GESTRA - Gestão de Trabalhos para o Ensino de Linguagens e suas Tecnologias. Volume 1, 2009.
ISSN 2176-8994
O que compete ao leitor e as competências para ensinar: A prática do docente de línguas e seus processos de formação acadêmica - Maria
Aparecida Ribeiro
O que compete ao leitor e as competências para ensinar:
A prática do docente de línguas e seus processos de
formação acadêmica
Maria Aparecida Ribeiro
Palavras chave: Leitura. Linguagem. Competências. Ensino.
Os formandos de 1935 do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo tiveram como paraninfo um estimado professor da casa, que se tornara célebre para além
daquelas salas de aula. Mentor intelectual da Semana de Arte Moderna, de 1922 e,
naquela ocasião, ocupando a direção do Departamento de Cultura de São Paulo, Mário
de Andrade volta aos espaços em que, preliminar e concretamente, tratara de questões
sobre educação, cultura e sociedade, saudando aqueles a quem, em suas palavras,
verdadeiramente, eram dedicados os programas de trabalho daquela instituição:
Quem quer que lhe conheça os estatutos e a constituição didática, se
convencerá da finalidade popular da nossa casa. Pelos seus preços, pelas poucas credenciais de educação escolar que exige dos seus alunos,
é evidente que o Conservatório não se destina à formação de elites musicais refinadíssimas, porém à popularização da música. Compreendeis
certamente o que significam estes enxames de diplomandos que o Conservatório solta anualmente sobre o corpo do nosso Estado. São já muitas centenas de artistas menores que se perderam na multidão nacional,
tocando e ensinando. Não me orgulha ter saído das salas conservatorianas um Francisco Mignone, por exemplo. Porque na formação dum
grande artista entra um sem número de contingências e condições, todos
de decisório valor. O que me orgulha sois vós, senhores diplomandos, é
o enxame. O que me orgulha é a professorinha anônima do Bexiga, ou
da Móoca, a mulher de Taquatiringa ou Sorocaba, que ensina seu Beethoven, ou, dormidos os filhos, inda soletra aos ouvidos da rua algum
noturno de Chopin.i
Guardadas as devidas distinções entre os sistemas de educação formal, regular
e o musical, emprestamos de Mário de Andrade o vigor de sua “Oração de Paraninfo”
e a acuidade com que o intelectual, na época ocupando também um espaço de poder
administrativo, mira as possibilidades reais dos centros acadêmicos de interferirem efetivamente na construção de realidades nacionais oriundas do tratamento dado à educação e à cultura em nosso país.
Ao passo que um instituto criado e defendido financeiramente pelo Governo, conformado pelas exigências culturais da vida universitária, se
destinará fatalmente à formação das elites técnicas, das elites didáticas,
dos compositores e alta virtuosidade. E poderá forçar as portas ainda
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apenas entreabertas para nós, das expressões coletivas da música. E
assim definindo o instituto universitário em crisol selecionador das elites,
esta nossa casa se definirá milhormente em sua finalidade primeira de
vulgarizadora da música no povo, esta finalidade igualmente virtuosa em
que não a compreendem e atacam os enfastiados do endêmico dilentatismo nacional.ii
O tom de provocação do discurso é ressonância do momento vivido pelo intelectual que, num cargo público executivo, experimenta os dissabores da limitação de sua
ação no sentido de concretizar o que defendera uma década antes. Na pele do artista
de vanguarda, pai de Macunaíma, parceiro de Oswald de Andrade, Mário não se furtava à missão, por vezes incompreendida, de produzir uma arte utilitária, transitória, mas
que contribuísse para a “vulgarização” (no sentido etimológico do termo vulgo: povo)
das expressões artísticas. Em outras palavras, defendia a popularização, ou ainda a
disponibilização dos bens culturais considerados eruditos ao povo comum, à gente simples e destituída das credenciais que lhe facultariam a fruição desse mesmo patrimônio
que as instituições, reiterada e contraditoriamente por seus atos, têm declarado como
público.
