desse bem-estar social, atualmente tem ao seu deu dispor sanções não caracterizantes de segregação pessoal, denominadas restritivas de direitos, bem como as prestações sociais alternativas, inseridas no diploma penal com a denominação de prestação de outra natureza ou inominada, consoante já esposado. Como as penas restritivas têm cabimento nas infrações de menor e médio potencial ofensivo, a par de múltiplas exigências de natureza pessoal, quando de sua implementação, ao mesmo tempo que oferece alternativas ao autor do fato, permite que o Estado seja ressarcido, por meio de ações frutíferas para a sociedade. Isso porque toda e qualquer sanção deve atender aos postulados da dignidade da pessoa humana. Como já salientado e ora reprisamos, na ótica de Rizzatto Nunes, a dignidade 154 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. A dignidade da pessoa humana e o papel do julgador. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 423. 112 da pessoa humana é “considerada como o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos fundamentais”.155 4.1 A doação de sangue e sua tipificação penal Identificados os óbices, a meta consiste em encontrar um mecanismo cujos critérios atendam aos princípios constitucionais correlatos, com ênfase à dignidade humana, à individualização da pena e sua humanização e legalidade. E esses critérios hão de estruturar um microssistema apto a respaldar a doação de sangue como modalidade de pena restritiva de direitos e, concomitantemente, adequar-se às orientações trilhadas pelos organismos de saúde, fundamentalmente no que tange às condições pessoais do doador e à salvaguarda dos direitos da saúde do receptor, e inserindo-se nas demais hipóteses de prestação social alternativa. Se o órgão acusador, o autor do fato e seu defensor, bem como o magistrado concordarem com determinada pena inominada, atendendo aos princípios fundantes de um Estado Democrático, inexistirá motivo para sua repugnância. Dentro desses parâmetros, concluímos que a doação de sangue pode figurar, desde que guardadas determinadas especificidades técnicas, como uma das modalidades de prestação social alternativa de outra natureza ou inominada. 4.2 A sui generis condição do beneficiário na doação de sangue Como analisado156, ao permitir a substituição da pena restritiva de direitos de prestação pecuniária por uma de outra natureza, o legislador preconiza, para sua materialização, um acordo entre o Poder Judiciário e o increpado. Esse acordo, nos termos do artigo 45, parágrafo 2º, exige ainda a aceitação do beneficiário. Em se tratando de doação de cestas básicas, medicamentos, cobertores, roupas, resmas de papel, livros etc., basta que o magistrado cadastre a instituição e, ato contínuo, estando esta ciente do compromisso assumido, terá a incumbência de fornecer o comprovante 155 156 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto, A dignidade da pessoa humana e o papel do julgador, cit., p. 421. Ver item 3.4. 113 correspondente. Assim, por exemplo, caso o autor do fato se comprometa a doar dez cestas básicas em cinco meses (duas por vez), a cada entrega, de posse do recibo, entregá-lo-á no cartório da vara, dando quitação parcial de sua obrigação. Na doação de sangue também é exigida a aceitação do beneficiário? Em atendimento ao disposto no diploma penal, a resposta teria que ser positiva. Contudo, estudemos a origem desse beneficiário para tirarmos a conclusão. A Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados precede em muitos lustros a data de criação das penas restritivas de direitos no Brasil, em 1984. Atualmente, a Lei n. 10.205, de 21 de março de 2001, regulamenta o parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, estabelece o ordenamento institucional indispensável à execução adequada dessas atividades, e dá outras providências. Na narrativa sobre a evolução da hemoterapia no Brasil, pudemos fazer o cotejo de datas. Vimos que Pedro C. Junqueira, Jacob Rosenblit e Nelson Hamerschlak informam que a transfusão de sangue teve dois períodos: um empírico, que chega até 1900; e outro científico, após aquele marco. Na visão desses médicos, a iniciativa nacional foi marcada pela necessidade dos feridos em combate na Segunda Guerra Mundial, de modo que: Até a década de 40, já existiam no Brasil vários serviços de transfusão, mas um merece destaque: o Serviço de Transfusão de Sangue (STS), fundado no Rio de Janeiro, em 1933. [...] O sucesso deste modelo e a eficiência do atendimento resultaram na criação, em 1937, de várias filiais, entre elas a de Juiz de Fora [...]. Na década de 40, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a Hemoterapia brasileira começou a se caracterizar como uma especialidade médica. Em 07 de dezembro de 1942, foi inaugurado o primeiro Banco de Sangue no Instituto Fernandes Figueira, Rio de Janeiro, visando obter sangue para este hospital e atender ao esforço de guerra, mandando plasma humano para os hospitais de frentes de batalha. 157 Em 1942 também era fundado o de Porto Alegre. 157 JUNQUEIRA, Pedro C.; ROSENBLIT, Jacob; HAMERSCHLAK, Nelson, História da hemoterapia no Brasil, cit., p. 201-207. 114 Em 1945, o de Botafogo, também no Rio de Janeiro, diferente dos demais, porquanto o primeiro banco de sangue privado da nação, cujo fim era fornecer sangue aos médicos responsáveis pelas transfusões. Em 1943, Oswaldo Mellone fundou e foi chefe do Banco de Sangue do Hospital das Clínicas ligado à Universidade de São Paulo. E assim foram nascendo outros bancos, sempre com o objetivo precípuo de minorar a deficiência de sangue e hemoderivados. Divergindo parcialmente quanto a dados e datas, Cláudia M. F. Ribeiro pondera o seguinte: Na década de 40, a hemoterapia começa a ser vista como especialidade médica e vários “bancos de sangue” foram inaugurados em diversas capitais brasileiras. O primeiro “banco de sangue” público foi criado na cidade de Porto Alegre, em 1941; em seguida, foi o do Rio de Janeiro, sendo o terceiro inaugurado em 1942, em Recife.158 Feitas essas breves considerações e ponderado que a modificação legislativa introduzindo as prestações de outra natureza na codificação penal foi inspirada nas doações de cestas básicas mantida pelos magistrados e promotores de justiça na década de 90, entendemos desnecessária a prévia aceitação do beneficiário, leia-se hemocentros e hemonúcleos e todas as demais entidades autorizadas a realizarem a coleta. Diferentemente das outras entidades que foram criadas para fins filantrópicos e atividades múltiplas, os bancos de sangue o foram com a finalidade específica de coletar e realizar os demais procedimentos correlatos ao sangue e hemoderivados, tais como processamento, estocagem, distribuição e aplicação, de modo que a aceitação se mostra dispensável. Assim não fosse e os bancos de sangue poderiam passar a discriminar os doadores, como se uma pessoa de bem que cometeu um único erro em sua vida, mesmo sendo primário e sem qualquer antecedente negativo em seu passado, pudesse minar a qualidade do produto ou pôr em risco a saúde do futuro receptor. 158 RIBEIRO, Cláudia M. F. A hemoterapia no Brasil até 1980 e a criação dos hemocentros públicos nacionais, apud FUNDAÇÃO HEMOMINAS. Sangue: breve história. Disponível em: <http://www.hemominas.mg.gov.br/hemominas/menu/cidadao/doacao/breve_historia.html?print=true>. Acesso em: 30 dez. 2011. 115 A doação de sangue feita por alguém que fez um acordo com o órgão acusador homologado pelo Poder Judiciário não guarda nenhuma diferença para com a doação feita por todos os demais cidadãos desta nação. Como já analisado, se diversos organismos não governamentais, associações de classe, clubes de serviço, torcidas organizadas e outros o fazem, inexistiria fundamento para se repudiar essa medida de alcance tão benéfico à saúde pública nacional. Na esteira dessa conclusão, basta ao magistrado, após o increpado e seu advogado aceitarem a proposta formulada, adotar os procedimentos correspondentes à futura doação e encaminhá-lo ao local indicado. Concluída a doação, o cidadão receberá o comprovante, cabendo-lhe entregar na serventia da vara, como cumprimento total ou parcial das obrigações assumidas. É induvidoso que se o magistrado optar por interpretar o direito positivado como uma ordem manterá prévio contato com o responsável pelo banco de sangue em sua comarca, cidade ou bairro. Ademais, não faz sentido qualquer contato prévio com um banco de sangue, se este foi criado para um único fim e o que se determina se amolda a tanto. 116 117 5 EFETIVIDADE Neste capítulo abordaremos a implantação da nova modalidade de pena restritiva na 1ª Vara Criminal de Sorocaba. Finalizados os estudos e vislumbrada, em nossa ótica, a pertinência da pretensão, demos os primeiros passos para alcançar sua efetividade. Para tanto, promovemos reuniões com os representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública oficiantes na Vara, para lhes apresentar o detalhamento do empreendimento. Atentem que a Defensoria Pública, conforme o artigo 134 da Carta Magna, é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados ou hipossuficientes, na forma do artigo 5º, LXXIV. Segundo a Defensoria Pública atuante na 1ª Vara Criminal, a grande maioria dos entrevistados tende a optar pela doação de sangue, pois não despenderá valor algum e, ao mesmo tempo, fará um grande bem para seu semelhante.159 Foi-lhes passado que a doação de sangue como prestação social alternativa encontrava amparo constitucional, porém o legislador penal, na alteração do microssistema das penas alternativas, ao invés de criar uma modalidade específica, inseriu no rol das penas restritivas de direitos a prestação de outra natureza ou inominada. E fundamental seria que os direitos inalienáveis do suposto infrator fossem aprioristicamente garantidos, para respaldo da futura medida político-jurídica. E, para tanto, como a doação de sangue tem como pressuposto maior, como incessantemente pontuado pelas normas da Vigilância Sanitária, a voluntariedade, à plêiade formada pelos integrantes do actum trium personarum caberia iniciar sua atuação observando esses pré-requisitos. 159 Na pesquisa “Perfil do Doador de Sangue Brasileiro”, entre a população doadora, 62,39% são homens e 49,03% são solteiros. A faixa etária predominante (28,25%) é de 30 a 39 anos. A pesquisa identificou, ainda, que 53,47% dos doadores já fizeram no mínimo cinco doações, o que indica um alto índice de fidelização. No que se refere à questão da identificação com o ato de doação, para 58,32% das pessoas entrevistadas, o sangue representa vida (BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Tecnologia e Ciências. Perfil do doador de sangue brasileiro. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/hotsite/doador_sangue/pdsbfiles/introducaod.htm>. Acesso em: 10 mar. 2012). 118 O respeito à voluntariedade traz subjacente a imprescindível realização de um ato consensual, no qual o autor do fato tenha oportunidade de se expressar e exercer o direito de opção frente a um pedido acusatório (Ministério Público ou querelante). Tivemos preocupação com a reação dos advogados, mas um episódio, aliás dois, que ocorreram na semana do feriado de 15 de novembro de 2010, servem para que se possa avaliar o alcance do que representa a doação de sangue, na opinião dos operadores do direito. Um advogado de fora da terra e desconhecedor da novidade orientou seu patrocinado a aceitar, dentre as propostas apresentadas, aquela que continha a doação de sangue e, ao final da tarde, procurou-nos. Estava feliz com o acordo homologado, pois se tratava de um caso difícil, no qual seu cliente fora preso por violência doméstica e as condições da suspensão condicional do processo (atualmente inviável, pelo posicionamento exarado pelo Supremo Tribunal Federal na ADI n. 4.424/DF) não só atendiam ao interesse de ambos, como retornava um benefício concreto para a comunidade sorocabana. Naquela mesma data, um réu indagado novamente durante a audiência de instrução processual de um crime de furto tentado, pois recusara a suspensão condicional do processo anteriormente, ao tomar ciência da possibilidade de doação de sangue, e orientado por seu patrono, indagou-nos: “Senhor Juiz, eu posso salvar uma vida, não?”. Seu advogado o orientou a aceitar o benefício.160 E fora das linhas do processo penal, a opinião dos protagonistas das infrações incitava nossa curiosidade. E esse interesse foi dissipado há pouco. Em 30 de junho de 2012, o jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, em matéria intitulada “Duas mil penas alternativas são decretadas em cinco meses”, na qual a doação de sangue foi alvitrada como uma das opções de reinserção social, o jornalista José Antonio Rosa ouviu a concordância com a medida por dois réus, no seguinte teor: J., de 38 anos, respondeu a processo por lesão corporal de natureza leve, e disse que, quando foi consultado sobre a possibilidade de doação de sangue, não pensou duas vezes. “Eu confesso que, naquele momento, fiquei surpreso, mas, depois, entendi que estaria contribuindo com uma causa maior e aceitei”. R., 42, foi processado por ter cometido furto de pequeno valor. Na audiência, soube que poderia doar sangue, se concordasse. “Na hora pareceu estranho. Perguntei ao advogado, e ele disse que a decisão cabia exclusivamente a mim. Doar sangue foi a melhor coisa que fiz para 160 Ver item 5.3.2. 119 pagar a minha dívida com a sociedade. Hoje, sinto-me mais valorizado porque percebi que o sistema acredita na minha recuperação. E eu, tenho de fazer a minha parte para receber essa confiança”. Esse quadro favorável nos deixou mais confiante, até porque, mais tarde, a adesão dos advogados da 24ª Subseção de Sorocaba foi expressiva, tanto que apoiaram declaradamente a iniciativa. No Brasil, as hipóteses de consenso ficam reservadas às infrações de menor e médio potencial ofensivo, consoante previsão da Lei n. 9.099/95161. E para se acomodar a pretensão acusatória com a voluntariedade do autor do fato, impõe-se que o acusador apresente mais de uma proposta de acordo, seja na transação penal, seja na suspensão condicional do processo. Por que mais de uma proposta? Justamente para que o autor do fato exerça o direito de escolha e preserve sua privacidade. Podendo escolher uma entre duas ou três propostas de acordo, passa a realizar um ato voluntário. Não sofre qualquer imposição. Por mais de uma vez foi aludido que a doação de sangue deve ser de livre escolha. Aliás, é dogma inserto em toda e qualquer manifestação exarada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O respeito à privacidade é imperativo para que o requisito da voluntariedade seja atendido. A imposição à doação de sangue se contrapõe a esse postulado e, portanto, deve ser coibida a todo custo. Vários fatores levam uma pessoa a discordar da doação de sangue como uma das medidas propostas. Ou seja, ainda que a doação de sangue não caracterize ontologicamente uma sanção, ao contrário, é ato dadivoso pleno de apreço ao próximo, o fato de estar inserida em um contexto de transação penal assim deve ser vista, pois representa uma obrigação de fazer em prol da coletividade. No entanto, as fobias em geral constituem uma barreira e se transformam em fator preponderante de inviabilização da proposta que contenha o ato 161 Ver itens 1.6 et seq. e Capítulo 2. 