NAS TRAMAS DA REPRODUÇÃO: AUTOGESTÃO E HETEROGESTÃO NA
PRODUÇÃO DE HABITAÇÃO POPULAR
Sandro Barbosa de Oliveira 1
Resumo
Na medida em que a compreensão da produção social do espaço permitiu apreender os nexos
da reprodução social de relações determinadas, deixou aberturas para se pensar suas
transformações no espaço urbano. Nesta comunicação, pretendo analisar e problematizar a
produção e a apropriação do espaço urbano a partir da habitação popular, que se apresenta
como uma chave importante no entendimento da problemática urbana e de seus conflitos
sociais inerentes, e de suas formas de produção e gestão – autogestão e heterogestão –, ao
apresentar tendências e contradições na relação entre concepção, excecução e apropriação.
Palavras-chave: produção social do espaço; autoconstrução; autogestão; heterogestão.
Introdução
O tema da reprodução social dividiu opiniões e áreas de conhecimentos nas ciências
sociais. No campo da produção habitacional, o processo de ampliação da produção de
Habitação de Interesse Social no Brasil tornou-se um indicador do nível da reprodução social,
ao demonstrar que na garantia da necessidade de moradia aos determinados grupos e
segmentos sociais no espaço urbano existe um padrão de reprodução social se produzindo.
Historicamente, a produção de habitação popular se configurou a partir de três vertentes
distintas: 1º) a autoconstrução generalizada, como forma “precária” produzida por
trabalhadores de baixa renda; 2º) a heterogestão planejada, produzida por empreiteiras em
larga escala subsidiada pelo Estado; e 3º) autogestão planejada, produzida e gerida por
movimentos populares de moradia.
Com bases nesta três vertentes, pretendo analisar algumas contradições relativas a
dinâmica da produção social do espaço a partir de suas relações sociais no processo de
trabalho, com o objetivo de expor os nexos entre a reprodução social na reprodução do espaço
urbano. Cabe destacar que na produção capitalista do espaço a terra e a moradia tornaram-se
mercadorias, e este espaço produzido passou a ser cada vez mais um espaço urbanizado.
Através da dimensão da moradia, problematizarei as análises sobre o padrão recente de
1
Sandro Barbosa de Oliveira, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. Email [email protected]
2
urbanização nas cidades brasileiras, aliada ao processo de especulação, de renda por
localização e de intensas remoções de favelas.
A hipótese a ser desenvolvida é a de que a produção e a apropriação da habitação
popular pode permitir a compreensão de aspectos da problemática urbana e de seus conflitos
inerentes, que deixou em evidência, como perceberam a geografia e a sociologia urbanas, que
as relações sociais que produzem o espaço urbano se situam além das relações de produção de
mercadorias. Com efeito, tornou-se necessário superar as interpretações que restringem o
entendimento da cidade e do urbano apenas como aglomerado e concentração de produção e
de pessoas para a reprodução da lógica de valorização do valor. Esta comunicação objetiva
também analisar o aparente distanciamento entre a sociologia do trabalho e a sociologia
urbana como fator de influência decisiva nas práticas sociais urbanas.
Entre a industrialização e a urbanização: a fase crítica da problemática urbana
O processo de produção de Habitação de Interesse Social (HIS), ampliada com os
investimentos do Governo Federal a partir de 2003, ocorreu simultaneamente mediante aos
sinais de impasses na política urbana decorrente da manutenção do padrão fundiário
excludente no Brasil. Se, por um lado, as políticas habitacional e urbana passaram a reunir o
acúmulo de duas décadas das forças políticas que construíram as proposições da Reforma
Urbana 2, que culminou com a promulgação do Estatuto das Cidades (Lei 10.257/01) e a
criação do Ministério das Cidades em 2002, ao anunciar novos tempos para as cidades
brasileira, por outro lado, no contexto destas mudanças, alguns aspectos do “poder do atraso” 3
se mantiveram intocados em prol da ampliação do apoio governamental no Congresso
Nacional 4, ao permitir que os interesses das forças que detém o poder sobre a produção das
cidades prevalecesse com consequente piora na vida social e banalização do espaço urbano 5.
2
O Movimento de Reforma Urbana no Brasil nasceu em 1963 por iniciativa da categoria profissional de
arquitetos e urbanistas que haviam acabado de regressar do Congresso Internacional de Arquitetos em Cuba,
lugar cuja experiência foi a de um programa radical de reforma urbana. Depois, convergiu com as lutas sociais
por moradia junto aos movimentos populares, que construíram a Plataforma de Reforma Urbana com bases em
três princípios orientadores: 1) Função social da cidade e da propriedade urbana; 2) Direito à cidade e à
cidadania; e 3) Gestão democrática das cidades.
3
José de Souza Martins, O poder do atraso, São Paulo, Hucitec, 1994.
4
Como bem analisou Ermínia Maricato em Os impasses da política urbana no Brasil, Petrópolis, Vozes, 2011.
5
Alvaro Ferreira, A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço, Rio de Janeiro, Consequência,
2011.
3
O espaço urbano, por sua vez, tornou-se simultaneamente o lugar de reprodução das
relações sociais de produção e de sua contestação, ao demonstrar em seu movimento uma
“nova” centralidade ao atrair para si tudo que nasce. Como espaço social contraditório,
tornou-se lugar de encontro e embate entre o movimento de homogeneização, com suas
facetas de segregações sócioespaciais entre as classes sociais no espaço produzido, e o
movimento de heterogeneização através das diferenças (percebidas e concebidas) nascentes
da divisão técnica e social do trabalho. Por esta razão, a compreensão da dinâmica de
produção social do espaço e sua consequente apropriação passaram a ser fundamentais, o que
possibilitaria enxergar os nexos entre a reprodução social na reprodução do espaço urbano, ao
exigir uma teoria social que permita apreendê-la sob a tríade – cotidiano, urbano e espaço.