Resgatando aquele momento de intensa reflexão do artista, professor e funcionário público da educação e cultura, problematiza-se nesta consideração as finalidades
primeiras, e as últimas, do ensino superior voltado para a formação de profissionais das
Letras. Cabe-nos, assim, indagar, inspirados pela visão do “enxame de diplomandos”
saudados pelo paraninfo Mário de Andrade:
Enquanto “instituto criado e defendido financeiramente pelo Governo”, com a
edificação de que perfil profissional, exatamente, nos orgulharia colaborar?
Até que ponto o compromisso com a excelência, ou antes, no dizer de Mário,
“as exigências culturais da vida universitária” polariza-se com um pragmatismo que se
pretende muito mais próximo das chamadas “expressões coletivas” de nossa cultura?
Se fechamos o foco na questão do ensino de línguas, o problema toma uma
dimensão ainda mais aprofundante, considerando que nosso enxame ganha os ares
extramuros da universidade com a importante tarefa de promover, junto a seus grupos
de alunos e alunas, a construção de competências comunicativas, textuais na língua
materna e nas estrangeiras.
Se válida é, ainda, a assertiva de Roland Barthes em seu texto (igualmente, o
texto de um professor e pensador da Linguagem, também em conferência dirigida a
alunos, então da cadeira de Semiótica, em sua aula inaugural do College de France,
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em 1977) de que ‘a linguagem é uma legislação e a língua, seu código’iii, o papel dos
professores e professoras, egressos de nossos cursos, aparece como muito mais decisivo, e de consequências muito mais mensuráveis na vida das subsequentes gerações
de usuários desse código, submetidos a essa legislação, do que as aulas de música
ministradas pela profissional a quem Mário de Andrade, carinhosa ou ironicamente,
trata por “a professorinha de Sorocaba”.
Embora as aulas de Música tenham, evidentemente, seu lugar (tendo, aliás, voltado ao currículo do Ensino Fundamental como disciplina obrigatória) e signifiquem,
também, o ensino de uma linguagem, o peso que se impõe ao nosso “enxame de diplomandos” é bem mais sensível nos resultados de sua prática. Já que dela depende o
nível de autonomia de falantes por eles orientados, em seus processos de aquisição de
linguagem e competências comunicativas.
O papel que os futuros docentes, egressos de nossas turmas de alunos, exercerão junto ao público de sua ação profissional é, portanto, decisório em relação às
escolhas e aos partidos que os administradores deste sistema, os responsáveis pela
sua certificação, nós, seus professores, tomamos em seus percursos formativos.
Que dizer das expectativas que a sociedade contemporânea tem demonstrado
acerca desses profissionais? São também indicadores importantes dos caminhos que
sua formação precisa trilhar? Se sim, isso significa que, embora possamos ter, para
consumo interno, nossas próprias leituras e posicionamentos referentes aos perfis profissionais com cuja formação estamos comprometidos, há que se levar em conta que o
destino final do nosso “enxame de diplomandos” é inserir-se no “corpo de nosso Estado”.