120 nobilíssimo, como, por exemplo, medo de agulha, de sangue, de ambiente hospitalar 162 etc., circunstâncias que defendemos como caracterizadoras do direito à privacidade da pessoa.163 Porém, a mais emblemática causa de resistência se relaciona à liberdade religiosa. Com efeito, narra Nelson Nery Junior, em parecer técnico-jurídico destinado à proteção ao direito individual da liberdade de crença, que: “Nessa perspectiva, o Estado, seja por meio de leis ou por meio de decisões judiciais, não pode impor ao cidadão uma conduta atentatória à sua convicção religiosa e à sua dignidade”. E acrescenta: [...] quando um praticante da religião Testemunhas de Jeová manifesta recusa a se submeter a tratamentos que envolvam transfusão de sangue, está ele exercendo seu direito público subjetivo de liberdade de religião, porquanto está se negando a realizar uma prática atentatória à sua liberdade religiosa e à sua dignidade. Nesse passo, quando esse cidadão exerce esta recusa ele invoca seus direitos fundamentais, conduta esta que em nenhuma hipótese atenta contra direito fundamental de outrem. Afinal, qual direito fundamental de outrem essa recusa pelo paciente Testemunha de Jeová violaria? Ou seja, quando o praticante dessa religião exerce seu consentimento informado e se recusa a realizar qualquer procedimento médico ou cirúrgico que envolva transfusão de sangue, em hipótese alguma está atentando ou pondo em risco direito fundamental de outrem.164 162 Na pesquisa “Perfil do Doador de Sangue Brasileiro”, pela primeira vez foi revelado o perfil do não doador de sangue: 56,27% são do sexo feminino; 54,60% são solteiros e a maioria tem entre 20 e 24 anos (23,92%). Do total de entrevistados, 36,15% disseram que o medo é o principal motivo para não doarem sangue (Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/hotsite/doador_sangue/pdsbfiles/introducaod.htm>. Acesso em: 10 mar. 2012). 163 A doutrina cuida da intimidade como espécie de privacidade, seu gênero. A intimidade, por ser mais restrita que a privacidade, o que lhe é privado pode chegar ao conhecimento dos que vivem em sua companhia, contudo, o que é íntimo restringe-se a ela. A conceituação de cada um dos institutos pode ser trabalhada, outrossim, na teoria dos círculos concêntricos, segundo a qual o círculo maior é a privacidade, e o menor, dentro dele, a intimidade. Privacidade é o que o indivíduo não quer que seja de conhecimento público, embora aceite que algumas pessoas participem dessas particularidades. A intimidade, em contrapartida, é o núcleo essencial da privacidade, ao se referir a tudo que se encerre na sua esfera mais reservada da pessoa humana. Robert Alexy dá uma conotação mais ampla, abarcando três círculos concêntricos, ou como prefere denominar, teoria das esferas, segundo a qual é possível distinguir cada uma de conformidade com a intensidade de proteção. Quais sejam: a esfera mais interna (âmbito último intangível da liberdade humana), caracterizando-se por ser o âmbito mais íntimo, a esfera íntima intangível e conforme interpretação do Tribunal Constitucional alemão, o âmbito núcleo absolutamente protegido da organização da vida privada, compreendendo os assuntos mais secretos que não devem chegar ao conhecimento dos outros devido à sua natureza extremamente reservada; a esfera privada ampla, que abarca o âmbito privado, na medida que não pertença à esfera mais interna, incluindo assuntos que o indivíduo leva ao conhecimento de outra pessoa de sua confiança, ficando excluído o resto da comunidade; e a esfera social, que engloba tudo o que não for incluído na esfera privada ampla, ou seja, todas as matérias relacionadas com as notícias que a pessoa deseja excluir do conhecimento de terceiros (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. 3. reimpr. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 350). 164 NERY JUNIOR, Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes testemunhas de Jeová: como exercício harmônico de direitos fundamentais (Parecer). São Paulo: Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová, 2009. 121 Como se sabe, a questão da recusa pelo crente da religião Testemunha de Jeová em se submeter a determinados tratamentos, em especial a transfusão de sangue, porquanto estariam em discussão seus valores mais relevantes, é sempre motivo de polêmica, e esse não é o palco para se discorrer a respeito. Na verdade, busca-se aqui exatamente não polemizar, não criar situações conflituosas, simplesmente acatar o direito fundamental de livre exercício da religião escolhida, bem como das liturgias condutoras ao seu bem-estar moral e espiritual do homem. O Brasil é um país laico. Desde o advento da República existe a separação entre Estado e Igreja, inexistindo uma religião oficial. Dessume-se do disposto no artigo 5º, VI, da Carta Magna a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.165 Parafraseando Montesquieu ao definir liberdade em um Estado, isto é, em uma sociedade na qual há leis, a liberdade consiste em poder fazer o que a pessoa quer e não ser obrigado a fazer o que não deseja.166 Destarte, retomando o contexto de uma audiência preliminar, em que é ofertada a transação penal, ou audiência de suspensão, entre duas ou mais propostas formuladas pelo órgão acusador nasce para o acusado o direito de escolha e, consequentemente, de permanecer intocada a sua voluntariedade, privacidade e liberdade de consciência e de crença. 5.1 O abstrato e o concreto Como alertamos, para que se caminhasse rumo à efetivação da pretensão de materialização da doação de sangue como prestação social alternativa, além do respeito à privacidade do autor de um fato, mostrava-se imponível não desviar da decisão do Supremo Tribunal Federal.167 165 LENZA, Pedro, Direito constitucional esquematizado, cit., p. 685. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. 3. ed. aum. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 162163. 167 Ver item 1.3. 166 122 Se, naquele dado momento da história, 1990, uma porta fora fechada pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão indiscutivelmente sensata, em face da dissonância técnica empregada pelo magistrado ao catalogar a doação de sangue como prestação de serviços à comunidade, a procura de adequação da hipótese em uma modalidade diversa, isto é, de prestação de outra natureza ou inominada, propiciou a abertura ou reabertura de um verdadeiro portal em prol do pranteado alvo: doação de sangue como como prestação social alternativa. No exercício da jurisdição, o Poder Judiciário utiliza o direito e o processo penal para apurar o fato e punir o delinquente, após a conclusão de um devido processo legal. Contudo, para fazer justiça social, humanizar a pena, incrementando ou estimulando a solidariedade e o altruísmo nas pessoas, sem deixar de cumprir sua tarefa precípua de aplicar o direito ao caso concreto, o juiz pode ir além da letra da lei, balizando-se nos postulados maiores da dignidade da pessoa humana, da liberdade de expressão e do devido processo legal, e inovar. Para isso é necessário interpretar o ordenamento, colher nele mais que as diretrizes propostas, e criar mecanismos que alterem o panorama tradicional. O juiz pode construir novos paradigmas. É o ativismo judicial na seara criminal. Nesse passo, conquanto abordando outro tema, mas por guardar identidade com o escopo deste trabalho, José Renato Nalini sustenta o seguinte, ao que denomina consequencialismo: O mais experimentado especialista em direito é o juiz. Sua experiência não é destinada a propiciar mais clientela, nem a obter fama, gloríolas tão a gosto desta sociedade do espetáculo, ou prestígio mundano. O juiz existe para fazer justiça. E não faz justiça o juiz que – podendo aperfeiçoar sua atividade – permanece passivamente à espera de que as coisas aconteçam.168 E, para consecução, bastaria que o órgão acusador abraçasse a temática e desse início à apresentação das propostas alternativas. 168 NALINI, José Renato. Duração razoável do processo e dignidade da pessoa humana. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Orgs.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 200. 123 Não houve dificuldade, ao contrário, todos se convenceram a partilhar esforços pelo argumento central de que o Poder Judiciário pode colaborar com as deficiências da saúde pública, mais especificamente em cooperar com a hemoterapia, proporcionando maior estoque aos bancos de sangue, bastando uma mínima modificação na ritualística do procedimento adotado na transação penal e na suspensão condicional do processo. 5.2 Institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais aplicáveis: a transação penal e a suspensão condicional do processo Em se tratando de infração de menor potencial ofensivo, o rito procedimental a ser obedecido é aquele determinado pela lei específica, a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, como demonstramos a seguir. Levada a conhecimento da autoridade policial a infração praticada, é lavrado o termo circunstanciado. Em seguida, essa autoridade encaminhará ao juizado o autor do fato e a vítima, requisitando os exames periciais necessários. Imperativo recordar que, nos termos do artigo 69, parágrafo único da Lei n. 9.099, é vedada prisão em flagrante ou exigência de fiança se o autor do fato se comprometer a comparecer ao juizado. E, em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. O juízo designa audiência preliminar, determinando a intimação do Ministério Público, do autor do fato, da vítima (se for o caso, seu responsável civil), acompanhados de seus advogados. A audiência preliminar (arts. 72 a 74) é concentrada, composta de dois momentos processuais distintos: composição civil de danos e transação penal. 5.2.1 Composição civil de danos O acordo entre autor do fato e vítima, em crimes de ação penal privada e pública condicionada à representação, gera repercussão nos campos penal – extinção da punibilidade 124 do autor do fato – e civil – sentença homologatória. A composição civil deve ser realizada na presença das partes, com seus advogados e responsável civil, se necessário. Do ajuste entre as partes, assessoradas por advogados e mediante o acompanhamento do Ministério Público, na qualidade de fiscal da lei, lavrar-se-á termo a ser homologado, por sentença, pelo juiz. Essa sentença homologatória equivale a título executivo judicial, é irrecorrível e acarreta a renúncia tácita ao direito de queixa ou de representação, com a extinção da punibilidade do autor do fato, somente podendo ser desconstituída por ação anulatória, de competência do juízo cível. Se o valor a ser executado for de até quarenta salários mínimos, a ação pode ser intentada no juizado cível (art. 3º, inc. I, da Lei 9.099/95). A composição civil em crime de ação pública incondicionada traz unicamente solução total ou parcial de evitar nova demanda no âmbito civil, porque não impedirá no campo penal a sequência do procedimento. Se as partes não chegarem a nenhum acordo, se crime de ação privada, deve o juiz indagar ao querelante se oferece proposta de transação; em caso negativo, deverá oferecer queixa oral. No particular, o Enunciado Criminal n. 90 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE) firmou entendimento de que na ação penal privada cabe a transação penal, bem como a suspensão condicional do processo, a despeito da ausência de previsão legal. No caso de crime de ação pública condicionada à representação, sem acordo, imediatamente o juiz indagará ao ofendido se deseja representar, o que será reduzido a escrito. Não o querendo naquele momento, será cientificado que poderá fazê-lo no prazo de seis meses contados da data em que teve ciência da autoria do fato, conforme prescrevem os artigos 38 do Código de Processo Penal e 103 do Código Penal. 5.2.2 Transação penal No dizer de Damásio Evangelista de Jesus “não se trata de negócio entre o Ministério Público e a defesa: cuida-se de um instituto que permite ao juiz, de imediato, aplicar uma 125 pena alternativa ao autuado, justa para a acusação e para a defesa, encerrando o procedimento”.169 É direito público subjetivo do autor do fato não sofrer pena privativa de liberdade, condicionado à proposta ministerial de aplicação de pena restritiva de direitos ou multa, desde que presentes os requisitos objetivos e subjetivos favoráveis. 5.2.2.1 Legitimidade É do Ministério Público. Caso o órgão acusador se recuse a ofertar a proposta, não pode o juiz fazê-lo de ofício, pois não é parte. Se o fizer, o autor do fato pode se rebelar, mostrar seu inconformismo e impetrar habeas corpus. Prevalece o entendimento de que, na hipótese, pode o magistrado se valer do princípio da devolução, albergado no artigo 28 do Código de Processo Penal, em analogia ao disposto na Súmula n. 696 do Supremo Tribunal Federal.170 Para aperfeiçoamento da transação penal, é indispensável a aceitação da proposta pelo autor do fato e seu defensor. Em ação penal privada, quem tem legitimidade para transacionar? Na esfera privada, vigem os princípios da disponibilidade e da oportunidade, de sorte que o juiz somente indaga ao querelante se deseja oferecer proposta; caso negue, o feito prossegue; se a fizer, será ela submetida ao querelado e seu patrono. Note-se que o Ministério Público atua na qualidade de custos legis, pois o Estado conferiu a legitimidade exclusiva ao particular de acionar o autor do fato em crimes de natureza privada. 5.2.2.2 Proposta A Lei n. 9.099/95 veda a proposição de pena privativa de liberdade nas medidas despenalizadoras. Seria um contrassenso se dispusesse de modo diverso. Fica para o acusador 169 JESUS, Damásio Evangelista de. Lei dos Juizados Especiais Criminais anotada. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 57. 170 Súmula n. 696 do STF: “Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao ProcuradorGeral, aplicando-se por analogia o artigo 28 do Código de Processo Penal.” 