Decorrente do processo de industrialização dependente e urbanização 6 periférica, o
espaço urbano brasileiro se configurou com bases na herança colonial patrimonialista e da
privatização do espaço público. Neste processo ocorreu a explosão da autoconstrução
generalizada de moradias precárias como fator das despossessões urbanas e dos grandes
conjuntos habitacionais construídos no período do Banco Nacional de Habitação (BNH) 7 por
empreiteiras subsidiadas pelo Estado nas bordas das cidades. Ambas experiências
demonstram a história das periferias nas cidades, na qual os trabalhadores chegaram antes
mesmo do que a infraestrutura urbana nestas localidades. Esse fenômeno foi visto por um
período sob o aparente caos urbano existente, mas foi desvelado por Lúcio Kowarick (1982)
através da noção de lógica da (des)ordem, ao demonstrar que o caos na urbanização esteve
relacionado a própria ordem da racionalidade capitalista que, quando operada por diversos
agentes e sem planejamento, resultaria numa desordem urbana bem localizada. Em meio a tal
desordem urbana consolidou-se cidades que combinaram diversas formas de urbanização. Por
sua vez, uma parte significativa da infraestrutura urbana foi produzida pelo Estado através de
um planejamento estruturador, ao expressar o crescimento das funções públicas do Estado
6
Por urbanização entendo o processo de produção de infraestrutura urbana para reprodução social que reúne as
múltiplas necessidades sociais relativas à habitação, canalização de água e esgoto; a pavimentação de ruas e
avenidas; a instalação de escolas, creches e postos de saúde e hospitais; a consolidação de transporte coletivo e
público; e espaços para prática do comércio local de alimentos e vestuários que permita a reprodução da vida em
sociedade, e que contribuiu para gerar também um modo de vida urbano na cidade.
7
O BNH foi criado após o golpe militar de 1964 como uma das prioridades do regime, e um dos fatores
decisivos para sua implementação às avessas foram os impactos causados em todos os povos da América Latina
pela reforma urbana radical do processo revolucionário cubano, aspecto destacado pela antropóloga Alba Zaluar
em A máquina e a revolta, ao analisar também a origem dos recursos oriundos da Aliança para o Progresso,
instituição estadunidense que financiou os golpes e programas “sociais” nas economias latino-americanas.
4
(transportes, educação, etc.) e demonstrar a existência das relações de classes com a tendência
e a predominância de interesses privados sobre os públicos em determinadas localidades 8.
O caso da autoconstrução generalizada no Brasil, diferentemente das economias sob o
Estado de Bem-Estar Social, demonstrou como característica principal a externalização dos
custos da reprodução da força de trabalho aos próprios trabalhadores, que construíram por
“conta própria” suas residências, e do acesso informal à terra ao produzir a chamada “cidade
informal”, numa formação socioespacial em desenvolvimento sob a regulação de um Estado
político que mais parecia de “Mal Estar Social”, como bem percebeu Francisco de Oliveira.
Essa necessidade fez emergir iniciativas através da ajuda mútua durante a ascensão das lutas
populares em meados da década de 1980, que resultou nas experiências dos mutirões
autogeridos, influenciadas pela experiência uruguaia de organização popular que deram
origem na década de 1960 à FUCVAM (Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivenda
por Ayuda Mutua) 9, central de cooperativas habitacionais que desenhou as primeiras formas
de uma política habitacional na América Latina que permitia a relação entre população
organizada, técnicos e poder público 10.
Com efeito, a influência uruguaia chegou com força ao Brasil através do movimento
popular de moradia. Em seu encontro com o movimento de técnicos e arquitetos, possibilitou
que a produção de habitação popular passasse a ser autogerida por movimentos de moradia
com a assessoria técnica de arquitetos, subsídiada e financiada pelo Estado através das
chamadas políticas públicas, numa tentativa de superação da autoconstrução generalizada e da
produção por empreiteiras em larga escala, ao buscarem as condições de qualidade e a
conciliação entre produção e apropriação do ambiente urbano habitado. Essas experiências
tiveram o seu ápice ao final da década de 1980 e início da década de 1990, e foram
potencializadas no município de São Paulo durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1992)
do Partido dos Trabalhadores, que ainda esboçava um projeto democrático popular ao
aglutinar as diversas expressões de lutas sociais da classe trabalhadores, resultante dos
movimentos sociais populares que nas décadas de 1970 e 80 questionaram o Estado como
8
Sobre a privatização do espaço público ver a problematização na dissertação de mestrado Tiarajú Pablo
D’Andrea, Nas tramas da segregação: o real panorama da polis, São Paulo, FFLCH-USP, 2008.
9
José E. Baravelli, O cooperativismo uruguaio na habitação social de São Paulo: das cooperativas FUCVAM à
Associação de Moradia Unidos de Vila Nova Cachoeirinha, Dissertação de Mestrado, FAU-USP, 2006.
10
Coletivo Usina, “Reforma Urbana e autogestão na produção da cidade: história de um ciclo de lutas e desafios
para a renovação da sua teoria e prática”, em Gestão Pública e Sociedade: fundamentos e políticas públicas de
Economia Solidária, São Paulo, Outras Expressões, vol. 2, 2012.
5
lugar e instrumento privilegiado das mudanças sociais 11. Atualmente, houve uma inversão em
decorrência da extensiva escala da desmobilização e esvaziamento dos movimentos sociais,
com poucos indivíduos progressistas que defendem o direito à cidade no aparelho de
Estado 12.
