CONTRIBUIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA HISTÓRIA DA LEITURA A PARTIR DO ENFOQUE DE ROGER CHARTIER: ESTUDOS SOBRE O TEXTO, O LIVRO E A LEITURA GONÇALVES, Renata Braz – Grupo HISALES/UFPEL - [email protected] Eixo: História da Educação / n.12 Agência Financiadora: Sem financiamento A leitura como objeto de pesquisa: pluralidade de enfoques e abordagens O presente texto constitui-se em ensaio teórico e tem por finalidade problematizar a História Cultural como um dos referenciais teórico-metodológicos possíveis de ser utilizado no estudo da leitura, com destaque para a produção acadêmica do autor Roger Chartier. Para tanto, inicialmente apresentar-se-á um breve panorama do estado da arte sobre a leitura no país, serão evidenciados alguns aspectos gerais sobre a História Cultural e, logo após, os conceitos centrais e métodos mais difundidos por Chartier para a realização de pesquisas sobre História da Leitura. Ao analisar-se a produção bibliográfica dos cursos de pós-graduação brasileiros nas três últimas décadas, observa-se que o aumento de pesquisas, cujo objeto é a leitura, se dá a partir da década de 1980. Verifica-se, também, que essa consolidação acontece em diferentes áreas do conhecimento como Letras, Sociologia, Biblioteconomia, História, Psicologia e principalmente na área da Educação. No trabalho intitulado A pesquisa sobre leitura no Brasil: 1980-1995, Norma Sandra Ferreira (2001) analisa 189 resumos de teses e dissertações defendidas em programas de pós-graduação nacionais e classifica as temáticas das pesquisas em sete categorias: compreensão/desempenho em leitura (76 trabalhos); proposta didática e análise do ensino de leitura (61 trabalhos); leitores – preferências, gostos, hábitos, histórias e representações (25 trabalhos); leitores – preferências, gostos, hábitos, histórias e representações: o caso do professor/bibliotecário como leitor (15 trabalhos); texto de leitura usado na escola (oito trabalhos); memória da leitura, do leitor e do livro (seis trabalhos); e concepção de leitura (três trabalhos), além de quatro trabalhos sem foco, pois não foram encontrados seus resumos. Analisando também a produção acadêmica sobre leitura em âmbito mais amplo, Miriam Zappone (2001) afirma que, em linhas gerais, as pesquisas estão 2 fundamentadas Em quatro matizes, as quais a autora designa como: Linha Estruturalista-funcionalista, Linha Sócio-política, Linha Cognitivo-processual e Linha Discursiva (ZAPPONE, 2001, p. 46). De maneira simplificada, pode-se dizer que a linha estruturalista/funcionalista é aquela que apresenta a leitura como processo de decodificação. Segundo a autora, a decodificação é a operação por meio da qual o leitor capta o significante, ativado através da escrita, e entende o significado do texto. (ZAPPONE, 2001, p. 77). Predomina a idéia de que o texto possui uma codificação de forma que seja capaz de transmitir os pensamentos do autor e que linguagem e pensamento guardem entre si uma relação estreita de correspondência. O leitor, por sua vez, ao “decodificar” o texto, ou seja, ao ler, estaria compreendendo as idéias geradas na mente do autor. Por isso, é recorrente, nas definições de leitura, o uso de vocabulários como “compreender” ou “interpretar” para se caracterizar o processo de “retenção” do pensamento do autor. Já a linha sócio-política pode ser identificada como aquela que defende a idéia de que a leitura seria uma interpretação crítica e, de certa forma, personalizada do que se lê, pois é considerado todo o conhecimento prévio do leitor, sua experiência de vida e de leituras anteriores, ou seja, a sua realidade. A concepção sócio-política de leitura, portanto, supõe para o leitor uma posição de sujeito no processo de atribuição de significado e não de mero receptor das idéias veiculadas pelo texto e pelo autor. Para Zappone (2001, p. 54) essa linha de abordagem caracteriza-se por discutir dois fatos importantes sobre a leitura: a) o fato desta englobar habilidades e competências muitos mais complexas do que aquelas envolvidas no processo de decodificação da escrita priorizado na alfabetização; b) o fato de a leitura constituir-se em instrumento capaz de dotar o leitor de uma determinada condição sócio-política, cognitiva e cultural. Segundo Zappone (2001), surge no final da década de 70 e primeiros anos da década de 80 a linha cognitivo-processual, quando muitos autores estrangeiros passam a preocupar-se com os processos envolvidos na aquisição da leitura e da escrita. Esses estudos sobre leitura são desenvolvidos sob o ponto de vista das teorias da cognição, ou seja, de abordagens teóricas que procuram explicitar os processos de compreensão desencadeados no momento da leitura. São, portanto, abordagens que se desenvolvem a partir da psicolingüística