126 propor penas pecuniárias e restritivas de direitos. Consoante assinala Ada Pellegrini Grinover e outros, “ao incluir entre as penas restritiva de direitos a prestação pecuniária, a Lei 9.714/98 deixou superada questão relativa à possibilidade de ser objeto da transação penal a chamada prestação social alternativa (como, por exemplo, a entrega de cestas básicas, vestuário ou remédios à coletividade carente ou a instituições assistenciais)”.171 Exige-se que a proposta do acusador seja clara e precisa, para delimitar com exatidão o alcance da pretensão e propiciar ao autor do fato e seu defensor perfeita ciência e avaliação de seu interesse na aceitação plena ou produzir contra-argumentos almejando mitigá-la. Assim, por exemplo, se o Ministério Público apresentou proposta de prestação de serviços à comunidade por seis meses por contravenção penal de vias de fato 172, com esteio no princípio da proporcionalidade, o advogado tem elementos para pleitear a redução se, na comarca, em crimes de lesão corporal dolosa, as propostas de prestação de serviços variam até o máximo de três meses. Vejamos alguns modelos de propostas adotados pelos representantes do Ministério Público atuantes na 1ª Vara Criminal de Sorocaba: proposta 1: doação de sangue por duas vezes no período de seis meses + entrega de três cestas básicas à entidade beneficente a ser designada pelo juízo; proposta 2: prestação de serviços à comunidade pelo período de seis meses, por oito horas semanais + entrega de três cestas básicas à entidade a ser designada pelo juízo. Ou, ainda: proposta 1: doação de sangue por uma vez no período de seis meses + entrega de três cestas básicas à entidade beneficente a ser designada pelo juízo; proposta 2: prestação de serviços à comunidade pelo período de três meses, por oito horas semanais + entrega de três cestas básicas à entidade a ser designada pelo juízo. 5.2.2.3 Não aceitação da proposta Na hipótese de recusa à proposta formulada, reza o ordenamento que será ofertada denúncia oral, por parte do órgão acusador. A recusa à proposta pode estar fundada na busca do reconhecimento judicial de inocência, circunstância que marcantemente permeia a negativa a qualquer forma de conciliação. A recusa à consensualidade se constitui em uma das 171 GRINOVER, Ada Pellegrini et al., Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995, cit., p. 158. 172 “Vias de fato: Art. 21 - Praticar vias de fato contra alguém: Pena - prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa, se o fato não constitui crime.” 127 possibilidades que conduzem ao procedimento sumaríssimo, previsto no artigo 81 da Lei. Uma vez oferecida denúncia e apresentada a contrariedade, o juiz decide pelo recebimento ou rejeição da peça inaugural. Em caso de recebimento, avaliará se é caso de cabimento da suspensão condicional do processo, ocasião em que será aberta a palavra ao acusador para se manifestar. E somente o fará se o réu for portador de um passado limpo, imaculado. Do contrário, passa à instrução, debates e julgamento. Se o acusador ofertar proposta de suspensão condicional do processo, fundada na recusa à transação penal, é provável que o réu não aceite qualquer das propostas, porquanto, como apontado, seu interesse é buscar a absolvição. A proposta de sursis processual será objeto de análise no próximo item. 5.2.2.4 Sentença homologatória de transação penal Em sendo aceita a proposta, ou se as partes alcançarem um acordo sobre as sanções cabíveis, a superveniência da homologação é a regra. A sentença homologatória de transação penal não gera qualquer efeito penal contra o autor do fato. Vale dizer, não gera reincidência, nem constará de registros criminais, mas imporá limitações quanto ao cumprimento da pena cominada e impede nova transação no prazo de cinco anos. Não gera efeitos de natureza civil, devendo o interessado ajuizar a ação de conhecimento no juízo respectivo (juizado cível ou Justiça comum) para buscar eventual reparação de danos. Em caso de descumprimento da pena imposta, é necessário analisar: se o réu não pagou a pena pecuniária imposta na transação penal, esta deve ser cobrada em execução penal, nos moldes do artigo 51 do Código Penal, não sendo admissível o oferecimento de denúncia; se descumpriu a pena restritiva de direitos, a jurisprudência tem adotado três entendimentos: a) conversão em pena pecuniária; b) conversão em pena privativa de liberdade; e, c) oferecimento de denúncia. Sustentamos que a última medida é a mais adequada, especialmente se o magistrado não homologou a proposta de transação e decidiu ficar no aguardo do cumprimento da sanção imposta. Ao juiz é vedado homologar a transação, caso discorde da proposta formulada, agravando a qualidade ou o quantum da pena proposta e aceita. Pode, no entanto, reduzi-la, caso lhe pareça excessivamente gravosa ao autor do fato. Nesse sentido: Damásio Evangelista de Jesus173. Dessa decisão cabe o recurso de apelação. O artigo 76, em seu parágrafo 1º, reza que se a pena de multa for a única aplicada, o juiz poderá reduzi-la de até metade. 173 JESUS, Damásio Evangelista de, Lei dos Juizados Especiais Criminais anotada, cit., p. 66. 128 O Superior Tribunal de Justiça vinha adotando o entendimento de que o descumprimento da sanção imposta em transação penal não autorizaria o oferecimento de denúncia, uma vez que a sentença homologatória faria coisa julgada formal e material. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal decidiu, de forma consistente e uniforme, no sentido da possibilidade de oferecimento de denúncia, independentemente da transação ser passível de futura homologação. Nessa linha, a Corte Maior, em 19.11.2009, dando definitividade à discussão do tema, por repercussão geral decidiu que na hipótese cabe o oferecimento de denúncia.174 A decisão da Corte Suprema é correta tanto no aspecto moral como no políticojurídico do ato. A persistir entendimento diverso, bastaria ao autor do fato iludir o magistrado e o órgão ministerial afirmando aceitar a proposta formulada e, na sequência, dar de ombros e descumpri-la. Trata-se de total desrespeito às instituições, especialmente ao Poder Judiciário, e deve ser coibido. A malícia não pode beneficiar quem a pratica.175 Importante consignar que o Superior Tribunal de Justiça, após a decisão exarada pela Corte Suprema, decidiu rever seu posicionamento. O Ministro Jorge Mussi, em 20.10.2011, ao tecer considerações sobre o decisório da Corte Suprema, entendeu conveniente unificar-se o entendimento, em que pese não exista caráter vinculante no instituto da repercussão geral, notadamente porque seu desiderato é o de unir a interpretação constitucional, valendo-se dos seguintes argumentos: Embora a aludida decisão, ainda que de reconhecida repercussão geral, seja desprovida de qualquer caráter vinculante, é certo que se trata de posicionamento adotado pela unanimidade dos integrantes da Suprema Corte, órgão que detém a atribuição de guardar a Constituição Federal e, portanto, dizer em última instância quais situações são conformes ou não com as disposições colocadas na Carta Magna. 174 “Juizados Especiais Criminais. Transação penal. Artigo 76 da Lei n. 9.099/95. Condições não cumpridas. Propositura de ação penal. Possibilidade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário improvido. Aplicação do artigo 543-B, parágrafo 3º, do CPC. Não fere os preceitos constitucionais a propositura de ação penal em decorrência do não cumprimento das condições estabelecidas em transação penal.” (STF QO-RG RE n. 602.072, rel. Min. Cezar Peluso, j. 19.11.2009, DJe, 26.02.2010). 175 Para Ada Pellegrini Grinover e outros, a sentença na transação penal não é condenatória e nem absolutória, é simplesmente homologatória “passível de fazer coisa julgada material, dela derivando o título executivo penal. Por isso, se não houver cumprimento da obrigação assumida pelo autor do fato, nada se poderá fazer, a não ser executá-la, nos expressos termos da lei” (Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995, cit., p. 169). 129 Desta forma, o posicionamento até então adotado por este Superior Tribunal de Justiça deve ser revisto, para que passe a incorporar a interpretação constitucional dada ao caso pela Suprema Corte, já que não se pode negar que o oferecimento de denúncia na hipótese de descumprimento das condições impostas em transação penal não ofende os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, pois a decisão que homologa o acordo não faz coisa julgada material, tendo força de título executivo judicial que fica “submetido à condição resolutiva estampada no descumprimento do que pactuado” (HC 79572, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, julgado em 29/02/2000). Com efeito, consoante consignado pelo eminente Ministro Cezar Peluso, descumpridas as cláusulas da transação penal, “retorna-se ao status quo ante, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal (situação diversa daquela em que se pretende a conversão automática deste descumprimento em pena privativa de liberdade” (RE 602072 QO-RG, Relator(a): Min. Cezar Peluso, julgado em 19/11/2009). Assim, atentando-se para a finalidade do instituto da repercussão geral, que é o de uniformizar a interpretação constitucional, e em homenagem à função pacificadora da jurisprudência, é imperiosa a revisão do posicionamento até então adotado por esta Corte Superior de Justiça, passando-se a admitir o oferecimento de denúncia e o prosseguimento da ação penal em caso de descumprimento das condições da transação penal.176 5.2.2.5 Recursos das sentenças Da sentença homologatória de transação penal caberá apelação, sempre endereçada à Turma Recursal, na esfera estadual, ou à Turma Recursal Federal, no âmbito federal. Exceções: contra a não homologação judicial da transação, admite-se mandado de segurança pelo Ministério Público e habeas corpus pelo autor do fato ou pelo órgão acusador em seu favor. Da sentença de mérito, o recurso é o de apelação, endereçado à Turma Recursal da circunscrição ou Tribunal de Justiça, na falta daquela. Na esfera federal, o recurso será encaminhado à Turma Recursal Federal ou Tribunal Regional Federal, na falta daquela. Os embargos de declaração são admissíveis contra sentença ou acórdão, quando houver obscuridade, contradição, omissão ou dúvida. 5.3 Suspensão condicional do processo: considerações iniciais O instituto da suspensão condicional do processo é também conhecido por sursis processual. 176 STJ HC n. 188.959/DF, rel. Min. Jorge Mussi, j. 20.10.2011. 130 Para todo e qualquer crime, salvo militar, cuja pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano (exemplos: furto, apropriação indébita, estelionato, receptação dolosa, todos na forma simples etc.), o acusador, oferecendo a denúncia ou queixa, poderá propor a suspensão do processo, estando presentes determinadas condições legais. Recebida a inicial e designada audiência especial para o momento solene, caso haja aceitação pelo réu da proposta formulada, suspende-se, paralisa-se o andamento do feito, por prazo determinado, com probabilidade de extinção da punibilidade pelo atendimento às condições impostas. Com a reforma processual penal, a suspensão condicional do processo poderá ocorrer em caso de mutatio ou emendatio libelli, se o novo tipo penal incriminador permitir a concessão do benefício, como na desclassificação de roubo para furto na forma simples; de furto qualificado para furto na forma fundamental; de apropriação indébita agravada para a forma simples etc. Pode-se conceituar o instituto despenalizador como uma alternativa à pena privativa de liberdade, consistente na submissão do acusado a certas condições legais ou judiciais que lhe permitirão a final, ultrapassado prazo previamente determinado, não sofrer sanção penal alguma, com extinção da punibilidade. Apresenta diferenças com o sursis anglo-americano, o probation system, que exige prova da culpabilidade do acusado para se suspender o decreto condenatório; o juiz colhe as provas e, diante da responsabilidade penal, propõe a suspensão da condenação. Na suspensão condicional do processo não há consideração a respeito da acusação imputada ao réu, o feito ficará suspenso de dois a quatro anos, no aguardo do cumprimento das condições acordadas, quando, a final, extingue-se a punibilidade. No sursis processual não há imposição de pena, diferente da transação penal. 5.3.1 Natureza jurídica Formaram-se duas correntes distintas: a) direito público subjetivo do réu; b) faculdade ministerial. 131 Pela primeira corrente, trata-se de direito público subjetivo de liberdade do réu de não ter contra si o desenvolvimento da ação penal com futura sentença, uma vez preenchidos os requisitos legais da Lei n. 9.099/95. Para esta, não configura faculdade ministerial. A segunda prevalece. Tanto doutrina como jurisprudência são firmes em que a propositura se trata de faculdade do órgão ministerial, que é o único legitimado a elaborar a proposta de sursis processual. A diferença não é sutil, traz consequências decisivas para o regular andamento do processo, pois se é um poder-dever, a recusa à propositura, fazendo-se presentes os requisitos legais, autorizaria o juiz a ofertar a proposta de ofício; tratando-se de faculdade, a recusa na proposição retira do juiz essa alternativa benéfica ao réu. A inteligência de que a proposta se reveste de faculdade, inclusive foi sufragada no Pretório Excelso177. Portanto, negando-se o órgão acusatório a oferecer a proposta, entendendo o magistrado que se fazem presentes os requisitos legais, deverá aplicar o princípio da devolução (art. 28 do CPP), remetendo os autos ao chefe da instituição respectiva para análise da recusa em ofertar a proposta178. Aliás, a Súmula n. 696 do STF enuncia que “reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o artigo 28 do Código de Processo Penal”. Caso a Procuradoria Geral concorde com a negativa, o processo prosseguirá, devendo o magistrado dar o regular andamento ao feito. O juiz é inerte, e tal qual no pedido de arquivamento do inquérito policial mantido pelo chefe da instituição, deve acatar a posição do único legitimado originariamente para oferecer a proposta de suspensão. Com a devida vênia ao posicionamento francamente majoritário, defendemos que um benefício da magnitude da suspensão condicional, do qual o réu se vê livre de responder a um 177 “Suspensão condicional do processo penal (L. 9.099/95, art. 89): natureza consensual: recusa do Promotor: aplicação, mutatis mutandis, do art. 28 CPP. A natureza consensual da suspensão condicional do processo – ainda quando se dispense que a proposta surja espontaneamente do Ministério Público – não prescinde do seu assentimento, embora não deva este sujeitar-se ao critério individual do órgão da instituição em cada caso. Por isso, a fórmula capaz de compatibilizar, na suspensão condicional do processo, o papel insubstituível do Ministério Público, a independência funcional dos seus membros e a unidade da instituição é aquela que – uma vez reunidos os requisitos objetivos de admissibilidade do sursis processual (art. 89, caput), ad instar do art. 28 do CPP – impõe ao juiz submeter à Procuradoria-Geral a recusa de assentimento do Promotor à sua pactuação, que há de ser motivada.” (STF HC n. 75.343/MG, Tribunal Pleno, rel. Octavio Galotti, j. 11.11.1997, DJ, de 18.06.2001). 