NAS TRAMAS DA REPRODUÇÃO: AUTOGESTÃO E HETEROGESTÃO NA PRODUÇÃO DE HABITAÇÃO POPULAR Sandro Barbosa de Oliveira 1 Resumo Na medida em que a compreensão da produção social do espaço permitiu apreender os nexos da reprodução social de relações determinadas, deixou aberturas para se pensar suas transformações no espaço urbano. Nesta comunicação, pretendo analisar e problematizar a produção e a apropriação do espaço urbano a partir da habitação popular, que se apresenta como uma chave importante no entendimento da problemática urbana e de seus conflitos sociais inerentes, e de suas formas de produção e gestão – autogestão e heterogestão –, ao apresentar tendências e contradições na relação entre concepção, excecução e apropriação. Palavras-chave: produção social do espaço; autoconstrução; autogestão; heterogestão. Introdução O tema da reprodução social dividiu opiniões e áreas de conhecimentos nas ciências sociais. No campo da produção habitacional, o processo de ampliação da produção de Habitação de Interesse Social no Brasil tornou-se um indicador do nível da reprodução social, ao demonstrar que na garantia da necessidade de moradia aos determinados grupos e segmentos sociais no espaço urbano existe um padrão de reprodução social se produzindo. Historicamente, a produção de habitação popular se configurou a partir de três vertentes distintas: 1º) a autoconstrução generalizada, como forma “precária” produzida por trabalhadores de baixa renda; 2º) a heterogestão planejada, produzida por empreiteiras em larga escala subsidiada pelo Estado; e 3º) autogestão planejada, produzida e gerida por movimentos populares de moradia. Com bases nesta três vertentes, pretendo analisar algumas contradições relativas a dinâmica da produção social do espaço a partir de suas relações sociais no processo de trabalho, com o objetivo de expor os nexos entre a reprodução social na reprodução do espaço urbano. Cabe destacar que na produção capitalista do espaço a terra e a moradia tornaram-se mercadorias, e este espaço produzido passou a ser cada vez mais um espaço urbanizado. Através da dimensão da moradia, problematizarei as análises sobre o padrão recente de 1 Sandro Barbosa de Oliveira, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. Email [email protected] 2 urbanização nas cidades brasileiras, aliada ao processo de especulação, de renda por localização e de intensas remoções de favelas. A hipótese a ser desenvolvida é a de que a produção e a apropriação da habitação popular pode permitir a compreensão de aspectos da problemática urbana e de seus conflitos inerentes, que deixou em evidência, como perceberam a geografia e a sociologia urbanas, que as relações sociais que produzem o espaço urbano se situam além das relações de produção de mercadorias. Com efeito, tornou-se necessário superar as interpretações que restringem o entendimento da cidade e do urbano apenas como aglomerado e concentração de produção e de pessoas para a reprodução da lógica de valorização do valor. Esta comunicação objetiva também analisar o aparente distanciamento entre a sociologia do trabalho e a sociologia urbana como fator de influência decisiva nas práticas sociais urbanas. Entre a industrialização e a urbanização: a fase crítica da problemática urbana O processo de produção de Habitação de Interesse Social (HIS), ampliada com os investimentos do Governo Federal a partir de 2003, ocorreu simultaneamente mediante aos sinais de impasses na política urbana decorrente da manutenção do padrão fundiário excludente no Brasil. Se, por um lado, as políticas habitacional e urbana passaram a reunir o acúmulo de duas décadas das forças políticas que construíram as proposições da Reforma Urbana 2, que culminou com a promulgação do Estatuto das Cidades (Lei 10.257/01) e a criação do Ministério das Cidades em 2002, ao anunciar novos tempos para as cidades brasileira, por outro lado, no contexto destas mudanças, alguns aspectos do “poder do atraso” 3 se mantiveram intocados em prol da ampliação do apoio governamental no Congresso Nacional 4, ao permitir que os interesses das forças que detém o poder sobre a produção das cidades prevalecesse com consequente piora na vida social e banalização do espaço urbano 5. 2 O Movimento de Reforma Urbana no Brasil nasceu em 1963 por iniciativa da categoria profissional de arquitetos e urbanistas que haviam acabado de regressar do Congresso Internacional de Arquitetos em Cuba, lugar cuja experiência foi a de um programa radical de reforma urbana. Depois, convergiu com as lutas sociais por moradia junto aos movimentos populares, que construíram a Plataforma de Reforma Urbana com bases em três princípios orientadores: 1) Função social da cidade e da propriedade urbana; 2) Direito à cidade e à cidadania; e 3) Gestão democrática das cidades. 3 José de Souza Martins, O poder do atraso, São Paulo, Hucitec, 1994. 4 Como bem analisou Ermínia Maricato em Os impasses da política urbana no Brasil, Petrópolis, Vozes, 2011. 5 Alvaro Ferreira, A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço, Rio de Janeiro, Consequência, 2011. 