A importância do concreto no processo interpretativo dos Direitos Fundamentais EDITORIAL A IMPORTÂNCIA DO CONCRETO NO PROCESSO INTERPRETATIVO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Existe uma certa dificuldade para se definir com alguma precisão o objeto da prestação de grande parte dos direitos fundamentais. Vale dizer que o texto normativo é composto por palavras, cujos significados não são únicos, e ainda são cambiantes com o passar do tempo. Basta, por exemplo, que seja feita menção ao direito à saúde ou ao direito à moradia para verificar que a compreensão destes direitos exige concretização. A concretização aqui referida não é aquela relacionada à eficácia social ou à eficácia jurídica da norma. A concretização é a própria elaboração de uma norma jurídica que (ainda) não existe antes do caso concreto. Isto ocorre porque toda interpretação ocorre em um determinado contexto, que não pode ser desconsiderado. Em verdade, não há texto sem contexto e não é possível separar a realidade fática da realidade normativa, pois ambas se encontram mutuamente imbricadas. No método hermenêutico concretizador, o papel do intérprete não é o de desvelar o “sentido oculto” do texto normativo, mas sim o de criar a norma a ser aplicada em uma situação concreta. Ou seja, a norma é construída pelo intérprete ao longo do processo de concretização do direito. Dessa forma, o processo interpretativo não é apenas cognitivo, mas fundamentalmente volitivo. No paradigma atual há a superação de uma concepção tradicional, onde a interpretação era compreendida apenas como a descoberta do sentido do texto normativo, para uma outra concepção, na qual Depoimentos, Vitória, n. 14, p. 9-12, jul./dez. 2008 9 Adriano Sant’Ana Pedra se verifica um processo criativo de produção de norma, ou seja, o que se tem é uma atribuição e não uma descoberta de um significado preexistente do enunciado linguístico. O texto constitui o ponto de partida para a formação das significações e, ao mesmo tempo, para a referência aos entes significados. Todavia, o texto não tem controle absoluto sobre a interpretação que lhe será dada. A abertura das normas constitucionais é uma das características das sociedades complexas, porque, diante da multiplicidade dos problemas que podem surgir, a Constituição precisa de soluções para acompanhar este casuísmo problemático. Como a interpretação não persegue o sentido, mas um dos sentidos, que deverá ser contextualmente possível e adequado, o caso concreto ganha relevo. Isto pode ser facilmente verificado na análise do princípio da igualdade. Embora as constituições democráticas o reconheçam expressamente, é imprescindível o processo de concretização para saber o que deve ser considerado como igual ou como desigual. Esta discussão tem sido constante em nosso país com relação à reserva de quotas nas universidades públicas como política de ação afirmativa. A este respeito, a Suprema Corte norte-americana proferiu importante decisão no caso Regents of the University of California versus Allan Bakke, em 28 de junho de 1978, que repercutiu determinantemente na sociedade americana, e muitos autores nacionais tomam este caso para basear suas discussões acerca deste tema. Deve-se salientar, todavia, que a norma obtida a partir do contexto existente nos Estados Unidos da América não será necessariamente igual àquela obtida em outro país, com uma realidade social completamente distinta, ainda que ambos os textos constitucionais fossem idênticos. A multiplicidade semântica não traz consigo os critérios necessários para fazer uma escolha metódica normativamente adequada. E, como a normatividade surge apenas no processo de concretização, é possível que a norma constitucional sofra mudanças. Veja-se, por exemplo, a Emenda XIV da Constituição norteamericana, que estabelece que nenhum Estado pode negar a qualquer pessoa sob a sua jurisdição a igual proteção das leis. Em 1896, ao julgar o caso Plessy versus Ferguson, a Suprema Corte fez uma concretização 10 Depoimentos, Vitória, n. 14, p. 9-12, jul./dez. 2008 A importância do concreto no processo interpretativo dos Direitos Fundamentais da “cláusula da igual proteção” desta Emenda ao entender que seria possível uma separação igualitária. Com isso, estabeleceu-se nos Estados Unidos da América a doutrina “separate but equal” (“separados, mas iguais”), que veio a endossar a segregação racial praticada em diversos Estados norte-americanos. É necessário compreender o contexto em que a decisão do caso Plessy versus Ferguson foi tomada. Deve-se destacar que a versão original da Constituição norte-americana, de 1787, permitia o regime da escravidão (seção 2 do artigo 1º) e a Suprema Corte chegou a negar a condição de cidadão a um escravo no julgamento do caso Dred Scott versus Sandford, em 1857. Esta decisão contribuiu para acirrar os ânimos entre os Estados do sul – escravocratas e agrários – e os do norte – antiescravagistas e industriais –, o que culminou na Guerra Civil, também conhecida como Guerra de Secessão. A decisão da Suprema Corte também apressou a abolição da escravatura nos Estados Unidos da América, o que ocorreu no ano de 1865, com a Emenda XIII. Àquela época, os negros eram largamente discriminados na sociedade e a decisão da Suprema Corte no caso Plessy versus Ferguson procurava apartar brancos e negros com o fim de evitar a ocorrência de maiores conflitos. Em razão disso – e sem valorar aqui os fundamentos desta decisão –, a segregação racial ocorreu com a chancela dos poderes estatais. Com a evolução da sociedade norte-americana, este cenário modificou-se e isto fez com que também se modificasse os resultados da concretização. Neste contexto, em 1954, ao julgar o caso Brown versus Board of Education of Topeka, a Suprema Corte considerou inconstitucional a segregação racial nas escolas dos Estados Unidos da América, em decisão que pôs fim à doutrina “separate but equal” e se tornou um marco na política de integração racial. A Corte Warren firmou o entendimento que a doutrina “separate but equal” não se sustentava, considerando que a segregação praticada nas escolas não propiciava às crianças do “grupo minoritário” as mesmas oportunidades educacionais e, ainda, causava a este grupo uma sensação de inferioridade, que lhe afetava a motivação de aprender. Como se vê, a norma jurídica só se movimenta diante de um caso concreto, pela ação do aplicador do direito, que é o intermediário enDepoimentos, Vitória, n. 14, p. 9-12, jul./dez. 2008 11 Adriano Sant’Ana Pedra tre a norma e os fatos da vida. Todavia, cumpre destacar que o intérprete constitucional não pode dar sentidos de forma arbitrária aos textos, pois texto e norma não estão separados. Apesar de as circunstâncias fáticas integrarem a concepção de norma, isto não significa afirmar que a Constituição deva sucumbir às forças das circunstâncias da realidade. A ideia de Constituição normativa exige que as normas constitucionais sejam responsáveis por conformar a realidade. Nesse sentido, é indispensável aproximar o mundo fático e o mundo normativo a fim de que não haja qualquer mitigação à supremacia da Constituição, tendo em vista que o fático não pode sobrepujar o normativo. Adriano Sant’Ana Pedra Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV, Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Vitória – FDV (graduação, especialização e mestrado), Procurador Federal. 12 Depoimentos, Vitória, n. 14, p. 9-12, jul./dez. 2008