Após o “boom” das experiências de mutirões autogeridos, sobretudo nas cidades de
Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, e a retormada da produção de HIS nós últimos
dez anos, quais seriam os nexos que poderiam contribuir no desvelamento das contradições e
causas de determinados conflitos urbanos emergentes atualmente a partir do problema da
moradia? E em que medida as experiências atuais dos movimentos populares de moradia
conseguem influenciar as políticas habitacionais e urbanas, no sentido de garantir o direito à
cidade? Primeiramente, tornou-se necessário superar as análises que restringem o
entendimento da cidade e do urbano apenas como aglomerado e concentração de produção e
pessoas para a reprodução da lógica das mercadorias.
O processo de industrialização dependente gerou um tipo de urbanização periférica, e
deixou em evidência, como percebeu a geógrafa urbana Ana Fani 13, que as relações sociais
que produzem o espaço urbano se situam além das relações de produção de mercadorias. Esta
constatação permite apresentar um problema teórico de difícil resolução, cuja dificuldade está
em como interpretar o processo de reprodução social a partir da produção e apropriação do
espaço urbano. Sua resolução parte de observações empíricas e teóricas das práticas sociais,
aspectos que não serão resolvidos nesta comunicação. Ademais, a hipótese sobre a mudança
no caráter de urbanização parte especificamente dos impactos da produção de habitação e
infraestrutura urbana, em particular da produção de habitação popular no Brasil a partir do
ano de 2009, com o lançamento do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV).
A problemática urbana e seus conflitos inerentes estiveram às margens da teoria
social por um tempo, e as determinações de seu movimento apareceram de maneira
fragmentada nos campos da arte, da literatura e das ciências parcelares, como o urbanismo, a
arquitetura, a geografia, a sociologia, etc 14. Ao passar ao domínio do urbanismo e da
11
Como percebeu Eder Sader em Quando novos personagens entram em cena, São Paulo, Paz e Terra, 4ª Ed.,
2001.
12
Ermínia Maricato, O impasse da política urbana no Brasil, Petropólis, Vozes, 2011, p. 84-85.
13
14
Ana Fani Alessandri Carlos, A (re)produção do espaço urbano, São Paulo, Edusp, 2008.
Sobre a crítica às ciências parcelares e à fragmentação urbana ver Henri Lefebvre em A revolução urbana.
6
sociologia urbana, a chamada questão urbana foi apropriada pelo pensamento crítico, uma das
fontes desta análise. Como analisou Ermínia Maricato (2011 : 121):
o “pensamento crítico” bebeu em duas fontes teóricas principais: os
marxistas que fizeram um esforço internacional para analisar o espaço
urbano seguindo as lógicas de acumulação de capital e produção e
apropriação do valor. Dentre eles ocupou um espaço de influência na
chamada “escola francesa de sociologia urbana” que se desenvolveu
na França a partir de 1968. A segunda fonte diz respeito aos autores
que pensaram a sociedade brasileira.
Entre os autores marxistas que pensaram a formação social brasileira pode-se destacar
dois grupos: os teóricos da industrialização 15 e os teóricos da urbanização 16 que, inseridos no
debate em âmbito continental junto aos teóricos latinoamericanos, formularam uma teoria da
urbanização sobre as economias da periferia do capitalismo com bases em sua relação com a
dependência econômica, o subdesenvolvimento e o imperialismo. Um dos problemas dessas
primeiras teorias sobre o urbano no Brasil, apoiadas inicialmente nas reflexões de Manuel
Castells (1983), esteve relacionado à compreensão da produção do urbano como reflexo da
produção econômica, concepção que não havia permitido uma interpretação própria das
formas assumidas pela produção capitalista do espaço urbano.
A plena consciência de que o espaço urbano é produzido foi um marco na história da
geografia urbana e do urbanismo como percebeu Flávio Villaça 17. Para ele superar a mera
descrição do espaço para compreender os nexos entre espaço e sociedade remete a um campo
da geografia urbana (e não só da geografia) aberto por Henri Lefebvre. A partir de então, foi
possível se pensar uma interpretação própria sobre produção capitalista do espaço urbano, ao
analisar a “problemática urbana” com o ponto de partida no processo de industrialização – o
motor das transformações na sociedade. Lefebvre (2008) percebeu que há historicamente um
choque violento entre a realidade urbana e a realidade industrial, destacou que a crise da
cidade – ou crise urbana – era resultado da lógica de produção de mercadoria sob diversas
dimensões, que durante o século XX transbordou da produção nas fábricas para a produção do
urbano, que ele definiu como lugar da expressão dos conflitos sociais, ao demonstrar que
houve um deslocamento de problemática para a espacialidade urbana, após uma sucessão de
níveis complementares entre o rural, o industrial e o urbano, cujo predomínio está no urbano.
15
Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista; João Manual C. Mello, Capitalismo Tardio; entre outros.
Lúcio Kowarick, A espoliação urbana e a Lógica da desordem; Paul Singer, Economia política da
urbanização; Ermínia Maricato, A produção da casa (e da cidade) no Brasil industrial; entre outros.
17
Flávio Villaça em Mariana Fix, São Paulo: cidade global, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 8.