3 O espaço urbano, por sua vez, tornou-se simultaneamente o lugar de reprodução das relações sociais de produção e de sua contestação, ao demonstrar em seu movimento uma “nova” centralidade ao atrair para si tudo que nasce. Como espaço social contraditório, tornou-se lugar de encontro e embate entre o movimento de homogeneização, com suas facetas de segregações sócioespaciais entre as classes sociais no espaço produzido, e o movimento de heterogeneização através das diferenças (percebidas e concebidas) nascentes da divisão técnica e social do trabalho. Por esta razão, a compreensão da dinâmica de produção social do espaço e sua consequente apropriação passaram a ser fundamentais, o que possibilitaria enxergar os nexos entre a reprodução social na reprodução do espaço urbano, ao exigir uma teoria social que permita apreendê-la sob a tríade – cotidiano, urbano e espaço. Decorrente do processo de industrialização dependente e urbanização 6 periférica, o espaço urbano brasileiro se configurou com bases na herança colonial patrimonialista e da privatização do espaço público. Neste processo ocorreu a explosão da autoconstrução generalizada de moradias precárias como fator das despossessões urbanas e dos grandes conjuntos habitacionais construídos no período do Banco Nacional de Habitação (BNH) 7 por empreiteiras subsidiadas pelo Estado nas bordas das cidades. Ambas experiências demonstram a história das periferias nas cidades, na qual os trabalhadores chegaram antes mesmo do que a infraestrutura urbana nestas localidades. Esse fenômeno foi visto por um período sob o aparente caos urbano existente, mas foi desvelado por Lúcio Kowarick (1982) através da noção de lógica da (des)ordem, ao demonstrar que o caos na urbanização esteve relacionado a própria ordem da racionalidade capitalista que, quando operada por diversos agentes e sem planejamento, resultaria numa desordem urbana bem localizada. Em meio a tal desordem urbana consolidou-se cidades que combinaram diversas formas de urbanização. Por sua vez, uma parte significativa da infraestrutura urbana foi produzida pelo Estado através de um planejamento estruturador, ao expressar o crescimento das funções públicas do Estado 6 Por urbanização entendo o processo de produção de infraestrutura urbana para reprodução social que reúne as múltiplas necessidades sociais relativas à habitação, canalização de água e esgoto; a pavimentação de ruas e avenidas; a instalação de escolas, creches e postos de saúde e hospitais; a consolidação de transporte coletivo e público; e espaços para prática do comércio local de alimentos e vestuários que permita a reprodução da vida em sociedade, e que contribuiu para gerar também um modo de vida urbano na cidade. 7 O BNH foi criado após o golpe militar de 1964 como uma das prioridades do regime, e um dos fatores decisivos para sua implementação às avessas foram os impactos causados em todos os povos da América Latina pela reforma urbana radical do processo revolucionário cubano, aspecto destacado pela antropóloga Alba Zaluar em A máquina e a revolta, ao analisar também a origem dos recursos oriundos da Aliança para o Progresso, instituição estadunidense que financiou os golpes e programas “sociais” nas economias latino-americanas. 4 (transportes, educação, etc.) e demonstrar a existência das relações de classes com a tendência e a predominância de interesses privados sobre os públicos em determinadas localidades 8. O caso da autoconstrução generalizada no Brasil, diferentemente das economias sob o Estado de Bem-Estar Social, demonstrou como característica principal a externalização dos custos da reprodução da força de trabalho aos próprios trabalhadores, que construíram por “conta própria” suas residências, e do acesso informal à terra ao produzir a chamada “cidade informal”, numa formação socioespacial em desenvolvimento sob a regulação de um Estado político que mais parecia de “Mal Estar Social”, como bem percebeu Francisco de Oliveira. Essa necessidade fez emergir iniciativas através da ajuda mútua durante a ascensão das lutas populares em meados da década de 1980, que resultou nas experiências dos mutirões autogeridos, influenciadas pela experiência uruguaia de organização popular que deram origem na década de 1960 à FUCVAM (Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivenda por Ayuda Mutua) 9, central de cooperativas habitacionais que desenhou as primeiras formas de uma política habitacional na América Latina que permitia a relação entre população organizada, técnicos e poder público 10. Com efeito, a influência uruguaia chegou com força ao Brasil através do movimento popular de moradia. Em seu encontro com o movimento de técnicos e arquitetos, possibilitou que a produção de habitação popular passasse a ser autogerida por movimentos de moradia com a assessoria técnica de arquitetos, subsídiada e financiada pelo Estado através das chamadas políticas públicas, numa tentativa de superação da autoconstrução generalizada e da produção por empreiteiras em larga escala, ao buscarem as condições de qualidade e a conciliação entre produção e apropriação do ambiente urbano habitado. Essas experiências tiveram o seu ápice ao final da década de 1980 e início da década de 1990, e foram potencializadas no município de São Paulo durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1992) do Partido dos Trabalhadores, que ainda esboçava um projeto democrático popular ao aglutinar as diversas expressões de lutas sociais da classe trabalhadores, resultante dos movimentos sociais populares que nas décadas de 1970 e 80 questionaram o Estado como 8 Sobre a privatização do espaço público ver a problematização na dissertação de mestrado Tiarajú Pablo D’Andrea, Nas tramas da segregação: o real panorama da polis, São Paulo, FFLCH-USP, 2008. 9 José E. Baravelli, O cooperativismo uruguaio na habitação social de São Paulo: das cooperativas FUCVAM à Associação de Moradia Unidos de Vila Nova Cachoeirinha, Dissertação de Mestrado, FAU-USP, 2006. 10 Coletivo Usina, “Reforma Urbana e autogestão na produção da cidade: história de um ciclo de lutas e desafios para a renovação da sua teoria e prática”, em Gestão Pública e Sociedade: fundamentos e políticas públicas de Economia Solidária, São Paulo, Outras Expressões, vol. 2, 2012. 