NOVA HISTÓRIA CULTURAL E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO:
ROMPENDO PARADIGMAS NO OFÍCIO DE HISTORIAR - NOTAS DE
UM PERCURSO
FILIPIM, Priscila Viviane de Souza1 - UEM
ROSSI, Ednéia Regina2 - UEM
Grupo de Trabalho – História da Educação
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
O presente artigo visa socializar um percurso de aprendizado, realizado na disciplina Tópicos
Especiais em Educação: Contribuições Teórico-Metodológicas da História para o campo
da história da educação, ministrada no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Estadual de Maringá. No entanto, foi preciso rever as referências bibliográficas
propostas pelas docentes, bem como, resgatar de minha memória e de minhas anotações toda
a trajetória realiza por tal disciplina. Como recorte, optei por apresentar as reflexões geradas
em torno da revolução historiográfica francesa e suas contribuições para o campo da história
da educação. A Nova História Cultural emergiu com o movimento dos Annales e seus
historiadores, no período de 1929–1989. Lucien Febvre e Marc Bloch foram os líderes deste
movimento e ambos tinham como princípio dialogar com outras ciências, como a psicologia,
a antropologia, a sociologia e a geografia o que possibilitaria aos historiadores uma visão dos
homens no tempo, e não uma visão política como acontecia. Com o passar dos anos, outros
historiadores e filósofos foram emergindo, resultando assim na terceira geração dos Annales.
Dentre os inúmeros pesquisadores e historiadores existentes nesta abordagem, os estudos do
francês Roger Chartier, foram destacados, principalmente o conceito de representação que
para Chartier é um instrumento de conhecimento imediato que o faz ver um objeto ausente
através da sua substituição e, o conceito de apropriação, que seria a maneira pela qual os
sujeitos se utilizam dos produtos que lhes são impostos, construindo sentidos diversos para o
1
Graduada em Pedagogia pelo Centro Universitário de Maringá, especialista em Gestão Educacional pelo
Instituto Paranaense de Ensino e aluna do mestrado na linha de História e historiografia da Educação pela
Universidade Estadual de Maringá – Orientanda da Profª Dr. Ednéia Regina Rossi. Integrante do grupo de
pesquisa em História da Educação Brasileira (Heducultes). E-mail: [email protected]
²Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá, mestrado em Educação pela Universidade
Estadual de Maringá e doutorado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Atualmente é professora não-titular da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de
Educação, com ênfase em História da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: história da
educação, escola primária, cultura escolar, identidade cultural e educação e educação de jovens e adultos. Email: [email protected]
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mesmo. Em suma, a Nova História Cultural permitiu com que eu e demais acadêmicos da
pós-graduação em educação, vislumbrasse possibilidades de se fazer história, contribuindo
assim com a história social dos usos e construções de sentidos.
Palavras – chave: Historia e Historiografia da educação; Movimento dos Annales; Nova
História Cultural.
Introdução
Com o propósito de contribuir com a reflexão sobre a experiência de tornar-se uma
historiadora da educação, identificando no trabalho de mestrado uma oportunidade para o
exercício de mudança operada nos sujeitos lançados ao desafio de pensar o ofício de historiar
e na escrita historiográfica, é que este artigo se articulou, mais pontualmente sobre a trajetória
de reflexões articuladas na disciplina denominada, Tópicos Especiais em Educação:
contribuições teórico-metodológicas da história para o campo da história da educação
do Programa de pós-graduação em educação da Universidade Estadual de Maringá.
Num primeiro momento, vale destacar que, para a escrita deste artigo, foi preciso rever
as referências bibliográficas propostas pelas docentes da disciplina, assim como resgatar a
memória, as anotações e discussões vivenciadas em sala de aula. Contudo, convém salientar a
impossibilidade de se alcançar os fatos tal como vivenciados, uma vez que as recordações ou
memórias do acontecido estarão alteradas pelas reflexões provocadas durante o processo.
Como afirma Pesavento (2008, p.95):
(...) aquele que lembra não é mais o que viveu. No seu relato já há reflexão,
julgamento, ressignificação do fato rememorado (...). Ou seja, a memória individual
se mescla com a presença de uma memória social, pois aquele que lembra,
rememora em um contexto dado, já marcado por um jogo de lembrar e esquecer.
