Diário de Cordel Jaziel Cleiton Rautenberg Súmula: Escriler com os trovadores e cordelistas brasileiros, como Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde, José Camelo de Melo Resende, Mestre Azulão, Patativa do Assaré. Usar o humor e a crítica presentes no cordel como uma contraescrita, frente a forma de escrita habitual exigida nas instituições educacionais, contra a inércia do pensamento docilizado. Utilizar o cordel como diário, no qual se registra a própria história, nascem novos personagens, ou são narrados os fatos e notícias do cotidiano. O Cordel e o texto Herança portuguesa, a literatura de cordel se difundiu principalmente no nordeste brasileiro, recebendo modificações e ganhando as mais variadas formas de estrutura para seus textos, havendo hoje mais de trinta modalidades diferentes desse gênero da poesia popular brasileira. Adotado, sobretudo, pelo povo sertanejo e caririense, pobre, praticamente sem acesso a informação e cultura escrita. Os cordéis constituem-se de diversas temáticas, de romances contados em histórias de heróis e fantasias, até registros da realidade diária do sertanejo, retratando suas dificuldades como a seca, o embate com os coronéis ou causos de cangaceiros, mas, além disso, desde seu início e ainda hoje também funcionam como jornal do povo que se espalha para todo canto levando informação: Bem antes do surgimento, da imprensa, do jornal, o Cordel era em geral, a fonte de informação. Os fatos mui relevantes, ou passagens corriqueiras, tinham, de qualquer maneira, no Cordel, divulgação 1. Na forma de repente, no duelo de trovadores com seus violões, ou na forma escrita do poeta de bancada, o cordel possui uma infinidade de estruturas e recursos textuais, sendo seu ingrediente mais particular boas doses de humor, em versos muito bem metrificados e rimas quase sempre perfeitas, o que torna sua leitura bastante 1 MOTTA, 2007. 1 agradável. Mas não é apenas de rimas bem metrificadas e humoradas estórias que se faz um cordel. Usado como meio de informação, o cordelista modifica as histórias para adaptar a forma do cordel. Ao fazer isso, geralmente, adiciona sua opinião acerca do fato contado nos versos, para criticar ou denunciar ações das quais discorda ou considera carecerem de verdade, contando a seu público e mostrando sua posição. Escritos sobre os temas mais variados tudo vira cordel e o cordelista encontra inúmeros elementos textuais para contar suas histórias, servindo-se da ironia e exageros, estereotipando personagens, fazendo críticas sociais e políticas sem perder o ritmo jocoso próprio do cordel. Exemplos disso podem ser encontrados em cordéis como A carta do pistoleiro Mainha à sociedade, do poeta Guaipuan Vieira, A chegada do diabo ao bordel do Big Brother, este, mais próximo de nossos dias, escrito por Marcos Haurélio e em vários cordéis de Patativa do Assaré, como O doutor raiz e Glosas sobre o comunismo, com um trecho a seguir: Mote O comunismo fatal não queremos no Brasil Glosas Será muito natural nossa pátria entrar em guerra ao chegar em nossa terra o comunismo fatal; do sertão à capital nosso povo varonil há de pegar no fuzil em defesa da nação: que esta cruel sujeição não queremos no Brasil2. Outro exemplo do uso do cordel como mecanismo de crítica pode ser percebido nos versos de Leandro Gomes de Barros, no cordel Imposto de honra: O velho mundo vai mal. E o governo danado Cobrando imposto de honra Sem haver ninguém honrado. E como se paga imposto Do que não tem no mercado? Procurar honra hoje em dia É escolher sal na areia Granito de pólvora em brasa Inocência na cadeia 2 SILVA, 2006, p.106. 2 Água doce na maré Escuro na lua cheia3. O recurso a elementos como a ironia, estereótipos e exageros, bem como a utilização de mitos e lendas, somados a ausência de imparcialidade de quem escreve, que se coloca sempre como um vivente-autor, mais a linguagem despreocupada preenchida por regionalismos e o humor que permeiam os versos, facilitam o diálogo do leitor com o texto. O que permite o surgimento de infinitas linhas de possibilidades que se espalham numa perspectiva rizomática, colocando quem lê em uma atitude de coautoria do cordel, em posse de múltiplas entradas e saídas, perpassando o texto lido, indo além de seus limites em duelos de versos inesgotáveis. O cordel possui um tempo particular: alterna a velocidade absurda e as paradas preguiçosas de quem lê, vive e ao mesmo tempo escreve a história. Pelo cordel, o escritor é personagem vivo do próprio texto: "A receita também mostra/ O cordel como mensagem,/ O autor vira um ator/ Do seu próprio personagem,/ E assim o poeta faz/ Mais perfeita a sua imagem." 