5 lugar e instrumento privilegiado das mudanças sociais 11. Atualmente, houve uma inversão em decorrência da extensiva escala da desmobilização e esvaziamento dos movimentos sociais, com poucos indivíduos progressistas que defendem o direito à cidade no aparelho de Estado 12. Após o “boom” das experiências de mutirões autogeridos, sobretudo nas cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, e a retormada da produção de HIS nós últimos dez anos, quais seriam os nexos que poderiam contribuir no desvelamento das contradições e causas de determinados conflitos urbanos emergentes atualmente a partir do problema da moradia? E em que medida as experiências atuais dos movimentos populares de moradia conseguem influenciar as políticas habitacionais e urbanas, no sentido de garantir o direito à cidade? Primeiramente, tornou-se necessário superar as análises que restringem o entendimento da cidade e do urbano apenas como aglomerado e concentração de produção e pessoas para a reprodução da lógica das mercadorias. O processo de industrialização dependente gerou um tipo de urbanização periférica, e deixou em evidência, como percebeu a geógrafa urbana Ana Fani 13, que as relações sociais que produzem o espaço urbano se situam além das relações de produção de mercadorias. Esta constatação permite apresentar um problema teórico de difícil resolução, cuja dificuldade está em como interpretar o processo de reprodução social a partir da produção e apropriação do espaço urbano. Sua resolução parte de observações empíricas e teóricas das práticas sociais, aspectos que não serão resolvidos nesta comunicação. Ademais, a hipótese sobre a mudança no caráter de urbanização parte especificamente dos impactos da produção de habitação e infraestrutura urbana, em particular da produção de habitação popular no Brasil a partir do ano de 2009, com o lançamento do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV). A problemática urbana e seus conflitos inerentes estiveram às margens da teoria social por um tempo, e as determinações de seu movimento apareceram de maneira fragmentada nos campos da arte, da literatura e das ciências parcelares, como o urbanismo, a arquitetura, a geografia, a sociologia, etc 14. Ao passar ao domínio do urbanismo e da 11 Como percebeu Eder Sader em Quando novos personagens entram em cena, São Paulo, Paz e Terra, 4ª Ed., 2001. 12 Ermínia Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, Petropólis, Vozes, 2011, p. 84-85. 13 14 Ana Fani Alessandri Carlos, A (re)produção do espaço urbano, São Paulo, Edusp, 2008. Sobre a crítica às ciências parcelares e à fragmentação urbana ver Henri Lefebvre em A revolução urbana. 6 sociologia urbana, a chamada questão urbana foi apropriada pelo pensamento crítico, uma das fontes desta análise. Como analisou Ermínia Maricato (2011 : 121): o “pensamento crítico” bebeu em duas fontes teóricas principais: os marxistas que fizeram um esforço internacional para analisar o espaço urbano seguindo as lógicas de acumulação de capital e produção e apropriação do valor. Dentre eles ocupou um espaço de influência na chamada “escola francesa de sociologia urbana” que se desenvolveu na França a partir de 1968. A segunda fonte diz respeito aos autores que pensaram a sociedade brasileira. Entre os autores marxistas que pensaram a formação social brasileira pode-se destacar dois grupos: os teóricos da industrialização 15 e os teóricos da urbanização 16 que, inseridos no debate em âmbito continental junto aos teóricos latinoamericanos, formularam uma teoria da urbanização sobre as economias da periferia do capitalismo com bases em sua relação com a dependência econômica, o subdesenvolvimento e o imperialismo. Um dos problemas dessas primeiras teorias sobre o urbano no Brasil, apoiadas inicialmente nas reflexões de Manuel Castells (1983), esteve relacionado à compreensão da produção do urbano como reflexo da produção econômica, concepção que não havia permitido uma interpretação própria das formas assumidas pela produção capitalista do espaço urbano. A plena consciência de que o espaço urbano é produzido foi um marco na história da geografia urbana e do urbanismo como percebeu Flávio Villaça 17. Para ele superar a mera descrição do espaço para compreender os nexos entre espaço e sociedade remete a um campo da geografia urbana (e não só da geografia) aberto por Henri Lefebvre. A partir de então, foi possível se pensar uma interpretação própria sobre produção capitalista do espaço urbano, ao analisar a “problemática urbana” com o ponto de partida no processo de industrialização – o motor das transformações na sociedade. Lefebvre (2008) percebeu que há historicamente um choque violento entre a realidade urbana e a realidade industrial, destacou que a crise da cidade – ou crise urbana – era resultado da lógica de produção de mercadoria sob diversas dimensões, que durante o século XX transbordou da produção nas fábricas para a produção do urbano, que ele definiu como lugar da expressão dos conflitos sociais, ao demonstrar que houve um deslocamento de problemática para a espacialidade urbana, após uma sucessão de níveis complementares entre o rural, o industrial e o urbano, cujo predomínio está no urbano. 15 Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista; João Manual C. Mello, Capitalismo Tardio; entre outros. Lúcio Kowarick, A espoliação urbana e a Lógica da desordem; Paul Singer, Economia política da urbanização; Ermínia Maricato, A produção da casa (e da cidade) no Brasil industrial; entre outros. 17 Flávio Villaça em Mariana Fix, São Paulo: cidade global, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 8. 