e da sociolingüística. Observa-se que esse tipo de estudo tem como preocupação básica a pesquisa dos processos envolvidos no ato de compreensão do texto. O interesse básico deles está na investigação das ações ou reações psicolingüísticas vivenciadas pelo leitor no 2 3 momento da leitura e nos mecanismos lingüísticos (fonológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos) e psicológicos intervenientes no processo de leitura. A última abordagem apresentada por Zappone é a linha discursiva que tem como premissa o fato de que a leitura ou o ato de ler implica um processo discursivo, o que permite problematizá-la no domínio do discurso. Para Orlandi (1996, p.101), a relação que se dá no momento da leitura é uma relação entre o leitor virtual e o leitor real, sendo, portanto, uma relação de confronto. Logo, o leitor não interage com o texto, mas com sujeitos que podem ser o autor, o leitor virtual e outros. Ao analisar e comparar as concepções de leitura até aqui apresentadas, pode-se perceber uma grande aproximação entre as linhas sócio-política, cognitivo-processual e discursiva. Mesmo que a linha cognitivo-processual não tenha previsto as conseqüências ou desdobramentos da leitura. Na esfera do social ou mesmo sua relação com o ideológico, as três abordagens centram sua preocupação no leitor enquanto elemento ativo do ato da leitura. De acordo com essas três abordagens, o sujeito (leitor) não irá apenas decodificar o texto, mas irá interpretá-lo de forma crítica interagindo com o mesmo, a fim de produzir sentidos. Para tanto, deverão ser considerados aspectos como o conhecimento de mundo do leitor, sua história de leitura, o contexto em que está inserido, bem como a sua própria história de vida. Essas abordagens evidenciam que sem o leitor é impossível que os textos sejam constituídos em elementos de significação. Em contrapartida, a linha Estruturalista/Funcionalista concebe a leitura como uma atividade invariável, tendo em vista que os leitores encontrariam no texto sempre o mesmo sentido, independentemente das circunstâncias sociais, culturais ou históricas em que a leitura possa ser realizada. Além disso, o leitor não contribuiria para a constituição dos sentidos e estes se encontrariam atrelados exclusivamente aos elementos lingüísticos do texto, sendo o autor do texto, o “produtor dos sentidos”. Estudando a leitura a partir da História Cultural Interrogar-se sobre as condições de possibilidades da leitura é interrogar-se sobre as condições sociais de possibilidades das situações nas quais se lê. (CHARTIER, 1997, p. 13). Atualmente no Brasil percebe-se uma grande adesão à fundamentação teórica e metodológica da História Cultural no desenvolvimento de pesquisas que têm como foco não só a leitura no passado, mas também a leitura na contemporaneidade. 3 4 A História Cultural pode ser considerada como uma tendência historiográfica que propõe uma nova forma de interrogar a realidade, vislumbrando identificar o modo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída, pensada, e demonstrada. Para isso lança mão de novos princípios de inteligibilidade, salientando o papel das representações na criação, manutenção e recriação do mundo social. São tendências de pesquisas da História da Leitura investigar os modos e os motivos de leitura de determinados indivíduos ou comunidades; buscar indícios sobre os espaços de leitura; estudar as representações da leitura e os modos de ensino e aprendizagem da mesma; e ainda analisar os materiais que dão suporte à escrita e à leitura. Os estudos podem se dividir em macroanalíticos (ligados a uma história social quantitativa) ou microanalíticos (ligados à análise de situações de leitura ou de leitores particulares). Para subsidiar tais pesquisas, podem ser utilizadas diversas fontes como: obras de ficção; relatos autobiográficos; textos polêmicos; cartas; bibliografias; catálogos das feiras de livros; documentos de empresas tipográficas; registros alfandegários, notariais e de direito do livro; inventários, lista de assinantes; registros de empréstimos nos arquivos das bibliotecas; iconografias; e equipamentos utilizados para a leitura como mobiliários, por exemplo. De acordo com Chartier (1998, p. 6): É preciso observar, também, que a leitura é sempre uma prática encarnada por gestos, espaços e hábitos. Longe de uma abordagem fenomenológica que apaga as modalidades concretas da leitura, considerada como um invariante antropológico é preciso identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores, as tradições de leitura, as maneiras de ler. Autores como Roger Chartier (1990, 1991, 1992, 1994, 1995, 1996, 2002), Carlo Ginzburg (1995) e Robert Darnton (1992, 1996), entre outros, vem colaborando com reflexões e discussões para o fortalecimento do