4 , sendo levado pela escrileitura a lugarizações e intensidades desconhecidas, únicas, atemporais. Da proposta Utilizar a literatura de cordel como uma microescritura de ação-intervenção entre autor-texto-ambiente. Junto aos estudantes que são os personagens menores, porém não menos importantes, dessa instituição Escola, esta oficina propõe o uso do cordel como uma escritura-menor que se manifesta aos moldes das micropolíticas de escrileituras5, na qual o texto é instrumento de relação dos alunos com o espaço e com personagens da escola, os quais podem tornar-se, também, personagens das narrativas do cordel. Nesse movimento, o cordel vira diário, lugar de registro de viveres, nascimento de personagens, onde histórias são contadas, fantasias e fabulações criadas, os alunos descobrem-se como produtores-tradutores de perceptos, afectos, conceitos, significações 6 . Com isso, o grupo se percebe em uma perspectiva mais ativa no ambiente escolar, fazendo surgir pequenas fissuras, espaços de movimento, denunciando, pelas rimas humoradas, sarcásticas e estereotipadas do cordel, suas 3 BARROS, s/d. VALE, 2009. 5 HEUSER, 2011. 6 DALAROSA, 2011. 4 3 impressões, desejos, elogios e aflições para com este lugar. O que os fará complexificar a própria capacidade de analisar, variar, criticar, pensar seu dia-a-dia, entalhando linhas, vislumbrando horizontes e modificando a realidade própria à medida que cada escrileitor se modifica pelo ler-escrever do texto. Ai! Se sêsse!...7 Dos Procedimentos I. Poesia popular da região nordeste do Brasil, a literatura de cordel é pouco conhecida nas outras regiões, menos ainda no Sul. Para situar a todos quanto a temática da oficina, cabe uma breve introdução sobre o que é o cordel, sua origem portuguesa, suas personagens, curiosidades, seus enredos transformados em livros, filmes ou novelas, como é o exemplo da obra literária que inspira o filme de mesmo nome O auto da Compadecida, baseada em três folhetos de cordel: O Testamento do Cachorro – que na verdade é um trecho do cordel intitulado O Dinheiro – e O Cavalo que Defecava Dinheiro, ambos de Leandro Gomes de Barros, considerado o fundador da literatura de cordel brasileira; o terceiro folheto é O castigo da soberba do poeta Silvino Pirauá. Indicações sobre o cordel e sua história podem ser encontradas em sites como o da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (http://www.ablc.com.br/historia/hist_cordel.htm) que também disponibiliza inúmeros folhetos digitalizados; também em diversos blogs, com informações e curiosidades, como: http://www.infoescola.com/literatura/literatura-de-cordel/. No ano de 2012 tivemos a presença do cordel no enredo de várias escolas de samba dos carnavais paulista e carioca, como da Salgueiro que desfilou o tema "Cordel branco e encarnado" homenageando a literatura de cordel e da escola Unidos da Tijuca que homenageou o rei do baião Luiz Gonzaga sob o enredo "O dia em que toda a realeza desembarcou na Avenida para coroar o Rei Luiz do Sertão". Além disso, o programa Globo Rural da emissora de TV Rede Globo fez, em dois de janeiro de 2011, um especial de aniversário dedicado à literatura de cordel, disponível no site do Youtube no endereço: http://www.youtube.com/watch?v=7DosjK6GSUQ. 7 Título de um cordel de Severino de Andrade Silva, cuja alcunha entre os poetas é Zé da Luz. 4 II. Após conhecido um pouco da história e dos personagens da literatura de cordel, o passo seguinte é infiltrar-se no ambiente do cordel, com seus versos e rimas soantes. Neste momento de encontro entre os participantes e o cordel, as imagens podem fortalecer a sonoridade e intensidade dos versos, assim, a apresentação do curta-metragem Até o sol raiá pode coroar esta desterritorialização, saindo de um ambiente comum para adentrar em um mundo novo proporcionado pelos versos de nossos poetas cordelistas. III. Exibido o curta, é chegada a hora da ação, de saber, enfim, o que é o cordel. Lança-se um modesto desafio, porém não tão simples quanto possa parecer. Para poder traduzir sentidos, afectos, vidas... em cordel, não basta saber teoria, ouvir falar da métrica. É a culminância da oficina de escrileituras pelo cordel, em que se concebe, conforme texto de Patrícia Dalarosa, "a ideia da escrita como um processo de escrileitura, remetido a uma escrita-pela-leitura ou uma leitura-pelaescrita, propõe um texto aberto às interferências do leitor e, portanto, escrevível ou traduzível de várias formas" 8 . Sendo assim, a leitura do cordel – que é intensificada quando lido em voz alta, entoando o seu ritmo