O que equivale a dizer ser efetivamente absorvido pelo mercado de trabalho,
o qual inclui a docência — o que já é suficientemente complexo — mas a ela não se
restringe. Exemplo disso, encontramos no sítio eletrônico do Departamento de Letras
no portal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro que traz um “novo perfil
para o profissional de Letras”, contemplando “os novos nichos mercadológicos em que
este pode se inserir”. As propostas chegam a ser tentadoras:
Atuar em centros culturais, em firmas de consultoria linguística, de comunicação empresarial ou de criação de softwares que utilizem recursos
linguísticos, atuar em pesquisa e ensino universitário, atuar como tradutores para um mercado em expansão, possibilitando diferentes inserções nos campos da literatura, da informática, do cinema, do vídeo e da
televisão, além de permitir a atuação em outras modalidades técnicas e
científicas da tradução.v
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Apresentam-se programas de Licenciaturas — monolíngue e bilíngue — que “formam professores para atuar de modo crítico e criativo no ensino fundamental e médio”,
e um “Bacharelado em Produção Textual (Formação de Escritor)”, com a seguinte proposta:
Busca capacitar o aluno a transitar fluentemente nos diferentes registros
da língua escrita e contemplar vocações para a escrita ficcional e poética, bem como desenvolver a prática de ensaios, crítica, roteiros, resenhas, textos para a Web, manuais, textos técnicos.v
Bastante promissor, principalmente se comparado à atuação da professorinha de
Taquaritinga citada no início desta fala. Com efeito, tais categorias profissionais aparecem, assim, classificadas segundo critérios nascidos de demandas reais da sociedade
brasileira, contemporânea. O que torna a prática docente na área de Letras necessariamente implicada com/em um tipo de ensino, defendido por estudiosos da Educação
e da Formação Profissional, o “ensino por competências”vi como é o caso do pedagogo
Philippe Perrenoud, da Universidade de Genebra. Em seus escritos. Perrenoud tem enfatizado a importância de os docentes identificarem e trabalharem competências fundamentais dos grupos sob sua responsabilidade, a fim de colaborarem na construção da
autonomia, não apenas de profissionais, mas de pessoas, cidadãos que estabelecem,
negociam e reorganizam suas relações de pertencimento nas/às sociedades.
Defendendo oito grandes categorias, Perrenoud nos faz pensar sobre o ensino
de Línguas, numa perspectiva que transcende o pragmatismo da funcionalidade da
língua, enquanto sistema idiomático, e investe na construção de subjetividades — e de
coletividades — pelo uso eficaz da palavra, discurso, fala segundo a perspectiva saussureana.
As categorias de Perrenoud, se tomadas do ponto de vista das competências
linguísticas, comunicativas, textuais, podem, assim, vir a ganhar significados especialmente convergentes a uma prática docente de qualidade. Podem, também, colocar em
evidência certas escolhas praticadas aqui mesmo em nossa Graduação da UFS, numa
relação dialética entre o que oferecemos aos nossos discentes e o que deles esperamos quando docentes. São elas:
I. “Saber identificar, avaliar e valorizar suas possibilidades” de uso da palavra, com vistas ao (re) conhecimento de “seus direitos, seus limites e suas necessidades”, buscando o reposicionamento diante de dinâmicas de inclusão e exclusão que delas decorrem.
Pela recepção dos textos que os contém, o profissional de Letras deve expandir
sua compreensão sobre direitos e deveres, uma vez que o tipo de leitura que pratica
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prescinde de intermediadores e avança no conhecimento das implicações da palavra
da lei.
Ler o dito, o entredito, o interdito, percorrer as linhas, preencher entrelinhas, são
capacidades leitoras que o docente de Línguas quer mobilizar junto a seus alunos diante dos textos, mas que ele mesmo deve, igualmente, praticar quando a situação requer
uma leitura acurada do texto que normatiza suas ações em sociedade.
Quanto a limites impostos a sua prática profissional, o docente leitor compreende
que os mesmos são edificados por discursos passíveis de análise, de desconstrução e
de reconstrução.
Igualmente edificados por discursos, que beneficiam a determinados grupos,
muitos dos desejos que povoam o imaginário desta classe profissional, como o de outras, reduzem os grupos a uma massa indistinta de consumidores. Dos mais diversos
produtos, da tecnologia de ponta ao último grito das teorias. Desejos logo convertidos
em necessidades: comprar, adquirir, aderir, citar, inserir-se. Tendências em educação,
modismos no ensino das línguas, velozmente substituídos por outros, metodologias,
terminologias logo tornadas tão obsoletas quanto os disquetes de ontem, hoje e os
pendrives de hoje, amanhã.