16
7
Na produção capitalista do espaço a terra e a moradia tornaram-se mercadorias, e este
espaço produzido passou a ser cada vez mais um espaço urbanizado ao reunir o nível privado
da moradia, cuja condição social representa simultaneamente um dos espaços da reprodução
social e da produção do espaço urbano. A análise atenta sobre as formas de produção
habitacional, pode permitir identificar o padrão recente de urbanização nas cidades brasileiras,
aliada ao processo de especulação imobiliária, de renda por localização e de intensas
remoções de favelas. Por sua vez, a moradia representa um espaço social e físico para um
indivíduo ou um conjunto de indivíduos, cuja finalidade é propiciar abrigo e proteção dos
fenômenos da natureza (chuva, vento, calor e frio) e de ataques de terceiros. Enquanto
residência, representa simultaneamente um lugar territorial e social, ao expressar as
necessidades de abrigo, referência e privacidade dos indivíduos, e tornou-se uma mercadoria
complexa e cara não acessível ao conjunto da população de determinadas cidades. Sua
história social recente é atravessada pelo urbano através da distinção entre habitat e habitar,
que apresentam uma oposição inerente não apenas ao modo de produção capitalista, mas à
respectiva formação sócioespacial das cidades brasileiras, que reúnem diversos sub-modos de
produção sob a hegemonia da lógica da valorização do valor, e que expressa a especificidade
da produção capitalista do espaço urbano em território tupiniquim.
A compreensão da relação dialética e da consequente oposição entre habitat (habitação
como necessidade à sobrevivência) e o habitar (apropriação do lugar para a vida) pôde
revelar, nas análises lefebvrianas 18, as limitações do pensamento urbanístico que reduziu
simultaneamente as aspirações humanas ao deixar de lado a noção de habitar, e reforçar o
movimento da realidade que consiste numa ordem urbana que contém e dissimula uma
desordem fundamental, por intermédio da generalização da segregação sócioespacial. As
práticas sociais do urbanismo planejador revelam uma forma de pensar que passou a conceber
o habitar numa condição de função simplificadora, ao transformar o habitar em habitat e
restringir o ser humano há alguns atos elementares: comer, dormir, reproduzir-se. Para
Lefebvre o problema mais agravante é que o habitat como teoria e prática recalcou o habitar
na inconsciência, ao deteriorar fortemente suas características de diversidades das maneiras de
viver, dos tipos urbanos, e de valores culturais ligados a vida cotidiana.
A problemática da moradia e da urbanização capitalista não foram tratadas com
profundidade pela literatura da sociologia industrial e do trabalho, que está farta de estudos
18
Henri Lefebvre, A revolução urbana, Belo Horizonte, 1999.
8
sobre indústria, relações e ambientes de trabalho com ênfase na relação entre trabalhadores e
gerentes nos setores industrial, comercial e de serviços, com muitos estudos baseados na
centralidade do trabalho na vida social 19. Essas importantes interpretações buscaram a
compreensão da produção e da reprodução das relações de produção no âmbito da indústria,
do comércio e do serviço, mas não avançaram na compreensão da sociedade urbana nas
dimensões e níveis tratados pela sociologia e geografia urbanas.
Neste contexto, as abordagens do marxismo vulgar deram margem para crítica que
emergiu nas décadas de 1970 e 1980 à centralidade do trabalho e ao paradigma da produção 20,
que influenciou gerações de cientistas sociais, e demonstrou também uma “diápora” no campo
do conhecimento entre os teóricos da produção e do mundo do trabalho, com os teóricos da
linguagem, da vida cotidiana e do “mundo vivido”, que reflete a fragmentação das ciências
especializadas e os campos do conhecimento nas ciências sociais 21. Talvez não perceberam
que o mundo vivido de que falam é expressão do fenômeno urbano, e suas orientações
contribuiram para mergulhar a teoria social numa problemática teórica a ser resolvida.
Por isso, considerar teoricamente o fenômeno urbano a partir da moradia permitiu uma
chave para compreender a relação entre espaço, cotidiano e urbano, ao possibilitar a
percepção da inter-relação entre estas três dimensões no mesmo espaço social – a moradia e o
habitar –, e encontrar um ponto de partida de análise: a forma urbana que, em sua condição de
disposição espacial nas cidades e em seus territórios, oculta e revela simultaneamente as
contradições do espaço socialmente produzido. Ao ocultar as contradições sob forma de
mistério, a forma urbana esconde por trás de suas aparências o conjunto de relações entre
produção e reprodução social, ao velar nas tramas das relações sociais as condicionantes
sociais sobre a valorização de localidades para os empreendimentos imobiliários, com a
construção de infra-estrutura urbana, imóveis bem localizados, e etc., representadas por
19
Segundo a socióloga do trabalho Nádia Guimarães (2009) trabalho, emprego e empresa se constituíram em
campos temáticos independentes, remetendo-se, cada um deles, a dimensões próprias da vida social, a saber: o
processo de trabalho, o mercado de trabalho e a firma.
20
Entre os críticos se destacaram André Gorz, Adeus ao proletariado; Clauss Offe, Trabalho: a categoria
sociológica chave?; Ralf Dahrendorf, As classes e seus conflitos na sociedade industrial; e Jurgen Habermas,
que, de maneiras distintas, procuram demonstrar que o trabalho deixou de ser a centralidade da sociedade.
21
Além do mais, os teóricos da linguagem e do mundo vivido fizeram um deslocamento de problemática da
centralidade do trabalho ao mundo da vida e do cotidiano, ao desconsiderarem que o trabalho é central no
capitalismo porque é historicamente determinado, e de que há uma distinção fundamental feita nas obras de
Marx, sobretudo em O capital, entre trabalho socialmente necessário e atividade prática transformadora, que
envolve pensar a produção social da vida para além da forma trabalho abstrato. Essa atividade transformadora
está sob domínio do trabalho abstrato, e aparece como núcleo fundamental de entendimento da sociabilidade
criadora e inventiva, que demonstra as dimensões do trabalho concreto.