Ressignificamos constantemente, pois verdadeiramente somos outro a cada
experiência, o que vivemos e isso nos torna incapaz de alcançar o fato em si. A aluna que
iniciava as primeiras leituras numa turma de mestrado, não era a mesma que finalizava o
percurso. Logo no início das aulas entrei num processo de revisão de paradigmas. As certezas
conceituais que possuía foram abaladas por reflexões que eram novas para mim. De onde
venho? Em que “planeta” eu estava? Onde estou nesse momento? Foram dúvidas postas ante
ao sentimento de angústia frente ao desconhecido. Ademais, havia uma dificuldade de
compreender os teóricos e os debates articulados em torno deles. Administrar a angústia do
processo foi muito difícil, muitas vezes a percepção era de completa desestruturação
cognitiva.
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Com o decorrer da disciplina as inquietações foram amenizadas, ouve um maior
envolvimento, sobretudo com os assuntos relacionados à Nova História Cultural. Um dos
fatores que contribuiu para o processo de aprendizagem foram os relatos de experiências dos
demais colegas, muitos delas graduadas em pedagogia, assim como eu. Essa troca de
experiência enriqueceu significativamente os debates e as discussões em sala de aula.
No entanto, somente ao final da disciplina foi possível ressignificar o desgaste
vivenciado. Ele foi indispensável para provocar a saída da “zona de conforto”, onde tudo
parecia resolvido. As discussões, as dinâmicas e as intervenções realizadas pelas docentes,
durante as aulas, foram fundamentais para o processo de desenvolvimento de uma consciência
historiográfica. Como ponto alto, das reflexões, destaco aquelas geradas em torno da
revolução historiográfica francesa e suas contribuições para o campo da história da educação.
2 - A NOVA HISTÓRIA CULTURAL E SEUS HISTORIADORES
A Nova História Cultural surgiu na França, com a escola dos Annales (1929 – 1989),
cujos líderes Lucien Febvre e Marc Bloch tinham como princípio dialogar com outras
ciências, como a psicologia, a antropologia, a sociologia e a geografia. Esse estudo
possibilitou aos historiadores uma visão dos homens no tempo, e não uma visão política como
acontecia até então. Esta nova visão rompia com a linearidade e a superficialidade que
promovia uma padronização, dessa forma, o passado não responderia mais ao tempo presente.
De acordo com a Nova História Cultural, no estudo da história são os temas humanos
que condicionam e delimitam o possível retorno ao passado, que ocorre não de forma “pura” e
intocada, mas com uma escolha entre o lembrar e o esquecer, para Bloch (2001, p.07-24):
(...) a história não seria mais entendida como uma “ciência do passado”, uma vez
que, “passado não é objeto de ciência”. Ao contrário, era no jogo entre a importância
do presente para a compreensão do passado e vice-versa que a partida era, de fato,
jogada. Nessa formulação pretensamente simples estava exposto o “método
regressivo” (...) Tal qual um “dom das fadas”, a história faria com que o passado
retornasse, porém não de maneira intocada e “pura”. (...) a história é busca, portanto
escolha. Seu objeto não é o passado: A própria noção segundo a qual o passado
enquanto tal possa ser objeto de ciência é absurda. Seu objeto é “o homem”, ou
melhor, “os homens”, e mais precisamente “homens no tempo”.
Para tanto, os historiadores delimitam e recortam os seus objetos, contudo não o fazem
de forma alheatória, são as fontes que balizam a periodização e o recorte da investigação.
Contudo, transformar as fontes em história não se faz sem o olhar atendo e obstinado do
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historiador. Segundo Bloch (2001) “Documentos são vestígios, (...) mesmo o mais claro e
complacente dos documentos não fala senão quando se sabe interrogá-lo.” (p.7).
