GLOBALIZAÇÃO DO PODER CONSTITUINTE Vinício Carrilho Martinez (Dr.)1 Neste texto, analisaremos a articulação entre uma afirmação geral, na forma de uma proposição jurídica (a), e um mapa conceitual (b), a ser analisado ao longo do trabalho. Mapa Conceitual Absorve-se ou “Evapora-se” o não-jurídico Estado Direito Civil Positivo Law POSITIVISMO Subsume-se o Homo Sociologicus? ESTADO DE DIREITO Filtra-se o Político no próprio Legislativo para se extrair só a lei (rechtsstaast) Ignora-se o não-jurídico Rule of law ESTATUTO DE D IREITO Estado de Legalidade (État légal) (império e vigência da lei) Cultura(lismo) (não só status de lei) “A letra fria da lei” “Mundo das Leis” Ordenamento Jurídico Controle Social / Ordem SUBSUNÇÃO (Abstração) ethos (Ética = valor) Subsunção Moral INDIVIDUAL OU SOCIAL NORMA VALOR FATO DIREITO COMO FATO SOCIAL EXTERIORIDADE Aceitação e COERÇÃO Interiorização GENERALIDADE de valores UNIVERSALIDADE Força/Violência Razão de Estado Direito Ocorrência Costumeiro Cultural (subjetividades: Common Law2 ) Pode-se traçar-se um esquema que ficará em condições de ser aplicado, qualquer que seja o caso concreto que se defronte (Ascenção, 2001, p. 08). 1 “A Razão Pública se expressa pelos atos do Estado” Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia. "A Common Law provém do direito inglês não escrito que se desenvolveu a partir do século XII. É á lei ' feita pelo juiz': a primeira fonte do direito é a jurisprudência. Elaborados por indução. os conceitos jurídicos emergem e evoluem ao longo do tempo: são construídos pelo amálgama de inúmeros casos que, juntos, delimitam campos de aplicação. A Common Law prevalece no Reino Unido, nos EUA e na maioria dos países d a Commonwealth. Influencia mais de 30% da população mundial". IN : http://www.ufrgs.br/bioetica/leiconce.htm. 2 Controvérsias 1. Toda sociedade tem leis (Ubi societas, ibi jus ). Mas, toda sociedade tem Estado ou uma forma de direito positivo? 2. Juristas dizem que “não há vida fora dos autos!”. Porém, um(a) juiz(a) pode afirmar na sentença que “a verdade morreu com os fatos”? 3. Não é difícil perceber que se confunde o público com o estatal. A afirmação que devemos relacionar ao mapa conceitual para análise detida é a seguinte: PROPOSIÇÃO 1: O Estado Pós-Moderno globalizou o espaço público e o Poder Constituinte. Ocorre que, mesmo com a globalização do Poder Constituinte, ainda nos deparamos com a necessidade (paradoxal) de resistir aos avanços de privatização do Estado (e do direito), da política e do próprio espaço público (diante da corrupção endêmica). Em todo caso, para compreendermos mais adequadamente esta proposição, é preciso definir os temas separadamente. A análise seguirá esta sequência: I. Teoria da Constituição, Constitucionalismo e Poder Constituinte; II Globalização do espaço público; III. A Multidão no Estado Pós-moderno. Para visualizarmos a relevância teórica e a oportunidade histórica de tratarmos o tema do Poder Constituinte, basta ter atenção à chamada Primavera Árabe, aos movimentos de rua que tomaram conta do Brasil em 2013, e às profundas mudanças políticas que terão implicações jurídicas significativas, sobretudo, a partir da elaboração de novos paradigmas constitucionais. O Poder Constituinte está na ordem do dia e, inicialmente, ainda podemos afirmar que o Poder Constituinte é o Poder Popular. I Teoria da constituição, constitucionalismo e poder constituinte Vale repetir que o Poder Constituinte deve ser percebido teórica e historicamente, remetendo-se ao passado mais longínquo, bem como ao discreto passado-presente. Assim sendo, o Poder Popular é a forma legítima de constituição da norma jurídica porque está de acordo com os preceitos republicanos. O Poder Público que recebe a legitimação popular equivale ao Estado de Direito erigido com Justiça. Desde que a humanidade conquistou determinados direitos fundamentais, julgava-se não ser possível haver afrontas ou reversões tão díspares que colocassem em risco o próprio Estado de Direito. O Bill of Rights (1689) é um deles, além da irretroatividade da lei. A Carta de Direitos inglesa, por exemplo, em seu artigo 10 traz a seguinte instrução: “Que não se exigirão fianças exorbitantes, impostos excessivos, nem se imporão penas demasiado deveras”. Fato curioso é que hoje em dia subtraímos a liberdade por uma pretensa segurança, em nome da contenção política se pratica a tortura3 . De outra forma, que talvez se possa chamar de complementar, deriva desse período ou processo histórico um Rousseau rejuvenescido pelas práticas da também chamada democracia radical – ou alargamento e aprofundamento popular dos mesmos direitos conquistados pela burguesia (seguido de uma retomada institucional, a exemplo das garantias institucionais e do próprio direito à igualdade e liberdade). A deformidade jurídica que se intenta contra os direitos humanos inclina-se para os regimes de exceção. Neste caso, como se trata de obstruir o Estado de Direito a fim de que não se adeque mais ao humanismo jurídico, define-se este atentado como antidireito e a forma política como, propriamente, de Estado Judicial. Constituição social O fenômeno do Estado Social nos ensinou que a eficácia jurídica deve vir acompanhada da efetividade social. Juridicamente, trata-se de verificar que a articulação Constituição e Povo tornará as Constituições Sociais/Socialistas mais do que Constituições de papel, de acordo com a acepção pejorativa de Lassalle. Ao contrário disso, a Constituição deve ter um papel de relevância social, como liame político-institucional – exatamente – para não se limitar à condição de papel secundário. A Constituição deve ser um juramento com a verdade republicana: Constituição é um pacto juramentado entre o rei e o povo, estabelecendo princípios alicerçadores da legislação e do governo dentro de um país”. Ou generalizando, pois existe também a Constituição nos países de governo republicano: “a Constituição é a lei fundamental proclamada pelo país, na qual se baseia a organização do direito público dessa nação” [...] Para isso será necessário: 1° – Que a lei fundamental seja uma lei básica [...] 2° – Que constitua [...] o verdadeiro fundamento das outras leis [...] A lei fundamental, para sêlo, deverá, pois, atuar e irradiar através das leis comuns do país [...] 3° – Mas, as coisas que tem um fundamento não o são assim por um 3 “Até 2006, muitos prisioneiros da chamada "guerra ao terror" eram frequentemente torturados em prisões secretas da CIA na Polônia, Romênia, Marrocos ou Jordânia. Os chamados "detentos de alto valor" foram transferidos dessas prisões para Guantánamo em 2006 [...] Além do famigerado "waterboarding" --método de tortura em que há uma simulação de afogamento-- os prisioneiros eram submetidos a horas em posições desconfortáveis; frio e calor extremo; obrigados a ficar com fones de ouvido que tocavam "heavy metal" em volume altíssimo; privação de sono; insinuações por parte de militares femininas, consideradas ofensiva pelos mais religiosos; ameaças contra familiares de detentos; uso de cães para intimidar os presos ”. Há ainda a descrição de que os presos são talhados com bisturis, em pequenos cortes pelo rosto, mãos, braços e pescoço, todos os dias, para que as pequenas cicatrizes deixem marcas e sulcos que aos poucos deformam toda a pele da pessoa. São tantas pequenas incisões que nunca cicatrizam totalmente ou, então, deixam marcas definitivas. Trata-se de uma forma de tatuagem do Terrorismo de Estado. In: http://arte.folha.uol.com.br/mundo/2013/08/18/por_dentro_de_guantanamo/?