178 Enunciado n. 86 do FONAJE: “Em caso de não oferecimento de proposta de transação penal ou de suspensão condicional do processo pelo Ministério Público, aplica-se, por analogia, o disposto no artigo 28 do CPP.” 132 processo-crime, bem como de ser julgado, constitui-se em direito público subjetivo inafastável, de modo que a proposta do Ministério Público não se constitui em faculdade, mas dever. Recusando-se a oferecer a proposta, o órgão ministerial deve fundamentar sua negativa179 para que o réu e a defesa técnica se valham do remédio legal cabível para manifestar seu inconformismo e contrastar o entendimento ministerial. No caso, o habeas corpus é a válvula a ser acionada. Para nós, a concessão de ofício ou a pedido do próprio réu terá cabimento quando o representante do Ministério Público não oferecer a proposta e, simultaneamente, deixar de motivar sua recusa. Perante a inércia ministerial, mormente se provocado e permanecer omisso, patenteados os requisitos legais, não há porque o juiz se submeter ao posicionamento do chefe da instituição ministerial, malgrado seja o Ministério Público o único legitimado a ofertar a proposta de transação. Ao juiz caberá efetuar a proposta do instituto despenalizador, porquanto atenderá a toda a principiologia aplicável aos juizados especiais criminais180. Damásio Evangelista de Jesus amparado na 13ª conclusão da Comissão Nacional de Interpretação da Lei n. 9.099/95, realizada na Escola Nacional da Magistratura, em Brasília, em outubro de 1995; na conferência proferida no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, em São Paulo, no dia 29 de novembro de 1995; no Enunciado n. 6 do VII Encontro Nacional de Coordenadores de Juizados Especiais, Vila Velha-ES, em 27 de maio de 2000; e em diversos julgados, defende que: [...] nos termos dos princípios da informalidade e celeridade processual: o juiz, desde que presentes as condições legais, deve, de ofício, suspender o processo, cabendo recurso de apelação. [...]. Se o juiz pode aplicar o sursis, que tem natureza punitiva e sancionatória, inclusive em face da discordância do Ministério Público, o mesmo deve ocorrer na suspensão condicional do processo, forma de despenalização. Se o juiz pode aplicar de ofício a medida mais grave, seria estranho que não o pudesse na mais leve. Além disso, toda medida que afasta o processo da direção da imposição da pena detentiva atende à finalidade da Lei nova. E o formalismo, atrelando a inovação à provocação do Ministério Público, não atende ao anseio de celeridade e simplicidade181 179 A fundamentação da negativa encontra fundamento nos artigo 129, VIII, parte final, da Constituição Federal e 43, III, da Lei n. 8.625/93. 180 “Concessão de ofício excepcional. [...] Se conspiram todos os requisitos legais da suspensão condicional do processo, deve o Ministério Público formular a proposta, conforme o art. 89 da Lei n. 9.099/95. Em caso de recusa, ao Juiz tocará fazê-lo de ofício.” (TACrimSP Revisão n. 440.202/9/São Paulo, 8º Grupo de Câmaras, rel. Carlos Biasotti, j. 09.10.2003, v.u.). 181 JESUS, Damásio Evangelista de, Lei dos Juizados Especiais Criminais anotada, cit., p. 115. 133 5.3.2 Autonomia, âmbito e alcance Vejamos as principais regras. São elas: a) O sursis processual é aplicável tanto a crimes da competência do juizado especial criminal como do juízo comum. A única exceção fica por conta dos crimes militares, vedados nos termos do artigo 90-A da Lei dos Juizados Criminais. b) A pena mínima cominada deve ser igual ou inferior a um ano. Se ao crime for agregada uma causa de aumento de pena, caberá a suspensão condicional do processo? Depende, pois as causas de aumento de pena, de diminuição de pena e as qualificadoras serão levadas em consideração para efeito de verificação do cabimento da medida. Assim, um furto simples agravado pelo repouso noturno não autoriza a concessão, de vez que a pena mínima abstrata superará um ano. Em contrapartida, a pena mínima abstrata será obtida pelo percentual máximo da causa de redução da pena, de modo que com arrependimento posterior em furto qualificado, aplicado o redutor de dois terços, chega-se a uma pena privativa de liberdade inferior a um ano. A mesma interpretação dar-se-á nos crimes tentados, pois não há impedimento em se admitir a suspensão, caso aplicado o redutor máximo para obtenção da pena mínima, ela ficar aquém ou igual a um ano, como no furto qualificado. De outro lado, a suspensão é inaplicável às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada ultrapassar o limite de um ano, pelo somatório ou pela incidência da majorante. Segundo a Súmula n. 723 do STF, não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado se a somatória da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto superar a um ano. No mesmo diapasão, a Súmula n. 243 do STJ: O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano. A lei omite os crimes de ação penal privada, no entanto não há óbice algum na concessão da suspensão a tais crimes, até para não ferir a isonomia constitucionalmente prevista, bastando a presença dos requisitos legais. O Supremo Tribunal Federal já decidiu 134 sobre o tema, inclusive afirmando a legitimidade do querelante para efetuar a proposta, haja vista ser ele o titular para a propositura da demanda privada. Na ótica do relator Ministro Sepúlveda Pertente, é cabível a suspensão condicional do processo instaurado mediante ação penal privada, mostrando-se “acertada, no caso, a admissibilidade, em tese, da suspensão, a legitimação para propô-la ou nela assentir é do querelante, não, do Ministério Público”. 182 Alguns crimes da competência do júri, como o autoaborto e o aborto provocado com o consentimento da gestante, admitem o sursis processual. Caso seja revogada a suspensão, o réu será submetido a julgamento pelos jurados. A aplicação é idêntica ao reconhecimento das demais causas que provocam a extinção da punibilidade, pois o Estado perde o jus puniendi. Se o réu foi beneficiado com o perdão judicial em processo anterior, pelos dizeres da Súmula n. 18 do STJ (“A sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório”), não estará impedida a concessão da suspensão condicional do processo. Por derradeiro, o instituto não é aplicável às infrações abarcadas pela Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006).183 c) Regra geral: uma vez concedido o benefício, o feito ficará paralisado (suspenso) por tempo determinado, denominado período de prova até o cumprimento das condições. Excepcionalmente, o benefício será concedido ao final do processo, após a regular instrução, mas antes da sentença, em face da inovação penal desclassificatória ou emendadora (arts. 383 e 384 do CPP). Em qualquer hipótese, cumpridas as condições, extingue-se a punibilidade e o juiz determina o arquivamento dos autos, uma vez transitada em julgado a decisão. 5.3.3 Requisitos legais Encontram sua previsão nos artigos 77 do Código Penal e 89, caput, da Lei n. 9.099/95. São de ordem objetiva e subjetiva. STF HC n. 81.720/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 26.03.2002, p. 19.04.2002. Nesse sentido, o Enunciado n. 112 do FONAJE: “Na ação penal privada de iniciativa privada, cabem transação penal e a suspensão condicional do processo, mediante proposta do Ministério Público.” 183 Ver item 3.3. 182 135 5.3.3.1 Requisitos objetivos 1) Qualidade da pena: a regra é a proposta recair sobre infração punida abstratamente com pena privativa de liberdade mínima igual ou inferior a um ano, prevista ou não na Lei n. 9.099/95. Nada veda, contudo, a proposta ao autor do fato, que não aceitou transação penal em contravenção penal apenada com multa. Assim, qualquer modalidade de pena admite, em tese, a suspensão condicional do processo. 2) Quantidade da pena: o mínimo não pode superar um ano de privação de liberdade. No caso de concurso de crimes, conforme analisado, as penas devem ser consideradas isoladamente para se conceder o sursis processual. As súmulas dos Tribunais Superiores bem direcionam a interpretação. 5.3.3.2 Requisitos subjetivos Não esteja respondendo a processo ou não tenha sido condenado por outro crime. O legislador foi exigente, determinando como condição negativa estar o réu respondendo a um simples processo por crime culposo ou doloso. Pior se condenado anteriormente pela prática de qualquer tipo de crime. Em nossa visão, responder a processo por contravenção penal ou ter sofrido condenação por contravenção penal não inviabiliza a concessão do instituto despenalizador. Note-se que para a concessão do benefício, além do requisito temporal e ter um passado limpo, deverá o juiz se certificar que os requisitos subjetivos previstos no artigo 77 do Código Penal, inciso I (não ser o acusado reincidente em crime doloso) e inciso II (a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias), autorizam a concessão do benefício. 5.3.4 Procedimento. Bilateralidade do ato. Recursos cabíveis. Os modelos de propostas ministeriais O juiz, recebendo a denúncia e verificando a legalidade da proposta ministerial, designará data para realização da audiência de suspensão. Uma vez instalada, o acusado e seu defensor serão consultados sobre a proposta, na presença do juiz. Se recusada, o processo 136 prosseguirá em todos os seus ulteriores termos (art. 89, § 7º). Caso aceita, o juiz poderá suspender o processo, submetendo o acusado ao período de prova. O cumprimento das condições do benefício pelo lapso de tempo, mínimo de dois e máximo de quatro anos, atinentes ao período, tem por fundamento a gravidade do delito, a personalidade do agente e a política criminal da comarca. Durante o período de prova, respeitado o contraditório, nada obsta que as condições sejam modificadas pela concordância das partes. Ao conceder a benesse, o juiz profere decisão interlocutória com força de definitiva, sobrestando o andamento do processo. Da decisão concessiva ou denegatória, o recurso cabível é a apelação, ante a previsão do artigo 82 do diploma especial, mormente porque nenhum outro recurso é previsto184. No entanto, os tribunais, em especial o Superior Tribunal de Justiça, têm se posicionado pelo cabimento do recurso em sentido estrito, justamente por se tratar de decisão interlocutória mista.185 Defende Fernando Capez que a decisão é irrecorrível. Segundo o autor, descabe a aplicação do artigo 581, XI, do Código de Processo Penal, uma vez que não é certa a argumentação de que cabe esse recurso contra a concessão ou denegação da suspensão condicional da pena, pois o instituto é viabilizado ou não na sentença, de modo que o recurso cabível é a apelação. Em seu sentir, a decisão que concede a suspensão condicional do processo tem natureza de interlocutória simples, porquanto não põe fim ao processo e nem a uma fase do procedimento, simplesmente suspende o curso do processo. Lembra que a Lei dos Juizados Especiais Criminais não previu recurso algum para a hipótese, daí conclui pelo descabimento de qualquer recurso. E acrescenta que caso haja ofensa a direito líquido e certo, “Juizado Especial Criminal Sentença que concede o sursis processual Recurso cabível Apelação Lei n. 9.099/95, artigo 89 CPP, artigo 593, II. Tendo natureza de interlocutória mista com força definitiva (não terminativa), a decisão que suspende o processo, nos termos do artigo 89 da Lei n. 9.099/95, impugnável é, por via de recurso de apelação (artigo 593, II, do CPP).” (STJ HC n. 16.377/SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 20.09.2001, DJ, de 04.02.2002). 185 Interessante observar que o mesmo relator, Ministro Hamilton Carvalhido, alterou seu posicionamento, em voto prolatado alguns meses após o constante da nota de rodapé precedente, in verbis: “1. Na letra do artigo 581, inciso XI, do Código de Processo Penal, cabe recurso em sentido estrito da decisão que conceder, negar ou revogar a suspensão condicional da pena, havendo firme entendimento, não unânime, de que se cuida de enumeração exaustiva, a inibir hipótese de cabimento outra que não as expressamente elencadas na lei. 2. Tal disposição, contudo, por força da impugnabilidade recursal da decisão denegatória do sursis, prevista no artigo 197 da Lei de Execuções Penais, deve ter sua compreensão dilargada, de maneira a abranger também a hipótese de suspensão condicional do processo, admitida a não revogação parcial da norma inserta no Código de Processo Penal. 3. Desse modo, cabe a aplicação analógica do inciso XI do artigo 581 do Código de Processo Penal aos casos de suspensão condicional do processo, viabilizada, aliás, pela subsidiariedade que o artigo 92 da Lei n. 9.099/95 lhe atribui. 4. A recorribilidade das decisões é essencial ao Estado de Direito, que não exclui a proteção da sociedade, ela mesma. 5. Recurso conhecido.” (STJ REsp n. 263.544 (2000/0059806-2), 6ª T., rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 12.03.2002, DJ, de 19.12.2002). 184 137 como, por exemplo, no caso de o juiz fixar ex officio o benefício, procedendo ao acordo contra a vontade de uma das partes, ou de serem impostas condições claramente atentatórias à dignidade humana, poderá ser impetrado mandado de segurança pelo órgão ministerial ou habeas corpus (condições abusivas), dependendo da hipótese.186 Malgrado o entendimento do doutrinador, pensamos que o recurso cabível é o de apelação, por ser o único previsto no ordenamento especial para eventual inconformismo contra decisões e sentenças proferidas no âmbito dos juizados especiais criminais. Tendo sido o inciso XI do artigo 581 do Código de Processo Penal de há muito revogado implicitamente pela Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984, descabe falar-se em sua aplicação. Até porque, como explanou Fernando Capez, a suspensão condicional da pena é avaliada pela parte em sede de sentença, quando o recurso cabível é a apelação, nas hipóteses alvitradas pelo artigo 593 do diploma processual penal.187 Uma vez ajustadas as condições em audiência especialmente designada para esse fim, o juiz determina a lavratura do termo de suspensão, documentando e orientando o acusado sobre as condições a cumprir durante o período de provas e sobre as causas que podem provocar a revogação do benefício. No caso de divergência de vontades entre o réu e seu advogado, prevalece a vontade daquele. É a 15ª conclusão da Comissão Nacional de Interpretação da Lei n. 9.099/95 da Escola Nacional da Magistratura, de outubro de 1995, na cidade de Brasília. A fiscalização consistirá na observância das condições impostas e ficará a cargo do juiz processante, salvo se outro for o domicílio do réu. Se residir em outro domicílio, o juiz processante remeterá precatória para que lá sejam cumpridas as condições acordadas. Concluído o cumprimento das condições, compete ao juízo deprecado devolver a precatória, para que o juízo processante extinga a punibilidade do réu. 186 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 557. O Enunciado n. 48 do FONAJE prevê: “O recurso em sentido estrito é incabível em sede de Juizados Especiais Criminais.” 