16 7 Na produção capitalista do espaço a terra e a moradia tornaram-se mercadorias, e este espaço produzido passou a ser cada vez mais um espaço urbanizado ao reunir o nível privado da moradia, cuja condição social representa simultaneamente um dos espaços da reprodução social e da produção do espaço urbano. A análise atenta sobre as formas de produção habitacional, pode permitir identificar o padrão recente de urbanização nas cidades brasileiras, aliada ao processo de especulação imobiliária, de renda por localização e de intensas remoções de favelas. Por sua vez, a moradia representa um espaço social e físico para um indivíduo ou um conjunto de indivíduos, cuja finalidade é propiciar abrigo e proteção dos fenômenos da natureza (chuva, vento, calor e frio) e de ataques de terceiros. Enquanto residência, representa simultaneamente um lugar territorial e social, ao expressar as necessidades de abrigo, referência e privacidade dos indivíduos, e tornou-se uma mercadoria complexa e cara não acessível ao conjunto da população de determinadas cidades. Sua história social recente é atravessada pelo urbano através da distinção entre habitat e habitar, que apresentam uma oposição inerente não apenas ao modo de produção capitalista, mas à respectiva formação sócioespacial das cidades brasileiras, que reúnem diversos sub-modos de produção sob a hegemonia da lógica da valorização do valor, e que expressa a especificidade da produção capitalista do espaço urbano em território tupiniquim. A compreensão da relação dialética e da consequente oposição entre habitat (habitação como necessidade à sobrevivência) e o habitar (apropriação do lugar para a vida) pôde revelar, nas análises lefebvrianas 18, as limitações do pensamento urbanístico que reduziu simultaneamente as aspirações humanas ao deixar de lado a noção de habitar, e reforçar o movimento da realidade que consiste numa ordem urbana que contém e dissimula uma desordem fundamental, por intermédio da generalização da segregação sócioespacial. As práticas sociais do urbanismo planejador revelam uma forma de pensar que passou a conceber o habitar numa condição de função simplificadora, ao transformar o habitar em habitat e restringir o ser humano há alguns atos elementares: comer, dormir, reproduzir-se. Para Lefebvre o problema mais agravante é que o habitat como teoria e prática recalcou o habitar na inconsciência, ao deteriorar fortemente suas características de diversidades das maneiras de viver, dos tipos urbanos, e de valores culturais ligados a vida cotidiana. A problemática da moradia e da urbanização capitalista não foram tratadas com profundidade pela literatura da sociologia industrial e do trabalho, que está farta de estudos 18 Henri Lefebvre, A revolução urbana, Belo Horizonte, 1999. 8 sobre indústria, relações e ambientes de trabalho com ênfase na relação entre trabalhadores e gerentes nos setores industrial, comercial e de serviços, com muitos estudos baseados na centralidade do trabalho na vida social 19. Essas importantes interpretações buscaram a compreensão da produção e da reprodução das relações de produção no âmbito da indústria, do comércio e do serviço, mas não avançaram na compreensão da sociedade urbana nas dimensões e níveis tratados pela sociologia e geografia urbanas. Neste contexto, as abordagens do marxismo vulgar deram margem para crítica que emergiu nas décadas de 1970 e 1980 à centralidade do trabalho e ao paradigma da produção 20, que influenciou gerações de cientistas sociais, e demonstrou também uma “diápora” no campo do conhecimento entre os teóricos da produção e do mundo do trabalho, com os teóricos da linguagem, da vida cotidiana e do “mundo vivido”, que reflete a fragmentação das ciências especializadas e os campos do conhecimento nas ciências sociais 21. Talvez não perceberam que o mundo vivido de que falam é expressão do fenômeno urbano, e suas orientações contribuiram para mergulhar a teoria social numa problemática teórica a ser resolvida. Por isso, considerar teoricamente o fenômeno urbano a partir da moradia permitiu uma chave para compreender a relação entre espaço, cotidiano e urbano, ao possibilitar a percepção da inter-relação entre estas três dimensões no mesmo espaço social – a moradia e o habitar –, e encontrar um ponto de partida de análise: a forma urbana que, em sua condição de disposição espacial nas cidades e em seus territórios, oculta e revela simultaneamente as contradições do espaço socialmente produzido. Ao ocultar as contradições sob forma de mistério, a forma urbana esconde por trás de suas aparências o conjunto de relações entre produção e reprodução social, ao velar nas tramas das relações sociais as condicionantes sociais sobre a valorização de localidades para os empreendimentos imobiliários, com a construção de infra-estrutura urbana, imóveis bem localizados, e etc., representadas por 19 Segundo a socióloga do trabalho Nádia Guimarães (2009) trabalho, emprego e empresa se constituíram em campos temáticos independentes, remetendo-se, cada um deles, a dimensões próprias da vida social, a saber: o processo de trabalho, o mercado de trabalho e a firma. 20 Entre os críticos se destacaram André Gorz, Adeus ao proletariado; Clauss Offe, Trabalho: a categoria sociológica chave?; Ralf Dahrendorf, As classes e seus conflitos na sociedade industrial; e Jurgen Habermas, que, de maneiras distintas, procuram demonstrar que o trabalho deixou de ser a centralidade da sociedade. 21 Além do mais, os teóricos da linguagem e do mundo vivido fizeram um deslocamento de problemática da centralidade do trabalho ao mundo da vida e do cotidiano, ao desconsiderarem que o trabalho é central no capitalismo porque é historicamente determinado, e de que há uma distinção fundamental feita nas obras de Marx, sobretudo em O capital, entre trabalho socialmente necessário e atividade prática transformadora, que envolve pensar a produção social da vida para além da forma trabalho abstrato. Essa atividade transformadora está sob domínio do trabalho abstrato, e aparece como núcleo fundamental de entendimento da sociabilidade criadora e inventiva, que demonstra as dimensões do trabalho concreto. 