9
agentes econômicos (empreiteiras, construtoras, escritórios de arquiteturas, etc.) e políticos
(prefeituras, etc.), que atuam de forma ativa na definição de produção e valorização de
determinadas paisagens urbanas 22. Ao possibilitar a compreensão das sutilezas e intensidades
destas contradições, a forma urbana permite o acesso ao desvelamento dos conteúdos mais
elementares do espaço social produzido que, por sua vez, representa um conjunto de relações
sociais predominantes no urbano, como expressão cumulativa de todos os conteúdos no
âmbito da reprodução social de um tipo de sociedade 23, ao permitir encarar a problemática
urbana como tendência para a destruição da cidade pela intensificação do urbano 24.
Desta maneira, pode-se extrair da forma urbana a função e a estrutura, como uma
estratégia de se aproximar da dinâmica do real e se abrir para compreender o movimento da
realidade mediante àquilo que suas contradições apresentam de possibilidades de superação,
como elemento do devir 25 anunciado pelo movimento de suas contradições sociais. Contudo,
a tríade forma, função e estrutura são insuficientes para apreender o movimento da realidade
no urbano, e compreender sua expansão é condição fundamental para a teoria social. Isso
posto, a expansão do espaço urbano, ao tornar o espaço social em mercadoria na garantia de
maiores lucros, busca localidades onde a terra é mais barata 26, embora ainda não haja
infraestrutura. Essa expansão está associada ao processo de trabalho da construção civil, uma
das dimensões pouco discutidas pela sociologia do trabalho, mas abordada pela sociologia
urbana e pelos urbanistas, que não chegaram a aprofundar os múltiplos aspectos da teoria do
valor 27 no processo de trabalho na produção do espaço. Por esta condição, a problemática
urbana está situada para além dos campos da sociologia urbana e da sociologia do trabalho, ao
exigir a interdisciplinaridade entre as ciências parcelares na busca da compreensão entre
produção e reprodução social na relação industrialização-urbanização. Com isso, as barreiras
de classes na sociedade urbana se dispõem também como barreiras espaciais, e compreender a
22
Mariana Fix em São Paulo cidade global percebe que um dos fatores estratégicos da valorização patrimonial é
a criação de novos pólos na qual os investidores procuram estar no vetor de valorização para capturar o
diferencial da renda imobiliária, 2007, p. 49.
23
Ver a análise da forma urbana em Henri Lefebvre, A revolução urbana, Belo Horizonte, 1999, p. 111.
24
Henri Lefebvre, O direito à cidade, São Paulo, Centauro, 2009, p. 85.
25
Sobre o devir ver Henri Lefebvre, O fim da história, Lisboa, Dom Quixote, 1971; e Jesus Ranieri, Trabalho e
dialética, São Paulo, Boitempo, 2011.
26
Em A propriedade contra a posse Ricardo Baitz (2007) demonstra como se expressa as mudanças introduzidas
com o Estatuto das Cidades do processo que fragmenta a propriedade em elementos distintos, tais como posse,
propriedade, direito de construir e direito de superfície. Segundo ele, esses elementos são trabalhados enquanto
uma necessidade do sistema.
27
O estudo de Pedro Fiori Arantes em A arquitetura na era digital-financeira procura avançar na análise da
crítica à economia política através da produção de projetos arquitetônicos de excesso e de exceção.
10
dinâmica da reprodução social exige a apreensão da produção social do espaço, ao delimitar
as formas de sociabilidade padronizadas na fragmentação do espaço urbano.
Os desafios da autogestão num contexto de heterogestão na produção habitacional
Em meio ao emaranhado diverso de experiências na produção social do espaço, a
produção habitacional ao lado da produção de infraestrutura se destacam nos últimos anos no
Brasil. No segmento da produção habitacional, houve historicamente três formas de produção
e gestão cujas características foi a da produção do produto final – a habitação –, sendo duas
destas predominante e outra residual: 1º) a autoconstrução, como forma “precária” de
construção privada e particular de habitação popular; 2º) a heterogestão planejada e
tradicional, especificamente por empreiteiras em sua produção em larga escala e subsidiada
pelo Estado, com o objetivo de atender a demanda privada com recursos públicos; e 3º) a
autogestão participativa e planejada, na relação entre movimento popular de moradia,
assessorias técnicas e poder público. Essas formas de produção definiram a cadeia produtiva
da construção civil no âmbito da produção habitacional popular, e consequentemente as
diversas expressões de distribuição dos rendimentos, circulação de materiais, valores e
trabalho assalariado, e consumo da força de trabalho, de materiais e do local produzido.
O conceito de autogestão 28 pode ser visto como uma síntese de múltiplas experiências
coletivas de auto-realização e auto-determinação dos produtores ocorridas em diversos
momentos da história social, e seu uso e apropriação por diversos agentes revelam as
controvérsias, distorções e polêmicas no seu emprego e na banalização recorrente para definir
experiências que estão longe de serem autogestionárias 29. Nos casos das experiências de
mutirões autogeridos na produção de habitação popular, a autogestão possibilizou alguns
28
Alain Guillerm e Yvon Bourdet em Autogestão: uma mudança radical demonstram que o termo autogestão se
origina para caracterizar a organização dos detidos numa célula presidiária, embora estes se encarreguem por
rodízio da “missão de despejar o urinol.” Os prisioneiros têm igualmente liberdade a palavra e direito à
autogestão. A autogestão apareceu em língua francesa no início dos anos 1960 como autogestion, tradução literal
da palavra servo-croata samoupravlje (“samo” é o equivale eslavo do termo grego “auto”, e”upravlje” significa
aproxidamente “gestão”). De lá para cá foi apropriada e utilizada por diversos grupos e organizações (partidos,
sindicatos, coletivos, grupos de estudos, etc.), e sua origem remonta uma forma de designar a experiência
política, econômica e social na Iugoslávia de Tito, em ruptura com o Stalinismo.