/epidemia -de-greve-de-fome-devolvea-guantanamo-o-fantasma-da-tortura#/epidemia-de-greve-de-fome-devolve-a-guantanamo-o-fantasma-da-tortura. capricho; existem porque necessariamente devem existir. O fundamento a que respondem não permite serem de outro modo [...] pois aqui rege a lei da necessidade [...] A ideia de fundamento traz, implicitamente, a noção de uma necessidade ativa, de uma força eficaz, que torna por lei da necessidade que o que sobre ela se baseia seja assim e não de outro modo [...] Muito bem, pergunto eu, será que existe em algum país – e fazendo esta pergunta os horizontes clareiam – alguma força ativa que possa influir de tal forma em todas as leis do mesmo, que as obrigue a ser necessariamente, até certo ponto, o que são e como são, sem poderem ser de outro modo? [...] Os fatores reais do poder que regulam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são (Lassalle, 1985, pp. 10-14-15-16-17 – grifos nossos). Essas Constituições irão orientar legislações especializadas em direitos trabalhistas, em diversos países, a exemplo da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) no Brasil, em 1942. Por isso, cabe perguntar se isso será uma demonstração efetiva da força normativa da Constituição, como afirmava Hesse: A concretização plena da força normativa constitui meta a ser almejada pela Ciência do Direito Constitucional. Ela cumpre seu mister de forma adequada não quando procura demonstrar que as questões constitucionais são questões do poder, mas quando envida esforços para evitar que elas se convertam em questões de poder. Em outros termos, o Direito Constitucional deve explicitar as condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível [...] Portanto, compete ao Direito Constitucional realçar, despertar e preservar a vontade de Constituição [...] que, indubitavelmente, constitui a maior garantia de sua força normativa (1991, p. 27)4 . A força normativa da Constituição nada mais é do que a vontade de se efetivar a própria Constituição. Daí que o Estado também deveria receber uma delimitação ou contornos políticos democráticos. Ainda de acordo com Hesse, a Lei Fundamental: “...determina, no artigo 28, alínea 1, que a ordem constitucional nos Estados deve corresponder aos princípios do Estado de direito republicano, democrático e social no sentido desta Lei Fundamental” (1998, p. 111). E devendo, então, como ensina Konrad Hesse, assegurar que: Finalmente, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social. Se pretende preservar a 4 Porém, na ausência de mecanismos jurídicos progressistas, haverá sempre o recurso da prática alternativa da desobediência civil. força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração de poder, o federalismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a Constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar em momento de acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força normativa (Hesse, 1991, p. 21). A Constituição deve assimilar os contrários, os dissensos, as demais possibilidades sociais e políticas de sua sociedade, inaugurando um pluralismo sócio-político e não o monismo jurídico (ou totalitarismo, de prevalência do pensamento único). Nesta trilha, porém mais tecnicamente, deve-se tomar o direito na forma das garantias institucionais (assegurando-se os direitos fundamentais), como seguridade jurídica necessária à livre fruição das vontades políticas socialmente válidas, pois que o direito, assim considerado, figurará como garantia da vida pública no bojo do Estado Democrático de Direito. Trata-se, em outras palavras, de assegurar a função jurídica do Estado em que os direitos fundamentais individuais (co)existam com a mesma inclinação de força devida aos deveres públicos (dever de efetivar os direitos fundamentais sociais). Por fim, da auto-regulação da política e da democratização do direito (direito democrático) podemos extrair a necessária mediação entre o governo dos homens (da política) e o governo das leis (o Telos, a finalidade protetiva da Justiça Social)5 . Em sentido estrito, esta passagem da política ao Direito (a positivação dos objetivos fundamentais do Estado Democrático) tem sua fórmula definida pelo princípio democrático, posto que será uma espécie de garantia popular para que as políticas públicas estejam resguardadas (positivadas, ao abrigo das facticidades e com “força de lei”) como finalidades6 do Estado Público. A Constituição, no âmbito do Estado Social, portanto, caracteriza um contrato político legítimo, com amplo respaldo popular: como se fora o ícone do próprio Império do Direito e não só o badalado Império da Lei de origem liberal. De qualquer forma, desde o pensamento liberal de John Locke pode-se ver as matrizes do Princípio da Moralidade: “A regras salus populi 5 Estas últimas considerações também retratam a necessidade de um ensino jurídico publicista, como desenvolvi em outro texto: Educação para o Espírito Público, em Jus Vigilantibus (Martinez, 23/11/2003). 6 Aliás, diga-se de passagem, a definição clássica do Estado relaciona como elementos de formação apenas o território, o povo, a soberania e a finalidade (ainda que sob este último item recaia certa controvérsia). O único elemento desconsiderado pela grande maioria é o reconhecimento externo. suprema lex 7 é certamente tão justa e fundamental que aquele que a segue com sinceridade não corre um risco grande de errar” (Locke, 1994, p. 179). Razão de Estado Atualmente, ao reverso do que recomendava o liberalismo de John Locke, a Razão de Estado é invocada a fim de se garantir o avanço de formas não-democráticas do poder. Novamente, a saída para a crise civilizatória do direito e da política está na emergência do poder social – como argamassa do próprio Poder Constituinte. No dizer de Negri: Falar de Poder Constituinte é falar de democracia. O Poder Constituinte está ligado à ideia de democracia, concebida como poder absoluto. Portanto, o conceito de Poder Constituinte, compreendido como força que irrompe e se faz expansiva, é um conceito ligado à préconstituição da totalidade democrática. Pré-formadora e imaginária, esta dimensão entra em choque com o constitucionalismo de maneira direta, forte e duradoura. Neste caso, nem a história alivia as contradições do presente: ao contrário, esta luta mortal entre democracia e constitucionalismo, entre o Poder Constituinte e as teorias e práticas dos limites da democracia, torna-se cada vez mais presente à medida em que a história amadurece seu curso. No conceito de Poder Constituinte está a ideia de que o passado não explica mais o presente, e que somente o futuro poderá fazê-lo [...] O constitucionalismo é uma doutrina jurídica que conhece somente o passado, é uma referência contínua ao tempo transcorrido, às potências consolidadas e à sua inércia, ao espírito que se dobra sobre si mesmo – ao passo que o Poder Constituinte, ao contrário, é sempre tempo forte e futuro [...] Em outros termos, o Poder Constituinte representa um momento essencial na secularização do poder e na laicização da política. O poder torna-se uma dimensão imanente à história, um horizonte temporal em sentido próprio (2002, grifos nossos, p. 07-22 – grifos nossos). Sua força está na renovação, na pulsão política que revigore não apenas o ordenamento jurídico, mas sim a história; reconfigurar tal ordenamento é, no fundo, adequá-lo aos novos tempos. Ou seja, pode-se dizer que se trata da própria força democrática imanente à condição popular, da força democrática capaz de revolucionar o status quo. E com isso equiparamos o Poder Constituinte ao poder popular. A fim de melhorar a articulação dessa forma de ação popular (cultura política e popular) – investigando-se se aqui se trata de ação livre ou direcionada e, acaso seja direcionada, em função de que diretivas e para qual direção – faremos breve retrospecto na conformação jurídica do Poder Constituinte. 