A curiosidade em saber mais sobre o ofício do historiador, fez com que mergulhasse,
ainda mais, por este caminho. Tomei como ponto de partida o livro de Peter Burke A escola
dos Annales (1929 – 1989): a revolução francesa da historiografia. O livro abre uma
terceira via aos estudos historiográficos, ao lançar as dimensões da vida privada como objetos
de análise, distanciando da ótica marxista e também da história factual. O exercício deste
estudo provocou uma ruptura, em mim. Estava habituada com a ótica marxista de análise,
com a qual respondia a todas as questões categoricamente, reproduzindo interpretações e
olhares sem problematizá-los. As relações de produção, até o momento, pareciam explicar
tudo. Neste sentido, as reflexões de Lopes e Galvão (2001), revelam o sentimento e a
percepção de uma geração que, assim como eu, não tiveram receio em romper com antigos
paradigmas. Assim diz ela:
Talvez algum de nós se lembre da sensação de que havia pouco a se pesquisar, pois
o marxismo, o materialismo histórico e dialético, o capitalismo, os modos de
produção, a luta de classes já explicavam tudo... Se o Brasil era agrário-exportador
dependente em determinado momento, a educação só poderia ser considerada
supérflua e assim por diante. Em outros casos, os pesquisadores, buscando nas
fontes apenas aquilo que poderia corroborar seus pontos de partida, ignora(va)m as
informações que pareciam contraditórias com o que já tinham como hipótese e, via
de regra, como resultado da pesquisa (LOPES e GALVÃO, 2001, p.37).
Contudo, abrir outra via para produção historiográfica foi um processo longo, do qual
pretendo dar ênfase à Escola dos Annales. A história dos Annales pode ser estudada por três
gerações. Lucien Febvre, um especialista do século XVI, e o medievalista Marc Bloch foram
os fundadores e editores da primeira geração. Ambos tinham como pretensão fazer desta
revista uma liderança intelectual nos campos da história social e econômica, assumindo uma
abordagem nova e interdisciplinar da história. A insatisfação de Bloch e Febvre com a história
vinha desde as décadas de 10 e 20, pois se vinculava à relativa pobreza de suas análises, as
quais culminavam sempre na história política e no jogo de poder, por isso, tornou-se
necessária uma ruptura com o passado. Indubitavelmente, a necessidade de uma história mais
abrangente e totalizante nascia do fato de que o homem em suas complexidades não poderia
mais se contentar com os jogos de poderes, ou das maneiras de sentir, pensar e agir dos
poderosos da época.
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Fazer uma outra história, na expressão usada por Febvre, era portanto menos
redescobrir o homem do que, enfim, descobri-lo na plenitude de suas virtualidades,
que se inscreviam concretamente em suas realizações históricas. Abre-se, em
consequência, o leque de possibilidades do fazer historiográfico, da mesma maneira
que se impõe a esse fazer a necessidade de ir buscar junto a outras ciências do
homem os conceitos e os instrumentos que permitiriam ao historiador ampliar sua
visão do homem (BURKE, 2010, p. 8).
Bloch (2001) compara o bom historiador ao “ogro” da lenda, pois, assim como tal,
fareja carne humana e identifica sua caça, neste caso, seu objeto de estudo. Assim, a
renovação dos estudos historiográficos, atinge sua plena expansão e efervescência com a
chamada Nova História ou História Cultural.
Na segunda geração, é difícil pensar em um historiador da mesma categoria que
Fernand Braudel. O autor permaneceu por trinta anos na direção dos Annales, estudou o
Mediterrâneo e a manifestação do mar na vida das pessoas. Mediterrâneo é um livro de
grandes dimensões, pelo fato de explorar o papel do meio ambiente, também é classificado
como uma obra-prima, pois transformou as noções de tempo e espaço na história. Segundo
Burke (2010), a verdadeira matéria de estudo é a história do homem em relação ao meio em
que se encontra uma espécie de geografia histórica ou como Braudel preferia denominar, uma
“geo-história”.
Em 1969, Braudel decidiu recrutar jovens historiadores com a finalidade de renovar
os Annales. Entretanto, foi na terceira geração dos Annales que surgiram para o mundo,
pesquisadores e historiadores como Jacques Le Goff, Roger Chartier, Michel De Certeau,
Emmanuel Le Roy Ladurie, Marc Ferro, o filósofo Michel Foucault entre tantos outros. Em
1975, Braudel se aposentou da presidência da revista, transferindo para Jacques Le Goff esta
responsabilidade, o qual fora substituído, em 1977, por François Furet.