Contudo, mesmo as necessidades aparentemente mais “necessárias” podem
ainda vir se desdobrar, pela prática reflexiva, em necessidades reais, das quais impreterivelmente se busca satisfação; ou em necessidades alegadas, cujo estatuto reside
nos discursos publicitários de toda ordem, mas cujo questionamento, também e felizmente, transita pelas vias do discurso; e até em novas necessidades que respondam a
uma subjetividade em permanente construção.
II. Pelo exercício de uma fala competente, “saber formar e conduzir projetos e desenvolver estratégias, individualmente ou em grupo”.
Considerando-se que todas as práticas sociais mediadas pela linguagem serão
potencialmente situações atravessadas pelo poder, em suas diferentes formas, a elaboração, execução e avaliação de projetos, na área de educação, constituem-se em
desafio que requer investimento especial nessa competência docente.
O trabalho com projetos consiste numa soma de recursos com vistas ao alcance
de metas comuns, o que pode ser considerado índice de evolução na escala do desenvolvimento das sociedades. Porém, os sentidos de comunidade, pertencimento que
ele evoca conduz a práticas de representatividade já suficientemente conhecidas: um
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sujeito ou um pequeno grupo que fala por muitos ou por um grupo maior. Procedimento
padrão que, muitas vezes, acaba despertando antigos sentidos do poder, nos quais
muitas vezes os sujeitos se enredam, paralisando suas ações como que presos a uma
rede viciosa de relações da qual não consegue se liberar: o que nasce sob o signo da
coletividade cresce e se desenvolve para atender aos individualismos.
As “máscaras linguageiras” (ainda no dizer de Roland Barthes), com que o poder
se traveste, no palco das ações coletivas, encenam, por vezes, situações em que o
drama potencial das relações humanas — a tragédia, a comédia em que muitas vezes
tais relações resultam — pode comprometer os objetivos a que os atores se propõem,
ao afiançar sua palavra na consecução de metas comuns. É, pois, somente pela produção de falas consistentes, articuladoras, persuasivas que os sujeitos de tais relações
encontram o caminho para a superação dos conflitos.
O profissional de Letras deveria ser, pela natureza de seu objeto, pelo alcance
de seus instrumentos e pelo potencial de sua matéria de trabalho — a Língua — um gerenciador de projetos. A máxima que atravessa todos os componentes curriculares, em
todos os sistemas de ensino, passa necessariamente pela organização de discursos,
pela textualização do conhecimento. E estes são, sem dúvida, tópicos preferenciais na
prática docente de Línguas. Assim, se os projetos de integração curricular, se as iniciativas interdisciplinares de construção de saberes não passam diretamente pela prática
do professor de Línguas algo está necessariamente errado.
As distorções resultantes de uma distribuição pouco equilibrada dessas parcelas
de poder, conforme desenhadas por Barthes, ou a pouca importância que se dá ao
trabalho cooperativo — ou ambas as razões — talvez expliquem a resistência de muitos dos profissionais da palavra a dela fazer uso para construir uma ação coletiva no
alcance de metas comuns.
III. A competência de “saber analisar situações, relações e campos de força de forma
sistêmica”.
O estudo das gramáticas proporcionou ao aluno de Letras a oportunidade de perceber as variadas faces da Linguagem, sob sua forma mais organizada — os idiomas.
Nestes, as línguas lhes apresentavam possibilidades de ordenação lógica, referentes
aos tipos de sistemas em que os elementos linguísticos estavam relacionados: o fonológico, o ortográfico, o morfossintático. Assim, perceber o todo, buscar compreendê-lo
a partir de seus elementos constituintes e das relações que entre eles se estabelecem,
voltando à consideração do todo agora como um conjunto de partes dotado de sentidos
absolutos e relativos, fez parte das rotinas de trabalho do aluno de Letras quando de
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seu estudo das Línguas.