7 Que a salvação do povo seja a suprema lei. Poder Constituinte Originário e Revolucionário Mas, qual será o conceito jurídico de Poder Constituinte? Há outras implicações que podemos inferir a partir das relações mais amplas entre poder e direito, no que concerne à regulação jurídica da política? A lição jurídica clássica ensina que o Poder Constituinte pertence à nação; sendo a nação sua titular jurídica por imposição da condição política. Para estabelecer o conceito jurídico, inicialmente, é preciso indagar quais os sustentáculos da Constituição – sendo o próprio fundamento do direito. A Constituição, por sua vez, como referência jurídica superior, tem sua força ontológica depositada no Poder Constituinte – este que é o supremo fornecedor das diretrizes normativas. Assim, o Poder Constituinte insurge como a máxima potência criadora. Corresponde, pois, à possibilidade (janela histórica do poder) de elaboração políticojurídica para a efetiva vigência da Constituição em sua globalidade. Isto é, o Poder Constituinte produz a Constituição como fonte do direito formal. Trata-se de uma faculdade político-jurídica essencial à auto-organização do Estado. Se é do contexto social que surge o direito, é do Poder Constituinte que deriva sua legitimidade. Ainda que imbuído das características de ser incondicionado e ilimitado, o Poder Constituinte é um fato jurídico à medida em que cria e impõe o direito. Portanto, é verdadeiro fator jurídico, como vetor político da legitimidade social. Trata-se, essencialmente, da vontade política, uma vez que não se separa o jurídico do político. É um Poder Constituinte da soberania, visto que é supremo, absoluto, ilimitado. Por isso, é revolucionário. O Poder Constituinte institui normas gerais para a organização do Estado e da sociedade civil. Nada é mais gerador de direitos que o Poder Constituinte, em sua fase de revolucionar as instituições tornadas arcaicas (Teixeira, 2007). Para o jurista francês Carré de Malberg (2001), o poder originário não pode ser transferido a uma assembleia de políticos profissionais. A representação esvaziaria a lógica política original. Em suma, o Poder Constituinte deveria ser um processo político-jurídico dirigido por uma Assembleia Popular, composta por cidadãos e não por representantes. Estrutura jurídica do Poder Constituinte - conceito Trata-se da manifestação soberana da suprema vontade política de um povo, que se propõe a uma organização social e jurídica inovadora. Finalidade Limitar o poder do Estado e preservar os direitos e garantias individuais. Titularidade do Poder Constituinte O titular do Poder Constituinte é o povo. Assim, a vontade constituinte é à vontade do povo que se expressa por meio de seus representantes. Espécies de Poder Constituinte Poder Constituinte originário (ou de 1° grau) Poder Constituinte derivado, constituído (ou de 2° grau) Poder Constituinte Originário É aquele que elabora uma outra Constituição para o Estado. E pode se expressar por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte (convenção) ou por um Movimento Revolucionário (outorga). Características do Poder Constituinte Originário Inicial – inaugura uma nova ordem jurídica, revogando a Constituição anterior, bem como as leis infraconstitucionais que se encontra em desacordo com a nova Constituição; Autônomo – porque somente àquele que exerce cabe determinar quais os termos em que a nova Constituição será estruturada; Ilimitado – pois não está de modo algum limitado pelo direito anterior; Incondicionado – não se submete a nenhum processo predeterminado para a sua elaboração. Poder Constituinte Derivado É o Poder Constituinte que reforma uma Constituição já existente, dentro das regras e das matérias nela previstas. Características Derivado – porque retira sua força do Poder Constituinte originário; Subordinado – encontra-se limitado por normas expressas e implícitas do texto constitucional; Condicionado – porque a modificação da Constituição deve obedecer ao processo determinado para sua alteração (processo de emenda). Espécies de Poder Constituinte derivado 1. Poder Constituinte derivado reformador É a possibilidade de alteração do texto constitucional, respeitando-se o processo previsto na própria Constituição. Só pode ser exercido por órgãos com caráter representativo. No Brasil o Congresso Nacional. 2. Poder Constituinte derivado decorrente É a possibilidade que os Estados-membros têm, devido sua autonomia políticoadministrativa de se auto-organizarem por meio de suas respectivas constituições estaduais. O Poder Constituinte é uma salvaguarda e uma retomada dos direitos políticos. Como resumiu Teixeira (2001), os principais direitos políticos trazidos e assegurados pela nossa atual Constituição refletem certa segurança jurídica conferida especialmente ao chamado Princípio Democrático – como sinalizado nas cláusulas pétreas no art. 60, § 4º, I a IV, da CF. Vejamos como ele recorta a Constituição: Direitos políticos (art. 14 a 16); direito a questionar a constitucionalidade das leis e dos atos dos governantes (art. 103) [...] direitos [...] como vítima de desigualdades regionais e sociais [...] direitos do cidadão face à administração pública, no que diz respeito a cargos, empregos e funções públicas, aos concorrentes a obras, serviços e compra e alienações da administração pública, aos serviços públicos, à responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos; direito de responsabilizar o presidente da República por atos que atentem contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; direitos humanos e direito de responsabilizar o Estado pela sua violação; direitos dos anistiados e das pessoas punidas com perda dos direitos políticos; direitos dos servidores públicos, ativos, inativos e pensionistas (atualização dos benefícios) (p. 169-170). Aliás, neste sentido, há apenas uma ressalva: é necessário ressaltar/contextualizar os direitos políticos em fases ou gerações. Vejamos resumidamente algumas dessas fases, dimensões ou gerações de direitos8 (não estando totalizadas): 1. direito de resistência, sedição ou de revolução (no caso de o soberano atentar contra o povo); 2. direito de petição (para inquirir abuso de poder ou requerer novos direitos junto ao Estado soberano); 3. direito de participação e de reunião (além das corporações de ofícios); 4. direito de voto (livre, secreto, direto, universal); 5. direito de associação (em partidos, sindicatos); 6. sufrágio universal (entre 80 e 90% da população têm condições de intervir nos rumos do Estado); 7. direito de voto e de assembleia (democracia plebiscitária: decisão política, com aceitação ou reprovação popular, sobre políticas públicas por meio de referendos e plebiscitos); 8 A ideia de geração de direitos é tomada aqui como sendo o momento em que, da criação do próprio direito (demanda social/promulgação ou não) até a verificação de alguma impactação mínima dessa nova reserva jurídica, há um ganho sensível/significativo de qualidade nas relações jurídicas e políticas envolvendo os agentes sociais relacionados/enlaçados pelo novo corpo jurídico – sem esta alteração qualitativa não haveria mudança jurídica, social, política que demarcasse o terreno da própria luta jurídica. 