VALTER BRUNO de Oliveira GONZAGA Advogado e Procurador AJ do Distrito Federal OAB-DF 15.143 10/4/2013 19:30:08 O presente texto enfrenta, ainda que sem a rigidez indicada pela metodologia científica1, a questão jurídica da possibilidade – ou não - de transferência, direta e/ou indiretamente, do Poder de Polícia, via ação civil pública, para a iniciativa privada2 (pessoas naturais, jurídicas ou formais), isso no âmbito do transporte de cargas. Em rápidas pinceladas, se fará a propósito diálogo3 entre o regime jurídicocivil e o regime jurídico-administrativo. Afinal, superado o método cartesiano puro, confere-se preponderância, aqui, ao raciocínio e ao método sistêmicos, notadamente no que toca à coesão dos vínculos internos (compreensão da complexidade das fontes4 e dos objetos do conhecimento humano) 5. Indaga-se, para deflagrar e para fomentar o iter cognitivo e valorativo que será aqui desenvolvido, se é possível ao Ministério Público Federal, ou a outro legitimado nos termos da Lei nº 7.347/856, manejar ação civil pública, com pretensão mandamental, inclusive de natureza inibitória, no sentido de que os produtores de bens e/ou de produtos se abstenham (obrigação de não fazer) de promover a saída de mercadorias e de veículos de carga de seus estabelecimentos comerciais, ou de estabelecimentos de terceiros contratados a qualquer título, com excesso de peso, em 1 Cf. HUNE, Leda Miranda (organizadora). Metodologia Cientifica. 7ed. Rio de Janeiro: Agir, 2000. 2 Cf. GILDDENS, Anthony. O debate global sobre a terceira via. São Paulo: Editora Unesp, 2007. 3 Cf. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5ed, São Paulo> Malheiros, 2006, p.293 4 Cf. TROPER, Michel. A filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 108-111 5 Cf. LOSANO, Mario G. Sistema e Estrutura no direito. Das origens à escola histórica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp.86-87 6 Há outras normas que regulam a Ação Civil Pública no Brasil: Lei nº 8.078/90; etc 1 desacordo com a legislação de trânsito7. A resposta, à evidência, é manifestamente negativa e por vários fundamentos8. Os produtores de frutos (v.g., agricultores) não titularizam poderes e/ou faculdades para interferir na potestatividade de terceiros (compradores, embarcadores e transportadores), bem assim na fiscalização, do início ao fim do transporte, sob pena, isso sim, de causar intervenção e lesão à atividade desenvolvida – muita vez de natureza não comercial - que, por sua vez, é responsável direta pelo desenvolvimento socioeconômico9 de determinada Região do País10. A imposição11 de tutela mandamental – “fazer”, “não fazer” e “ inibitória” -, na essência, tem natureza punitiva, de modo que insuficiente a demonstração do aspecto objetivo (suposto excesso de peso no ato de transporte rodoviário). Por consequência, há o aspecto determinante, de natureza subjetiva, concernente à conduta e à responsabilidade imputadas aos produtores/vendedores (demonstração empírica de dados reveladores da culpa, lato senso). Realmente, trata-se de contrato de compra e venda de coisa móvel – frutos/produtos -, vínculo jurídico esse de natureza civil12, cuja transferência de propriedade ocorre pela tradição13 (cf. artigos 1.226 e 1.267, do Código Civil Brasileiro), registrando-se que “a tradição da coisa vendida, na falta de estipulação 7 Cf. Recomendação em julgamento do Tribunal de Contas da União (Acórdão 353/2006, Plenário, 27/3/2006). 8 Cf. RIVERO, Jean e MOUTOUH, Hugues. Liberdades Públicas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 9 Cf. artigo 186, da CF/88. 10 Cf. KISSINGER, Henry at al. O Século XXI pretence à China? Um debate sobre a grande potência asiática. Rio de Janeiro, Elsevier, 2012. 11 Cf. PIERRE, Livet. As normas. Petropólis: Vozes, 2009, p.94-95 Cf. artigo 481/512, do CC/2002. 13 cf. artigos 1.226 e 1.267, do CC/2002. 