Com a terceira geração, surgiram pesquisas mais focadas, objetivas e com temas
abordados com maior profundidade. Assuntos como a história da infância, da mulher, da
família, da sexualidade, da leitura, da loucura, da alfabetização, da religião, da violência, do
amor, do livro, dos jovens, da cultura escolar, da organização, da construção do
conhecimento, da formação dos docentes, dos discentes, do sonho, do corpo, do odor, da
imprensa pedagógica entre tantos outros tornaram-se passíveis de estudos. Muitas destas
mudanças foram incorporadas pela história da educação. Sobre isso, Lopes e Galvão (2001, p.
39-40) afirma:
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A “revolução” provocada no campo da História, sobretudo pela Escola dos Annales
e, posteriormente, pelo que se convencionou denominar de Nova História, que
buscou alargar os objetos, as fontes e as abordagens utilizados tradicionalmente na
pesquisa historiográfica, aos poucos influenciou os historiadores da educação.
Sabemos que, sobretudo a partir da fundação da revista francesa Annales d’histoire
économique et sociale, por Lucien Febvre e Marc Bloch, muitos dos pressupostos da
história positivista passaram a ser criticados e a História, não mais restrita à política,
interessa-se também por aspectos econômicos, sociais e culturais da sociedade. Mais
recentemente, sobretudo nos últimos quarenta anos, passa-se cada vez mais a
valorizar os sujeitos “esquecidos” da História, como as crianças, as mulheres e as
camadas populares. Sentimentos, emoções e mentalidades também passam a fazer
parte da História e fontes até então consideradas pouco confiáveis e científicas
também passam a constituir indícios para a reconstrução de um passado.
E também:
A História da Educação, também tem, progressivamente, incorporado categorias
teorizadas em outras áreas das ciências humanas e hoje consideradas
imprescindíveis para se compreender o passado dos fenômenos educativos, como os
de gênero, de etnia e de geração, ao lado da de classe social, já consagrada pelos
estudos marxistas. A História da Educação, assim como no campo da educação de
modo geral, sabe, hoje, que não é possível se compreender a educação sem lançar
mão dessas categorias, que contribuem para aguçar o olhar sobre as diferentes
realidades (p.40 - 41).
Assim sendo, os historiadores e filósofos da terceira geração alcançaram áreas
inesperadas do comportamento humano, como também dos grupos sociais negligenciados
pelos historiadores tradicionais. A historiografia tradicional apresenta uma visão panorâmica
de seus objetos. Em suas análises não há preocupação com as especificidades do cotidiano e
com a ação dos sujeitos. As problemáticas são analisadas tendo por base o modo de produção
e as classes sociais. Isto não significa que devemos tirar o mérito dos estudos marxistas nos
contextos em que foram produzidos, mas compreender que o fator econômico é apenas uma
das muitas facetas a serem consideradas na analise historiográfica de um objeto.
E para desmitificar e ressignificar alguns discursos de longa duração, existentes na
história das mentalidades, é necessário à compreensão de alguns conceitos apresentados por
Roger Chartier (1991), como os conceitos de apropriação e representação.
3 - ROGER CHARTIER E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A HISTÓRIA
O historiador Roger Chartier, francês, nascido em 1945, em uma de suas pesquisas
dedicou–se a estudar a escrita e, principalmente, a leitura do povo europeu, ou seja, o que
liam e como liam. O resultado foi surpreendente, pois constatou que a forma de apropriação
do sentido do texto pelos sujeitos era diferente, mesmo quando liam os mesmos escritos
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impressos, as referidas apropriações não eram unânimes. Isso se dava pelo fato das pessoas
terem culturas diferentes umas das outras, ou seja, manifestavam suas idiossincrasias.
No texto O mundo como representação, Chartier (1991) expõe os conceitos, de
representação e da apropriação. Para o autor, representação é um instrumento de
conhecimento imediato que o faz ver um objeto ausente através da sua substituição. Isso
ocorre por meio de uma espécie de imagem, a qual o sujeito é capaz de reconstruir em
memória e de figurar tal como é. Segundo o autor (1991, p. 185-186):
A relação de representação é desse modo, perturbada pela fraqueza da imaginação,
que faz com que se tome o engodo pela verdade, que considera os signos visíveis
como índices seguros de uma realidade que não é. Assim, desviada, a representação
transforma-se em máquina de fabricar respeito e submissão, num instrumento que
produz uma exigência interiorizada, necessária exatamente onde faltar o possível
recurso à força bruta: “Só os homens de guerra não estão disfarçados assim, porque
na realidade a sua parte é mais essencial: estabelecem-se pela força, ao passo que os
outros o fazem pela aparência”.
