NOVA HISTÓRIA CULTURAL E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: ROMPENDO PARADIGMAS NO OFÍCIO DE HISTORIAR - NOTAS DE UM PERCURSO FILIPIM, Priscila Viviane de Souza1 - UEM ROSSI, Ednéia Regina2 - UEM Grupo de Trabalho – História da Educação Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O presente artigo visa socializar um percurso de aprendizado, realizado na disciplina Tópicos Especiais em Educação: Contribuições Teórico-Metodológicas da História para o campo da história da educação, ministrada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. No entanto, foi preciso rever as referências bibliográficas propostas pelas docentes, bem como, resgatar de minha memória e de minhas anotações toda a trajetória realiza por tal disciplina. Como recorte, optei por apresentar as reflexões geradas em torno da revolução historiográfica francesa e suas contribuições para o campo da história da educação. A Nova História Cultural emergiu com o movimento dos Annales e seus historiadores, no período de 1929–1989. Lucien Febvre e Marc Bloch foram os líderes deste movimento e ambos tinham como princípio dialogar com outras ciências, como a psicologia, a antropologia, a sociologia e a geografia o que possibilitaria aos historiadores uma visão dos homens no tempo, e não uma visão política como acontecia. Com o passar dos anos, outros historiadores e filósofos foram emergindo, resultando assim na terceira geração dos Annales. Dentre os inúmeros pesquisadores e historiadores existentes nesta abordagem, os estudos do francês Roger Chartier, foram destacados, principalmente o conceito de representação que para Chartier é um instrumento de conhecimento imediato que o faz ver um objeto ausente através da sua substituição e, o conceito de apropriação, que seria a maneira pela qual os sujeitos se utilizam dos produtos que lhes são impostos, construindo sentidos diversos para o 1 Graduada em Pedagogia pelo Centro Universitário de Maringá, especialista em Gestão Educacional pelo Instituto Paranaense de Ensino e aluna do mestrado na linha de História e historiografia da Educação pela Universidade Estadual de Maringá – Orientanda da Profª Dr. Ednéia Regina Rossi. Integrante do grupo de pesquisa em História da Educação Brasileira (Heducultes). E-mail: [email protected] ²Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá, mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá e doutorado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Atualmente é professora não-titular da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: história da educação, escola primária, cultura escolar, identidade cultural e educação e educação de jovens e adultos. Email: [email protected] 22486 mesmo. Em suma, a Nova História Cultural permitiu com que eu e demais acadêmicos da pós-graduação em educação, vislumbrasse possibilidades de se fazer história, contribuindo assim com a história social dos usos e construções de sentidos. Palavras – chave: Historia e Historiografia da educação; Movimento dos Annales; Nova História Cultural. Introdução Com o propósito de contribuir com a reflexão sobre a experiência de tornar-se uma historiadora da educação, identificando no trabalho de mestrado uma oportunidade para o exercício de mudança operada nos sujeitos lançados ao desafio de pensar o ofício de historiar e na escrita historiográfica, é que este artigo se articulou, mais pontualmente sobre a trajetória de reflexões articuladas na disciplina denominada, Tópicos Especiais em Educação: contribuições teórico-metodológicas da história para o campo da história da educação do Programa de pós-graduação em educação da Universidade Estadual de Maringá. Num primeiro momento, vale destacar que, para a escrita deste artigo, foi preciso rever as referências bibliográficas propostas pelas docentes da disciplina, assim como resgatar a memória, as anotações e discussões vivenciadas em sala de aula. Contudo, convém salientar a impossibilidade de se alcançar os fatos tal como vivenciados, uma vez que as recordações ou memórias do acontecido estarão alteradas pelas reflexões provocadas durante o processo. Como afirma Pesavento (2008, p.95): (...) aquele que lembra não é mais o que viveu. No seu relato já há reflexão, julgamento, ressignificação do fato rememorado (...). Ou seja, a memória individual se mescla com a presença de