PENSAMENTOS DE SARAMAGO
“Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que
pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos
reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, nao vamos a parte nenhuma.”
Revista do Expresso, Portugal (entrevista), 11 de Outubro de 2008
A hora dos valores humanos
O fracasso do capitalismo financeiro, hoje tão óbvio, deveria ajudar-nos na defesa da dignidade humana
acima de tudo.
La Vanguardia, Barcelona, 10 de Dezembro de 2008
Humanidade
Têm razão os cépticos quando afirmam que a história da humanidade é uma interminável sucessão de
ocasiões perdidas. Felizmente, graças à inesgotável generosidade da imaginação, cá vamos suprindo as faltas,
preenchendo as lacunas o melhor que se pode, rompendo passagens em becos sem saída e que sem saída irão
continuar, inventando chaves para abrir portas órfãs de fechadura ou que nunca tiveram.
In A Viagem do Elefante, Editorial Caminho, p. 223
(Selecção de Diego Mesa)
Cada vez mais sós
Acho que todos nós devemos repensar o que andamos aqui a fazer. Bom é que nos divirtamos, que
vamos à praia, à festa, ao futebol, esta vida são dois dias, quem vier atrás que feche a porta – mas se não nos
decidirmos a olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores, o mais certo é termos apenas um dia
para viver, o mais certo é deixarmos a porta aberta para um vazio infinito de morte, escuridão e malogro.
“Cada vez mais sós”, in Deste Mundo e do Outro, Ed. Caminho, 7.ª ed., p. 216
(Selecção de Diego Mesa)
Livros
Começar a ler foi para mim como entrar num bosque pela primeira vez e encontrar-me, de repente, com
todas as árvores, todas as flores, todos os pássaros. Quando fazes isso, o que te deslumbra é o conjunto. Não
dizes: gosto desta árvore mais que das outras. Não, cada livro em que entrava, tomava-o como algo único.
El País Semanal, Madrid, 29 de Novembro de 1998
Educar para a paz
Resulta muito mais fácil educar os povos para a guerra do que para a paz. Para educar no espírito bélico
basta apelar aos mais baixos instintos. Educar para a paz implica ensinar a reconhecer o outro, a escutar os seus
argumentos, a entender as suas limitações, a negociar com ele, a chegar a acordos. Essa dificuldade explica que
os pacifistas nunca contem com a força suficiente para ganhar… as guerras.
“Israel vive às custas do Holocausto”, em Palestina existe!, Madrid, Foca, 2002 [Prólogo e edição de Javier
Ortiz] [Entrevista de Javier Ortiz]
Homem novo
Culturalmente, é mais fácil mobilizar os homens para a guerra que para a paz. Ao longo da história, a
Humanidade sempre foi levada a considerar a guerra como o meio mais eficaz de resolução de conflitos, e
sempre os que governaram se serviram dos breves intervalos de paz para a preparação das guerras futuras. Mas
foi sempre em nome da paz que todas as guerras foram declaradas. É sempre para que amanhã vivam
pacificamente os filhos que hoje são sacrificados os pais…
Isto se diz, isto se escreve, isto se faz acreditar, por saber-se que o homem, ainda que historicamente
educado para a guerra, transporta no seu espírito um permanente anseio de paz. Daí que ela seja usada muitas
vezes como meio de chantagem moral por aqueles que querem a guerra: ninguém ousaria confessar que faz a
guerra pela guerra, jura-se, sim, que se faz a guerra pela paz. Por isso todos os dias e em todas as partes do
mundo continua a ser possível partirem homens para a guerra, continua a ser possível ir ela destruí-los nas suas
próprias casas.
Falei de cultura. Porventura serei mais claro se falar de revolução cultural, embora saibamos que se trata
de uma expressão desgastada, muitas vezes perdida em projectos que a desnaturaram, consumida em
contradições, extraviada em aventuras que acabaram por servir interesses que lhe eram radicalmente contrários.
No entanto, essas agitações nem sempre foram vãs. Abriram-se espaços, alargaram-se horizontes, ainda que me
pareça que já é mais do que tempo de compreender e proclamar que a única revolução realmente digna de tal
nome seria a revolução da paz, aquela que transformaria o homem treinado para a guerra em homem educado
para a paz porque pela paz haveria sido educado. Essa, sim, seria a grande revolução mental, e portanto cultural,
da Humanidade. Esse seria, finalmente, o tão falado homem novo.