187 138 5.3.5 Condições legais e judiciais da doação de sangue Legais são as condições expressamente previstas no artigo 89, parágrafo 1º: reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; proibição de frequentar determinados lugares; proibição de ausentar-se da comarca onde reside sem autorização do juiz e comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades. Judiciais são as condições que o juiz impõe por julgar adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado (art. 89, § 2°). As prestações sociais alternativas constantes do diploma penal, no artigo 45, parágrafo 2º, e objeto deste estudo, inserem-se nessa modalidade. O órgão ministerial que simpatizar com a ideia ora lançada ofertará as propostas de suspensão condicional do processo e, em uma delas, incluirá a doação de sangue como condição judicial a ser cumprida durante o período de prova. No ponto, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Filho e Antonio Scarance Fernandes defendem que a parte final do parágrafo 2º, do artigo 89, ao prescrever que as condições judiciais sejam “adequadas ao fato e à situação do acusado”, significa a aplicação do princípio da adequação, “que deita suas raízes na proporcionalidade. O princípio da adequação, aliás, está para a suspensão como o princípio da individualização está para a pena”, dizem os autores. E acrescentam que “o que o legislador quer, em suma, é que haja proporcionalidade entre o fato e o seu autor, de um lado, e as condições da suspensão, de outro”.188 São apresentados a seguir exemplos de sugestões de propostas oferecidas pelos representantes do Ministério Público que oficiam na 1ª Vara Criminal de Sorocaba: 1º Exemplo: Proposta 1: não mudar de residência, nem ausentar-se de seu domicílio por mais de oito dias sem a prévia comunicação ao juízo; não frequentar bares, lupanares, boates e estabelecimentos congêneres; comparecer em juízo sempre que intimado; comparecer 188 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 347. 139 bimestralmente em juízo a fim de justificar suas atividades e doar sangue por quatro vezes (duas por ano), até o término do período de prova. Proposta 2: não mudar de residência, nem ausentar-se de seu domicílio por mais de oito dias sem a prévia comunicação ao juízo; não frequentar bares, lupanares, boates e estabelecimentos congêneres; comparecer em juízo sempre que intimado; comparecimento mensal a juízo para informar e justificar suas atividades; e entrega de dez cestas básicas a entidade beneficente indicada pelo juízo. 2º Exemplo: nos crimes de embriaguez ao volante em que o réu comprovadamente não é alcoólatra, são ofertadas até três propostas: Proposta 1: não mudar de residência, nem ausentar-se de seu domicílio por mais de oito dias sem a prévia comunicação ao juízo; não frequentar bares, lupanares, boates e estabelecimentos congêneres; comparecer em juízo sempre que intimado; prestação de serviços à comunidade pelo prazo de dez meses; suspensão da habilitação para dirigir pelo prazo de seis meses; e frequência a curso de reciclagem ministrado pelos órgãos de trânsito. Proposta 2: não mudar de residência, nem ausentar-se de seu domicílio por mais de oito dias sem a prévia comunicação ao juízo; não frequentar bares, lupanares, boates e estabelecimentos congêneres; comparecer em juízo sempre que intimado; entregar dez cestas básicas à entidade beneficente indicada pelo juízo; suspensão da habilitação para dirigir pelo prazo de seis meses; frequência a curso de reciclagem ministrado pelos órgãos de trânsito. Proposta 3: não mudar de residência, nem ausentar-se de seu domicílio por mais de oito dias sem a prévia comunicação ao juízo; não frequentar bares, lupanares, boates e estabelecimentos congêneres; comparecer em juízo sempre que intimado; comparecimento bimestral a juízo para informar e justificar suas atividades; doar sangue por quatro vezes (duas vezes no primeiro ano e duas vezes no segundo ano); frequência a curso de reciclagem ministrado pelos órgãos de trânsito. 140 5.3.6 Período de prova e extinção da punibilidade Tal qual a suspensão condicional da pena, como já abordado, o período é de dois a quatro anos. O quantum do lapso temporal pode levar em conta o crime, a personalidade do acusado, bem como a cominação abstrata da pena, e até as peculiaridades da comarca. Compete ao juiz do local da residência do réu promover a fiscalização do cumprimento das condições impostas e aceitas. Se o acusado ultrapassou o período de prova sem revogação, será extinta a punibilidade. Essa é mais uma modalidade entre as causas de extinção da punibilidade catalogadas no artigo 107 do Código Penal. 5.3.7 Causas de revogação A Lei n. 9.099/95 traz quatro causas de revogação do benefício, sendo duas de natureza obrigatória e duas facultativas. Em caso de revogação da suspensão, a consequência é que o processo fluirá até final julgamento. 5.3.7.1 Obrigatórias (art. 89, § 3º) Se, no período de prova, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano, a revogação é obrigatória. Se vier a ser processado por contravenção, é causa facultativa. Esgotando-se o período de prova, ainda que exista inquérito policial pela prática de crime, não há óbice à extinção da punibilidade. Na rotina do procedimento, quando o prazo estiver se expirando ou expirado, o Ministério Público será consultado sobre a extinção da punibilidade. Solicitará a vinda aos autos da folha de antecedentes do beneficiário, para aferir sua situação pessoal. Constando dado desabonador, ou seja, que esteja sendo processado pela prática de crime ocorrido antes ou durante o período de provas, pedirá a revogação do benefício. A revogação constitui decisão interlocutória com força de definitividade e, como tal, desafia o recurso de apelação. Caso a notícia desabonadora venha depois de expirado o prazo do período de prova, revoga-se o benefício? A nosso ver, deve ser feita uma distinção fundamental. Se o fato desabonador for anterior ao noticiado no processo em curso, caso o réu tenha cumprido todas 141 as condições impostas, mostra-se um contrassenso puni-lo pela incompetência do Poder Judiciário e do órgão fiscalizador em checar seu passado quando da concessão do benefício. Contudo, se concedido o benefício, e durante o período de prova o réu vier a responder por outro processo, será caso de revogação. A incúria da Justiça não pode redundar em nova punição – responder a processo penal – ao réu que cumpriu todas as suas obrigações convencionadas. É certo que há decisões contrárias, inclusive nos Tribunais Superiores. Porém, o juiz deve ponderar que o réu compareceu vinte e quatro vezes ao fórum, além de ter se submetido, eventualmente, a outras condições, e bastaria a juntada da folha de antecedentes antes do término do prazo para se cassar a benesse. Fazê-lo quando expirado o biênio é ultrajar e apequenar a própria Justiça. Por certo, se a sentença extintiva foi prolatada, e posteriormente descobre-se motivo para a revogação, nada mais poderá ser feito, porque a decisão transitou em julgado e inexiste entre nós a revisão pro societate. Também é causa de revogação obrigatória a não reparação do dano. Se o réu, sem motivo justo, descumpri-la, o juiz deverá revogar o benefício legal. Atente-se que se houve a homologação do acordo em valor inferior ao débito estimado pela vítima, nada obsta que esta, com ou sem cumprimento, promova ação civil para ressarcimento do restante. 5.3.7.2 Facultativas (art. 89, § 4º) Caso o acusado venha a ser processado, no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta, é faculdade judicial a revogação da benesse. É aqui que pode ser analisado o descumprimento da doação de sangue como condição judicial imposta na audiência de suspensão condicional do processo. Ficará a critério do magistrado a revogação. De todo modo, como se trata de uma condição judicial, nada impede que o magistrado a substitua por outra que seja adequada ao fato e às condições pessoais do acusado. Além das situações previstas no ordenamento, a doutrina menciona outras ocorrentes no curso da suspensão e que podem redundar na revogação obrigatória do benefício. São elas: 142 a) Aditamento da denúncia pelo Ministério Público. Se novas provas surgirem e obrigarem o órgão ministerial a aditar a denúncia, agravando a situação do acusado para crime que inadmite a suspensão (exemplo: de furto simples para roubo), no caso de recebimento do aditamento, o juiz deve determinar o cancelamento da benesse. b) E se o réu for preso? O artigo 89, parágrafo 3º, é taxativo ao fixar como causa obrigatória de revogação do sursis processual o fato do sujeito vir a ser processado por outro crime. Assim, se da prisão sobrevier denúncia e ela for recebida, sobrevém causa obrigatória de revogação. c) E os crimes ambientais? A extinção da punibilidade não é automática. O juiz só poderá declará-la depois de comprovada a reparação do dano ambiental, salvo se impossível sua realização (art. 28 da Lei n. 9.605/98). A revogação da suspensão do processo conduz à instrução da causa. 5.3.8 Prescrição (art. 89, § 6º) Conforme previsão do dispositivo, durante o período de prova não fluirá o prazo prescricional, restando obstaculizada a extinção de punibilidade. 5.4 Condições para concessão dos institutos despenalizadores A Lei n. 9.099/95, em seu artigo 76, parágrafo 2º, disciplina que não se admite a transação penal, se ficar comprovado: I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, a pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de 05 (cinco) anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo; III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida. O mesmo diploma legal expressamente detalha, no artigo 89, caput, que a suspensão condicional do processo somente poderá ser oferecida ao acusado que não estiver sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do CP). Em outras palavras, além de 143 não estar respondendo a nenhum processo, deve ser primário, portador de bons antecedentes, a conduta social e sua personalidade, bem como os motivos e as circunstâncias autorizarem a concessão do benefício. Se essas mesmas condições subjetivas forem reconhecidas em sede de sentença, será possível ao condenado, na hipótese preconizada pelo artigo 45, parágrafo 2º, caso não possua condição financeira para arcar com o pagamento da prestação pecuniária, aceitar proposta defensiva ou ministerial de substituição por doação de sangue. 5.5 Triagem inicial No caso de o autor do fato, na audiência preliminar, em transação penal, ou o réu, na audiência de suspensão, aceitarem a proposta que contenha a doação de sangue, a título de cautela, para resguardo do futuro receptor, é feita uma triagem prévia, com algumas perguntas sobre sua condição de saúde, bem como se reúne elementos razoáveis de percepção para a futura ação beneficente. Questionário prévio: Questionário para seleção de doadores de sangue SIM NÃO Você ingere bebida alcoólica todos os dias? Você já teve doença que transmite por sexo (doença venérea)? Você tem doença de Chagas? Você tem/teve malária ou sífilis? Você tem AIDS ou hepatite? Você já usou drogas ilícitas (de fumar, cheirar ou injetar)? Você já esteve preso? Você tem ou teve convulsão (epilepsia)? Fez tatuagem nos últimos 12 meses? Nesse quadro estão alguns impedimentos temporários e outros definitivos para a doação de sangue. De se observar que as questões foram formuladas em conjunto com o Dr. Frederico Brandão, um dos médicos responsáveis pela Associação Beneficente de Coleta de 144 Sangue (Colsan) na cidade de Sorocaba. A Colsan é uma entidade civil paulista, sem fins lucrativos, que atua na área de hemoterapia, promovendo a captação de doadores, coleta, análise e processamento do sangue e, posteriormente a distribuição dos hemocomponentes, bem como os procedimentos pré-transfusionais, e é ligada à Unifesp. Se porventura a resposta for negativa para os quesitos formulados, o cidadão estará teoricamente habilitado a realizar a doação de sangue. Receberá, então, o endereço do órgão autorizado a realizar a coleta. Na cidade de Sorocaba, são dois, a Colsan e a Santa Casa de Misericórdia, locais em que será submetido a triagem clínica mais aprofundada, realizada por profissional habilitado, tal qual já explicitado.189 Caso o cidadão, comparecendo ao banco de sangue, seja considerado inabilitado para fazer a doação, deverá retornar ao cartório da vara e, juntamente com seu advogado, peticionar ao juízo, formulando opção por outra proposta. Pode, do mesmo modo, requerer a realização de uma nova audiência. Ao fazer a doação de sangue, receberá um comprovante, a ser levado à serventia, evidenciando o cumprimento da pena ou condição. Em se tratando de infração de menor potencial ofensivo, o cumprimento das sanções acarretará a extinção de sua pena. Já o cumprimento de todas as condições, na suspensão condicional do processo, acarreta a extinção da punibilidade. 5.6 Juízo das execuções penais Considerando que o fundamento maior para a doação de sangue reside no bem-estar físico e mental do doador, bem como em seu passado casto na seara criminal, para que remanesça resguardada a saúde do futuro receptor, sempre ponderamos que seu cabimento se restringiria às hipóteses estatuídas na Lei n. 9.099/95, como exposto neste capítulo. 189 Ver item 2.5. 145 Todavia, esse leque naturalmente tende a ser ampliado, na medida que a implantação for se efetivando. Os operadores do direito, isto é, os responsáveis pela regulamentação da prestação social alternativa, fatalmente encontrarão novas situações, igualmente legais, para aplicação da doação de sangue. Foi o que ocorreu conosco, após a iniciativa completar um ano na cidade de Sorocaba. Em conversa com outros colegas, surgiu a ideia de se implementar na fase de execução da pena, bastando que todos os requisitos sejam observados. Assim, pode alcançar os condenados por crimes considerados leves e médios, em que a pena imposta tenha sido substituída por pena restritiva de direitos, nos termos do artigo 44 do Código Penal, consistente no pagamento de pena pecuniária à vítima ou a entidade beneficente. A prestação pecuniária, consoante artigos 43, inciso I, e 45, parágrafo 1º, do Código Penal, consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada, com destinação social, de importância fixada pelo juiz. O juiz, ao fixar na sentença o quantum para o pagamento da prestação pecuniária, pauta-se pelo prejuízo sofrido pela vítima em face do ato ilícito cometido, em razão de seu caráter eminentemente reparatório ou indenizatório, como se extrai de voto do Ministro José Arnaldo da Fonseca190. No entanto, para chegar a esse montante, o juiz conta somente com os dados disponíveis no processo, uma vez que não existe previsão específica de procedimento para calcular-se o prejuízo resultante da prática do crime. O artigo 44, parágrafo 2º, do Código Penal estatui: Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos. Quando o julgador, levando em conta a pena imposta, optar pela substituição por uma ou duas penas restritivas de direitos, e escolher a modalidade de prestação pecuniária, é que estamos diante da situação posta. Ao ser executada essa sanção, se o condenado não reunir condições financeiras para honrar o valor determinado, visando ao seu não recolhimento ao cárcere, nada impede que o defensor requeira a substituição, exatamente, nos termos do artigo 45, parágrafo 2º, acima 190 STJ HC n. 17.582/MS, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU, de 04.02.2002. 146 estudado. Ou seja, o condenado roga pela substituição da pena substitutiva por uma que se lhe pareça proporcional com o crime praticado e com sua situação pessoal. Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes tecem considerações sobre a função jurisdicional, ao lado da função administrativa, afetas ao juiz das execuções penais. Para bem explicitar o exercício jurisdicional, lembram que: Realmente, não há como negar que o juiz da execução é chamado frequentemente a exercer, em sua plenitude e pureza, a função jurisdicional. A sentença condenatória penal contém implícita a cláusula rebus sic stantibus, como sentença determinativa que é: o juiz fica, assim, autorizado, pela natureza mesma da sentença, a agir por equidade, operando a modificação objetiva da sentença sempre que haja mutação nas circunstâncias fáticas. [...]. É assim que se explica, processualmente, o fenômeno das modificações da sentença condenatória penal trânsita em julgado, daí derivando a extensa gama de atividades jurisdicionais no processo de execução penal, em cujo curso as modificações operam.191 É exatamente em tais situações de controvérsia que esse magistrado será instado a decidir sobre a substituição de uma pena restritiva por outra. Para sanar eventual dúvida sobre a possibilidade da substituição, imperativa a lembrança de acórdão da lavra do desembargador Antonio Carlos Mathias Coltro, quando atuava como juiz do antigo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Na ocasião, foi instado a julgar agravo em execução em que a Promotoria de Justiça se revelava inconformada com a decisão judicial que autorizara a substituição da prestação pecuniária por cestas básicas. Valendo-nos dos principais aspectos do voto que sensibilizaram os doutrinadores da família Delmanto, faremos essa transcrição, extraindo o mesmo teor: O entendimento dirigido à impossibilidade de ser estipulada a pena restritiva segundo critério determinante da entrega de cestas básicas a quem a lei determina não é absoluto, encontrando na jurisprudência precedentes em sentido diverso [...] em especial quando tanto se debate a respeito do princípio da intervenção mínima e inclusive o da despenalização [...]. Entende-se a preocupação do recorrente em ver cumprida a lei nos estritos 191 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance, As nulidades no processo penal, cit., p. 370. 147 termos nos quais editada, o que, todavia, não pode superar a realidade dos fatos [...] Se a lei está morta, o mesmo não ocorre com o juiz, como assinalado por Anatole France, cabendo interpretá-la da forma que melhor atenda aos anseios do bem comum e, em especial, daquele a quem ela se dirige no caso concreto (TACrSP, AgEx 1.270.877/0, rel. Juiz A. C. Mathias Coltro, j. 7.11.2001, m.v. – in Bol. IBCCr 119/652).192 Neste ponto, lembramos nossa adesão à posição defendida por Damásio Evangelista de Jesus, para quem as prestações sociais alternativas que consistirem em prestação de outra natureza ou inominadas estão albergadas nas Regras de Tóquio.193 Dessume-se do lançado que a competência para aplicação da prestação de outra natureza ou inominada é do juízo das execuções penais. Compete-lhe, pois, transformar a prestação pecuniária em prestação de outra natureza, caso ela não seja paga, por absoluta impossibilidade financeira. Nessa linha, adverte Guilherme de Souza Nucci sobre a cautela judicial, na espécie, nos seguintes termos: [...] se o magistrado da condenação perceber que o réu não tem condições de arcar com esse tipo de pena, por ser pobre, deve optar por outra, dentre as previstas no Código Penal, pois não terá como fixar prestação de “outra natureza” sem ouvir, antes, o beneficiário. Ouvindo, estará transformando, indevidamente, sua sentença numa autêntica transação.194 Em que pese a advertência do autor, não raro vemos julgados contrastando a previsão legal, justamente pelo entendimento de que a prestação pecuniária pode, já na sentença, sofrer a substituição, numa espécie de aplicação do princípio da economia processual às avessas195. Os magistrados de primeiro grau substituem a pena privativa de liberdade pela prestação pecuniária e, de plano, impõem o número de cestas básicas que entendem compatível com a situação econômica do réu. E, como visto, os tribunais as mantêm, senão aplicam por conta própria, afrontando a finalidade para qual foi criada a pena restritiva em apreço. 192 DELMANTO, Celso et al., Código Penal comentado, cit., p. 167. Ver item 3.4.1. 194 NUCCI, Guilherme de Souza, Código Penal comentado, cit., p. 244. 195 Por exemplo: “Porte ilegal de arma de fogo. Revólver calibre 32. Réu confesso. Testemunhas confirmando. Perícia atestando eficácia da arma, apreendida municiada, num bar. [...]. Apelo provido para substituir a reclusiva por dez dias-multa e prestação pecuniária de duas cestas básicas.” (TJSP ACR n. 1100027350000000/SP, 2ª Câmara de Direito Criminal, rel. Ivan Marques, j. 01.12.2008, p. 19.12.2008). No mesmo sentido: TJSP ACR n. 1092492350000000/SP, 2ª Câmara de Direito Criminal, rel. Almeida Sampaio, DJ, de 30.01.2009. 193 148 Os tribunais entendem como ilegal a interpretação dos juízes de execuções penais que substituem a pena restritiva de prestação de serviços à comunidade por prestação de outra natureza. As reformas de tais sentenças são rotineiras, diante da ausência de previsão legal para tanto.196 Conquanto juízes de primeiro grau e desembargadores, a nosso aviso, atropelem o normatizado e interpretem que a cesta básica – espécie de pena restritiva de direitos, na modalidade de prestação de outra natureza – pode ser imposta em sede de sentença ou de acórdão, no bojo da prestação pecuniária, como se moeda corrente fosse, essa substituição é de competência exclusiva do juízo das execuções. Equivale dizer, na fase de execução da pena, sim, mostra-se adequada a substituição da prestação pecuniária pela entrega de cestas básicas. Quando da fase executiva da pena, vemos total pertinência na substituição da prestação pecuniária por doação de sangue. Inovando dentro da ideia proposta, será objeto de apreciação, no item 6.1, a Portaria n. 1/2011, baixada pelo Juiz da 1ª Vara Criminal e das Execuções Criminais de Assis, em São Paulo, Adugar Quirino do Nascimento Junior. Na normatização, o magistrado traz uma espécie de remição para os condenados que receberam pena substitutiva, na modalidade de prestação de serviços à comunidade e que não foram recolhidos ao cárcere. Para cada doação, o sentenciado abaterá dezesseis horas do montante a cumprir. Obviamente, a adesão é voluntária e somente fará a doação o condenado que se sentir habilitado a tanto. 196 “Execução Penal. Recurso especial. Art. 148 da LEP e art. 45, § 2º, do CP. Substituição da pena de prestação de serviços à comunidade por pagamento de cesta básica. Impossibilidade. Aplicada a pena restritiva de direito, consistente na prestação de serviços à comunidade, após o trânsito em julgado da condenação, só é permitido ao Juiz da Execução, a teor do disposto no art. 148 da LEP, alterar a forma de cumprimento, ajustando-as às condições pessoais do condenado e às características do estabelecimento, vedada a substituição da pena aplicada (Precedente desta Corte). Recurso provido.” (STJ REsp n. 884.323/RS (2006/0166285-4), 5ª T., rel. Min. Felix Fischer, j. 19.04.2007, DJ, de 13.08.2007). No mesmo sentido: “Penal. Processual. Apelação criminal. Apropriação indébita previdenciária. Materialidade e autoria comprovadas. Desnecessidade da comprovação do dolo específico. Dificuldades financeiras e inexigibilidade de conduta diversa não comprovadas. Condenação mantida. Pena substitutiva: prestação de serviços à comunidade: pedido de substituição por pagamento de cestas básicas: argumento: conveniência do condenado: impossibilidade. [...]. As dificuldades financeiras, para caracterizar a inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão de punibilidade, devem ser de ordem a colocar em risco a existência da empresa, contemporânea aos fatos e devidamente comprovada [...] O juiz das execuções penais pode especificar a prestação de serviços à comunidade de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho do apenado, desde que mantenha a razão de uma hora por dia da pena substituída. Apelação a que se nega provimento.” (TRF-3ª Região 2005.61.15.000092-2/SP, 2ª T., rel. Des. Fed. Henrique Herkenhoff, DJ, de 13.07.2010). 149 Este não é o momento adequado para avaliar a legalidade da medida proposta pelo magistrado de Assis, contudo, pelo que se tem notícia, a Corregedoria Geral de Justiça não se opôs à sua decisão. Ademais, na cidade de Limeira, por iniciativa do magistrado Luiz Antonio Barrichello Neto, propaga-se esta mesma medida, conforme projeto instituído em 22 de junho de 2012 e anexado ao final. 150 151 6 RESULTADOS: A EXPERIÊNCIA PRÁTICA A implantação da proposta de trabalho teve início no mês de setembro de 2010. Como esperado, a novidade exige adaptação dos sujeitos processuais197, secundários198 e terceiros199. Nos juizados especiais criminais, a figura do conciliador é de crucial importância para o melhor desenvolvimento da atividade jurisdicional e para auxiliar no desafogo do elevado número de processos nas unidades judiciárias. O artigo 60 da Lei n. 9.099/95 preceitua que “o Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo”. Os juízes leigos são auxiliares do juiz togado e podem participar exclusivamente da fase conciliatória. É exigível que sejam pessoas dotadas de conhecimentos técnico-jurídicos para que, tomando conhecimento dos fatos que deram causa ao litígio, busquem o consenso entre as partes. É vedado ao conciliador praticar qualquer ato decisório, reserva restrita ao juiz togado. Consoante prevê o artigo 73, parágrafo único: “Os conciliadores são auxiliares da Justiça, recrutados, na forma da lei local, preferentemente entre bacharéis em Direito, excluídos os que exerçam funções na administração da Justiça Criminal.” Não se olvide que quando a Lei n. 9.099 entrou em vigor, no final do ano de 1995, e nos primeiros anos seguintes, não se instalaram varas especializadas em infrações de menor potencial ofensivo, ficando, por conseguinte, às varas criminais sua aplicabilidade. Aos poucos foram se instalando. Ainda hoje não são muitas as varas especializadas, 197 No trato dos sujeitos processuais, José Frederico Marques leciona que o juiz “é a figura central do processo, representa e encarna o Estado, na relação processual, como órgão jurisdicional a quem incumbe aplicar os preceitos da ordem jurídica para compor a lide”. Para ele: “Partes, por outro lado, são aqueles que pedem ou contra quem se pede a prestação jurisdicional do Estado qua juiz. De modo geral, partes são o sujeito ativo e o sujeito passivo, respectivamente, da pretensão e da lide.” (Tratado de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1980. v. 2, p. 168-169). 198 Sujeitos secundários ou acessórios ou colaterais são os que têm direitos perante o processo. São facultativos, pois podem existir ou não, uma vez que não afetam a relação processual, caso não existam. Ex.: o ofendido como assistente da acusação e o fiador do réu. 199 Terceiros são aqueles que não têm direitos processuais, mas intervêm e cooperam para o desenvolvimento da relação jurídico-processual, sem se converterem em sujeitos ou partes (MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal, cit., p. 172). Os terceiros podem ser interessados, como o Ministro da Justiça que requisita a ação penal nos crimes de ação pública condicionada à sua requisição, e não interessados, como as testemunhas, peritos, intérpretes, tradutores e auxiliares da justiça. 152 remanescendo, por ora, a competência cumulativa das varas criminais para aplicação dos institutos de composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo. As varas e os juizados especiais criminais conciliam, julgam e executam as infrações penais de menor potencial ofensivo. Os juizados federais criminais, igualmente, processam, julgam e executam as mesmas causas, se de sua competência. Em qualquer caso, as varas e os juizados devem respeitar as regras de conexão – quando as infrações possuem vínculo entre si – e continência quando um fato criminoso contém outros. Significa que na determinação da competência nos casos de conexão ou continência, aplica-se a regra geral estatuída nos artigos 76, 77 e 78, I, do Código de Processo Penal. Em outras palavras, havendo conexão ou continência entre crime de competência da Justiça comum ou de competência do júri com infração de menor potencial ofensivo, prevalecem aquelas. Por exemplo: em conexão entre crimes de roubo e porte de drogas ou homicídio doloso e ameaça, ambos serão processados e julgados perante a Justiça comum e vara do júri, respectivamente. De qualquer modo, o juízo competente aplicará os institutos da transação penal e da composição dos danos civis, se cabíveis, à infração de menor potencial ofensivo. No atinente à Justiça Federal, as regras são idênticas quanto à reunião de processos perante o juízo comum ou o tribunal do júri federal, decorrentes da aplicação das regras de unificação dos processos.200 Em suma, quando todos os atores envolvidos tiveram ciência das inovações, a implantação teve origem. No início, o ceticismo tomou conta dos operadores, em especial dos juízes, porquanto dentro do desenvolvimento do programa estabelecido se mostrava essencial a movimentação do magistrado, no sentido de convencer os promotores de justiça na seara estadual, ou os procuradores da república na esfera federal, a passarem a oferecer mais de uma proposta de acordo, eis que somente com duas ou três respeita-se a privacidade e a voluntariedade do cidadão. 200 A Lei n. 11.313, de 28 de junho de 2006, deu nova redação ao artigo 60, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95 e parágrafo único do artigo 2º da Lei n. 10.259, que versa sobre a criação dos Juizados Especiais Federais, nos seguintes termos: na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis. 153 A grande maioria dos juízes preferiu aguardar algum resultado palpável do projeto lançado. No entanto, alguns operadores, ao lerem o teor do artigo publicado sobre a matéria, se afinaram com os propósitos ali contemplados e convenceram magistrados e membros do Ministério Público a darem início. Assim aconteceu em Campinas, na 3ª Vara Criminal de Sorocaba e na Vara Criminal Federal de Sorocaba. O artigo doutrinário foi publicado em sítios jurídicos eletrônicos e revistas especializadas do Ministério Público e Magistraturas estadual e federal, pelo Brasil. 201 Vários simpatizantes optaram somente pelo aplauso, mantendo inalteradas as medidas tradicionais. Outros pediram o material utilizado e o adotaram; assim foi o caso de Taubaté e, mais tarde, de São Paulo, no Juizado Especial Criminal do Ipiranga. Alguns promotores, sponte sua, acertaram com os juízes com quem atuam e desfraldaram a nova pena alternativa. É o caso de Itapecerica da Serra e São José do Rio Preto. 6.1 Primeiro aniversário Em setembro de 2011, a doação de sangue como pena restritiva de direitos completou um ano. No levantamento do número de doações contratado entre os autores de fatos e réus, chegou-se a 415. A matéria foi divulgada pelos meios de comunicação local e estadual. Segue a abordagem feita pelo jornal Diário de Sorocaba, no dia 29.09.2011. 