9 agentes econômicos (empreiteiras, construtoras, escritórios de arquiteturas, etc.) e políticos (prefeituras, etc.), que atuam de forma ativa na definição de produção e valorização de determinadas paisagens urbanas 22. Ao possibilitar a compreensão das sutilezas e intensidades destas contradições, a forma urbana permite o acesso ao desvelamento dos conteúdos mais elementares do espaço social produzido que, por sua vez, representa um conjunto de relações sociais predominantes no urbano, como expressão cumulativa de todos os conteúdos no âmbito da reprodução social de um tipo de sociedade 23, ao permitir encarar a problemática urbana como tendência para a destruição da cidade pela intensificação do urbano 24. Desta maneira, pode-se extrair da forma urbana a função e a estrutura, como uma estratégia de se aproximar da dinâmica do real e se abrir para compreender o movimento da realidade mediante àquilo que suas contradições apresentam de possibilidades de superação, como elemento do devir 25 anunciado pelo movimento de suas contradições sociais. Contudo, a tríade forma, função e estrutura são insuficientes para apreender o movimento da realidade no urbano, e compreender sua expansão é condição fundamental para a teoria social. Isso posto, a expansão do espaço urbano, ao tornar o espaço social em mercadoria na garantia de maiores lucros, busca localidades onde a terra é mais barata 26, embora ainda não haja infraestrutura. Essa expansão está associada ao processo de trabalho da construção civil, uma das dimensões pouco discutidas pela sociologia do trabalho, mas abordada pela sociologia urbana e pelos urbanistas, que não chegaram a aprofundar os múltiplos aspectos da teoria do valor 27 no processo de trabalho na produção do espaço. Por esta condição, a problemática urbana está situada para além dos campos da sociologia urbana e da sociologia do trabalho, ao exigir a interdisciplinaridade entre as ciências parcelares na busca da compreensão entre produção e reprodução social na relação industrialização-urbanização. Com isso, as barreiras de classes na sociedade urbana se dispõem também como barreiras espaciais, e compreender a 22 Mariana Fix em São Paulo cidade global percebe que um dos fatores estratégicos da valorização patrimonial é a criação de novos pólos na qual os investidores procuram estar no vetor de valorização para capturar o diferencial da renda imobiliária, 2007, p. 49. 23 Ver a análise da forma urbana em Henri Lefebvre, A revolução urbana, Belo Horizonte, 1999, p. 111. 24 Henri Lefebvre, O direito à cidade, São Paulo, Centauro, 2009, p. 85. 25 Sobre o devir ver Henri Lefebvre, O fim da história, Lisboa, Dom Quixote, 1971; e Jesus Ranieri, Trabalho e dialética, São Paulo, Boitempo, 2011. 26 Em A propriedade contra a posse Ricardo Baitz (2007) demonstra como se expressa as mudanças introduzidas com o Estatuto das Cidades do processo que fragmenta a propriedade em elementos distintos, tais como posse, propriedade, direito de construir e direito de superfície. Segundo ele, esses elementos são trabalhados enquanto uma necessidade do sistema. 27 O estudo de Pedro Fiori Arantes em A arquitetura na era digital-financeira procura avançar na análise da crítica à economia política através da produção de projetos arquitetônicos de excesso e de exceção. 10 dinâmica da reprodução social exige a apreensão da produção social do espaço, ao delimitar as formas de sociabilidade padronizadas na fragmentação do espaço urbano. Os desafios da autogestão num contexto de heterogestão na produção habitacional Em meio ao emaranhado diverso de experiências na produção social do espaço, a produção habitacional ao lado da produção de infraestrutura se destacam nos últimos anos no Brasil. No segmento da produção habitacional, houve historicamente três formas de produção e gestão cujas características foi a da produção do produto final – a habitação –, sendo duas destas predominante e outra residual: 1º) a autoconstrução, como forma “precária” de construção privada e particular de habitação popular; 2º) a heterogestão planejada e tradicional, especificamente por empreiteiras em sua produção em larga escala e subsidiada pelo Estado, com o objetivo de atender a demanda privada com recursos públicos; e 3º) a autogestão participativa e planejada, na relação entre movimento popular de moradia, assessorias técnicas e poder público. Essas formas de produção definiram a cadeia produtiva da construção civil no âmbito da produção habitacional popular, e consequentemente as diversas expressões de distribuição dos rendimentos, circulação de materiais, valores e trabalho assalariado, e consumo da força de trabalho, de materiais e do local produzido. O conceito de autogestão 28 pode ser visto como uma síntese de múltiplas experiências coletivas de auto-realização e auto-determinação dos produtores ocorridas em diversos momentos da história social, e seu uso e apropriação por diversos agentes revelam as controvérsias, distorções e polêmicas no seu emprego e na banalização recorrente para definir experiências que estão longe de serem autogestionárias 29. Nos casos das experiências de mutirões autogeridos na produção de habitação popular, a autogestão possibilizou alguns 28 Alain Guillerm e Yvon Bourdet em Autogestão: uma mudança radical demonstram que o termo autogestão se origina para caracterizar a organização dos detidos numa célula presidiária, embora estes se encarreguem por rodízio da “missão de despejar o urinol.” Os prisioneiros têm igualmente liberdade a palavra e direito à autogestão. A autogestão apareceu em língua francesa no início dos anos 1960 como autogestion, tradução literal da palavra servo-croata samoupravlje (“samo” é o equivale eslavo do termo grego “auto”, e”upravlje” significa aproxidamente “gestão”). De lá para cá foi apropriada e utilizada por diversos grupos e organizações (partidos, sindicatos, coletivos, grupos de estudos, etc.), e sua origem remonta uma forma de designar a experiência política, econômica e social na Iugoslávia de Tito, em ruptura com o Stalinismo. 