8. direitos da democracia radical (exercício vigoroso da soberania popular como controle do poder político); 9. direitos da democracia virtual (o uso da rede como interface entre cidadãos e governo)9 . O Poder Constituinte recupera toda a extensão e profundidade do Princípio Democrático: “é um princípio jurídico-constitucional com dimensões materiais e dimensões organizativoprocedimentais” (Canotilho, s/d, p. 285). Quando de acordo com a democracia e a República, a Constituição ainda definirá os bens e o Domínio Público como extensão e materialização da consciência pública. Este encontro histórico entre democracia, República, Federação e Estado de Direito consistem na determinação de valores coletivos como referência do próprio Estado. Neste sentido, diz-se que o Estado de Direito estabeleceu o Domínio Público. Domínio Público Perde-se na história a origem da consciência política que traçou as primeiras linhas demarcatórias do chamado Domínio Público, momento inaugural em que teria havido, mais exatamente, o surgimento de uma consciência coletiva e a subsequente fixação de determinados bens ao uso comum, coletivo, uti universi. Depois, já no decorrer do Estado Moderno (no Alto Renascimento), a Administração Pública desenvolveu dois institutos inerentes a este objetivo: dominação e regulamentação. Na fase moderna da organização social e da Administração Pública, a fase corresponde ao que o sociólogo alemão Max Weber (1979) denominou de dominação racional-legal (dando prosseguimento ao curso do desencantamento do mundo ou simplesmente formas racionais de dominação social e de controle sobre o Poder Público). Na redação de 1916 – portanto, muito limitada no tempo -, o art. 98 do Código Civil assim definia bens públicos: “são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencem”. Portanto, ainda que sob a alcunha de bens pertencentes ao “patrimônio do Estado”, eram tratados como bens pertencentes ao domínio do povo, de usufruto universal. Deve-se alertar para a diferença destes bens, em relação a outros de domínio eminente por parte do Estado, sob os quais o Poder Público exerce sua plena soberania - summa potestas: qualidade do poder de ser supremo dentro dos limites de sua ação política e reguladora (Azambuja, 2001). 9 Este foi, exatamente, o objeto de nossa tese de doutorado (Martinez, 2001). Entretanto, o elemento comum, ainda que sob o domínio do ente estatal, é o pertencimento ao interesse público, ou seja, formam o conjunto de bens para o uso e gozo universal, seja o bem pertencente à pessoa de direito público ou a particulares. São assim considerados Bens de Domínio Público, atinentes à esfera federal, estadual, municipal ou distrital, sob a guarda legal do serviço autárquico, fundacional ou paraestatal a que esteja, vinculados, além de conformarem todas as coisas corpóreas, incorpóreas, móveis, imóveis e semoventes, reservados ao bem estar da população, graciosamente franqueados, por todos utilizados em igualdade de condições e sem necessidade de consentimento especial, ou autorização que requeira qualquer tipo de qualificação, sob o quais se reportam os interesses e o direito público-subjetivo de todo cidadão, pois seus usuários são anônimos, indeterminados, razão pela qual se nega publicamente todo privilégio de uso particular, salvo exceções que advenham do poder de polícia10 . De certo modo, o Poder Constituinte resgata valores muito antigos e caros à Humanidade. Todavia, esses valores ainda se defrontam com o pragmatismo jurídico na atualidade. O Estado de Direito como verdade de princípios Sócrates morreu, exatamente, para que a busca da verdade sobrevivesse, para que a Justiça tivesse/fizesse sentido no futuro da humanidade. O que mais aprendemos com a morte do filósofo grego é que a crença no justo — tendo o direito como meio e não fim — fortalece o desenfeitiçamento do mundo e não se prende a formalismos: o Habeas corpus, por exemplo, desconhece as barreiras da formalidade e dos rituais. Contudo, não nos esqueçamos de que todo direito é político, quase como nota remissiva do poder: Nos Estados Unidos, por exemplo, o Supremo Tribunal tem de decidir questões constitucionais importantes que também são questões políticas, como a de determinar se criminosos acusados têm direitos processuais que dificultam mais a implicação da lei11 [...] Quero indagar, porém se os juízes devem decidir casos valendo-se de fundamentos políticos, de modo que a decisão não apenas a decisão que certos grupos políticos desejariam, mas também que seja tomada sobre o fundamento de que certos princípios de moralidade política são corretos (Dworkin, 2001, p. 03 – grifos nossos). É oportuno o raciocínio de que o Princípio da Ampla Defesa possa ser compreendido como ação de criminosos que, no uso de direitos processuais, dificultam a aplicação da lei. 10 11 Conforme se vê no artigo 68 do Código Civil. Não fere a lógica jurídica o fato de há leis que violam a efetividade da Justiça? Em Dworkin, o apelo cultural pelos direitos de fundo são ainda mais sensíveis e ressaltados. O ideal do justo deve se apropriar da lacuna da lei e os direitos (re)conhecidos pelo povo devem se manifestar nos tribunais (e não o contrário, quando a chicana entorpece o direito): A concepção centrada nos direitos supõe que os cidadãos têm direitos morais – isto é, outros direitos que não os declaramos pelo direito positivo – de modo que uma sociedade pode ser sensatamente criticada com base no fundamento de que sua legislação não reconhece os diretos que as pessoas têm. Muitos filósofos, porém, duvidam que as pessoas tenham quaisquer direitos que não os concedidos a elas por leis ou outras decisões oficiais, ou mesmo que a ideia de tais direitos faça sentido. Duvidam particularmente que seja sensato dizer que as pessoas têm direitos morais quando é controvertido numa comunidade quais direitos morais elas têm [...] Contudo, embora o modelo centrado nos direitos admita que o texto jurídico é, dessa maneira, uma fonte de direitos morais no tribunal, ele nega que o texto jurídico seja a fonte exclusiva de tais direitos. Se, portanto, surgem alguns casos sobre os quais o texto jurídico nada diz, ou se as palavras estão sujeitas a interpretações conflitantes, então é correto perguntar qual das duas decisões possíveis no caso melhor se ajusta aos direitos morais de fundo das partes. Pois o ideal da prestação jurisdicional, no modelo centrado nos direitos, é de que, na medida em que isso é praticável, os direitos morais que os cidadãos efetivamente possuem devem ser acessíveis a eles no tribunal. Portanto, uma decisão que leva em conta direitos de fundo será superior, do ponto de vista desse ideal, a uma decisão que, em vez disso, especula, por exemplo, sobre o que o legislador teria feito se houvesse feito alguma coisa [...] Assim, um juiz que segue a concepção centrada nos direitos não deve decidir um caso controverso recorrendo a qualquer princípio que seja incompatível com o repertório legal de sua jurisdição. Mas, ainda assim, deve decidir muitos casos com base em fundamentos políticos, pois, nesses casos, os princípios morais contrários diretamente em questão são, cada um deles, compatíveis com a legislação (Dworkin, 2001, pp. 09-15-16). Assim, se o Estado de Direito exige o acatamento e respeito ao ordenamento legal, esse conjunto de leis, é óbvio, deve fluir para as aspirações da Justiça Social e da Soberania Popular. Aqui invocamos o direito comparado não apenas para efeito de ilustração, pois, como fonte de direito, deve ser visto como lição histórica a serviço da pretensão da Justiça: Há na verdade, duas concepções muito diferentes do Estado de Direito. A primeira é a que chamarei de concepção “centrada no texto legal”. Ela insiste em que, tanto quanto possível, o poder do Estado nunca deve ser exercido contra os cidadãos individuais, a não ser em conformidade com regras explicitamente especificadas num conjunto de normas públicas à disposição de todos [...] A concepção centrada no texto jurídico é, a meu ver, muito restrita porque não estipula nada a respeito do conteúdo das regras que podem ser colocadas no texto jurídico. Enfatiza que, sejam quais forem as regras colocadas no “livro de regras”, elas devem ser seguidas até serem modificadas [...] Chamarei a segunda concepção do Estado de Direito de concepção “centrada nos direitos”. Ela pressupõe que os cidadãos têm direito e deveres morais entre si e direitos políticos perante o Estado como um todo [...] O Estado de Direito dessa concepção é o ideal de governo por meio de uma concepção pública precisa dos direitos individuais. Não distingue, como faz a concepção centrada no texto legal, entre o Estado de Direito e a justiça substantiva; pelo contrário, exige, como parte do ideal do Direito, que o texto legal retrate os direitos