201 Alguns sítios jurídicos eletrônicos: <www.saraivajur.com.br>; <www.epm.tjsp.jus.br>; <www.novacriminologia.com.br>; <www.lfg.com.br>; <www.jus.com.br>; <www.jusbrasil.com.br>; <www.ejef.tjmg.jus.br>. Algumas revistas e cadernos jurídicos impressos: Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura, n. 33, maio/ago. 2011; Revista da Escola do Ministério Público do Estado de Goiás, n. 21, jan./jun. 2011; Revista da Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região, v. 15, ago. 2011. 154 Doação de sangue como pena alternativa completa um ano O Poder Judiciário pode ajudar a saúde pública. Com essa premissa, o juiz titular da Primeira Vara Criminal de Sorocaba, Jayme Walmer de Freitas, estudou e passou a adotar como pena alternativa, de prestação de serviços à comunidade, a doação de sangues para pessoas que tenham cometido contravenções ou crimes de menor e médio potencial ofensivo. Em um ano, foram 415 doações de quase 200 condenados a penas leves. A alternativa é oferecida a pessoas que cometeram contravenções penais como jogos de azar (caça-níqueis) ou crimes de menor potencial ofensivo como lesão corporal leve, ameaça, desacato, constrangimento ilegal, lesão corporal de trânsito, dirigir sem CNH, etc. Sabendo que o promotor é legitimado para propor negociação e que é necessário haver mais de uma proposta de prestação de serviços à comunidade, Jayme Walmer de Freitas percebeu que a escolha se tornava voluntária. Com isso, a doação de sangue, que precisa ser de livre e espontânea vontade, apresentou-se como uma forma de prestar um serviço e também de incentivar a solidariedade. Desse período, ele guarda a história de um rapaz de 19 anos que, durante o julgamento, estava cabisbaixo, indeciso sobre a decisão que ia tomar para pagar pelo seu erro. Após a fala do juiz, o jovem perguntou: “Se eu doar sangue, posso salvar uma vida, doutor?”. Jayme respondeu que até três pessoas poderiam ser salvas com uma doação. “A pessoa sente que pode ser útil à sociedade e pode adquirir valores éticos que não tinha”, disse o juiz. Quem for “condenado” a doar sangue, terá de fazê-lo de duas a seis vezes. Entre os que praticaram crimes de menor potencial ofensivo, 70% das doações foram de pessoas contraventores penais, 20% de pessoas que responderam ao Código Penal, 9% de infratores de trânsito e 1% que cometeram crimes ambientais. Para potencial ofensivo médio, 55% desrespeitaram o Código de Trânsito Brasileiro, 44% o Código Penal e 1% era de criminosos ambientais. O juiz fez questão de frisar a defesa do receptor desse sangue. “A pena só pode ser aplicada a quem não teve mácula anterior, ou seja, tem um passado limpo e não foi preso ou tem registro criminal”, explica. E a pena nunca é imposta, mas proposta. “A pessoa pode ter medo de agulha, de sangue, ter alguma doença impeditiva, ter feito uma tatuagem ou, até mesmo, pertencer a alguma religião que não permita a doação. Mas os resultados têm sido gratificantes”, conta. O quadro demonstrativo das estatísticas reportadas leva em conta as infrações de menor potencial ofensivo, divididas em contravenções penais e crimes, estes do Código Penal e de leis especiais. Dentre as de médio potencial ofensivo, ficam restritas ao Código Penal e leis especiais: 155 LEI N. 9.099/95 INSTITUTO INFRAÇÃO E PERCENTUAL Nº DE DESPENALIZA DOAÇÕES DOR DE SANGUE MENOR TRANSAÇÃO a) Contravenção penal – 70% POTENCIAL PENAL (ART. 76) b) Crimes previstos no Código Penal Nº DE PESSOAS 177 103 238 53 415 156 – 20% OFENSIVO c) Crimes de trânsito – 9% d) Outros – 1% MÉDIO SUSPENSÃO a) Crimes previstos no Código Penal POTENCIAL CONDICIONAL – 44% OFENSIVO DO b) Crimes de trânsito – 55% PROCESSO (ART. 89) c) Outros – 1% TOTAL Essa matéria foi divulgada entre os juízes paulistas, o que levou alguns a adotá-las. Foi o caso de Tupã, Tatuí, Limeira, Ribeirão Pires, Votorantim e Salto de Pirapora. Por último, a cidade de Bebedouro. Em aula ministrada a juízes vitaliciandos, no dia 20 de outubro de 2011, na Escola Paulista da Magistratura, tecemos considerações sobre a lei das prisões e sobre a doação de sangue. Ela foi retransmitida para outros Estados, dentre eles Tocantins e Acre. Alguns juízes desses Estados solicitaram o material por nós usado e o repassaram para os demais colegas da esfera criminal. A Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, por meio do Ofício n. 3301/FVSG/DICOGE 2.1, de 24 de outubro de 2011, solicitou-nos o material empregado nas audiências consensuais, “a fim de melhor conhecer a doação de sangue como pena alternativa, bem como avaliar a ação como boa prática a ser adotada por outros juízos, inclusive com cópias de decisões respectivas, eventuais relatórios e outros dados que puderem contribuir para eventual futura recomendação da prática”. Como dito alhures, na cidade de Assis, consoante notícia divulgada em 22 de dezembro de 2011, o juiz corregedor dos presídios, Adugar Quirino do Nascimento Souza Junior, por meio da Portaria n. 1/2011, criou o “Programa de Doação de Sangue por 156 Reeducandos da Vara de Execuções Criminais de Assis/SP”. A medida atinge os condenados que não tenham sido encarcerados e que receberam pena substitutiva, na modalidade de prestação de serviço à comunidade, que voluntariamente doarem sangue ao Banco de Sangue de Assis, nos termos da Portaria; os que comprovarem a doação à Central de Penas e Medidas Alternativas de Assis terão o abatimento da pena de prestação de serviços à comunidade na proporção de 16 horas de por doação de sangue feita.202 6.2 Outros Estados. Outras iniciativas Tão logo nos debruçamos sobre o estudo do tema, em 2010, constatamos que nos Estados do Rio de Janeiro e Paraná houve iniciativas semelhantes. No Estado do Rio de Janeiro, coube à então juíza titular da Vara do Juizado Criminal de Nova Iguaçu, Rosana Navega Chagas, a iniciativa que, em poucos meses, sucumbiu em face de liminar em mandado de segurança obtida no Tribunal de Justiça por representantes do Ministério Público que discordaram da fórmula adotada, qual seja, a imposição da medida. A doação de sangue em Nova Iguaçu durou poucos meses.203 Em Curitiba, os juizados especiais criminais, sob a batuta do então juiz, hoje desembargador, José Laurindo de Souza Netto, firmaram convênio, no ano de 2002, com o Centro de Hematologia do Paraná, estabelecendo a doação de sangue como alternativa ao cumprimento de sentença por pequenos atos infracionais. Conquanto o idealizador tenha recebido prêmios por sua iniciativa, pouco tempo durou o trabalho. O motivo da descontinuidade nos é desconhecido, malgrado todos os esforços pessoais deste subscritor para deslindá-lo. Em Vitória, o juiz da Vara Privativa de Execução de Penas e Medidas Alternativas (VEPEMA), Carlos Eduardo Ribeiro Lemos, baixou, em 4 de março de 2011, a Portaria n. 1/2011, instituindo a doação de sangue como pena restritiva de direitos, determinando que o 202 REEDUCANDOS que prestam serviços à comunidade podem doar sangue no HR e ter desconto de 16 horas nas suas penas. Disponível em: <http://www.assiscity.com/?id=81-11515>. Acesso em: 20 fev. 2012. 203 Para melhor conhecimento da proposta, sugerimos a leitura do artigo jurídico escrito pela juíza: CHAGAS, Rosana Navega. Doações voluntárias de sangue: uma alternativa para a pena e para a vida. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 8, n. 29, p. 168-178, jan./mar. 2005. Disponível em: <http://www.tj.rj.gov.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_penal/doacoes_voluntarias_sangue.pdf >. Acesso em: 10 mar. 2012. 157 condenado com pena de prestação de serviços à comunidade poderá requerer o benefício da substituição de horas de prestação por doação de sangue, na proporção de 7 horas da pena de prestação para cada doação feita, deixando claro que a doação de sangue será feita de forma voluntária e não o vinculará com nenhuma obrigação em continuar como doador.204 Como apontado acima, na cidade de Assis, a adoção de medida similar vem surtindo bons efeitos, contudo o abatimento é maior. Sem estabelecer parâmetros, como se infere do Anexo 2, Limeira adotou a mesma medida. 204 Os fundamentos do magistrado para edição da Portaria merecem cuidadosa atenção, haja vista o descaso da Secretaria de Saúde estadual (ver Anexo 1). 158 159 7 CONCLUSÕES 1. A doação de sangue como prestação social alternativa e espécie de pena restritiva de direitos atende aos postulados de direitos fundamentais e sociais firmados na Constituição Federal, porquanto ancorada no supraprincípio da dignidade da pessoa humana e no princípio da individualização da pena. Reverencia a pessoa do doador e contribui com a saúde pública, preservando a vida e a integridade física do receptor. No patamar infraconstitucional, por se inserir no rol das medidas de despenalização e se adequar às exigências legal e regulamentar, amolda-se à Lei n. 10.205/2001 e à Resolução de Diretoria Colegiada n. 57/2010 da Anvisa. Do mesmo modo, tem sua aplicabilidade dentro dos paradigmas das Regras de Tóquio, porquanto é uma medida alternativa à prisão. 2. A prestação social alternativa é uma das modalidades de sanção estatal prevista na Constituição Federal, na alínea “d” do inciso XVLVI do artigo 5º, figurando ao lado da pena privativa ou restritiva da liberdade, perda de bens, multa e suspensão ou interdição de direitos. O legislador ordinário não acolheu a nomenclatura no Código Penal, preferindo inseri-la no contexto das penas restritivas de direitos, sob a rubrica de prestação de outra natureza ou prestação inominada. 3. O rol de penas restritivas de direitos de 1984 era o seguinte: prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; proibição de exercício de cargo, função ou atividade pública; proibição de exercício de profissão, atividade ou ofício; suspensão de autorização ou habilitação para dirigir veículo; limitação de fim de semana; e multa. Em 1998, a Lei n. 9.714, alterou o panorama e reescreveu o artigo 43, passando a prever, além das mencionadas, as penas de prestação pecuniária, perda de bens e valores, proibição de frequentar determinados lugares e a prestação alternativa inominada. O legislador encontrou na criação da prestação de outra natureza ou inominada a fórmula para legitimar a doação de cestas básicas como pena restritiva de direitos, a qual vinha sendo adotada pelos operadores de direito sem amparo técnico-jurídico. 4. A prestação de outra natureza, conhecida como inominada, é pena substitutiva da prestação pecuniária, na hipótese em que o condenado não possui condição financeira para facear a determinação judicial, dependendo, em regra, de aceitação do beneficiário. A partir 160 de então, toda espécie de prescrição punitiva criada por operadores de direito sintonizava-se com essa previsão. É o que se viu na doação de cobertores, roupas, medicamentos, livros, resmas de papel, mão de obra em prol do beneficiário. 5. A carência dos bancos de sangue é um dilema perene, somente minorada mediante campanhas institucionais constantes realizadas pelo Ministério da Saúde pela imprensa e pelos doadores de reposição, considerando que o percentual de doador fidelizado não é expressivo. O Poder Judiciário encontra na prestação de outra natureza o trilho para cooperar com a saúde pública, encaminhando os autores de infrações de menor e médio potencial ofensivo para os bancos de sangue espalhados pelo país. 6. Considerando que existem varas criminais (leia-se também: juizados especiais criminais) em praticamente todos os cantos do Brasil, ao se adotar essa boa prática, o aumento do número de doadores, embora de primeira vez, recrudescerá enormemente e a tendência será a de reduzir a escassez de estoque verificada nos bancos de sangue. Como nosso percentual de doadores é de 1,9%, e o ideal é 3%, segundo a OMS, as previsões do Ministério da Saúde, especialmente a última, de quatro milhões de doadores, que equivalem a 2,1%, pode tornar-se viável, sem maiores dificuldades. 7. O doador obrigatoriamente será pessoa de passado imaculado, que jamais tenha tido contato com o cárcere. Se na década de 1980 a dedicação de médicos abnegados culminou com o fim da doação de sangue por sentenciados, mendigos e pessoas remuneradas, atualmente esse cuidado deve ser mantido e redobrado, não obstante a melhoria dos testes de coleta, exatamente para a preservação do futuro receptor. Além de não ter sido enclausurado anteriormente, o doador deve preencher uma série de outros quesitos, denominados impedimentos definitivos e transitórios, de molde a resguardar a saúde dele e do receptor. 8. A doação de sangue, no formato proposto, leva-nos a concluir que está predisposta em um tripé de requisitos: voluntariedade, altruísmo e não remuneração. 9. Voluntária porque afeta a um ato de vontade da pessoa. Ato que está sob o seu controle, que pode optar por fazer ou não. Não se concebe alguém ser obrigado, instado compulsoriamente, a doar sangue. A voluntariedade é inerente à doação de sangue. Como na década de 1990, os juízes determinavam, em sede de sentença, ao acusado ou condenado doar 161 sangue, prestando serviços à comunidade, ferido estava esse pressuposto. A doação de sangue deve ser fruto de opção de escolha do cidadão em uma audiência eminentemente consensual. Isto é, fica-lhe facultado assumir o encargo para não responder a um processo-crime ou não ser submetido ao cárcere. Preservam-se sua privacidade e intimidade, dogmas constitucionais de natureza individual. Fica, pois, reservado ao órgão acusador, Ministério Público ou querelante, formular mais de uma proposta ao autor do fato, quando se tratar de transação penal ou suspensão condicional do processo. E a ele próprio, quando na fase de execução da pena. Sendo tais propostas legais e de acordo com a moral e a ética, inexiste fundamento para que o juiz não as homologue. 10. Altruísta porque consiste em doar ao próximo desinteressadamente o que cada pessoa possui. O Poder Judiciário, por meio do homem-juiz, ciente que cada qual tem em essência a tendência, ainda que mínima, de fazer o bem ao próximo, serve como agente catalisador, estimulando mudanças e comportamentos, acelerando o processo de inserção social do futuro doador. O altruísmo pode ser estimulado, uma vez que é inato ao homem, bastando que se abra caminho para seu desabrochar e desenvolvimento. 11. Não remunerada porque a Constituição Federal veda a comercialização do sangue, ou, em outros termos, exige que o ato seja não remunerado. O tema central deste trabalho aborda a doação de sangue como prestação social alternativa, ou seja, impõe ao cidadão uma obrigação de fazer em prol de terceiro desconhecido, a fim de que não tenha sua liberdade retirada. Em outras palavras, permite ao autor de infração de menor e médio potencial ofensivo transacionar com o Estado, nos moldes preconizados pela Lei n. 9.099/95, com o adendo de, ao mesmo tempo, doar sangue. 