Imaginemos
Imaginemos que, nos anos trinta, quando os nazis iniciaram a sua caça aos judeus, o povo alemão teria
descido à rua, em grandiosas manifestações que iriam ficar na História, para exigir ao seu governo o fim da
perseguição e a promulgação de leis que protegessem todas e quaisquer minorias, fossem elas de judeus, de
comunistas, de ciganos ou de homossexuais. Imaginemos que, apoiando essa digna e corajosa acção dos
homens e mulheres do país de Goethe, os povos da Europa desfilariam pelas avenidas e praças das suas cidades
e uniriam as suas vozes ao coro dos protestos levantados em Berlim, em Munique, em Colónia, em Frankfurt. Já
sabemos que nada disto sucedeu nem poderia ter sucedido. Por indiferença, apatia, por cumplicidade táctica ou
manifesta com Hitler, o povo alemão, salvo qualquer raríssima excepção, não deu um passo, não fez um gesto,
não disse uma palavra para salvar aqueles que iriam ser carne de campo de concentração e de forno crematório,
e, no resto da Europa, por uma razão ou outra (por exemplo, os fascismos nascentes), uma assumida conivência
com os carrascos nazis disciplinaria ou puniria qualquer veleidade de protesto.
Hoje é diferente. Temos liberdade de expressão, liberdade de manifestação e não sei quantas liberdades
mais. Podemos sair à rua aos milhares ou aos milhões que a nossa segurança sempre estará assegurada pelas
constituições que nos regem, podemos exigir o fim dos sofrimentos de Gaza ou a restituição ao povo palestino
da sua soberania e a reparação dos danos morais e materiais sofridos ao longo de sessenta anos, sem piores
consequências que os insultos e as provocações da propaganda israelita. As imaginadas manifestações dos anos
trinta seriam reprimidas com violência, em algum caso com ferocidade, as nossas, quando muito, contarão com
a indulgência dos meios de comunicação social e logo entrarão em acção os mecanismos do olvido. O nazismo
alemão não daria um passo atrás e tudo seria igual ao que veio a ser e a História registou. Por sua vez, o exército
israelita, esse que o filósofo Yeshayahu Leibowitz, em 1982, acusou de ter uma mentalidade “judeonazi”, segue
fielmente, cumprindo ordens dos seus sucessivos governos e comandos, as doutrinas genocidas daqueles que
torturaram, gasearam e queimaram os seus antepassados. Pode mesmo dizer-se que em alguns aspectos os
discípulos ultrapassaram os mestres. Quanto a nós, continuaremos a manifestar-nos.
86 anos
Dizem-me que as entrevistas valeram a pena. Eu, como de costume, duvido, talvez porque já esteja
cansado de me ouvir. O que para outros ainda lhes poderá parecer novidade, tornou-se para mim, com o
decorrer do tempo, em caldo requentado. Ou pior, amarga-me a boca a certeza de que umas quantas coisas
sensatas que tenha dito durante a vida não terão, no fim de contas, nenhuma importância. E porque haveriam de
tê-la? Que significado terá o zumbido das abelhas no interior da colmeia? Serve-lhes para se comunicarem umas
com as outras? Ou é um simples efeito da natureza, a mera consequência de estar vivo, sem prévia consciência
nem intenção, como uma macieira dá maçãs sem ter que preocupar-se se alguém virá ou não comê-las? E nós?
Falamos pela mesma razão que transpiramos? Apenas porque sim? O suor evapora-se, lava-se, desaparece, mais
tarde ou mais cedo chegará às nuvens. E as palavras? Aonde vão? Quantas permanecem? Por quanto tempo? E,
finalmente, para quê? São perguntas ociosas, bem o sei, próprias de quem cumpre 86 anos. Ou talvez não tão
ociosas assim se penso que meu avô Jerónimo, nas suas últimas horas, se foi despedir das árvores que havia
plantado, abraçando-as e chorando porque sabia que não voltaria a vê-las. A lição é boa. Abraço-me pois às
palavras que escrevi, desejo-lhes longa vida e recomeço a escrita no ponto em que tinha parado. Não há outra
resposta.
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