29 A autogestão é um tema recorrente em Tragtenberg, Reflexões sobre o socialismo, ao demonstrar o processo histórico das lutas dos trabalhadores, que oscilou entre a capacidade de criar novas relações sociais e igualitárias e sua deformação em relações desiguais e hierárquicas quando os partidos substituem os trabalhadores na direção política. Diz que a classe trabalhadora cria os embriões do socialismo pela prática da ação direta contra o capitalismo, unificando decisão e planejamento e eliminando a divisão tradicional de trabalho entre os que pensam e os que fazem. 11 avanços sob um duplo caráter ao permitir: 1º) gestões e decisões coletivas de recursos financeiros, inovações tecnológicas, políticas de convivências, relações de trabalho e níveis de produtividade com bases em projetos experimentais e coletivos; 2º) participação e a construção do poder popular através da concepção e execução do projeto habitacional entre arquitetos, cientistas sociais e mutirantes, ao possibilitar formas distintas de consciência social na apropriação do ambiente habitado produzido e do espaço urbano ao qual está inserido. Esse tipo de mutirão autogerido foi possível no canteiro de obras por causa da baixa composição orgânica do capital, o que permitiu um trabalho mais próximo do artesão ainda predominado pela manufatura, e abriu possibilidades para o trabalho experimental e criativo para esses mutirantes, ao mesmo tempo em que os submeteram a uma condição social de trabalho “dobrado”. No Brasil, o histórico de produção de habitação popular demonstrou uma contradição que residiu na combinação entre o rebaixamento da força de trabalho com a dependência externa. A força de trabalho brasileira trabalhava até duas vezes mais para manter a dupla exploração: a manutenção da taxa de mais-valia interna e externa, condição social da dialética da dependência 30 em cidades e metrópoles que estavam em vias de degradação da vida social. É conhecida a analise crítica de Francisco de Oliveira (2003 : 59) sobre a construção das residências pelos próprios trabalhadores ao perceber que: Uma não insignificante porcentagem das residências das classes trabalhadoras foi construída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folgas, fins de semana e formas de cooperação (...) Ora, a habitação, bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não pago, isto é, super-trabalho. Embora esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, pois o seu resultado - a casa - refletese numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho de que os gastos com habitação são um componente importante - e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de ‘economia natural’ dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho. Ademais, o sociólogo de O ornintorrinco analisa com rigor as determinantes do supertrabalho, mas não faz a distinção entre a autoconstrução e o mutirão autogerido, e entre o próprio mutirão e a autogestão. Com isso, deixou de apreender em sua síntese algumas das determinações que tornaram o mutirão autogerido uma referência em termos de autogestão do 30 Em Dialética da Dependência Ruy Mauro Marini articula o caráter dependente das economias periféricas com a superexploração dos trabalhadores como mecanismo fundamental da acumulação capitalista brasileira. 12 ambiente habitado, e de apropriação distinta pelos seus habitantes do espaço urbano, ao se diferenciar da autoconstrução justamente por dispor do trabalho das assessorias técnicas de arquitetura, apesar da validade do conceito inclusive para o mutirão autogerido 31. Não obstante, as pesquisas 32 que analisaram na década de 1970 de que a autoconstrução se generalizaria nas cidades brasileiras por meio do super-trabalho, e reforçaria a exclusão das classes trabalhadoras do mercado formal de terras e de moradias urbanas, revelaram que esta forma de ocupação do espaço urbano passou a ser uma condição necessária para a acumulação capitalista no Brasil, ao incluir como sua componente interna a fragilização do trabalho assalariado. Nestas condições, o mutirão autogerido representou uma superação da autoconstrução, mas conservou a condição social de super-trabalho pelo fato de os mutirantes estarem na condição de trabalhadores assalariados na semana e de mutirantes aos finais de semana, quando produziam parte de suas moradias ao reduzir os custos desta produção. Com isso, as experiências de mutirão autogerido possibilitaram uma espécie de reconciliação entre habitat e habitar, ao sinalizar as bases reais, porém incompletas, da autogestão produtiva e territorial nas cidades, e questionar concretamente as formas convencionais de produção através do espaço produzido, das vivências cotidianas e de um espaço urbano mais socializado. O tipo de reprodução social que essa forma de produção desenvolveu representou uma espécie de farol para as lutas sociais, ao constituir modos de socialização como resultado das decisões política dos agentes envolvidos, através da definição da técnica e do modo de fazer, o rodízio de tarefas e a problematização da questão de gênero no canteiro, o que possibilitou a conquista de qualidade nos projetos habitacionais, ao mesmo tempo em que internalizou o super-trabalho social da produção habitacional aos mutirantes. Em contrapartida, as experiências de produção habitacional por empreiteiras e construtoras, calcadas na heterogestão como forma de gestão pelo outro (empresariado da construção civil) sob as bases de hierarquias e funções estruturais da sociedade definidas pela divisão técnica e social do trabalho, foram ampliadas devido a recente retomada dos investimentos em infraestrutura urbana e habitacional, ocasionada pelo lançamento em 2007 do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Programa Minha Casa, Minha Vida 31 32 Lopes e Rizek (2005) analisam criticamente as potencialidades e limitações dos mutirões autogeridos. Francisco de Oliveira (2003); Lúcio Kowarik (1979); Ermínia Maricato (1982). 