debate sobre leitura na perspectiva da História Cultural. Dessa forma, grande parte dos trabalhos desenvolvidos sob a influência dessa corrente historiográfica se remete aos estudos do historiador francês Roger Chartier que 4 5 se tornou referência mundial para o estudo da cultura escrita, indicando um novo olhar científico para as pesquisas sobre a história do livro e da leitura. Por essa razão, neste trabalho privilegiar-se-á a produção desse autor. O que chama atenção no conjunto da obra de Chartier é o diálogo que realiza com teorias de diferentes áreas como Filosofia, Sociologia, Lingüística, Antropologia e Literatura. Essa forma de pesquisar a leitura desenvolvida pelo autor parte de uma percepção da leitura como uma prática plural e permite que, de certa forma, se concatenem aspectos de todas as quatro abordagens apontadas isoladamente por Zappone (2001), como se apresenta adiante. Contribuições de Roger Chartier para a História da Leitura Identificando-se como pertencente à terceira geração da escola dos Annales1, Roger Chartier desenvolve reflexões, críticas e propõe mudanças no modo de abordar a cultura. Analisando sua produção acadêmica, pode-se afirmar que sua obra contempla quatro linhas: a primeira delas seria a análise histórica das instituições de ensino e das sociabilidades intelectuais, em que se destaca o livro L'éducation en France du XVIe au XVIIle siècles, de R. Chartier, M. M. Compère e D. Julia, publicado em 1976. A segunda linha de pesquisa em que a produção de Roger Chartier também se notabiliza é a da análise da cultura política nas suas várias configurações, dos círculos cortesãos aos meios populares. Nesta linha de pesquisa inclui-se também o estudo crítico das concepções dos historiadores em torno da cultura popular, de que é exemplo sua análise da coleção da Bibliothèque Bleue2 Chartier recusa o pressuposto de que os contrastes e as diferenças culturais estejam forçosamente organizados em função de um recorte social previamente constituído. Uma de suas primeiras recusas se dá em relação ao “primado quase tirânico do social” (CHARTIER, 1990, p.45), que alimentou a produção de uma história social da cultura, preocupada em caracterizar culturalmente os grupos sociais (erudito x popular) ou caracterizar socialmente os produtos culturais (elite x povo). 1 A História Cultural tem sua origem associada à escola dos Annales, movimento que se contrapunha ao paradigma da historiografia tradicional e que surge em 1929, com a publicação do periódico Annales d´histoire économique et sociale. A terceira geração da escola dos Annales é marcada por um crescente interesse dos historiadores por temas pertencentes ao domínio da cultura e o questionamento da primazia até então conferida, ao estudo das conjunturas econômicas ou demográficas. Ver Pesavento (2003) e Burke (1992). 2 Coleção de livros acessíveis (romances de cavalaria, contos de fadas, livros de devoção), vendidos por ambulantes na França do Antigo Regime. 5 6 Saber se pode chamar-se popular ao que é criado pelo povo ou àquilo que lhe é destinado é, pois, um falso problema. Importa antes de mais identificar a maneira como, nas práticas, nas representações ou nas produções, se cruzam e se imbricam diferentes formas culturais (CHARTIER, 1990, p.56). Uma terceira linha de pesquisa desenvolvida pelo autor é a reflexão sobre a prática historiográfica, em que Chartier examina as condições de produção dos historiadores, incluindo a discussão dos conceitos e formas discursivas que fundam essa mesma prática. Salienta a necessidade de se pensar em outros termos a relação entre recortes sociais e as práticas culturais, propondo o deslocamento de uma história social da cultura para uma História Cultural da sociedade. Uma sociologia retrospectiva, que durante muito tempo fez da distribuição desigual dos objetos o critério primeiro da hierarquia cultural, deve ser substituída por uma outra abordagem, que centre a sua atenção nos empregos diferenciados, nos usos contrastantes dos mesmos bens, dos mesmos textos, das mesmas idéias (CHARTIER, 1990, p.136). Ao que tudo indica, a linha de pesquisa considerada central no conjunto da obra de Chartier é a da História da Leitura, das práticas de leitura e das práticas de escritura. A ênfase dessa linha se dá tanto no estudo das práticas da leitura do passado, como, por exemplo, nas pesquisas sobre a leitura na França do Antigo Regime. E também no presente, com as reflexões sobre a relação entre leitura e o mundo digital. Por ser esta uma preocupação permanente na produção de Chartier, aparentemente suas obras nessa linha é que têm tido maior repercussão no Brasil. Suas investigações concentram-se no esforço de reconstituir, nas suas proximidades e distâncias, as diferentes maneiras de praticar a