12 2 expressa, dar-se-á no lugar onde ela se encontrava, ao tempo da venda” 14. A tradição opera-se, pois, na localidade do embarque da mercadoria vendida (free on board). O transporte, por sua vez, nessa situação, é levado a efeito pelo comprador, conforme inserto, regra geral, na Nota Fiscal de Saída e no conhecimento de transporte e, ainda, em alguns casos, no Certificado de Registro e Licenciamento de Veículos- CRLV relativo ao veículo de carga autuado. Da mesma forma, a titularidade do vínculo jurídico do motorista (empregado, proprietário etc)15 . Desse modo, pelo fato de a tradição ocorrer no estabelecimento do vendedor, as mercadorias transportadas com excesso de peso, no momento da autuação, não são de propriedade daquele (vendedor). Não há, além disso, norma expressa no ordenamento jurídico brasileiro que impute ao vendedor, nos casos de tradição operada nos termos dos artigos 492 e 494, do CC/2002, a responsabilidade solidária ou subsidiária nas situações concretas em que o transporte é levado a efeito, pelo comprador, em desacordo com as regras administrativas e de polícia pertinentes. "AÇÃO ORDINÁRIA DE NULIDADE DE TÍTULO - DUPLICATA - MEDIDA CAUTELAR DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO COMPRA E VENDA DE MERCADORIAS - TRANSPORTADOR CONTRATADO PELO COMPRADOR - TRADIÇÃO DA RES ACIDENTE DO VEÍCULO TRANSPORTADOR - RISCO DO COMPRADOR DECISÃO MANTIDA. Realizada a compra e venda de mercadorias, entregue ao transportador do comprador, perfeita se revela a negociação jurídica pela incorporação do bem adquirido ao patrimônio do comprador e, pois, ocorrendo acidente no percurso de efetiva entrega ao destinatário, perecendo a res, impossível a nulidade 14 Cf. artigo 493, do CC/2002 Os três grandes problemas que causam falhas no mercado são o poder da escassez, as informações incompletas e as exterioridades. (...)” cf. ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012, p.167. 15 3 de respectiva cártula oriunda da aquisição ao fundamento do não recebimento de já predita coisa". (TJMG, Apelação nº 2.0000.00.517145-5/000, Rel. Des. Valdez Leite Machado, julgado em 24/11/2005, e publicado em 20/01/2006). O comprador, embarcador16 da mercadoria, na hipótese, é o responsável pelo transporte via terrestre – com todos os seus consectários nos planos cível, administrativo e penal -, em seu próprio nome e às suas expensas, ainda que indiretamente (contrato de transporte firmado com terceiros). Imputar-se ao vendedor a responsabilidade pelos efeitos de transporte de mercadoria, realizado ao arrepio das normas de trânsito, trata-se de ato apto a negar vigência às regras inscritas nos artigos 1.226 e 1.267 c/c 493 e 494 do Código Civil Brasileiro. O vendedor, nos casos que tais, não realiza atos de transportar e de embarcar17. Em suma, não há base normativa para transferir,18 para o vendedor, a responsabilidade pela fiscalização19 do peso dos veículos de carga e da 16 O termo não se confunde com carregamento. 17 Cf. Artigo 9º, da Lei nº 11.442, de 05 de janeiro de 2007, invocado por analogia, “a responsabilidade do transportador cobre o período compreendido entre o momento do recebimento da carga e o de sua entrega ao destinatário. 18 ’esercizio dei poteri di polizia da parte dell’incaricato (naturalmente nei casi in cui si tratti di funzioni o servizi che lo richiedano) nei confronti del pubblico che usufruisce del servizio o della funzione, con possibilità di applicazione di sanzione pecuniarie.” (Cf. ALESSI, Roberto. Principi di diritto amministrativo, v. I. Milão: Dott A. Giuffrè, 1966. p. 74-5). Exemplo típico no Direito Brasileiro pode se considerar as situações em que os requisitos objetivos, exigidos pela legislação sobre trânsito para que alguém seja considerado apto pela Administração para dirigir veículos, atividades a serem oferecidas pelo Poder Público e que seriam delegadas ao particular – os Centros de Habilitação de Condutores. Tudo isso, contudo, nos termos da lei em sentido estrito, o que não há no caso dos autos. Citem-se, ainda, algumas hipóteses de credenciamento, aceitas pela doutrina (cf. v.g BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. "Serviço público e poder de polícia: concessão e delegação". In: Revista Trimestral de Direito Público, n° 20. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 23). 19 Cf. Transfere, em verdade, ao particular o Poder de Polícia, uma das atividades típicas do Estado, cuja definição está vazada no artigo 78, do Código Tributário Nacional. O Agravante não desconhece, contudo, o pensamento doutrinário, v.g.. a tese defendida pelo Ministro Carlos Ayres Britto (1993,p.82) no sentido de que: “A fiscalização que nasce de fora para dentro do Estado é, naturalmente,a exercida por particulares ou por instituições da sociedade 4 dinâmica em que concretizado o ato de transportar 20, em descompasso, pois, com o princípio da legalidade estrita (cf. artigo 5º, inciso II, da CF/88). “O princípio da legalidade é uma das vigas mestras do ordenamento jurídico brasileiro, porque qualquer comandado estatal – seja para ordenar ato (ação ou conduta positiva) ou abster fato (omissão ou conduta negativa) – a fim de ser juridicamente válido, deve nascer da lei em sentido formal.” (cf. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 4ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 86) A função administrativa é constituída, em caráter principal, por cinco atividades precípuas, concentradas essencialmente no Poder Executivo: poder de polícia, fomento, serviço público, intervenção na ordem econômica e intervenção na ordem social. O princípio de independência e de harmonia dos poderes veda, em regra, a substituição do Poder Executivo pelo Poder Judiciário no exercício daquelas atividades. O Poder de Polícia21 exige a presença de verticalidade, própria do Estado (supremacia x direitos e garantias fundamentais), não existente em relações contratuais privadas22 (relação de horizontalidade)23. O que se pode imaginar – e isso é plenamente possível – é que o Poder de Polícia24, diante de omissão do Poder Executivo (Polícia Rodoviária civil. A ela é que se aplica a expressão ‘controle popular’ ou ‘controle social do poder’, para evidenciar o fato de que a população tem satisfações a tomar daqueles que formalmente se obrigam a velar por tudo que é de todos”. Embora ciente desta corrente – que é correta – ela não se aplica ao caso dos autos, pois implica, na realidade, a fiscalização, a autoexecutoriedade e a impositividade de restrição mediante a interferência direta de particulares, poderes esse que o ordenamento jurídico não confere ao particular (relação de horizontalidade). 20 Mas, no plano ‘microjurídico’, quando nos concentramos em situações jurídicas específicas, a localização delas, a proximidade ou afastamento de seus elementos constitutivos ou os deslocamentos que elas comportam geram conseqüências que o direito positivo deve domesticar.” (cf. BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.165). 21 Cf. ARAUJO, Edmir Netto de. Curso de Direitos Administrativo. 5ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.1047. Cf. TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson. O direito e o tempo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.313. 23 Cf. KRIELE, Martin. Introdução à teoria do Estado. Os fundamentos históricos da legitimidade do Estado constitucional democrático (trad. Urbano Carveli). Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2009, pag. 29 e segs. 22 5 Federal, Agência Nacional de Transportes Terrestres), autorize a parte legitimada a provocar o Judiciário e faça nascer pretensão em desfavor da entidade competente, não se revelando juridicamente possível, por outro lado, o manejo de ação para que o Poder Judiciário exerça, diretamente (tutela jurisdicional executiva em sentido lato), a atividade de polícia administrativa. Nessa quadra, em conclusão, o Ministério Público, por meio do Poder Judiciário e através da ação civil pública, está impedido exercer, ainda que indiretamente, atividade de polícia administrativa da competência do Poder Executivo. O Estado de Direito25, em derradeira análise, como padrão de organização do sistema coercitivo do Estado Liberal Democrático e iluminista, pautado na racionalização do Direito e na realização das liberdades individuais, tem, pelo princípio da legalidade, o limite da ação de polícia sobre o cidadão. O poder de polícia, assim, destina-se a garantir o próprio Estado de Direito e os seus fundamentos de racionalidade e promoção das liberdades individuais. Vendedor não pode vir a ser compelido, judicialmente, a pagar multa e/ou indenizar em decorrência de condutas praticadas por terceiros, sem que, para tanto, tenha qualquer remédio jurídico idôneo para impedir o transporte de cargas com excesso de peso (não transcendência subjetiva dos efeitos da conduta ilícita praticada por terceiros)26. 24 Cf. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 16ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 20012, p. 366 Cf. VIANELLO, Lorenzo Córdova. Derecho y Poder. Kelsen e Schmitt frente a frente. México: Unamm, IIJ, 2009. 25 26 Cf. STOBER, Rolf. Direito Administrativo econômico geral. São Paulo: Saraiva, 2008. 6