morais e os aplique (Dworkin, 2001, p. 06-07 – grifos nossos). Mesmo que se construa e se limite o aparato de Estado para a necessária efetividade jurídica e eficácia social – como fontes de legitimidade –, temos de ter claro quais os perigos ou dimensões de fracasso do Estado de Direito, especialmente quando se espera aí verificar a formatação do Poder Constituinte: Um Estado pode fracassar no âmbito dos direitos individuais que alega impor. Pode declinar de impor direitos contra si, por exemplo, embora reconheça que os cidadãos têm tais direitos. Pode fracassar na exatidão dos direitos que reconhece: pode prover direitos perante o Estado mas, por erro oficial, deixar de reconhecer direitos importantes. Ou pode fracassar na equidade de sua imposição de direitos: pode adotar regras que colocam os pobres ou alguma raça desfavorecida em desvantagem para assegurar os direitos que o Estado reconhece que eles possuem [...] Um elevado grau de aquiescência à concepção centrada no texto jurídico parece ser necessário a uma sociedade justa [...] Mas a aquiescência às leis evidentemente não é suficiente para a justiça; a aquiescência plena provocará injustiça muito séria se suas regras forem injustas (Dworkin, 2001, p. 08 – grifos nossos). Para o autor as regras só poderão ser superadas se houver razões suficientemente fortes para tanto. Quer se encontrem essas razões nas finalidades subjacentes às regras, quer nos princípios superiores à própria regra. Portanto, a superação das regras só se tornará justificável à vista de razões extraordinárias, cuja avaliação perpassa o postulado da razoabilidade. Sua pretensão é, diferentemente das concepções encontradas no Direito Público 12 , demonstrar que é “mais reprovável descumprir aquilo que ‘se sabia’ dever cumprir”. Assim, descumprir uma regra é muito mais grave do que descumprir um princípio na medida em que: 12 Para os publicistas violar um princípio seria sempre mais grave do que violar uma regra, pois significaria violar vários comandos e subverter valores fundamentais do sistema jurídico. Quanto maior o grau de conhecimento prévio de um dever, maior a reprovabilidade da transgressão. É mais reprovável violar a concretização definitória do valor da regra do que o valor pendente de definição e de complementação de outros como é o caso dos princípios. O grau de decidibilidade da regra é maior do que o encontrado nos princípios, devido ao caráter descritivo e comportamental da regra. A regra apresenta proposta de solução de conflitos de interesses conhecidos ou antecipáveis pelo Legislador. Descumprir o que já foi objeto de decisão é mais grave do que descumprir uma norma cuja função é servir de razão complementar ao lado de outras razões para tomar uma futura decisão. O ônus de superar uma regra é maior do que aquele exigido para superar um princípio. A opção legislativa pela regra reforça sua insuperabilidade preliminar. Nesse sentido, as regras consistem em normas cuja pretensão é solucionar conflitos entre bens e interesses, possuindo caráter “prima facie” forte e superabilidade mais rígida, enquanto os princípios consistem em normas com pretensão de complementariedade, tendo caráter “prima facie” fraco e superabilidade mais flexível. Isto nos revela que o Poder Político é uma institucionalização das finalidades públicas e que sua defesa e promoção dependem da ação política, incluindo-se aí a formação e alimentação de uma cultura política que fortaleça o sentido moral necessário ao cumprimento das regras estabelecidas. A luta pelo direito, portanto, é uma constante, quer seja para se angariar o direito quer seja para que seja cumprido e esteja assegurada sua fruição. Direito e Globalização das Relações Humanas É interessante pensar que o embate entre o controle social autocrático e a requisição de um mínimo de democracia, está a luta política pelo direito. Desse modo, nas relações políticoinstitucionais e na vida privada, o Estado está vivo e deve ser melhor compreendido. Neste sentido, observamos o mundo contemporâneo — suas transformações culturais, sociais, tecnológicas — como desafio à dogmática jurídica e aos paradigmas que lhes deram sustentação até o presente: a exemplo do contratualismo clássico, do Estado Jurídico e do assim chamado moderno constitucionalismo. Daí que o próprio objetivo do pesquisador do direito é relacionar a construção do saber jurídico no contexto da sociedade informática, na sociedade em rede e no enfrentamento do fim do Saberes/Direitos/Poderes. Estado-Nação, além do surgimento obrigatório de novos Portanto, não se trata de enfeixar uma análise ou investigação meramente descritiva e nem dedutiva, no sentido de que a dogmática jurídica já está estabelecida, como Direito Posto, e de que seria a premissa maior de toda conclusão institucional. A utopia da paz, desta globalização das relações humanas sem dominação do capital ou determinação dos poderes de poucos, vem embalando a Humanidade, ao menos, desde o Iluminismo. Entre seus defensores destacam-se nomes como do filósofo Kant e seu clássico A Paz Perpétua (1990). Mas, talvez, o som que embalou o mundo por este sonho e ainda nos anima a alma quando temos tempo de ouvir uma boa música seja Imagine dos Beatles. Imagine não existir países Não é difícil de fazer Nada pelo que matar ou morrer E nenhuma religião também Imagine todas as pessoas Vivendo a vida em paz [...] Imagine não existir posses Me pergunto se você consegue Sem necessidade de ganância ou fome Uma irmandade do Homem Imagine todas as pessoas Compartilhando todo o mundo Esta não deixa de ser uma proposição de que o poder capaz de constituir relações humanas e políticas possa ser mais efetivo. Também é uma boa síntese da globalização do Poder Constituinte. Por fim, o que a historicidade nos revela é que a luta pelo direito, como fundamento democrático do Poder Constituinte, tanto estava nas bases do Estado Moderno quanto se apresenta atuante diante dos dilemas e das demandas do assim chamado Estado Pós-Moderno. Mas, será que se trata da mesma multidão apontada por Tomás de Aquino, Hobbes ou Del Vecchio quando trataram das massas que se acercaram do Estado? O processo de globalização alterou profundamente as formas de manifestação de insatisfação das massas. II Globalização do espaço público Historicamente, o Poder Político nunca conviveu muito bem com as mobilizações sociais e populares, isto porque o poder tem a tendência a se centralizar, verticalizando-se, enquanto a sociedade tem múltiplas demandas sociais e, por natureza, é descentralizada, manifestando-se mediante o sentido global de uma multiplicidade horizontal. Portanto, o que vemos no Brasil, com a mobilização de milhares de pessoas, é uma manifestação sobre temas globais. O que faz eco com outras partes do mundo, a exemplo da Turquia e do Egito com uma desconfiança sobre o Poder Público que está no limite institucional. O entrechoque, no entanto, é instrumental, afetando-se toda a estrutura singular do Estado nacional. A polícia que, normalmente, é associada à repressão dos movimentos populares, nos movimentos que abalaram o Brasil com a tomada das ruas, teve atuação diversa; inicialmente foi violenta, mas se rendeu à lógica social da Multidão brasileira e aderiu à marcha13 , em sua luta contra a distopia pública14 . Os embates tomaram outro rumo com a militância especializada em torno do movimento intitulado Black Bloc (de estratégia anarquista). Este efeito de globalização dos movimentos sociais, apelidado de Multidão, como visto em 2013, entretanto, tem uma origem bem mais remota. A Multidão é um fenômeno que se formou mais claramente a partir de 1990, com as revoltas e mobilizações por todo o mundo, especialmente contra o modelo econômico espoliador dos povos mais pobres. Na Multidão, a lateralidade e a horizontalidade democrática retomam parte da tradição política. Na Multidão, o poder