29
A autogestão é um tema recorrente em Tragtenberg, Reflexões sobre o socialismo, ao demonstrar o processo
histórico das lutas dos trabalhadores, que oscilou entre a capacidade de criar novas relações sociais e igualitárias
e sua deformação em relações desiguais e hierárquicas quando os partidos substituem os trabalhadores na direção
política. Diz que a classe trabalhadora cria os embriões do socialismo pela prática da ação direta contra o
capitalismo, unificando decisão e planejamento e eliminando a divisão tradicional de trabalho entre os que
pensam e os que fazem.
11
avanços sob um duplo caráter ao permitir: 1º) gestões e decisões coletivas de recursos
financeiros, inovações tecnológicas, políticas de convivências, relações de trabalho e níveis de
produtividade com bases em projetos experimentais e coletivos; 2º) participação e a
construção do poder popular através da concepção e execução do projeto habitacional entre
arquitetos, cientistas sociais e mutirantes, ao possibilitar formas distintas de consciência social
na apropriação do ambiente habitado produzido e do espaço urbano ao qual está inserido.
Esse tipo de mutirão autogerido foi possível no canteiro de obras por causa da baixa
composição orgânica do capital, o que permitiu um trabalho mais próximo do artesão ainda
predominado pela manufatura, e abriu possibilidades para o trabalho experimental e criativo
para esses mutirantes, ao mesmo tempo em que os submeteram a uma condição social de
trabalho “dobrado”. No Brasil, o histórico de produção de habitação popular demonstrou uma
contradição que residiu na combinação entre o rebaixamento da força de trabalho com a
dependência externa. A força de trabalho brasileira trabalhava até duas vezes mais para
manter a dupla exploração: a manutenção da taxa de mais-valia interna e externa, condição
social da dialética da dependência 30 em cidades e metrópoles que estavam em vias de
degradação da vida social. É conhecida a analise crítica de Francisco de Oliveira (2003 : 59)
sobre a construção das residências pelos próprios trabalhadores ao perceber que:
Uma não insignificante porcentagem das residências das classes
trabalhadoras foi construída pelos próprios proprietários, utilizando
dias de folgas, fins de semana e formas de cooperação (...) Ora, a
habitação, bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não
pago, isto é, super-trabalho. Embora esse bem não seja desapropriado
pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de
exploração da força de trabalho, pois o seu resultado - a casa - refletese numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho de que os gastos com habitação são um componente importante - e
para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma
operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de
‘economia natural’ dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem
com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases
e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho.
Ademais, o sociólogo de O ornintorrinco analisa com rigor as determinantes do supertrabalho, mas não faz a distinção entre a autoconstrução e o mutirão autogerido, e entre o
próprio mutirão e a autogestão. Com isso, deixou de apreender em sua síntese algumas das
determinações que tornaram o mutirão autogerido uma referência em termos de autogestão do
30
Em Dialética da Dependência Ruy Mauro Marini articula o caráter dependente das economias periféricas com
a superexploração dos trabalhadores como mecanismo fundamental da acumulação capitalista brasileira.
12
ambiente habitado, e de apropriação distinta pelos seus habitantes do espaço urbano, ao se
diferenciar da autoconstrução justamente por dispor do trabalho das assessorias técnicas de
arquitetura, apesar da validade do conceito inclusive para o mutirão autogerido 31. Não
obstante, as pesquisas 32 que analisaram na década de 1970 de que a autoconstrução se
generalizaria nas cidades brasileiras por meio do super-trabalho, e reforçaria a exclusão das
classes trabalhadoras do mercado formal de terras e de moradias urbanas, revelaram que esta
forma de ocupação do espaço urbano passou a ser uma condição necessária para a
acumulação capitalista no Brasil, ao incluir como sua componente interna a fragilização do
trabalho assalariado. Nestas condições, o mutirão autogerido representou uma superação da
autoconstrução, mas conservou a condição social de super-trabalho pelo fato de os mutirantes
estarem na condição de trabalhadores assalariados na semana e de mutirantes aos finais de
semana, quando produziam parte de suas moradias ao reduzir os custos desta produção.
Com isso, as experiências de mutirão autogerido possibilitaram uma espécie de
reconciliação entre habitat e habitar, ao sinalizar as bases reais, porém incompletas, da
autogestão produtiva e territorial nas cidades, e questionar concretamente as formas
convencionais de produção através do espaço produzido, das vivências cotidianas e de um
espaço urbano mais socializado. O tipo de reprodução social que essa forma de produção
desenvolveu representou uma espécie de farol para as lutas sociais, ao constituir modos de
socialização como resultado das decisões política dos agentes envolvidos, através da definição
da técnica e do modo de fazer, o rodízio de tarefas e a problematização da questão de gênero
no canteiro, o que possibilitou a conquista de qualidade nos projetos habitacionais, ao mesmo
tempo em que internalizou o super-trabalho social da produção habitacional aos mutirantes.
Em contrapartida, as experiências de produção habitacional por empreiteiras e
construtoras, calcadas na heterogestão como forma de gestão pelo outro (empresariado da
construção civil) sob as bases de hierarquias e funções estruturais da sociedade definidas pela
divisão técnica e social do trabalho, foram ampliadas devido a recente retomada dos
investimentos em infraestrutura urbana e habitacional, ocasionada pelo lançamento em 2007
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Programa Minha Casa, Minha Vida
31
32
Lopes e Rizek (2005) analisam criticamente as potencialidades e limitações dos mutirões autogeridos.
