A importância do concreto no processo interpretativo dos Direitos Fundamentais
EDITORIAL
A IMPORTÂNCIA DO CONCRETO NO
PROCESSO INTERPRETATIVO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Existe uma certa dificuldade para se definir com alguma precisão
o objeto da prestação de grande parte dos direitos fundamentais.
Vale dizer que o texto normativo é composto por palavras, cujos
significados não são únicos, e ainda são cambiantes com o passar do
tempo. Basta, por exemplo, que seja feita menção ao direito à saúde
ou ao direito à moradia para verificar que a compreensão destes
direitos exige concretização.
A concretização aqui referida não é aquela relacionada à eficácia
social ou à eficácia jurídica da norma. A concretização é a própria
elaboração de uma norma jurídica que (ainda) não existe antes do
caso concreto. Isto ocorre porque toda interpretação ocorre em um
determinado contexto, que não pode ser desconsiderado. Em verdade,
não há texto sem contexto e não é possível separar a realidade fática
da realidade normativa, pois ambas se encontram mutuamente
imbricadas.
No método hermenêutico concretizador, o papel do intérprete
não é o de desvelar o “sentido oculto” do texto normativo, mas sim
o de criar a norma a ser aplicada em uma situação concreta. Ou
seja, a norma é construída pelo intérprete ao longo do processo de
concretização do direito. Dessa forma, o processo interpretativo não é
apenas cognitivo, mas fundamentalmente volitivo.
No paradigma atual há a superação de uma concepção tradicional,
onde a interpretação era compreendida apenas como a descoberta
do sentido do texto normativo, para uma outra concepção, na qual
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se verifica um processo criativo de produção de norma, ou seja, o
que se tem é uma atribuição e não uma descoberta de um significado
preexistente do enunciado linguístico.
O texto constitui o ponto de partida para a formação das
significações e, ao mesmo tempo, para a referência aos entes
significados. Todavia, o texto não tem controle absoluto sobre a
interpretação que lhe será dada.
A abertura das normas constitucionais é uma das características
das sociedades complexas, porque, diante da multiplicidade dos
problemas que podem surgir, a Constituição precisa de soluções
para acompanhar este casuísmo problemático. Como a interpretação
não persegue o sentido, mas um dos sentidos, que deverá ser
contextualmente possível e adequado, o caso concreto ganha relevo.
Isto pode ser facilmente verificado na análise do princípio da
igualdade. Embora as constituições democráticas o reconheçam
expressamente, é imprescindível o processo de concretização para
saber o que deve ser considerado como igual ou como desigual.
Esta discussão tem sido constante em nosso país com relação à
reserva de quotas nas universidades públicas como política de ação
afirmativa. A este respeito, a Suprema Corte norte-americana proferiu
importante decisão no caso Regents of the University of California versus
Allan Bakke, em 28 de junho de 1978, que repercutiu determinantemente
na sociedade americana, e muitos autores nacionais tomam este caso
para basear suas discussões acerca deste tema. Deve-se salientar,
todavia, que a norma obtida a partir do contexto existente nos Estados
Unidos da América não será necessariamente igual àquela obtida em
outro país, com uma realidade social completamente distinta, ainda
que ambos os textos constitucionais fossem idênticos.
A multiplicidade semântica não traz consigo os critérios
necessários para fazer uma escolha metódica normativamente
adequada. E, como a normatividade surge apenas no processo de
concretização, é possível que a norma constitucional sofra mudanças.
Veja-se, por exemplo, a Emenda XIV da Constituição norteamericana, que estabelece que nenhum Estado pode negar a qualquer
pessoa sob a sua jurisdição a igual proteção das leis. Em 1896, ao julgar
o caso Plessy versus Ferguson, a Suprema Corte fez uma concretização
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da “cláusula da igual proteção” desta Emenda ao entender que seria
possível uma separação igualitária. Com isso, estabeleceu-se nos
Estados Unidos da América a doutrina “separate but equal” (“separados,
mas iguais”), que veio a endossar a segregação racial praticada em
diversos Estados norte-americanos.
É necessário compreender o contexto em que a decisão do caso
Plessy versus Ferguson foi tomada. Deve-se destacar que a versão
original da Constituição norte-americana, de 1787, permitia o regime
da escravidão (seção 2 do artigo 1º) e a Suprema Corte chegou a
negar a condição de cidadão a um escravo no julgamento do caso
Dred Scott versus Sandford, em 1857. Esta decisão contribuiu para
acirrar os ânimos entre os Estados do sul – escravocratas e agrários
– e os do norte – antiescravagistas e industriais –, o que culminou na
Guerra Civil, também conhecida como Guerra de Secessão. A decisão
da Suprema Corte também apressou a abolição da escravatura nos
Estados Unidos da América, o que ocorreu no ano de 1865, com a
Emenda XIII. Àquela época, os negros eram largamente discriminados
na sociedade e a decisão da Suprema Corte no caso Plessy versus
Ferguson procurava apartar brancos e negros com o fim de evitar a
ocorrência de maiores conflitos. Em razão disso – e sem valorar aqui
os fundamentos desta decisão –, a segregação racial ocorreu com a
chancela dos poderes estatais.
Com a evolução da sociedade norte-americana, este cenário
modificou-se e isto fez com que também se modificasse os resultados
da concretização. Neste contexto, em 1954, ao julgar o caso Brown
versus Board of Education of Topeka, a Suprema Corte considerou
inconstitucional a segregação racial nas escolas dos Estados Unidos
da América, em decisão que pôs fim à doutrina “separate but equal” e
se tornou um marco na política de integração racial.
A Corte Warren firmou o entendimento que a doutrina “separate
but equal” não se sustentava, considerando que a segregação praticada
nas escolas não propiciava às crianças do “grupo minoritário” as
mesmas oportunidades educacionais e, ainda, causava a este grupo
uma sensação de inferioridade, que lhe afetava a motivação de
aprender.
Como se vê, a norma jurídica só se movimenta diante de um caso
concreto, pela ação do aplicador do direito, que é o intermediário enDepoimentos, Vitória, n. 14, p. 9-12, jul./dez. 2008
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tre a norma e os fatos da vida. Todavia, cumpre destacar que o intérprete constitucional não pode dar sentidos de forma arbitrária aos
textos, pois texto e norma não estão separados. Apesar de as circunstâncias fáticas integrarem a concepção de norma, isto não significa
afirmar que a Constituição deva sucumbir às forças das circunstâncias da realidade. A ideia de Constituição normativa exige que as normas constitucionais sejam responsáveis por conformar a realidade.
Nesse sentido, é indispensável aproximar o mundo fático e o mundo
normativo a fim de que não haja qualquer mitigação à supremacia
da Constituição, tendo em vista que o fático não pode sobrepujar o
normativo.
Adriano Sant’Ana Pedra
Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestre em Direitos e Garantias
Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV, Professor
de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Vitória –
FDV (graduação, especialização e mestrado), Procurador Federal.
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