uma memória social, pois aquele que lembra, rememora em um contexto dado, já marcado por um jogo de lembrar e esquecer. Ressignificamos constantemente, pois verdadeiramente somos outro a cada experiência, o que vivemos e isso nos torna incapaz de alcançar o fato em si. A aluna que iniciava as primeiras leituras numa turma de mestrado, não era a mesma que finalizava o percurso. Logo no início das aulas entrei num processo de revisão de paradigmas. As certezas conceituais que possuía foram abaladas por reflexões que eram novas para mim. De onde venho? Em que “planeta” eu estava? Onde estou nesse momento? Foram dúvidas postas ante ao sentimento de angústia frente ao desconhecido. Ademais, havia uma dificuldade de compreender os teóricos e os debates articulados em torno deles. Administrar a angústia do processo foi muito difícil, muitas vezes a percepção era de completa desestruturação cognitiva. 22487 Com o decorrer da disciplina as inquietações foram amenizadas, ouve um maior envolvimento, sobretudo com os assuntos relacionados à Nova História Cultural. Um dos fatores que contribuiu para o processo de aprendizagem foram os relatos de experiências dos demais colegas, muitos delas graduadas em pedagogia, assim como eu. Essa troca de experiência enriqueceu significativamente os debates e as discussões em sala de aula. No entanto, somente ao final da disciplina foi possível ressignificar o desgaste vivenciado. Ele foi indispensável para provocar a saída da “zona de conforto”, onde tudo parecia resolvido. As discussões, as dinâmicas e as intervenções realizadas pelas docentes, durante as aulas, foram fundamentais para o processo de desenvolvimento de uma consciência historiográfica. Como ponto alto, das reflexões, destaco aquelas geradas em torno da revolução historiográfica francesa e suas contribuições para o campo da história da educação. 2 - A NOVA HISTÓRIA CULTURAL E SEUS HISTORIADORES A Nova História Cultural surgiu na França, com a escola dos Annales (1929 – 1989), cujos líderes Lucien Febvre e Marc Bloch tinham como princípio dialogar com outras ciências, como a psicologia, a antropologia, a sociologia e a geografia. Esse estudo possibilitou aos historiadores uma visão dos homens no tempo, e não uma visão política como acontecia até então. Esta nova visão rompia com a linearidade e a superficialidade que promovia uma padronização, dessa forma, o passado não responderia mais ao tempo presente. De acordo com a Nova História Cultural, no estudo da história são os temas humanos que condicionam e delimitam o possível retorno ao passado, que ocorre não de forma “pura” e intocada, mas com uma escolha entre o lembrar e o esquecer, para Bloch (2001, p.07-24): (...) a história não seria mais entendida como uma “ciência do passado”, uma vez que, “passado não é objeto de ciência”. Ao contrário, era no jogo entre a importância do presente para a compreensão do passado e vice-versa que a partida era, de fato, jogada. Nessa formulação pretensamente simples estava exposto o “método regressivo” (...) Tal qual um “dom das fadas”, a história faria com que o passado retornasse, porém não de maneira intocada e “pura”. (...) a história é busca, portanto escolha. Seu objeto não é o passado: A própria noção segundo a qual o passado enquanto tal possa ser objeto de ciência é absurda. Seu objeto é “o homem”, ou melhor, “os homens”, e mais precisamente “homens no tempo”. Para tanto, os historiadores delimitam e recortam os seus objetos, contudo não o fazem de forma alheatória, são as fontes que balizam a periodização e o recorte da investigação. Contudo, transformar as fontes em história não se faz sem o olhar atendo e obstinado do 22488 historiador. Segundo Bloch (2001) “Documentos são vestígios, (...) mesmo o mais claro e complacente dos documentos não fala senão quando se sabe interrogá-lo.” (p.7). A curiosidade em saber mais sobre o ofício do historiador, fez com que mergulhasse, ainda mais, por este caminho. Tomei como ponto de partida o livro de Peter Burke A escola dos Annales (1929 – 1989): a revolução francesa da historiografia. O livro abre uma terceira via aos estudos historiográficos, ao lançar as dimensões da vida privada como objetos de análise, distanciando da ótica marxista e também da história factual. O exercício deste estudo provocou uma ruptura, em mim. Estava habituada com a ótica