Francisco de Oliveira (2003); Lúcio Kowarik (1979); Ermínia Maricato (1982).
13
(PMCMV) em 2009 33, ao intervir pelos programas de urbanização de favelas na recuperação
de áreas urbanas degradadas e na produção de provisão habitacional. No país do futebol, o
lançamento do PMCMV jogou para escanteio a construção de duas décadas das contribuições
do Movimento de Reforma Urbana sintetizada no Plano Nacional de Habitação (PLANAB), e
de sua perspectiva de produção habitacional em sintonia com o desenvolvimento urbano.
Pedro Arantes e Mariana Fix (2009) perceberam que desde o início o governo Lula
destacou que o investimento, apesar de focado na geração de empregos e no efeito econômico
anticíclico, teria um perfil distributivista, com o objetivo de dirigir o setor imobiliário ao
atendimento da demanda habitacional de baixa renda que o mercado por si só não alcança, e o
de fazer o mercado habitacional finalmente incorporar setores que até então não tiveram como
adquirir a mercadoria-moradia. O modelo de provisão habitacional que o PMCMV ofereceu
foi o de destinar 97% do subsídio público à oferta de produção direta por construtoras
privadas, enquanto apenas 3% dos recursos destinados a entidades sem fins lucrativos,
cooperativas, movimentos sociais, etc., para a produção habitacional urbana e rural por
autogestão. Esse quadro passou a indicar duas tendências: 1ª) de encerramento do ciclo dos
mutirões autogeridos para um ciclo de hegemonia das construtoras na produção de habitação
popular; 2ª) de um tipo de reprodução social que fortalece a habitação como propriedade
privada e funcional na negação do direito à cidade em prol apenas do habitat. Como analisou
Ermínia Maricato (2011), “a maior parte da localização das novas moradias – grandes
conjuntos sendo alguns, verdadeiras cidades – será definida nos municípios e metrópoles, por
agentes do mercado imobiliário sem obedecer uma orientação pública, mas à lógica do
mercado”.
Em decorrência desta intervenção estatal aliada aos interesses do setor imobiliário, as
produções de infraestrutura urbana, de habitação popular e de médio padrão cresceram
vertiginosamente no período, e essa ampliação da produção sem a mudança da base fundiária
acarretou o aumento de preços de terra e imóveis, o que está tornando as capitais e
metropolóles brasileiras lugares caros para se viver. Parece que o capitalismo “neodesenvolvimentista” brasileiro redescobriu na produção ampliada do espaço as garantias de
valorização do capital em sua necessidade de reprodução social, aspecto que sustentaria as
33
Anunciada pelo Ministério da Casa Civil da então ministra Dilma Roussef e pelo Ministério da Fazenda de
Guido Mantega, o PMCMV foi articulado nos bastidores junto às grandes empreiteiras e construtoras, e foi
apresentado como um programa anti-ciclico, no sentido de se contrapor a crise cíclica econômica e financeira de
2008 desencadeada nos EUA, para se contrapor a crise financeira e urbana que estourou em meados de 2008.
14
demais frações do capital social total. Como nas metrópoles e cidades brasileiras ainda há
muito o que explorar para crescer, e o setor da construção civil permite a produção de uma
enorme massa de valor por reunir características ainda de produção manufatureira, a produção
social de espaço urbano no Brasil está provocando um “novo” padrão de urbanização, com
seus consequentes conflitos urbanos nas cidades perceptíveis nas centenas de incêndios em
favelas, ocupações de prédios abandonados nos centros das cidades e remoção de populações.
Não é por acaso que o país sediará simultaneamente os megaeventos Copa do Mundo de 2014
e as Olimpíadas de 2016. No caso das Olímpiadas, que ocorrerá na cidade do Rio de Janeiro,
uma das concorrentes direta e que dispunha de 80% das instalações prontas era a cidade de
Chicago nos Estados Unidos. E por quê não foi escolhida? Talvez porque na cidade do Rio
será necessário fazer todas as instalações, e refazer as instalações do Pan-Americano de 2007.
Nos anos de 2010 e 2011 entre as dez construtoras de edifícios residenciais de capital
aberto mais lucrativas nas Américas sete foram brasileiras 34, o que demonstra um crescimento
no setor de imóveis e de seus ativos financeiros. O crescimento no nível de empregos com
carteira assinada no setor da construção civil bateu novos recordes no período 35, e o universo
da construção civil 36 cresceu e transpareceu como o setor de brutalidade na produção e de
acidentes freqüentes, cujas consequências vêm sendo o registro de muitos óbitos. Seu
processo de trabalho está baseado na super-exploração da força de trabalho, cuja organização
predominante das relações de produção está estruturada com bases na heterogestão. E reúne
diversos agentes que vão desde os setores de produção de cimento, aço e insumos, e seu
consequente comércio de materiais de construção e respectivas posições de classe na
produção e comercialização, até a produção das unidades e espaços físicos como momento
final deste processo para o consumo do lugar 37. E no setor da construção civil a unidade entre
processo de trabalho e relações de produção é o que permite compreender a dinâmica de
produção do espaço e do ambiente habitado como manifestações da ideologia dominante, que
34
Fonte: Economática.
Segundo a pesquisa mensal realizada pelo Sinduscon-SP e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) o setor
acumulou até então 12,79% em 2010, com a inclusão de 314,2 mil trabalhadores. No acumulado de doze meses a
alta foi de 16,67%, ou mais de 396 mil empregados formais. Com isso, o número de empregados formais na
construção civil brasileira em julho de 2010 atingiu 2,771 milhões de trabalhadores.