popular, via de regra, não é centralizado, não tem uma cabeça para ser cortada, é um movimento de massas. Neste sentido, a Multidão carrega consigo a legitimidade do Poder Constituinte. Porque a Multidão também ultrapassa os mecanismos tradicionais dos partidos políticos, do Poder Político e das instituições centralizadas de forma geral. Para retomar outro exemplo da década de 1990, basta lembrarmos que se tornou evidente o uso revolucionário da Internet em Chiapas, México. Naquele momento, para fugir do cerco do exército mexicano, que seria letal, os zapatistas emitiram pedidos de socorro através da Internet, a fim de que a comunidade internacional pressionasse o governo a não cometer o democídio político. Parece que foi o primeiro caso de Habeas Corpus Tecno-preventivo em nome de uma coletividade política. O governo não teve como resistir 15 e, a partir de então, a modernidade aliançou em definitivo a política e a tecnologia (Di Felice, 1998). O século XX A Multidão não costuma apresentar um viés ideológico em definitivo, pode-se ver lemas e temas da direita conviverem com os de esquerda. Em todo caso, a substituição do Estado Social, a mitigação de direitos, a substituição de garantias sociais por práticas políticas de mera 13 http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/06/18/lider-de-policiais-diz-que-militares-protestarao-nocastelao-de-mascara.htm. 14 http://www.gentedeopiniao.com.br/lerConteudo.php?news=112672. 15 Veja-se o site da Frente Zapatista de Libertação Nacional (FZLN): em http://spin.com.mx/~floresu/FZLN/. Sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), com textos, manifestos e artigos publicados em: http://spin.com.mx/~floresu/FZLN/archivo/ezln/index.ht m. repressão e controle social são rechaçadas. Por isso, pode-se dizer que o emblema do Estado Social – como configurado da década de 1920 – tem sido resgatado. Em longo salto na história política, o Estado Social serviu como fundamento ideológico em que se procurava aproximar Estado e sociedade. Uma tentativa de modernizar a soberania (sendo mais popular) e de resgatar a legitimidade interposta pelo pensamento religioso: o príncipe obedece à Lei. Contudo, o Estado Social vem sendo gestado desde as revoltas e tentativas de revolução europeias dos anos 1848 16 e ganharia um empuxo ainda maior com a Comuna de Paris, em 1871. Depois, já no século XX, afirmou-se com a Revolução Mexicana, de 1910, e com a Revolução Russa, de 1917. Portanto, o chamado New Deal (plano econômico de restauração da economia americana abalada com a grave crise de 29), é apenas um marco econômico posterior do Estado Social. Isto é, de meados do século XIX (1848) até os anos 1930, o Estado Social consolidou suas bases históricas e matrizes ideológicas. Mas, ainda há que se ressaltar que no período o mundo reconheceu a inscrição da personalidade jurídica do Estado legítimo, com a Constituição Mexicana, de 1917, a Constituição de Weimar (Alemanha de 1919) e o documento socialista da Rússia de 1918: Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado. O Estado Social, ou por muitos denominado (erroneamente) de Welfare State, é apontado como o primeiro recorte ideológico que influenciou a democracia ocidental17 . O Estado Social é um Estado quase-socialista, pois afirma direitos e políticas socializantes (a maioria das conquistas da classe trabalhadora), a exemplo dos próprios direitos sociais e trabalhistas (artigos 6º e 7º da CF/88). Ocorre que o Estado Social não foi capaz de romper os limites e as barreiras do capitalismo, uma vez que se desenvolveu em países de economia capitalista. De qualquer forma, no entanto, tratava-se de um processo de intensas lutas operárias e sindicais anarquistas e socialistas18 que se iniciou nos anos 1848-1850, em países como França, Alemanha e Inglaterra e foi isto que formou a base ideológica do Estado Social. O Estado do Bem Estar Social, por seu turno, é uma resposta eminentemente capitalista ao desenvolvimento e avanço do socialismo que vinha do Leste Europeu (a Revolução Russa foi apenas o primeiro passo). Portanto, o núcleo do Welfare State sempre esteve permeado por um 16 Lembremo-nos de que o Manifesto do Partido Comunista (1848) data desse mesmo ano – o que indica, mais uma vez, as reais intenções dos movimentos sociais de cunho socialista do período. Sem dúvida, um fermento ideológico para a geração do Estado Social e de sua base jurídica. 17 Vemos historicamente que tanto o socialismo quanto a social-democracia exerceram forte influência na formação do Estado Democrático de Direito. 18 É preciso frisar aqui que a ideologia de base é proletária e revolucionária e, ainda que as Constituições Mexicana e Alemã não cheguem a tanto, havia um forte espírito de transformação radical da sociedade. posicionamento conservador diante das propostas socialistas testadas na prática desde o início do século XX. O Estado do Bem-Estar pode conviver com o fascismo. O Estado do Bem Estar19 , por seu turno, terá o Plano Marshall (1947) como ponto de referência histórica: com o fim da Segunda Guerra, a Europa precisava ser restaurada. Enfim, de 1917 a 1947 são 30 anos de separação histórica e geográfica entre os dois tipos de Estado. As últimas décadas do século XX marcariam, ao contrário, o fim do Estado Social, com uma extensa privatização dos interesses, recursos e princípios públicos. Como resposta global, antítese, a este desmanche do Estado que apoia o social, surgiu um fenômeno global denominado de Multidão. Neste processo, entretanto, a globalização não efetuou grandes transformações na melhoria das condições de relacionamento humano; a globalização – ao contrário – estigmatizou o processo civilizatório como sendo obra de utópicos, juvenis e revolucionários. Globalização do Terror Para Hobsbawm, em 1989, fechou-se um ciclo histórico aberto desde o século XVIII – período conhecido por ter um sistema de poder internacional. A partir da década de 1990, viu-se o aumento dos chamados “Estados falidos”, com o colapso dos governos centrais ou situações endêmicas de conflitos armados. Esta era iniciou a mais forte crise enfrentada pela estrutura estatal clássica, com especial destaque ao enfraquecimento do monopólio do uso legítimo da força física (violência): Essa instabilidade é dramaticamente acentuada pelo declínio do monopólio da força armada, que já não está nas mãos dos governos [...] A chamada “guerra assimétrica” que aparece nos debates estratégicos atuais dos Estados Unidos consiste precisamente na capacidade desses grupos armados não-estatais de sustentar quase que indefinidamente em luta contra o poder do Estado, nacional ou estrangeiro (Hobsbawm, 2007, p. 87). A onda de violência esteve marcada pela limpeza étnica, conflitos por poder e território, guerras civis e as respostas advindas do poder central: golpe de Estado; Estado de Sítio. A globalização acirrou a imigração e as comunicações – o documento de identificação deixou de ser o registro de nascimento para se firmar a cidadania virtual no passaporte. Neste fluxo global é de se indagar sobre a perda de força do Estado, desde seu próprio território. Do mesmo modo como as “obrigações nacionais” sofreram modificações elevadas. A relação de confiabilidade 19 Uma espécie de segunda fase do Estado Social, em que o direito foi bastante instrumental da economia, servindo solenemente aos interesses capitalistas durante a Guerra-Fria. entre cidadãos e Estados refluiu e outro reflexo é a militarização social e a contratação de exércitos mercenários para a guerra global (Hobsbawm, 2007, p. 96). Desde 1960 cresce a delinquência juvenil, entre 14 e 20 anos. A erosão das regras sociais e das convenções familiares transformaram as “classes perigosas”, antes formadas apenas com rebeldia. A iminente guerra civil é outra manifestação societária da quebra de legitimidade que hoje assombra a Razão de