marxista de análise, com a qual respondia a todas as questões categoricamente, reproduzindo interpretações e olhares sem problematizá-los. As relações de produção, até o momento, pareciam explicar tudo. Neste sentido, as reflexões de Lopes e Galvão (2001), revelam o sentimento e a percepção de uma geração que, assim como eu, não tiveram receio em romper com antigos paradigmas. Assim diz ela: Talvez algum de nós se lembre da sensação de que havia pouco a se pesquisar, pois o marxismo, o materialismo histórico e dialético, o capitalismo, os modos de produção, a luta de classes já explicavam tudo... Se o Brasil era agrário-exportador dependente em determinado momento, a educação só poderia ser considerada supérflua e assim por diante. Em outros casos, os pesquisadores, buscando nas fontes apenas aquilo que poderia corroborar seus pontos de partida, ignora(va)m as informações que pareciam contraditórias com o que já tinham como hipótese e, via de regra, como resultado da pesquisa (LOPES e GALVÃO, 2001, p.37). Contudo, abrir outra via para produção historiográfica foi um processo longo, do qual pretendo dar ênfase à Escola dos Annales. A história dos Annales pode ser estudada por três gerações. Lucien Febvre, um especialista do século XVI, e o medievalista Marc Bloch foram os fundadores e editores da primeira geração. Ambos tinham como pretensão fazer desta revista uma liderança intelectual nos campos da história social e econômica, assumindo uma abordagem nova e interdisciplinar da história. A insatisfação de Bloch e Febvre com a história vinha desde as décadas de 10 e 20, pois se vinculava à relativa pobreza de suas análises, as quais culminavam sempre na história política e no jogo de poder, por isso, tornou-se necessária uma ruptura com o passado. Indubitavelmente, a necessidade de uma história mais abrangente e totalizante nascia do fato de que o homem em suas complexidades não poderia mais se contentar com os jogos de poderes, ou das maneiras de sentir, pensar e agir dos poderosos da época. 22489 Fazer uma outra história, na expressão usada por Febvre, era portanto menos redescobrir o homem do que, enfim, descobri-lo na plenitude de suas virtualidades, que se inscreviam concretamente em suas realizações históricas. Abre-se, em consequência, o leque de possibilidades do fazer historiográfico, da mesma maneira que se impõe a esse fazer a necessidade de ir buscar junto a outras ciências do homem os conceitos e os instrumentos que permitiriam ao historiador ampliar sua visão do homem (BURKE, 2010, p. 8). Bloch (2001) compara o bom historiador ao “ogro” da lenda, pois, assim como tal, fareja carne humana e identifica sua caça, neste caso, seu objeto de estudo. Assim, a renovação dos estudos historiográficos, atinge sua plena expansão e efervescência com a chamada Nova História ou História Cultural. Na segunda geração, é difícil pensar em um historiador da mesma categoria que Fernand Braudel. O autor permaneceu por trinta anos na direção dos Annales, estudou o Mediterrâneo e a manifestação do mar na vida das pessoas. Mediterrâneo é um livro de grandes dimensões, pelo fato de explorar o papel do meio ambiente, também é classificado como uma obra-prima, pois transformou as noções de tempo e espaço na história. Segundo Burke (2010), a verdadeira matéria de estudo é a história do homem em relação ao meio em que se encontra uma espécie de geografia histórica ou como Braudel preferia denominar, uma “geo-história”. Em 1969, Braudel decidiu recrutar jovens historiadores com a finalidade de renovar os Annales. Entretanto, foi na terceira geração dos Annales que surgiram para o mundo, pesquisadores e historiadores como Jacques Le Goff, Roger Chartier, Michel De Certeau, Emmanuel Le Roy Ladurie, Marc Ferro, o filósofo Michel Foucault entre tantos outros. Em 1975, Braudel se aposentou da presidência da revista, transferindo para Jacques Le Goff esta responsabilidade, o qual fora substituído, em 1977, por François Furet. Com a terceira geração, surgiram pesquisas mais focadas, objetivas e com temas abordados com maior profundidade. Assuntos como a história da infância, da mulher, da família, da sexualidade, da leitura, da loucura, da alfabetização, da religião, da violência, do amor, do livro, dos jovens, da cultura escolar, da organização, da construção do conhecimento, da formação dos docentes, dos