13 (PMCMV) em 2009 33, ao intervir pelos programas de urbanização de favelas na recuperação de áreas urbanas degradadas e na produção de provisão habitacional. No país do futebol, o lançamento do PMCMV jogou para escanteio a construção de duas décadas das contribuições do Movimento de Reforma Urbana sintetizada no Plano Nacional de Habitação (PLANAB), e de sua perspectiva de produção habitacional em sintonia com o desenvolvimento urbano. Pedro Arantes e Mariana Fix (2009) perceberam que desde o início o governo Lula destacou que o investimento, apesar de focado na geração de empregos e no efeito econômico anticíclico, teria um perfil distributivista, com o objetivo de dirigir o setor imobiliário ao atendimento da demanda habitacional de baixa renda que o mercado por si só não alcança, e o de fazer o mercado habitacional finalmente incorporar setores que até então não tiveram como adquirir a mercadoria-moradia. O modelo de provisão habitacional que o PMCMV ofereceu foi o de destinar 97% do subsídio público à oferta de produção direta por construtoras privadas, enquanto apenas 3% dos recursos destinados a entidades sem fins lucrativos, cooperativas, movimentos sociais, etc., para a produção habitacional urbana e rural por autogestão. Esse quadro passou a indicar duas tendências: 1ª) de encerramento do ciclo dos mutirões autogeridos para um ciclo de hegemonia das construtoras na produção de habitação popular; 2ª) de um tipo de reprodução social que fortalece a habitação como propriedade privada e funcional na negação do direito à cidade em prol apenas do habitat. Como analisou Ermínia Maricato (2011), “a maior parte da localização das novas moradias – grandes conjuntos sendo alguns, verdadeiras cidades – será definida nos municípios e metrópoles, por agentes do mercado imobiliário sem obedecer uma orientação pública, mas à lógica do mercado”. Em decorrência desta intervenção estatal aliada aos interesses do setor imobiliário, as produções de infraestrutura urbana, de habitação popular e de médio padrão cresceram vertiginosamente no período, e essa ampliação da produção sem a mudança da base fundiária acarretou o aumento de preços de terra e imóveis, o que está tornando as capitais e metropolóles brasileiras lugares caros para se viver. Parece que o capitalismo “neodesenvolvimentista” brasileiro redescobriu na produção ampliada do espaço as garantias de valorização do capital em sua necessidade de reprodução social, aspecto que sustentaria as 33 Anunciada pelo Ministério da Casa Civil da então ministra Dilma Roussef e pelo Ministério da Fazenda de Guido Mantega, o PMCMV foi articulado nos bastidores junto às grandes empreiteiras e construtoras, e foi apresentado como um programa anti-ciclico, no sentido de se contrapor a crise cíclica econômica e financeira de 2008 desencadeada nos EUA, para se contrapor a crise financeira e urbana que estourou em meados de 2008. 14 demais frações do capital social total. Como nas metrópoles e cidades brasileiras ainda há muito o que explorar para crescer, e o setor da construção civil permite a produção de uma enorme massa de valor por reunir características ainda de produção manufatureira, a produção social de espaço urbano no Brasil está provocando um “novo” padrão de urbanização, com seus consequentes conflitos urbanos nas cidades perceptíveis nas centenas de incêndios em favelas, ocupações de prédios abandonados nos centros das cidades e remoção de populações. Não é por acaso que o país sediará simultaneamente os megaeventos Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. No caso das Olímpiadas, que ocorrerá na cidade do Rio de Janeiro, uma das concorrentes direta e que dispunha de 80% das instalações prontas era a cidade de Chicago nos Estados Unidos. E por quê não foi escolhida? Talvez porque na cidade do Rio será necessário fazer todas as instalações, e refazer as instalações do Pan-Americano de 2007. Nos anos de 2010 e 2011 entre as dez construtoras de edifícios residenciais de capital aberto mais lucrativas nas Américas sete foram brasileiras 34, o que demonstra um crescimento no setor de imóveis e de seus ativos financeiros. O crescimento no nível de empregos com carteira assinada no setor da construção civil bateu novos recordes no período 35, e o universo da construção civil 36 cresceu e transpareceu como o setor de brutalidade na produção e de acidentes freqüentes, cujas consequências vêm sendo o registro de muitos óbitos. Seu processo de trabalho está baseado na super-exploração da força de trabalho, cuja organização predominante das relações de produção está estruturada com bases na heterogestão. E reúne diversos agentes que vão desde os setores de produção de cimento, aço e insumos, e seu consequente comércio de materiais de construção e respectivas posições de classe na produção e comercialização, até a produção das unidades e espaços físicos como momento final deste processo para o consumo do lugar 37. E no setor da construção civil a unidade entre processo de trabalho e relações de produção é o que permite compreender a dinâmica de produção do espaço e do ambiente habitado como manifestações da ideologia dominante, que 34 Fonte: Economática. Segundo a pesquisa mensal realizada pelo Sinduscon-SP e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) o setor acumulou até então 12,79% em 2010, com a inclusão de 314,2 mil trabalhadores. No acumulado de doze meses a alta foi de 16,67%, ou mais de 396 mil empregados formais. Com isso, o número de empregados formais na construção civil brasileira em julho de 2010 atingiu 2,771 milhões de trabalhadores. 36 Ainda segundo a pesquisa da FGV, ao final de julho o setor empregava 742 mil trabalhadores no Estado de São Paulo, enquanto na capital paulista foram contratados 2.217 trabalhadores em julho, o que representou um aumento de 0,65% no mês, de 7,34% no ano e de 11,49% em doze meses. 