12. Autoestima. É curial que, na área criminal, o autor de um crime nutra o autodesprezo, isto é, insatisfação consigo próprio por ter infringido um regramento. A prática de uma infração projeta na pessoa intenso constrangimento e desconfiança em seus atos e julgamentos. É dever do Poder Judiciário melhorar essa negatividade, oferecendo meios para transformar e proporcionar a redenção do criminoso perante a sociedade. Como pontuado, a falência do sistema prisional não tem o condão de recuperar ou de reinserir o condenado no meio social. Ao contrário, a convivência nefasta com criminosos de alto calibre ocasiona um desvirtuamento moral maior. Por essa razão, é comum os doutrinadores aclamarem que as cadeias são escolas de pós-graduação do crime. A pessoa sai em condições piores. Não raro, 162 ali passam a integrar uma das diversas facções do crime organizado. Cientes dessa mazela gravíssima de nossos estabelecimentos prisionais, a tolerância legal com quem cometeu infração de menor ou médio potencial ofensivo, sujeitando-o a sanções não privativas de liberdade catalogadas na codificação penal, substitutivas da pena privativa da liberdade, por si só é fator desencadeante de confiança em medidas mais eficazes de valorização da pessoa humana. A prática de um delito e os danos causados geralmente levam o autor a potencializar arrependimento pelas sequelas provocadas no seio da comunidade. Pois bem, ao ser instado a reparar o mal causado com um bem de alcance incomensurável, a doação de sangue surge como uma possibilidade real de contrabalançar o mal praticado com o bem, independentemente da classe social e cultural do cidadão. 13. Momentos processuais. Um dado inseparável e insuperável da pessoa do doador deve preceder ao ato: o agente deve ser portador de um passado imaculado, indene de envolvimentos na seara criminal. O futuro receptor não pode sofrer riscos maiores porque o doador é oriundo de um processo-crime. E cabe ao Poder Judiciário preocupar-se com as circunstâncias e consequências do ato jurídico que patrocinará, inadmitindo doadores que optam pela sanção, por lhe ser financeiramente mais favorável. Em se tratando de pessoa com o passado isento de qualquer nódoa, a ela pode ser feita a proposta. Essa doação de sangue se identificará com qualquer outra realizada no país, por pessoas voluntárias, cadastradas ou não nos bancos de sangue. E as três hipóteses em que o acordo judicial pode se materializar são: a) nas transações penais; b) na suspensão condicional da pena; e, c) na execução da pena quando a pena privativa de liberdade foi substituída por restritivas de direitos, nos termos do artigo 44 do Código Penal. Mais especificamente, o autor do fato, nas infrações de menor potencial ofensivo, em transações penais; o réu, nas infrações de médio potencial ofensivo, nas suspensões condicionais do processo; e o condenado, nas infrações de menor ou médio potencial ofensivo, na substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, na modalidade de prestação de outra natureza ou inominada. Em qualquer dessas hipóteses, o cidadão se livra do cárcere. Esses institutos processuais se materializam comumente em três momentos distintos: um pré-processual relativo à transação penal; outro processual concernente à suspensão condicional do processo; e, por fim, na fase de execução da pena, quando não tendo condições de arcar com a prestação pecuniária imposta, o sentenciado requer substituí-la por outra em que se insira a doação de sangue. Da concordância ministerial, o juiz pode acatar a pretensão e deferir o pedido. 163 14. O potencial de efetiva cooperação do Poder Judiciário com a saúde pública pode ser medido a partir do número de varas criminais e de juizados especiais criminais existentes no país. Consoante levantamento realizado pelo Setor de Pesquisas do Tribunal de Justiça do Estado em cada tribunal, esse total é de 1.880, sendo 1.294 varas criminais e 586 juizados especiais criminais. Considerando que cada juiz pode alcançar um número médio de 150 doadores/ano, tomando por base a realidade da 1ª Vara Criminal de Sorocaba, mostra-se viável alcançar quase 300.000 doadores/ano. Na medida que a população brasileira era de 190.732.654, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010205, o Poder Judiciário cooperaria para a elevação do percentual atual de doadores de 1,9%, cerca de 3.600.000, para 2,04%, aproximadamente 3.900.000. Ainda que pareça utópico, é uma realidade palpável que não pode ser desprezada por quem pretende cooperar com a realidade atual e melhorar os estoques dos bancos de sangue. Tomando o exemplo da área de hematologia que, numa luta incessante, vem tentando atender aos anseios da Organização Mundial da Saúde, cumpre ao Poder Judiciário espraiar entre os juízes criminais brasileiros e explorar esse filão tão profícuo para o bem-estar do próximo. 15. A proposta telada permite ao Poder Judiciário figurar como parceiro do Poder Executivo, dentro das políticas públicas desenvolvidas pelo Ministério da Saúde na área da doação de sangue e hemoderivados, visando a auxiliar, de forma constante, o suprimento dos bancos de sangue e seus componentes, em todo o território nacional, materializando o princípio constitucional de harmonização dos poderes, ao permitir a interpenetração em prol do bem comum. 16. A justiça social assentada na potencial salvação de vidas humanas se torna o objetivo maior da tarefa a ser desempenhada pelos magistrados criminais de todo o país, ao conceberem a doação de sangue como prestação social alternativa. 205 Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766>. Acesso em: 10 mar. 2012. 164 165 REFERÊNCIAS AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Aplicação da pena. 4. ed. Porto Alegre: AJURIS; Escola Superior da Magistratura, 2003. ALEXY, Robert. 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Juiz de Direito Titular da Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas, no uso de suas atribuições legais e por nomeação na forma da Lei etc. CONSIDERANDO a competência desta Vara Privativa em Execução de Penas e Medidas Alternativas, instituída por meio da Lei Complementar Estadual nº 364/06; CONSIDERANDO que segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde) a cada 3 segundos alguém precisa de sangue e na maioria das vezes essa pessoa não consegue doador compatível e acaba morrendo nos leitos hospitalares; CONSIDERANDO que aqueles que precisam de transfusão têm de contar com a boa vontade de doadores, uma vez que nada substitui o sangue verdadeiro retirado das veias de outro ser humano e que muitas vezes vários tipos de sangue não são encontrados no banco de sangue dos hospitais; CONSIDERANDO que a previsão legal das prestações de serviços à comunidade atende a uma nova ordem mundial e constitucional: a socialização das penas alternativas como o seu principal requisito; CONSIDERANDO que a doação de sangue poderá ajudar na inclusão social dos beneficiados com prestação de serviços à comunidade como conseqüência da exteriorização da extrema solidariedade do ato, que inclusive é considerado pela Lei 1.075/50 como sendo “ato de louvor”, que gera dispensa em 1 dia de serviço para qualquer trabalhador; CONSIDERANDO o grande potencial de vidas a serem salvas em toda a Grande Vitória como conseqüência da aplicação das doações voluntárias de sangue pela VEPEMA; CONSIDERANDO a voluntariedade da doação de sangue ora proposta, pela livre opção dos prestadores de serviços à comunidade, diante de outra oferta de pena de natureza societária; CONSIDERANDO que desde o ano de 2009 este Juízo vem tentando firmar parceria com a Secretaria de Saúde do Estado, que até hoje não deu resposta a este Juízo, e enquanto o Estado tarda pessoas morrem por falta de sangue; CONSIDERANDO que a presente portaria não atinge apenados presos, mas somente os apenados que receberam penas alternativas na modalidade de prestação de serviços à comunidade; 178 RESOLVE: 1) Instituir esta portaria, direcionada a todos os beneficiários encaminhados a este Juízo pelas Varas Criminais Comuns ou dos Juizados Especiais Criminais, apenados com prestação de serviços à comunidade, criando o “PROGRAMA DE DOAÇÃO DE SANGUE POR REEDUCANDOS DA VEPEMA NA GRANDE VITÓRIA”. 2) Que o Apenado com PSC (Prestação de Serviços à Comunidade) poderá requerer o benefício da substituição de horas de prestação POR DOAÇÃO DE SANGUE na proporção de 7 horas de PSC para cada doação feita, deixando claro que a doação de sangue será feita de forma voluntária pelo Apenado e não o vinculará com nenhuma obrigação em continuar como doador. 3) Que a doação só poderá substituir horas de PSC após a expressa autorização deste Juízo, que analisará requerimentos formulados junto ao SSP ou diretamente pela Defesa do Apenado. 4) Que as doações referidas nesta portaria para efeito de abatimento de PSC deverão respeitar prazo mínimo entre uma doação de sangue total e outra de 60 dias para os homens e de 90 dias para mulheres. Para doadores com idade entre 60 e 64 anos, o intervalo será de 6 meses, tudo em conformidade com as normas da OMS, Organização Mundial de Saúde. 5) Que após cada doação o Reeducando deverá apresentar comprovante de doação em juízo, idêntico àquele fornecido para dispensa ao trabalho no dia do ato; 6) Dê-se ciência da presente portaria ao Excelentíssimo Senhor Desembargador Corregedor Geral da Justiça, ao Excelentíssimo Senhor Desembargador Supervisor das Varas de Execução Penal, bem como ao Membro do Ministério Público e a Representante da Defensoria Pública em atuação na VEPEMA; 7) Determino que seja a presente registrada e arquivada no Cartório desta Quinta Vara Criminal – VEPEMA – anexando-se cópia da mesma no mural da entrada do prédio da Vara, bem como no mural da entrada do SSP. 8) Publique-se no Diário da Justiça; “Cumpra-se”. Dado e passado no Gabinete do Juiz da Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas, Comarca da Capital, Estado do Espírito Santo, aos quatro (4) dias do mês de março (03) do ano de dois mil e onze (2011). CARLOS EDUARDO RIBEIRO LEMOS JUIZ DE DIREITO 179 ANEXO 2 DOAÇÃO DE SANGUE COMO MEDIDA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO INTRODUÇÃO No Brasil, as penas restritivas de direito iniciaram após a reforma de 1984, cujo pena não alcançasse o patamar de um ano e as culposas. O perfil das penas alternativas à liberdade foi acentuado logo após com a Constituição Federal em 1988 e teve relativa inovação através da Lei 9.714/98 que alterou o Código Penal. As penas restritivas de direitos passaram a prever as penas de prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviço à comunidade ou entidades públicas, proibição de frequentar determinados lugares e prestação alternativa inominada. A prestação de serviço à comunidade ou a entidade públicas é o que mais aproxima o autor do fato, respeitando o homem em sua dignidade e adequando as habilidades das pessoas em favor da comunidade. Em setembro de 2010 no judiciário paulista surgiu a doação voluntária de sangue como outra modalidade de pena alternativa inominada, a exemplo das cestas básicas e encontra o seu fundamento jurídico no art. 45, parágrafo, 2°, do Código Penal. Para autores de infrações de menor e médio potencial ofensivo. As técnicas da Central de Medidas e Penas Alternativas, após orientações do Excelentíssimo Juiz Dr. Luiz Antonio Barrichello Neto, entraram em contato com o responsável Dr. Fábio José Lella Piazza do Banco de Sangue de Limeira a fim de fomentar o ideal de implantação da doação voluntária de sangue como proposta de conciliação com a pena de prestação de serviço á comunidade ou a pena pecuniária. No contato estabelecido, foi informado dos requisitos necessários para um cidadão ser doador de sangue. Dentre os requisitos, o Ministério da Saúde orienta através da Portaria 1.353, de 13 de junho de 2011, que o doador deverá comparecer para efetuar a doação com um documento oficial de identidade com foto; estar bem de saúde; ter entre 18 e 65 anos; pesar mais de 50 kg; não estar de jejum; e, evitar apenas alimentos gordurosos nas 4 horas que antecedem a doação. Assim, através da ação iniciada no município de Sorocaba, o juiz Dr. Barrichello, juntamente com a Central de Penas e o Banco de Sangue, pensando como auxílio à comunidade, dará início a sugestão da doação voluntária de sangue como uma forma de cumprimento de pena, mas não como uma sentença condenatória. JUSTIFICATIVA No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, apenas 1,9% da população é doadora de sangue. Apesar da porcentagem estar dentro dos padrões da Organização Mundial de Saúde, o Ministério considera que é urgente e possível aumentar o número de doadores. 180 Considerando que a pena restritiva de direito é uma pena de caráter social, a doação voluntária de sangue caracterizaria mais forma de cumprimento, beneficiando a comunidade no aumento da coleta efetuada pelo Banco de Sangue do município. OBJETIVOS Aumentar o número de doadores voluntários de sangue no município de Limeira/SP; Possibilitar, através da doação voluntária de sangue, mais uma opção para o cumprimento da pena alternativa com caráter social; Promover a continuidade da participação consciente do indivíduo mesmo após o cumprimento da pena. METODOLOGIA O projeto será desenvolvido pela equipe técnica da Central em parceria com o Poder Judiciário e o Banco de Sangue de Limeira. Os prestadores serão entrevistados, informados e orientados sobre a possibilidade de solicitarem a doação voluntária de sangue como forma de cumprimento da pena alternativa. Responderão um questionário estruturado, elaborado através dos requisitos da Portaria 1.353. E, após a manifestação por escrito do próprio beneficiário, a Central encaminhará os documentos ao Juiz da Comarca de Limeira-SP. Após o deferimento do pedido, o prestador deverá comparecer no Banco de Sangue, onde passará pelos procedimentos necessários e retornará à Central de Penas e Medidas Alternativas com uma declaração da doação efetuada. Os prestadores que estiverem aptos a serem doadores serão acompanhados pela Central através de reuniões mensais e em grupo realizadas na sede. Avaliação do projeto será bimestral com os beneficiários através de questionário e da participação do grupo. CRITÉRIOS DE INCLUSÃO O beneficiário deve ter sido condenado a uma pena alternativa ou ter como condição do regime aberto a prestação de serviço á comunidade ou a pena pecuniária. Ter sido condenado pelo Juiz da Comarca de Limeira-SP e a doação deverá ser feita no Banco de Sangue do município. O futuro doador deverá estar cumprindo seu primeiro processo. O beneficiário deve cumprir pelo menos a metade da pena estipulada pelo Juiz, ou seja, prestação de serviço a comunidade ou pena pecuniária. 181 Estar dentro dos critérios estipulados pelo Ministério da Saúde, Portaria 1.353, de 13 de junho de 2011, passando por entrevista na Central e após no Banco de Sangue do município. Participação do beneficiário mensalmente em reuniões com a equipe da Central, conforme os horários estipulados pela equipe. CRITÉRIOS DE EXCLUSÃO Não responder positivamente os critérios da Portaria 1.353, de 13 de junho de 2011. Limeira, 22 de junho de 2012 Daniela Waseda Caetano Psicóloga Claudia Maria Dias Zaminato Assistente Social