leitura, cujos modelos e modos variam de acordo com a época, o lugar e a comunidade estudados. Para tanto, trabalha com duas noções centrais, que serão expostas a seguir. A noção de representação Segundo o pesquisador, as acepções correspondentes à palavra "representação" atestam duas famílias de sentido aparentemente contraditórias: 6 7 a representação como dando a ver uma coisa ausente, o que se supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por outro lado a representação como exibição de uma presença, como a apresentação pública de algo ou alguém (CHARTIER, 1990, p.20). Para Chartier (2002) a noção de representação permite articular três registros de realidade: por um lado, as representações coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do mundo social e organizam os esquemas de percepção a partir dos quais eles classificam, julgam e agem; por outro, as formas de exibição e de estilização da identidade que pretendem ver reconhecida; enfim, a delegação a representantes (indivíduos particulares, instituições, instâncias abstratas) da coerência e da estabilidade da identidade assim afirmada. (CHARTIER, 2002, P. 11) A noção de apropriação Chartier utiliza-se do conceito de Michel de Certeau (1994) que diz que a apropriação é definida como o consumo cultural, ou seja, como uma operação de produção que embora não fabrique nenhum objeto, assinala a sua presença a partir de maneiras de utilizar os produtos que lhe são impostos. Certeau, ao falar sobre as apropriações, enfatiza as estratégias e as táticas. Estratégias que supõem lugares e instituições que produzem objetos, normas, modelos, que acumulam e capitalizam. Táticas, desprovidas de lugar próprio, que não se prendem a um tempo e a um espaço institucionais ou determinados, localizam-se em um espaço e um tempo de acordo com o leitor. De acordo com Chartier as práticas de apropriação (táticas) são o contraponto às operações (estratégias) que visam disciplinar e regular o consumo cultural. Articulações de análise propostas por Chartier para o estudo da leitura Chartier propõe que a leitura seja abordada não apenas a partir das práticas de recepção dos textos, mas também, dos dispositivos que tentam normalizá-la, modelá-la, controlá-la, propondo aproximar perspectivas freqüentemente separadas, como aquelas apresentadas por Zappone (2001). 7 8 Essa aproximação não elimina o tensionamento existente entre essas perspectivas, uma vez que ele é constitutivo do campo da leitura. A aproximação destas perspectivas, tão distintas, visa transformar essa tensão em uma condição potencializadora da História da Leitura. Chartier afirma que, para que as obras adquiram sentido, é preciso reconstituílas estabelecendo relações entre três pólos: o texto, o objeto que lhe serve de suporte e a prática que dele se apodera. Estudar a modelização retórica dos textos De acordo com a proposta de Chartier, estudar os textos (literários ou não, canônicos ou esquecidos) compreende analisar criticamente os mesmos. Para o autor, além da leitura, importa a historicização do literário, ou seja, a verificação de como acontecem as variações, no tempo e espaço, entre o que é considerado ou não literário. Para o pesquisador, a literatura é, fundamentalmente, fonte de si mesma. Ele diz que os historiadores não devem reduzir os textos literários a regramentos de “documentos”. Para o autor, o importante é entender como a criação estética se apropria dos objetos, das práticas ou dos códigos de sua época para transformá-los em razões literárias. Estudar o livro e todos os objetos que contêm a comunicação do escrito e servem de suporte para o texto É preciso lembrar que não há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas pelas quais atinge o leitor. (CHARTIER,1991, p.182) Nesta perspectiva, o interesse da operação de Chartier consiste em analisar a materialidade dos suportes e meios de produção e circulação dos discursos principalmente no fato de incluir a matéria no sentido, evidenciando que o suporte ou a ordenação material da mensagem é signo. Dessa maneira, são consideradas as formas tipográficas: a disposição e a divisão do texto, sua tipografia, sua ilustração, etc. Segundo Chartier (1996, p.96): esses procedimentos de produção de livros não pertencem à escrita, mas à impressão, não são decididos pelo autor, mas pelo editor-livreiro e podem sugerir leituras diferentes de um mesmo texto. 