E mais,
A relação de representação — entendida como relação entre uma imagem presente e
um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga - traça toda a
teoria do signo do pensamento clássico. [...] Por um lado, são essas modalidades
variáveis que permitem discriminar diferentes categorias de signos (certos ou
prováveis, naturais ou instituídos, aderentes a ou separados daquilo que é
representado, etc.) e caracterizar o símbolo por sua diferença com outros signos. (...)
Por outro lado, ao identificar as duas condições necessárias para que uma tal relação
seja inteligível (ou seja, o conhecimento do signo como signo, no seu desvio em
relação à coisa significada, e a existência de convenções regulando a relação do
signo com a coisa), a Lógica de Port-Royal propõe os termos de uma questão
fundamental: a das possíveis incompreensões da representação seja por falta de
“preparação" do leitor (o que remete às formas e aos modos de inculcação das
convenções), seja pelo fato da "extravagância" de uma relação arbitrária entre o
signo e o significado (o que levanta a questão das próprias condições de produção
das equivalências admitidas e partilhadas) (p.187).
A noção de representação abordada por Chartier nos leva à reflexão da produção da
escrita historiográfica. A reconstrução de um fato, não é a sua reprodução, mas a sua
representação, em que é criada uma inteligibilidade possível do existido. Neste sentido, no
texto historiográfico uma determinada realidade é construída e pensada pelo seu produtor, o
historiador.
Por outro lado, Chatier (1991), também trabalha com a noção de apropriação. Esta
teria como objetivo cotejar a história social das interpretações remetida para as suas
determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Segundo o
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autor, no ponto de articulação entre o mundo do texto e o mundo do sujeito coloca-se
necessariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos, isto
é, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova forma de compreensão de si
próprio e do mundo.
O essencial é, portanto, compreender como os mesmos textos — sob formas
impressas possivelmente diferentes — podem ser diversamente apreendidos,
manipulados, compreendidos. Daí a necessidade de um segundo deslocamento
atento às redes de prática que organizam os modos, histórica e socialmente
diferençados, da relação aos textos. A leitura não é somente uma operação abstrata
de intelecção: é por em jogo o corpo, é inscrição num espaço, relação consigo ou
com o outro. Por isso devem ser reconstruídas as maneiras de ler, próprias a cada
comunidade de leitores [...] (CHARTIER, 1991, p. 192).
Vale ressaltar que a prática comum na Antiguidade, era de realizar a leitura em voz
alta, tanto para quem estava lendo quanto para as demais pessoas. Isso acontecia sempre em
lugares diferentes, pois o intuito era propagar as ideias e que estas fossem tomadas como
verdadeiras. O entendimento pode ser alterado quando a leitura passa de silenciosa para
oralizada, uma das razões para isso ocorrer é a separação entre as palavras, bem como a
entonação. Seus efeitos são, verdadeiramente, consideráveis. A leitura foi utilizada de
inúmeras formas até chegarmos à leitura nos monitores dos computadores, a qual faz parte do
nosso cotidiano e que consiste numa verdadeira revolução.
Segundo Chartier (1994, p.190):
A revolução do texto eletrônico será ela também, uma revolução da leitura. Ler num
monitor não é o mesmo que ler num códige. Se é verdade que abre possibilidades
novas e imensas, a representação eletrônica dos textos modifica totalmente a
condição destes: à materialidade do livro, ela substitui a imaterialidade de textos
sem lugar próprio; às relações de contiguidade estabelecidas no objeto impresso, ela
opõe à livre composição de fragmentos indefinidamente manipuláveis; à apreensão
imediata da totalidade da obra, viabilizada pelo objeto que a contém, ela faz suceder
a navegação de muito longo curso, por arquipélagos textuais sem beira nem limites.
Essas mutações comandam, inevitável e imperativamente, novas maneiras de ler,
novas relações com o escrito, novas técnicas intelectuais.
Assim, no mundo dos textos eletrônicos, devemos tomar muito cuidado com o acesso
rápido e fácil à internet. É indispensável se investigar quem são os autores dos textos lidos,
deve-se fazer uma análise das fontes de modo geral. Ao nos depararmos com qualquer texto
devemos sempre nos questionar, Quem fala? Para quem fala? Em qual época fala? Qual o
formato do impresso? Tem ilustrações? Qual a tiragem? Quantas páginas possuem? Dessa
forma, teremos uma postura crítica, de leitor atuante sobre o que lê.