Estado – o custo social é elevado. Há ainda uma financeirização do crime organizado e, em resposta, uma vigilância aprimorada dos serviços secretos. São relacionados o crime organizado e o terrorismo político. Até a CIA passou a monitorar as ameaças globais à Razão de Estado: “A Agência Central de Inteligência (CIA) identificou, em 2004, cinquenta regiões do mundo sobre as quais os governos nacionais exercem pouco ou nenhum controle” (Hobsbawm, 2007, p. 145). Com parte dessa resposta institucional, ainda vemos crescer o excepcionalismo da força ao revés da lei – o Estado de Direito padece de efetividade: “O enfrentamento com os terroristas promoveu a militarização da polícia” (Hobsbawm, 2007, p. 148 – grifos nossos). A partir de 2011, como tecnologias de Terrorismo de Estado, são utilizados “robôs armados” de autonomia letal – em guerras de conquistas e na “guerra ao terror” – ou aviões não-tripulados. A globalização do terror, especialmente no século XXI, é altamente especializada, mas recebe a contraprova da Multidão em luta pela defesa dos direitos fundamentais. A Multidão, em alguns momentos, insurge-se contra a globalização hegemônica. III A Multidão no Estado Pós-moderno Quando o sub-comandante Marcos, no México da década de 1990, utilizou o princípio da rede20 e a telemática para fazer avançar a ação da guerrilha zapatista, não estaria atualizando (colocando em dia) as possibilidades teóricas de todos os projetos e ideais revolucionários de cunho popular? Percebemos, desde então, que o Estado de Direito Virtual tem um alento revolucionário, pois se desenvolveu sob a lógica inversa da Matrix (como uma rede que controla a todos). Neste caso, a Matrix é fáustica e o maquinismo é maquiavélico. Aprendemos que na técnica vigora o raciocínio político controlativo (outrora meramente repressivo). Trata-se de um controle técnico que é político. Quanto ao Estado de Direito Atual, ainda podemos dizer que o suporte técnico impulsionou tanto o cidadão quanto o sub-comandante Marcos à esfera global. 20 Até porque não haviam as redes sociais como as conhecemos hoje em dia. Mas, o p rincípio estava lá – aliás, o princípio da rede esteve presente desde o surgimento da Internet. O sub-comandante Marcos não é mais um guerrilheiro, é um cidadão do mundo, mesmo que pobre. Sua imagem virtual (lutando atrás de um computador, angariando o apoio de milhares de Hackers pelo mundo afora) não deixa de nos mostrar que os zapatistas se defrontam contra o Estado Atual mexicano, contra o status quo ante, e que se instalou depois da Revolução de Zapata, no início do século XX. Mas e quando se misturam, imiscuindo-se o atual e o virtual? Para o caso dessa política sem lugar, Deleuze atribuiu o nome cristalização: Essa troca perpétua entre o virtual e o atual define um cristal. É sobre o plano de imanência que aparecem os cristais. O atual e o virtual coexistem, e entram num estreito circuito que nos reconduz constantemente de um a outro [...] Não é mais uma atualização, mas uma cristalização. A pura virtualidade não tem mais que se atualizar, uma vez que é estritamente correlativa ao atual com o qual forma o menor circuito. Não há mais inassinalabilidade do atual e do virtual, mas indiscernibilidade entre os dois termos que se intercambiam (Deleuze, 1996, p. 54). É como se o Estado distante do povo fosse um desses cristais e a Multidão sai às ruas para quebrar cristais. Isto vale para o Estado de Direito Capitalista, quando toma formas mais fixas ou cristalizadas e dissociativas em relação ao capital predominante ou hegemônico. Quando o Estado Capitalista se globaliza, há valores que se cristalizam, ganham formas permanentes, com força e status inerentes. Há valores cristalizados, como nas seguintes ideiasmotores do capital atual: “deixe o lucro crescer”; “o liberalismo é o bem e não pode ser contido”. Não deixam de ser cristais do capital, como um dia também foram suas pérolas. É por isso que o Estado simplesmente não desaparece, porque o Estado Arrecadador ainda necessita financiar o grande capital – a não ser que o capital encontre outra forma ou fórmula de auto-financiamento, o que também não se mostra muito viável, graças ao egoísmo natural da empresa. Também por isso o sub-comandante Marcos (entre os zapatistas) foi um ícone das forças anti-globalização ou hegemonização, mas também é uma lembrança de como funciona mal esse Estado-Cristal que demora a entender o fluxo ou a direção das forças em jogo. O EstadoCristal mexicano não resolveu a crise social e ainda perdeu as batalhas midiáticas para os zapatistas que, com conexão via satélite, conseguiram colocar seu discurso por Justiça Social no mundo todo. Talvez por só ter notado essa característica do Estado-Cristal, da sociedade de controle, Deleuze também não tenha notabilizado a grandeza, a potência do virtual – sua dinâmica, sua força motriz e política, sua infindável força de criação imaterial, de novas inteligências, da própria força de erupção desse novo instrumento/constructo. Com certeza, esse foi o primeiro grande passo da guerrilha cibernética contra o Estado-Cristal: o tipo de Estado incapaz de ver as virtualidades presentes nos movimentos sociais representativos dos interesses realmente populares. E isso também incentiva a reler o texto O Pensamento Único, de Ramonet. Essa estrutura, no entanto, será repleta de contradições e é para essa análise que nos encaminhamos, para as contradições políticas e jurídicas que mais se aproximam desse tipo de Estado controlado. A Multidão quer rever a legitimidade dada ao Estado Cristal (Martinez, 2001). Seatle e o mundo globalizado pelo sofrimento social Em outro exemplo do mesmo período, em Seatle, nos EUA, em 1999, na reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), a net também mobilizou a participação social em defesa dos países do Terceiro Mundo, denunciando a desigualdade social e clamando por medidas econômicas favoráveis. Esta democracia horizontal, retomada pela Multidão, conectou demandas globais que repelem as formas de autocracia. Da guerra de guerrilha do passado à guerra em rede do presente, os coletivos interligam-se em anseios múltiplos na Multidão. Este acentrismo confronta abertamente o Estado-Nação, mas o desafio político está em ultrapassar as fluídas matrizes da resistência aos governos de tirania e ao Império. Porém, o resultado democrático gera repressão e desigualdade, exacerbam-se as hierarquias e subvertem-se as estruturas políticas tradicionais. No refluxo estatal, experimenta-se um estado de violência global (Negri, 2005). Também nas primeiras décadas do século passado, fortificou-se a tese da greve geral como essência do poder popular – aquele que é detentor da legitimidade política. Greve Geral As teses da cidadania ativa avalizadas pela tradição política da Grécia antiga são resgatadas por Sorel, na primeira década do século XX. Em síntese, para Sorel, trata-se de uma “luta de classes por direitos”, no bojo do socialismo ético. G.D.H. Cole descreveu como democracia intencional: A antiga concepção da cidadania que se limita a votar foi denunciada como coisa passiva e estéril; e os homens foram convidados, em nome da ação cidadã, a realizar diretamente a obra política mediante um conjunto de associações funcionais em que podiam prestar serviços positivos [...] Os homens — dizia-se — não devem ser levados à ação só por argumentos racionais, senão, sobretudo, por requerimentos emocionais, por atrações do instinto de solidariedade e de auto expressão, incorporado praticamente de ‘mitos sociais’ tais como aquele mito sindicalista da greve geral (Cole, 1987, p. 60 - tradução livre). Neste caso, o direito surge como um médium ou como mito social e a dominação racional como modelo utópico: ambos capazes de transformar o “sentimento ardente da injustiça e da indignação” em princípios normativos objetivos. A greve geral é