8 9 O estudo das práticas de leitura Para Chartier (1996) a leitura, enquanto uma prática, implica diferentes competências, nem sempre constantes e homogêneas na história das comunidades que a praticam. Para o autor importa considerar os protocolos e as comunidades de leitura, as classificações, os regimes de circulação, as exclusões, as censuras da atenção, os tempos, a oralização, a memorização, a leitura silenciosa, etc. Chartier assinala também o longo caminho percorrido até que se chegasse ao modelo de leitura mais difundido no mundo moderno: a leitura silenciosa e individual. Para ele, muitas outras formas de leitura existiram desde a invenção da escrita. Chama atenção para a transição da leitura intensiva predominantemente oral e repetitiva de um cânone de textos familiares e normativos (sobretudo a Bíblia), para uma leitura extensiva, silenciosa, variada de textos novos, que permitiam informar e distrair. Dessa forma, infere-se que estudar as formas de apropriação dos materiais de leitura se constitui na tarefa mais difícil para os historiadores da leitura, como afirma Chartier: Reconstituir a leitura implícita visada ou permitida pelo impresso não é, portanto, contar a leitura efetuada e ainda menos sugerir que todos os leitores leram como desejou-se que lessem. O conhecimento dessas práticas plurais será, sem dúvida, para sempre inacessível, pois nenhum arquivo guarda seus vestígios. Com maior freqüência, o único indício do uso do livro é o próprio livro. Disso decorre também sua imperiosa sedução (CHARTIER, 1996, p.103). Contrastes entre as competências de leitura; entre normas de leitura; e entre as expectativas e os interesses que os diferentes grupos de leitores investem nessa prática, são evidenciados como maneiras variantes de utilização, compreensão e apropriação dos textos e ajudam a perceber as leituras e os leitores em suas diferenças. As obras – mesmo as maiores, ou, sobretudo, as maiores – não têm sentido estático, universal, fixo. Elas estão investidas de significações plurais e móveis, que se constroem no encontro de uma proposição com uma recepção. Os sentidos atribuídos às suas formas e aos seus motivos dependem das competências ou das expectativas dos diferentes públicos que delas se apropriam. 9 10 Certamente, os criadores, os poderes ou os experts sempre querem fixar um sentido e enunciar a interpretação correta que deve impor limites à leitura (ou ao olhar). Todavia, a recepção também inventa, desloca e distorce (CHARTIER, 1994, p. 9). Considerações finais Espera-se que com este breve mapeamento tenha sido possível demonstrar a multiplicidade de possibilidades de se trabalhar a História da Leitura através das proposições de Chartier. Pois, considerando-se a premissa de que a leitura possui uma história social e cultural, verificou-se a importância de estudá-la levando em consideração não só a modelização retórica do texto, mas também a materialidade do suporte em que está escrito e a apropriação que os leitores fazem do mesmo. Estudar a História da Leitura sob a perspectiva de Chartier nos ajuda a pensar no percurso que o texto percorre até se transformar em livro, ou, ainda, em outro suporte de leitura; evidenciando-se os diferentes significados atribuídos não só pelos seus autores, mas também pelos leitores. Ao estabelecer uma relação entre a forma (suporte da escrita) e o sentido (interpretação) de um texto, Chartier propõe uma abordagem que estabelece diálogos, rompe fronteiras disciplinares e busca outras possibilidades de inteligibilidade da leitura. Creio que esteja aí a grande potencialidade do trabalho do historiador: unir teorias e conceitos originados em várias áreas, com a possibilidade de formar um referencial teórico-metodológico próprio para enxergar a leitura a partir de suas diferentes matizes. Contudo, sem a pretensão de estabelecer modelos, e contrapondo-se às formas de pesquisa que visam o estabelecimento de parâmetros, a identificação de relações de causa-efeito, ou a produção de hierarquias. Aqueles que optarem por trabalhar com a leitura sob essa abordagem certamente ficarão muito satisfeitos, pois, a partir do contato com essa teoria, verão o texto, o suporte da escrita e o leitor de forma diferente. E, sobretudo, como elementos indispensáveis para uma análise da História da Leitura. Referências BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo. Ed. UNESP, 1992. 10 11 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: UFRGS, 2002. ___________. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. ___________. A ordem dos livros. Brasília: UnB, 1994. ___________. “Crítica textual e História Cultural”. In: leitura: teoria e prática, Campinas/ALB : Porto Alegre/Mercado Aberto, n. 30.dez. 1997. ___________. Cultura escrita, literatura e história. Porto Alegre: Artmed, 2001. ___________. Escribir las prácticas: Foucault, de Certeau, Marin. Buenos Aires: Manantial, 1996. ___________. Formas e Sentido cultura escrita: entre distinção e apropriação. São Paulo: Mercado das Letras, 2003. ___________. História da Leitura. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. 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