Esta capacidade mobilizada durante as aulas, quando tornada uma competência
docente, é de grande valia ao profissional, principalmente, quando de sua inserção nos
sistemas oficiais de ensino, nas redes — pública e privada — de educação regular.
Ver-se como parte de um sistema que, antes, de fora, confortavelmente, na condição de sociedade extramuros, taxara de falido, obsoleto, ineficaz, deve mobilizar
competências do professor no sentido de conhecer a fundo o sistema no qual passa a
atuar.
É quando um possível desejo de fazer a diferença, quando convicções legítimas
e aspirações por uma praxis inovadora e revolucionária se confrontam com estatutos
rígidos, ambientes pouco receptivos a mudanças — muito embora a realidade possa
estar clamando por medidas urgentes e ainda não experimentadas.
Investigar sua história, analisar suas reais condições, inteirar-se de seus discursos, fazer a leitura de suas práticas, ajudar a realizar seu trabalho presente e suas
possibilidades futuras, em outras palavras, mudar o sistema de dentro do sistema. Entender e dominar sua gramática de funcionamento, perceber as partes como elementos constituintes e significativos para os movimentos coletivos, considerando valores
subjetivos, individuais, sem perder de vista sua relação com o todo. Compreender a
dinâmica das relações que se estabelecem, a sintaxe das relações, as composições
por subordinação e coordenação determinantes de uma necessária hierarquia, a lógica
na construção dos grupos, as possibilidades de articulação, a coesão dos discursos e
práticas, os modos de expressão que efetivamente garantem a comunicação e o trabalho sistêmico, em outras palavras, falar a língua dos grupos, buscando uma eficácia de
linguagem em suas múltiplas situações de uso.
IV. “saber cooperar, agir em sinergia, participar de uma atividade coletiva e partilhar
liderança”. Só um usuário competente da Língua consegue travar diálogos que, efetivamente, promovam a cooperação, o trabalho sinergético, a coletividade e a liderança
partilhada. Co-operar é o operar com, é atuar em regime de parceria. Mover-se em
campos de força diversos, fazendo uso da energia acumulada pelos grupos.
É saber alternar os centros de comando da ação, alocando, deslocando e realocando núcleos, de modo a se valer de correntes contínuas de força inventiva, de
entusiasmo, de inteligências várias. Os docentes que desenvolvem tal competência não
caem na armadilha ingênua de competir com seus alunos ou de medir força entre suas
inteligências, restringindo-lhes os arroubos, podando-lhes o desejo de crescer — como
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faria um colecionador de árvores bonsai. Antes, cresce com eles, retroalimenta-se de
seu entusiasmo.
A pouca experiência do jovem faz com que este se atire às “vivências do espírito”, declarou o filósofo Benjamin em seu texto de juventude (1913)vii. O mesmo autor
que, na maturidade, viria a fazer o elogio da narrativa como compartilhamento da experiência e possibilidade de trocas entre gerações personificara, aos vinte anos, os
conflitos entre líderes que ora ocupam bancos escolares, na condição de alunos, ora
postam-se diante de turmas transmitindo verdades, como vozes autorizadas pelos anos
já vividos. Há uma distância, muitas vezes, unicamente temporal entre estes, mas, são
líderes em ambos os casos.
Se os papéis se alternam é porque tais verdades são todas provisórias, todas
proferidas em nome de uma experiência, no mais das vezes, “cinzenta e poderosa”;
muitas delas “carentes de sentido e de imaginação”.
Assim, as categorias que se seguem: V. e VII. “saber construir e estimular organizações e sistemas de ação coletiva do tipo democrático”; “saber conviver com regras,
servir-se delas e elaborá-las”; apontam para a criação, a invenção, a capacidade de
produção — marcas inegáveis das juventudes de todas as épocas.
E, se os sistemas são rígidos, se a flexibilidade é quase nenhuma, o docente,
mesmo o jovem, sem a experiência dos anos vividos, se aprendeu a ler, também aprendeu a escrever. E precisa registrar suas vivências tranformando-as em experiência
compartilhada. Produzir conhecimento na forma de uma escrita que é também reescrita.