próprio – se faz necessária e, sobretudo, prazerosa, a fim de aprender sua métrica, sentir a simplicidade de seus versos, a elegância de suas rimas. Aqui, supõe-se que o estudante aprende a escrever cordel enquanto infiltra-se na poesia, furtando os saberes à medida que recita versos, canta trovas e encena duelos. Nesse mesmo tempo, é transformado também em ator da história, tomado de si pelo prazer de ler e, por um momento, pertencendo ao texto. IV. Sem perder o embalo, roubando a métrica e a rima dos cordéis para si, é lançado um segundo desafio: escrever e entoar as próprias rimas, fazer-se, finalmente, escrileitor. Como a luz que transpassa um prisma, incidindo branca ao adentrar seu corpo, modificando-se enquanto passa por ele, emergindo do outro lado em forma de espectro – feixes luminosos de diferentes cores –, em um fenômeno de refração9, assim também ocorre com o escrileitor cordelista. Quando lê um texto, insere-se nele, incidindo sobre ele como a luz em um prisma, tomando o texto pra si e sendo modificado por ele, na medida em que o texto é um meio diferente do seu, emergindo deste em cores, intensidades, intencionalidades diversas, 8 DALAROSA, 2011 , p.15. "A refração da luz é a mudança na direção de propagação dos raios luminosos quando estes passam de um meio para outro meio diferente, como o ar e a água. A refração acontece devido ao fato de a luz se propagar com velocidades diferentes em meios diferentes." (VALIO, 2009, p.307). 9 5 transcendendo-o e voltando a seu meio anterior, sua realidade, agora para atuar sobre ela com novos olhos, traduzindo-a em forma de cordel e dispersando-a10. Referências ARAÚJO, A. Ana Paula de. Literatura de cordel. 2007. Disponível em: <http://www.infoescola.com/literatura/literatura-de-cordel/> Acesso em: 23 fev. 2012. ATÉ o Sol Raiá. Direção e Roteiro: Fernando Jorge e Leandro Amorim. Produção: Amaro Filho; Claudia Moraes e Rafael Coelho. Pernambuco. Fantoche Studio e Página 21, 2007, 11min. Curta-metragem, animação. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=xBY18HuLFbE> Acesso em: 14 fev 2012. BARROS, Leandro Gomes de. Imposto de honra. Disponível em: <http://www.ablc.com.br/popups/cordeldavez/cordeldavez015.htm> Acesso em: 08 mar. 2012. DALAROSA, Patrícia Cardinale. "Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida". In.: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.) Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011, p. 15-29. GLOBO RURAL. Direção: Humberto Pereira. Edição: Helen Martins e Lucas Battaglin. Rede Globo de Comunicações, 2011. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=7DosjK6GSUQ> Acesso em: 13 mar. 2012. GRILLO, Maria Ângela de Faria. A literatura de cordel e o ensino da história. 2008. Disponível em: <http://www.pgh.ufrpe.br/ARTIGO_ANGELA_2.pdf> Acesso em: 07 fev. 2012. HEUSER, Ester Maria Dreher. "Linhas para uma (micro)política de escrileituras: ler e escrever em meio à vida e às políticas de Estado". In.: _____ (Org.) Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011, p. 111-120. 10 "Quando um feixe de luz policromática sofre refração, ocorre a separação do feixe único em feixes das várias cores que compõem essa luz. Esse fenômeno de separação de um feixe de luz em diferentes cores é chamado de dispersão." (Idem, p.318). 6 LINHARES, Francisco; BATISTA, Otacílio. Gêneros de poesia popular. Disponível em: <http://www.bahai.org.br/cordel/default.htm> Acesso em: 29 fev. 2012. MOTTA, Roberto Coutinho. O cordel em cordel: história da literatura do cordel em versos. 2007. Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/cordel/684233> Acesso em: 23 fev. 2012. MOURA, Paulo. A origem da nossa literatura de cordel. 2011. Disponível em: <http://educarcomcordel.blogspot.com.br/2011/01/origem-da-nossa-literatura-decordel.html> Acesso em: 25 jan. 2012. SILVA, Antônio Gonçalves da. "Glosas sobre o comunismo". In.: CARVALHO, Gilmar de. Cordéis e outros poemas: Patativa do Assaré. 2006, p. 106-111. Disponível em: <http://www.4shared.com/office/sVKKCJm3/Patativa_do_Assar_- _Cordis_e_O.html> Acesso em: 25 jan. 2012. SILVA, Marcos Mairton da. A técnica de fazer cordel. 2007. Disponível em: <http://mundocordel.blogspot.com/2007/10/tcnica-de-fazer-cordel.html> Acesso em: 30 jan. 2012. SILVA, Severino de Andrade. Ai! Se sêsse!.... Disponível em: <http://www.ablc.com.br/cordeis/cordeis.htm> Acesso em: 22 mar. 2012. VALE, Mundim. Receita para cordel. 2009. Disponível em: <http://www.limacoelho.jor.br/vitrine/ler.php?id=2839> Acesso em: 27 fev. 2012 VALIO, Adriana Benetti. Ser protagonista: Física 2. São Paulo: Edições SM, 2010. 7