discentes, do sonho, do corpo, do odor, da imprensa pedagógica entre tantos outros tornaram-se passíveis de estudos. Muitas destas mudanças foram incorporadas pela história da educação. Sobre isso, Lopes e Galvão (2001, p. 39-40) afirma: 22490 A “revolução” provocada no campo da História, sobretudo pela Escola dos Annales e, posteriormente, pelo que se convencionou denominar de Nova História, que buscou alargar os objetos, as fontes e as abordagens utilizados tradicionalmente na pesquisa historiográfica, aos poucos influenciou os historiadores da educação. Sabemos que, sobretudo a partir da fundação da revista francesa Annales d’histoire économique et sociale, por Lucien Febvre e Marc Bloch, muitos dos pressupostos da história positivista passaram a ser criticados e a História, não mais restrita à política, interessa-se também por aspectos econômicos, sociais e culturais da sociedade. Mais recentemente, sobretudo nos últimos quarenta anos, passa-se cada vez mais a valorizar os sujeitos “esquecidos” da História, como as crianças, as mulheres e as camadas populares. Sentimentos, emoções e mentalidades também passam a fazer parte da História e fontes até então consideradas pouco confiáveis e científicas também passam a constituir indícios para a reconstrução de um passado. E também: A História da Educação, também tem, progressivamente, incorporado categorias teorizadas em outras áreas das ciências humanas e hoje consideradas imprescindíveis para se compreender o passado dos fenômenos educativos, como os de gênero, de etnia e de geração, ao lado da de classe social, já consagrada pelos estudos marxistas. A História da Educação, assim como no campo da educação de modo geral, sabe, hoje, que não é possível se compreender a educação sem lançar mão dessas categorias, que contribuem para aguçar o olhar sobre as diferentes realidades (p.40 - 41). Assim sendo, os historiadores e filósofos da terceira geração alcançaram áreas inesperadas do comportamento humano, como também dos grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais. A historiografia tradicional apresenta uma visão panorâmica de seus objetos. Em suas análises não há preocupação com as especificidades do cotidiano e com a ação dos sujeitos. As problemáticas são analisadas tendo por base o modo de produção e as classes sociais. Isto não significa que devemos tirar o mérito dos estudos marxistas nos contextos em que foram produzidos, mas compreender que o fator econômico é apenas uma das muitas facetas a serem consideradas na analise historiográfica de um objeto. E para desmitificar e ressignificar alguns discursos de longa duração, existentes na história das mentalidades, é necessário à compreensão de alguns conceitos apresentados por Roger Chartier (1991), como os conceitos de apropriação e representação. 3 - ROGER CHARTIER E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A HISTÓRIA O historiador Roger Chartier, francês, nascido em 1945, em uma de suas pesquisas dedicou–se a estudar a escrita e, principalmente, a leitura do povo europeu, ou seja, o que liam e como liam. O resultado foi surpreendente, pois constatou que a forma de apropriação do sentido do texto pelos sujeitos era diferente, mesmo quando liam os mesmos escritos 22491 impressos, as referidas apropriações não eram unânimes. Isso se dava pelo fato das pessoas terem culturas diferentes umas das outras, ou seja, manifestavam suas idiossincrasias. No texto O mundo como representação, Chartier (1991) expõe os conceitos, de representação e da apropriação. Para o autor, representação é um instrumento de conhecimento imediato que o faz ver um objeto ausente através da sua substituição. Isso ocorre por meio de uma espécie de imagem, a qual o sujeito é capaz de reconstruir em memória e de figurar tal como é. Segundo o autor (1991, p. 185-186): A relação de representação é desse modo, perturbada pela fraqueza da imaginação, que faz com que se tome o engodo pela verdade, que considera os signos visíveis como índices seguros de uma realidade que não é. Assim, desviada, a representação transforma-se em máquina de fabricar respeito e submissão, num instrumento que produz uma exigência interiorizada, necessária exatamente onde faltar o possível recurso à força bruta: “Só os homens de guerra não estão disfarçados assim, porque na realidade a sua parte é mais essencial: estabelecem-se pela força, ao passo que os outros o fazem pela aparência”. E mais, A relação de representação — entendida como relação entre uma imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga - traça toda a teoria do signo do pensamento clássico. [...] Por um lado, são essas modalidades variáveis que permitem discriminar diferentes categorias de signos (certos ou prováveis, naturais ou instituídos, aderentes a ou separados daquilo que é representado, etc.) e caracterizar o símbolo por sua diferença com outros signos. (...) Por outro lado, ao identificar as duas condições necessárias para que uma tal relação seja inteligível (ou seja, o conhecimento do signo como signo, no seu desvio em relação à coisa significada, e a existência de convenções regulando a relação do signo com a coisa), a Lógica de Port-Royal propõe os termos de uma questão fundamental: a das possíveis incompreensões da representação seja por falta de “preparação" do leitor (o que remete às formas e aos modos de inculcação das convenções), seja pelo fato da "extravagância" de uma relação arbitrária entre o signo e o significado (o que levanta a questão das próprias condições de produção das equivalências admitidas e partilhadas) (p.187). A noção de representação abordada por Chartier nos leva à reflexão da produção da escrita historiográfica. A reconstrução de um fato, não é a sua reprodução, mas a sua representação, em que é criada uma inteligibilidade possível do existido. Neste sentido, no texto historiográfico uma determinada realidade é construída e pensada pelo seu produtor, o historiador. Por outro lado, Chatier (1991), também trabalha com a noção de apropriação. Esta teria como objetivo cotejar a história social das interpretações remetida para as suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Segundo o 22492 autor, no ponto de articulação entre o mundo do texto e o mundo do sujeito coloca-se necessariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova forma de compreensão de si próprio e do mundo. O essencial é, portanto, compreender como os mesmos textos — sob formas impressas possivelmente diferentes — podem ser diversamente apreendidos, manipulados, compreendidos. Daí a necessidade de um segundo deslocamento atento às redes de prática que organizam os modos, histórica e socialmente diferençados, da relação aos textos. A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção: é por em jogo o corpo, é inscrição num espaço, relação consigo ou com o outro. Por isso devem ser reconstruídas as maneiras de ler, próprias a cada comunidade de leitores [...] (CHARTIER, 1991, p. 192). Vale ressaltar que a prática comum na Antiguidade, era de realizar a leitura em voz alta, tanto para quem estava lendo quanto para as demais pessoas. Isso acontecia sempre em lugares diferentes, pois o intuito era propagar as ideias e que estas fossem tomadas como verdadeiras. O entendimento pode ser alterado quando a leitura passa de silenciosa para oralizada, uma das razões para isso ocorrer é a separação entre as palavras, bem como a entonação. Seus efeitos são, verdadeiramente, consideráveis. A leitura foi utilizada de inúmeras formas até chegarmos à leitura nos monitores dos computadores, a qual faz parte do nosso cotidiano e que consiste numa verdadeira revolução. Segundo Chartier (1994, p.190): A revolução do texto eletrônico será ela também, uma revolução da leitura. Ler num monitor não é o mesmo que ler num códige. Se é verdade que abre possibilidades novas e imensas, a representação eletrônica dos textos modifica totalmente a condição destes: à materialidade do livro, ela substitui a imaterialidade de textos sem lugar próprio; às relações de contiguidade estabelecidas no objeto impresso, ela opõe à livre composição de fragmentos indefinidamente manipuláveis; à apreensão imediata da totalidade da obra, viabilizada pelo objeto que a contém, ela faz suceder a navegação de muito longo curso, por arquipélagos textuais sem beira nem limites. Essas mutações comandam, inevitável e imperativamente, novas maneiras de ler, novas relações com o escrito, novas técnicas intelectuais. Assim, no mundo dos textos eletrônicos, devemos tomar muito cuidado com o acesso rápido e fácil à internet. É indispensável se investigar quem são os autores dos textos lidos, deve-se fazer uma análise das fontes de modo geral. Ao nos