Mas, onde está a matéria desse texto a ser redigido a muitas mãos? Na reflexão
sobre a prática, no ouvir e registrar os diálogos que se instauram nas organizações e
sistemas de ação coletiva.
Quanto às regras, como nas gramáticas, elas existem para que delas se faça
uso, mas também para que, na releitura, se possa alterá-las, melhorá-las, torná-las inteligíveis, a fim de cumprirem o papel para o qual foram formuladas, o papel de normatizar uma língua que é viva, movente, dinâmica e em permanente estado de evolução.
Porém, se vai lidar com direitos e deveres, com regras, lideranças, o profissional
de Letras deve, sem dúvida,
V. “Saber gerenciar e superar conflitos”;
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Porque enquanto era estudante de Letras aprendeu em suas aulas de teoria
literária que são os conflitos que movimentam as narrativas. São as diferenças de
opiniões, os quereres vários, os desejos antagônicos, que transformam os sujeitos em
personagens das histórias. E a ação motivada pelo desejo, ao provocar uma reação inversamente proporcional na intensidade de outro desejo que, ao primeiro, se contrapõe,
lança tais personagens nas chamadas zonas de conflito. O conflito está, assim, para a
história, assim, como o desejo está para a ação.
Já o protagonismo nas histórias deriva da força desse desejo desencadeador da
ação. O protagonista é o personagem que desejou com tanta força que se deixou atravessar pelo desejo e fez da sua ação consequência deste. E que aqui, por força da expressão, também trataremos como herói. Adjuvante e antagonista são os personagens
que com o herói de tais narrativas se relacionam. São os sujeitos cujos desejos mantêm
com os do protagonista relações de convergência e divergência, respectivamente.
E não é exatamente disso que a história de nossos “personagens docentes” é
feita? Não são os desejos que os impulsionaram a aspirar a uma carreira universitária,
à profissão docente, a ocupar cargos, a se apropriar de lugares socialmente marcados
por uma prática profissional definida? Se são, conflito é tudo que se pode esperar quando tais sujeitos pensantes — e desejantes — se dispõem ao convívio, e à “co-operação”.
Se o conflito é o que faz com que a história se desenrole, que o enredo das relações humanas ganhe textura, o campo profissional em que tais conflitos necessariamente se estabelecem é também um espaço de mobilização de sentimentos, valores,
atitudes, recursos cognitivos, capacidades, competências. Temos, pois, que são tais
situações que potencializam os saberes e os fazeres docentes.
As idéias cultivadas, alimentadas pelas leituras, encorpadas por uma reflexão, vi-
goradas pelas teorias, ganham consistência na medida em que são postas em prática,
na forma de posições defendidas e decisões tomadas. E isso só consegue fazer quem
sabe gerenciar, superar, mas também, crescer com os conflitos.
E por fim, chegamos à oitava categoria:
VI. “saber construir normas negociadas de convivência que superem diferenças culturais”.
Em seus estudos acadêmicos sobre Língua e Cultura no Brasilviii, o aluno de Letras pode descortinar alguns dos cenários nos quais teria que atuar quando do exercício
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da carreira. Logo, na prática docente, irá perceber que, embora a presença das múltiplas culturas nos sistemas de educação venha se transformando em situação-problema
e, com isso, ganhando espaço em discussões teóricas em diferentes esferas e segundo
diversos pontos de vista, muito há que se fazer para tematizá-la e compreendê-la como
fato histórico, político, social. Do simples equacionamento das questões de convivência, avança o docente leitor de realidades objetivas que se lhe apresentam como desafios, para a discussão sobre multiculturalidade e interculturalidade, por exemplo.