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Desde o século XVI, isto é, desde a época em que o impressor encarregou-se dos
sinais, marcas e títulos, enquanto, no tempo dos incunábulos, esses eram
acrescentados à mão na página impressa pelo corretor ou pelo possuidor do livro, o
leitor só pode insinuar sua escrita nos espaços virgens do livro. O objeto impresso
impõe-lhe sua forma, sua estrutura, suas disposições e não supõe, de modo algum,
sua participação. Se assim, mesmo, o leitor pretende inscrever sua presença no
objeto, só pode fazê-lo ocupando, sub-reptícia e clandestinamente os lugares do
livro preteridos pela escrita: interiores de encadernações, folhetos deixados em
branco, margens do texto etc.(...) Com o texto eletrônico, a coisa muda. Não
somente o leitor pode submeter o texto a múltiplas operações, mas pode ainda
tornar-se seu coautor (CHARTIER, 1994, p.192).
Nesse trecho, o autor nos alerta para o fato dos textos eletrônicos estarem mais
suscetíveis a alterações e falsificações de informações. Portanto, o texto eletrônico impõe ao
leitor a necessidade de ser ainda mais atuante sobre o que lê, submetendo esses textos àquelas
questões apontados no decorrer deste tópico. Ratifico ainda que os estudos de Chatier me
permite afirmar que todo texto é passível de várias interpretações. Assim, a apropriação seria
a maneira pela qual os sujeitos se utilizam dos produtos que lhes são impostos, construindo
sentidos diversos para o mesmo. Chartier vê na apropriação uma possibilidade de ruptura,
reconhecendo a descontinuidade nos processos da leitura e de seu uso. É devolver aos sujeitos
a sua ação inventiva nos processos históricos. Entre o proposto e o executado, entre a ideia do
autor e a sua significação para os leitores há um hiato, o das apropriações dos sujeitos.
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para dimensionar as mudanças ocorridas em meu olhar sobre a escrita da historia,
recorro à analogia de um balão, com seu condutor, sobrevoando uma determinada cidade e ao
observá-la não me sinto satisfeito em olhar as paisagens sem observar os detalhes, as
especificidades de cada item que compõem esta paisagem, suas diferentes cores e seus
diferentes tons, seus contrastes, nuanças e descontinuidades. O desejo de produzir uma análise
historiográfica verticalizada e aprofundada produziu-se em mim.
Os estudos e debates durante a disciplina Tópicos Especiais em Educação:
Contribuições Teórico-Metodológicas da História para o campo da história da educação
ampliaram meu olhar ao apresentar conceitos da produção historiográfica debatidos pela
“Escola dos Annales”. Dentro os seus representantes, destaco algumas reflexões do
pesquisador francês Roger Chartier, participante da terceira geração dos “Annales”. Os
conceitos de representação e apropriação trazem à tona a discussão do conceito de verdade.
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Os textos escritos ou falados são representações. Estas representações mantêm relações com
grupos sociais, seus paradigmas e interesses.
As significações emprestadas a um texto são múltiplas e móveis, dependendo das
formas em que é recebido por seus leitores. Para Chartier, os leitores não se confrontam,
nunca, com textos abstratos. Ao atentar para as práticas representadas nos textos sob o olhar
(apropriação) de seus produtores - que buscou reproduzir suas interpretações aos leitores - os
historiadores assumem o desafio de abordarem seus objetos não como uma resposta definitiva
e única à problemática, mas como uma possibilidade que se lança ao desafio de contribuir
com a história social dos usos e construções de sentidos.
REFERÊNCIAS
BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio
de Janeiro, Zahar, 2001.
BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929 – 1989): a revolução francesa da
historiografia. São Paulo, Editora da UNESP, 2010.
CHARTIER, Roger. Do códige ao monitor: a trajetória do escrito. Estud. av., Ago 1994,
vol.8, no.21, ISSN 0103-4014.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estud. av., Abr 1991, vol.5, no.11,
ISSN 0103-4014.
LOPES, Eliane Marta Teixeira; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2008.
Download

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