36
Ainda segundo a pesquisa da FGV, ao final de julho o setor empregava 742 mil trabalhadores no Estado de
São Paulo, enquanto na capital paulista foram contratados 2.217 trabalhadores em julho, o que representou um
aumento de 0,65% no mês, de 7,34% no ano e de 11,49% em doze meses.
37
Por causa de sua baixa composição orgânica de capital (máquinas, equipamentos etc.) o setor emprega
maciçamente, ao contrário dos setores de ponta da indústria automotiva onde se percebeu a diminuição do
trabalho vivo no processo produtivo por causa do incremento da composição orgânica do capital, que revelou
sinais da diminuição da taxa média de lucro.
35
15
pode ser lida na paisagem do espaço urbano e revelar as tramas entre os setores imobiliário e
financeiro na produção capitalista do espaço, e seus tipos de apropriação e consumo.
O processo analisado aqui demonstra que a economia brasileira não sofreu ainda
drasticamente com a última crise financeira global porque passou a investir também na
produção social do espaço. Nesta produção se percebeu a proliferação de condomínios e
loteamentos fechados como um aspecto novo no fenômeno urbano que vem se espalhando por
todas as metrópoles brasileiras. A urbanista Maria C. D'Ottaviano (2008) aponta que desde o
final dos anos 1980 é possível observar um grande aumento no número de condomínios
fechados na Região Metropolitana de São Paulo. A proliferação desses condomínios fechados
modificou nos últimos quinze anos a configuração espacial de algumas destas áreas, ao alterar
o padrão centro rico versus periferia pobre que caracterizou os estudos sobre a RMSP entre
os anos 1940 e 1980. Este padrão modificou-se na última década para um modelo fractal de
segregação espacial 38, como defendido por Teresa Caldeira (2000) que analisou o novo
padrão de segregação espacial ao qual chamou de enclaves fortificados, que trata-se de
espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho.
Portanto, neste “novo” Brasil pretensamente para todos o que se vê são as cidades
sendo produzidas e geridas pela lógica do capital, e suas tendências de reprodução social no
espaço urbano vem demonstrando os aspectos de confinamento espacial e enclausuramento
social 39 cujas manifestações são perceptíveis empiricamente na forma urbana predominante.
Sua negação determinada, o movimento de autogestão na produção de habitação popular, vem
sofrendo frequentes baixas e boicotes, e avançou pouco para além da moradia neste período.
Uma tentativa de síntese a guisa da conclusão
Ao possibilitar uma breve reunificação na cidade das cisões provocadas pela divisão
técnica e social do trabalho e pela segregação sócioespacial no processo de desalienação da
produção, as experiências de mutirão autogerido e autogestão na produção da cidade foram
confinadas aos experimentos residuais na disputa do espaço urbano. Seu legado esteve em
propor formas de autogestão na produção habitacional e de unidades territoriais. Superou em
38
Para D’Ottaviano (2008) o modelo fractal de segregação espacial, defendida por Teresa Caldeira, não explica
sozinho o processo de segregação metropolitana.
39
Loic Wacquant em As duas faces do Gueto desenvolve estas noções para analisar os fenômenos de
gueitoização característicos das cidades estadunidenses. Nas cidades brasileiras há similaridades e diferenças
quando se observa as favelas e os conjuntos habitacionais produzidos pelos governos de Estados nas periferias.
16
organização política e produção associada às formas de autoconstrução, mas não conseguiu
dar o “pulo do gato” e consolidar as cooperativas de trabalhadores na construção civil, até por
causa das limitações das leis de cooperativas e de propriedade privada no Brasil. Com a
recente expansão e amplos recursos na produção habitacional, essas experiências poderiam
contribuir na passagem do lugar do consumo ao consumo do lugar, porque conseguiram
conciliar relativamente os momentos de concepção com participação popular; execução, na
produção autogestionária; e apropriação, relação de propriedade coletiva e privada.
No espaço produzido a obra e o uso não podem ser apagados pelo produto e pela
troca, até porque expressa e condiciona relações sociais. Como espaço social contraditório,
tornou-se lugar de embate entre os movimentos de homogeneização e heterogeneização,
presentes no urbano, na vida cotidiana e no espaço social. Com a expansão da produção
capitalista do espaço, através do crescimento da produção habitacional e de infraestrutura
urbana, cresceu também os movimentos de especulação imobiliária e financeirização do
espaço urbano. Abriu-se com isso um período intenso de conflitos urbanos no e por espaço
que remete a compreensão da dinâmica da reprodução social na produção e apropriação do
espaço. Esses conflitos se assemelham a uma “cluster bombs”, bomba de fragmentação que,
numa unidade contraditória e lançada num território, se pulveriza espacialmente e explode
simultaneamente em pequenas bombas, pulverizando o local onde lançada.
Diante das clusters bombs no espaço urbano do porvir, e mediante ao choque intenso
entre restruturação produtiva, financeirização econômica e urbanização por enclaves
fortificados, a sociedade urbana que se configura tende a revelar a dinâmica da história com
bases nos conflitos urbanos por moradia como um lugar na cidade e na sociedade; circulação
e transporte público, como necessidade de mobilidade e acessibilidade urbana; de violência e
segregação urbana, entre outros. Com isso, as experiências de mutirão autogerido mostraram
um caminho, com suas limitações, na produção associada do espaço. Cabe agora perceber se
na dinâmica de apropriação do espaço urbano em sua amplitude, a utopia aflore diante das
contradições entre os espaços concebido, percebido e vivido pelos habitantes da pólis.
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habitação: alguns comentários sobre o pacote habitacional Minha Casa, Minha Vida. Correio
da
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Paulo,
junho
de
2009
17
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