Não há dúvidas de que nossas escolas apresentam feição vária no que diz
respeito às culturas de seus sujeitos discentes e docentes. Fechando o foco sobre a
construção de uma subjetividade docente afirmativa neste sentido, há que se fomentar
ações de promoção da interculturalidade, conforme defendido por Candau (1998) ix. No
nível individual, tal atitude supõe:
Promover o diálogo no interior de cada pessoa entre as diversas influências culturais que a configuram e a que está exposta, às vezes em conflito ou não, mas nem sempre fáceis de serem harmonizadas.
E se, individualmente, apresentamos todos esta multiplicidade de caracteres relacionados às heranças cullturais de que somos constituídos, no plano social, tais diferenças ganham formas e conteúdos que se prestam à construção de uma pedagogia.
O profissional da educação sensível a movimentos, nascidos sob a ótica da diversidade
cultural, emergentes nos grupos de alunos sob sua responsabilidade, deve trazer para
o contexto teórico-metodológico, as diferenças que, na escolas, muitas vezes, entram
apenas pela porta dos fundos.
“A pedagogia intercultural é tanto escolar, como social”, afirma Merino e Munoz,
citados por Candau. Mais do que toleradas e superadas, as diferenças culturais devem
ser valorizadas como referências de uma sociedade múltipla, novamente numa perspectiva sistêmica de educação como “prática social em íntima relação com as diferentes dinâmicas presentes numa sociedade concreta”.x
À guisa de conclusão deste texto, que não arroga para si o caráter definitivo
quanto ao número de competências profissionais consideradas principais, mas que tão
somente reproduz as oito grandes categorias discriminadas por Perrenoud, destaca-se
a necessidade de que tais capacidades estejam articuladas concretamente a grupos de
situações.
As situações de uso da língua, de tomada da palavra, as situações-problema, as
chamadas situações de conflito, as situações-limite, as situações em que o poder está
colocado de modo mais ou menos explícito, as situações de transição, reestruturação,
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des/acomodação, dentre outras tantas em que os docentes terão de necessariamente
interagir com seus pares e seus ímpares.
“A formulação de competências se afasta, então, das abstrações ideologicamente neutras. De pronto, a unanimidade está ameaçada e reaparece a idéia de que os
objetivos da escolaridade dependem de uma escolha da sociedade.” É o que afirma
Perrenoud.
E de escolhas tratamos também desde aqui, o espaço da formação desses docentes, da preparação do vôo deste “enxame de diplomandos” os quais levam, por seus
movimentos, muito daquilo que nós, seus paraninfos, adjuvantes, modelos de discursos
e de práticas, realmente acreditamos.
A título de conclusão, citamos as falas de alguns dos alunos da disciplina Meto-
dologia do Ensino-Aprendizagem de Línguas, oferecida pelo Departamento de Letras
da Universidade Federal de Sergipe – UFS (2009-2), sujeitos de uma pesquisa-ação
que têm desdobrado, no cotidiano de sua formação em docentes, muitas das ideias
pontuadas neste texto. Suas falas s ilustram parte da expectativa desse grupo em relação aos professores que tiveram, têm e, um dia, serão:
“Um bom professor encoraja, anima o aluno a querer aprender mais, incentiva-o
em sua criatividade, o deixa à vontade para se expressar, sem o medo de errar...”.
“No ano seguinte, fui seu aluno. Encontrei uma mulher apaixonada por literatura,
que declamava, fervorosa, poemas de Aluizio Azevedo, Castro Alves, Gonçalves Dias,
pedindo desculpas, em seguida, pelas lágrimas que saltavam dos olhos.”
“Hoje, assim como antigamente, continuamos [aquele professor e eu] a compartilhar leituras, trocas de livros, nossos desgastes, ambições e progressos. Compartilhamos, acima de tudo, a emoção da profissão.”
Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins Fontes,
1962.
i
ii
Idem e ibidem.
iii
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O que compete ao leitor e as competências para ensinar: A prática do docente de línguas e seus processos de formação acadêmica - Maria
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