depararmos com qualquer texto devemos sempre nos questionar, Quem fala? Para quem fala? Em qual época fala? Qual o formato do impresso? Tem ilustrações? Qual a tiragem? Quantas páginas possuem? Dessa forma, teremos uma postura crítica, de leitor atuante sobre o que lê. 22493 Desde o século XVI, isto é, desde a época em que o impressor encarregou-se dos sinais, marcas e títulos, enquanto, no tempo dos incunábulos, esses eram acrescentados à mão na página impressa pelo corretor ou pelo possuidor do livro, o leitor só pode insinuar sua escrita nos espaços virgens do livro. O objeto impresso impõe-lhe sua forma, sua estrutura, suas disposições e não supõe, de modo algum, sua participação. Se assim, mesmo, o leitor pretende inscrever sua presença no objeto, só pode fazê-lo ocupando, sub-reptícia e clandestinamente os lugares do livro preteridos pela escrita: interiores de encadernações, folhetos deixados em branco, margens do texto etc.(...) Com o texto eletrônico, a coisa muda. Não somente o leitor pode submeter o texto a múltiplas operações, mas pode ainda tornar-se seu coautor (CHARTIER, 1994, p.192). Nesse trecho, o autor nos alerta para o fato dos textos eletrônicos estarem mais suscetíveis a alterações e falsificações de informações. Portanto, o texto eletrônico impõe ao leitor a necessidade de ser ainda mais atuante sobre o que lê, submetendo esses textos àquelas questões apontados no decorrer deste tópico. Ratifico ainda que os estudos de Chatier me permite afirmar que todo texto é passível de várias interpretações. Assim, a apropriação seria a maneira pela qual os sujeitos se utilizam dos produtos que lhes são impostos, construindo sentidos diversos para o mesmo. Chartier vê na apropriação uma possibilidade de ruptura, reconhecendo a descontinuidade nos processos da leitura e de seu uso. É devolver aos sujeitos a sua ação inventiva nos processos históricos. Entre o proposto e o executado, entre a ideia do autor e a sua significação para os leitores há um hiato, o das apropriações dos sujeitos. 4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS Para dimensionar as mudanças ocorridas em meu olhar sobre a escrita da historia, recorro à analogia de um balão, com seu condutor, sobrevoando uma determinada cidade e ao observá-la não me sinto satisfeito em olhar as paisagens sem observar os detalhes, as especificidades de cada item que compõem esta paisagem, suas diferentes cores e seus diferentes tons, seus contrastes, nuanças e descontinuidades. O desejo de produzir uma análise historiográfica verticalizada e aprofundada produziu-se em mim. Os estudos e debates durante a disciplina Tópicos Especiais em Educação: Contribuições Teórico-Metodológicas da História para o campo da história da educação ampliaram meu olhar ao apresentar conceitos da produção historiográfica debatidos pela “Escola dos Annales”. Dentro os seus representantes, destaco algumas reflexões do pesquisador francês Roger Chartier, participante da terceira geração dos “Annales”. Os conceitos de representação e apropriação trazem à tona a discussão do conceito de verdade. 22494 Os textos escritos ou falados são representações. Estas representações mantêm relações com grupos sociais, seus paradigmas e interesses. As significações emprestadas a um texto são múltiplas e móveis, dependendo das formas em que é recebido por seus leitores. Para Chartier, os leitores não se confrontam, nunca, com textos abstratos. Ao atentar para as práticas representadas nos textos sob o olhar (apropriação) de seus produtores - que buscou reproduzir suas interpretações aos leitores - os historiadores assumem o desafio de abordarem seus objetos não como uma resposta definitiva e única à problemática, mas como uma possibilidade que se lança ao desafio de contribuir com a história social dos usos e construções de sentidos. REFERÊNCIAS BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro, Zahar, 2001. BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929 – 1989): a revolução francesa da historiografia. São Paulo, Editora da UNESP, 2010. CHARTIER, Roger. Do códige ao monitor: a trajetória do escrito. Estud. av., Ago 1994, vol.8, no.21, ISSN 0103-4014. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estud. av., Abr 1991, vol.5, no.11, ISSN 0103-4014. LOPES, Eliane Marta Teixeira; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.