parte vibrante da luta pelo direito, como releitura de Von Ihering (2002): Sorel foi capaz de patentear, como aspecto afetivo do processo de luta que Hegel colocara em vista, os sentimentos coletivos do desrespeito sofrido, dos quais só raramente as teorias acadêmicas tomam conhecimento... (Honneth, 2003, pp. 250-2510). A referência à greve geral, por exemplo, denota claramente que se trata de consciência e de mobilização coletivas. Ao contrário de uma simples afirmação de direitos individuais, convivemos, em geral, sob o fluxo atuante (ou em repouso) de uma Multidão desterritorializada. Multidão desterritorializada Muitos dos problemas enfrentados atualmente se devem à falta de estrutura, envolvimento e legitimidade de nossas organizações sociais e institutos. Se pudermos reviver a história ou a memória, veremos que há uma ou duas décadas ainda tínhamos a sensação de pertencer a alguma categoria social, profissional e nos sentíamos pressionamos a participar – além de que éramos representados e sabíamos da importância dessas representações coletivas. Hoje, a própria ideia de representação está em xeque; aliás, não sabemos definir o que é representação, quais seriam os principais movimentos sociais e muito menos o nome e a atuação mais significativa de suas lideranças. Até pouco tempo, por exemplo, o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) tinha suas lideranças na mídia e sua atuação forçava mudanças em outras instituições, obrigando o governo e as elites econômicas e políticas a negociar. A atuação do movimento provocou mudanças profundas na ordem social. Mas, atualmente, não temos a mesma força presente nas relações sociais. Alguns mais céticos, inclusive, dizem que os Movimentos Sociais – e outras formas coletivas de organização – estão fora do contexto geral e que sua era é passada. A Multidão seria uma válvula de escape. No sentido técnico, pode-se dizer que a Multidão é uma somatória de quantidades imponderáveis de coletivos, o que altera a qualidade de sua verificação sociológica. Trata-se de coletivos que se aproximam por meio das redes políticas e de comunicação (instantaneidade) e assim superam as limitações geográficas e culturais. Forma-se uma espécie de etno-ética, para além das barreiras soberanas de seus Estados de origem. Em nome das sociedades e do poder social, as multidões desafiam o Estado Moderno e o poder político. São movimentos sociais intensos, centrífugos, mas que se iniciam a partir de demandas localizadas. A Multidão é formada por coletivos que se comunicam com uma infinidade de outros movimentos legítimos. Esses coletivos configuram-se como uma Multidão de interesses, demandas e requisições aproximativas. São movimentos e coletivos desterritorializados porque angariam simpatia e adesão pelos quatro cantos do planeta, mas não são despersonalizados, como se orbitassem um não-lugar, uma topologia global, uma utopia própria ao u-topos. São desterritorializados porque não são limitados pelos estreitos que se formam em torno das hostes do poder constituído. São deslocados por vontade e força própria, mas não estão perdidos. A Multidão não é um aglomerado mundial de indivíduos perplexos, mas causa muita perplexidade. Tem um nível de interatividade jamais verificada, mas se insurgem contra papéis e status préconfigurados. Democracia horizontal Abriu-se uma opção histórica para a Multidão forjar uma territorialidade mundial, conectando intersubjetividades e estimulando a formação de muitas outras. A Multidão desterritorializada caminha na horizontalidade das relações sociais e de poder. O mais interessante, entretanto, é que do aparente caos social e da ausência de representação surgiu um fenômeno social organizado em rede, sem estruturas hierárquicas e administrativas, com grande autonomia e com intensa agregação e participação social. A democracia horizontal é uma forma política de questionamento e de enfrentamento das estruturas hierárquicas rígidas (estáticas), em que sobressai a presença da autoridade sem alteridade. Assim, a democracia horizontal se notabiliza pela presença do Poder Democrático: autoridade + alteridade. Diante da sociabilidade horizontal, mesmo refém do status quo, a potencialidade da Multidão se converte na possibilidade real de se insurgir como novo coletivo de sujeitos de direitos atuantes e envolventes em suas requisições, posto que as ações políticas são baseadas na legitimidade democrática e subversiva da heteronomia própria à centralização do poder (Razão de Estado). Para Arendt, a antiga filosofia favorecia a perspectiva integrativa entre excelência e prudência, com maior convivialidade: Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens [...] O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separálas (Arendt, 1991, p. 62-63). A ampliação do significado e dos espaços de convivialidade, como vemos ocorrer na Primavera Árabe e nos movimentos de rua do Brasil - e no decorrer da luta política pelo Direito a ter direitos –, é o cerne atual da democracia horizontal. A luta pelo reconhecimento do Direito a ter direitos é instigante, chamativa aos que têm o humanismo por referência e a Educação Permanente como indicador do processo civilizatório; porém é árdua e provoca uma série de retaliações por parte dos próprios aparelhos repressivos de Estado. Um desses marcos políticos esteve evidente na tentativa do Estado em controlar a moral, todas as “formas ideológicas” e a intersubjetividade cultural dos povos. Desafios da Modernidade Tardia O que ainda se poderia ressaltar é uma perspectiva político-ontológica que se iniciou nos anos 90, como forma articulada de resistência e enfrentamento das forças internacionais que se avolumavam na forma do Estado Penal. À época, desde o México zapatista, a opção pela organização em redes políticas podia ser facilmente verificada, mas o processo evoluiu nas décadas seguintes e hoje se pode falar das multidões desterritorializadas. Vivemos uma total metamorfose e a Multidão é um dos mais fortes indícios: Quando Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso [...] — Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esquecesse todas essas tolices? [...] Chegará então a vez da grande ruptura [...] Era uma criatura do chefe, sem espinha dorsal nem discernimento [...] Gregor reconheceu que a falta de qualquer comunicação humana imediata, ligada à vida uniforme da família, devia ter confundido o seu juízo no decorrer desses dois meses, pois não podia explicar de outro modo que tivesse podido exigir a sério que seu quarto fosse esvaziado. Tinha realmente vontade de mandar que seu quarto — confortavelmente instalado com móveis herdados — se transformasse numa toca em que pudesse então certamente se arrastar imperturbado em todas as direções, ao preço contudo do esquecimento simultâneo, rápido e total do seu passado humano? [...] Dificilmente o surpreendia o fato de que nos últimos tempos levava os outros tão pouco em conta; essa consideração tinha sido, antes, o seu orgulho [...] precisamos nos livrar dele [...] Até logo para todos (Kafka, 1997 – citação incompleta). A metamorfose narrada por Kafka bem pode ser lida como o desvirtuamento do que é direito, a fim de legitimar o Estado de Exceção que se imporia ao mundo pelos que não querem a liberdade, isto é, em Kafka, podemos ver a flâmula da Multidão em marcha. Este conjunto geral de fatores, do passado que nos revista e nos obriga a mudanças mais radicais ou drásticas também recebe o nome de Poder Popular ou Poder Constituinte. Bibliografia ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1991. AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 41ª ed. São Paulo : Globo, 2001. BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 1º volume, 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 2001. CANOTILHO, J. J. G. 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