37 Por causa de sua baixa composição orgânica de capital (máquinas, equipamentos etc.) o setor emprega maciçamente, ao contrário dos setores de ponta da indústria automotiva onde se percebeu a diminuição do trabalho vivo no processo produtivo por causa do incremento da composição orgânica do capital, que revelou sinais da diminuição da taxa média de lucro. 35 15 pode ser lida na paisagem do espaço urbano e revelar as tramas entre os setores imobiliário e financeiro na produção capitalista do espaço, e seus tipos de apropriação e consumo. O processo analisado aqui demonstra que a economia brasileira não sofreu ainda drasticamente com a última crise financeira global porque passou a investir também na produção social do espaço. Nesta produção se percebeu a proliferação de condomínios e loteamentos fechados como um aspecto novo no fenômeno urbano que vem se espalhando por todas as metrópoles brasileiras. A urbanista Maria C. D'Ottaviano (2008) aponta que desde o final dos anos 1980 é possível observar um grande aumento no número de condomínios fechados na Região Metropolitana de São Paulo. A proliferação desses condomínios fechados modificou nos últimos quinze anos a configuração espacial de algumas destas áreas, ao alterar o padrão centro rico versus periferia pobre que caracterizou os estudos sobre a RMSP entre os anos 1940 e 1980. Este padrão modificou-se na última década para um modelo fractal de segregação espacial 38, como defendido por Teresa Caldeira (2000) que analisou o novo padrão de segregação espacial ao qual chamou de enclaves fortificados, que trata-se de espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. Portanto, neste “novo” Brasil pretensamente para todos o que se vê são as cidades sendo produzidas e geridas pela lógica do capital, e suas tendências de reprodução social no espaço urbano vem demonstrando os aspectos de confinamento espacial e enclausuramento social 39 cujas manifestações são perceptíveis empiricamente na forma urbana predominante. Sua negação determinada, o movimento de autogestão na produção de habitação popular, vem sofrendo frequentes baixas e boicotes, e avançou pouco para além da moradia neste período. Uma tentativa de síntese a guisa da conclusão Ao possibilitar uma breve reunificação na cidade das cisões provocadas pela divisão técnica e social do trabalho e pela segregação sócioespacial no processo de desalienação da produção, as experiências de mutirão autogerido e autogestão na produção da cidade foram confinadas aos experimentos residuais na disputa do espaço urbano. Seu legado esteve em propor formas de autogestão na produção habitacional e de unidades territoriais. Superou em 38 Para D’Ottaviano (2008) o modelo fractal de segregação espacial, defendida por Teresa Caldeira, não explica sozinho o processo de segregação metropolitana. 39 Loic Wacquant em As duas faces do Gueto desenvolve estas noções para analisar os fenômenos de gueitoização característicos das cidades estadunidenses. Nas cidades brasileiras há similaridades e diferenças quando se observa as favelas e os conjuntos habitacionais produzidos pelos governos de Estados nas periferias. 16 organização política e produção associada às formas de autoconstrução, mas não conseguiu dar o “pulo do gato” e consolidar as cooperativas de trabalhadores na construção civil, até por causa das limitações das leis de cooperativas e de propriedade privada no Brasil. Com a recente expansão e amplos recursos na produção habitacional, essas experiências poderiam contribuir na passagem do lugar do consumo ao consumo do lugar, porque conseguiram conciliar relativamente os momentos de concepção com participação popular; execução, na produção autogestionária; e apropriação, relação de propriedade coletiva e privada. No espaço produzido a obra e o uso não podem ser apagados pelo produto e pela troca, até porque expressa e condiciona relações sociais. Como espaço social contraditório, tornou-se lugar de embate entre os movimentos de homogeneização e heterogeneização, presentes no urbano, na vida cotidiana e no espaço social. Com a expansão da produção capitalista do espaço, através do crescimento da produção habitacional e de infraestrutura urbana, cresceu também os movimentos de especulação imobiliária e financeirização do espaço urbano. Abriu-se com isso um período intenso de conflitos urbanos no e por espaço que remete a compreensão da dinâmica da reprodução social na produção e apropriação do espaço. Esses conflitos se assemelham a uma “cluster bombs”, bomba de fragmentação que, numa unidade contraditória e lançada num território, se pulveriza espacialmente e explode simultaneamente em pequenas bombas, pulverizando o local onde lançada. Diante das clusters bombs no espaço urbano do porvir, e mediante ao choque intenso entre restruturação produtiva, financeirização econômica e urbanização por enclaves fortificados, a sociedade urbana que se configura tende a revelar a dinâmica da história com bases nos conflitos urbanos por moradia como um lugar na cidade e na sociedade; circulação e transporte público, como necessidade de mobilidade e acessibilidade urbana; de violência e segregação urbana, entre outros. Com isso, as experiências de mutirão autogerido mostraram um caminho, com suas limitações, na produção associada do espaço. Cabe agora perceber se na dinâmica de apropriação do espaço urbano em sua amplitude, a utopia aflore diante das contradições entre os espaços concebido, percebido e vivido pelos habitantes da pólis. REFERÊNCIAS ARANTES, Pedro & FIX, Mariana. Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação: alguns comentários sobre o pacote habitacional Minha Casa, Minha Vida. 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