UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
DIEGO PINTO DE SOUSA
AQUISIÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM: PALAVRA BAKHTINIANA
CUIABÁ-MT
2014
DIEGO PINTO DE SOUSA
AQUISIÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM: PALAVRA BAKHTINIANA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Linguagem da Universidade
Federal de Mato Grosso como parte dos requisitos para
a obtenção do título de Mestre em Estudos de
Linguagem.
Área de Concentração: Estudos
Linguísticos. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus
Padilha.
CUIABÁ-MT
2014
Ao Eterno, Minha Família e Camaradas...
Viva a Linguagem!!!
AGRADECIMENTOS
Por tudo e por sempre...
Sou grato a Seu Djalma, Dona Cida, Renan, Diogo, Graci, Dimas e Neuciani, pais,
irmãos, minha carne. Meu sangue!
A Dona Maria Paula, minha avó, por ter usado a cegueira do analfabetismo em favor de
nossa Visão.
Pela dialógica orientação, paciência, amizade e por coadunar os mundos ético e
estético agradeço à Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha.
Ao Prof. Dr. Geraldo Tadeu Souza pela sensível personalidade e dialógica profundidade
discursiva.
Ao Prof. Dr. Sergio Flores Pedroso, pela paradigmática docência e por ensinar a cavar
mais fundo...
Ao poeta e amigo Moisés Amorim pela reciprocidade em tocar o Transcendente.
As camaradinhas Angélica e Renata pela presença sempre presente.
Pela paternidade em tempos acadêmicos, agradeço aos amigos Jorge e Aretusa.
Aos Professores, livros e colegas que contribuíram em minha formação.
Aos demais familiares e amigos, aos colegas de Graduação, Pós-Graduação e ReBAK.
A Capes pela Bolsa de estudos.
A uma Campesina de sonho e de neve e ao meu melhor e permanente Amigo, minha
gratidão!
Ao dom da linguagem verbal,
Ao Eterno e a eternidade...
Valeu!
EPÍGRAFE
De onde vem a Sabedoria?
“Sabemos que há minas de prata, e como o ouro é refinado. Sabemos
que o ferro é extraído da terra e o cobre é tirado da rocha. O mineiro
penetra a escuridão, vasculha os lugares mais escondidos atrás de
minério, escava no escuro sufocante. Bem longe da agitação e das
pessoas, abrem um poço longe de todos, e são baixados por cordas. A
superfície da terra produz alimento, mas suas profundezas são como
fornalha, No meio das pedras há safiras e, entre rochas, pepitas de ouro.
Nem o explorador conhece o caminho, e o trapaceiro nunca pôs os
olhos nelas. O arrogante nunca passou por lá, e o “dono do pedaço” se
dá conta delas. Os mineiros trabalham duro a rocha, e transformam as
montanhas. Eles cavam túneis através da rocha e encontram todos os
tipos de pedras preciosas. Eles descobrem as nascentes dos rios e
trazem os segredos da terra para a superfície. “Mas onde encontrarão a
sabedoria? Onde se esconde o entendimento? Os mortais não têm
nenhuma pista, não têm a menor ideia de onde procurar. O abismo diz:
“Não está aqui”; as profundezas do mar repetem: „Nunca ouvimos falar
dela. Não pode ser comprada nem com o mais fino ouro; nenhuma
quantidade de prata será suficiente. Nem o famoso ouro de Ofir pode
comprá-la, nem mesmo diamantes e safiras. Nem ouro nem esmeraldas
são comparáveis a ela; joias extravagantes não conseguem ofuscá-la.
Colares de pérolas e rubis não merecem atenção, Isso não paga nem a
primeira prestação! Extraiam todo o ouro e diamante africano, mas nada
poderá ser comparado à sabedoria. “Então, de onde vem a sabedoria?
Onde mora o entendimento?” Ela está tão bem escondida que não
importa quão profundo cavem, não poderá ser encontrada. Se
perguntarem aos mortos, dirão: Só ouvimos boatos a respeito dela. Só
Deus conhece o caminho para a sabedoria, sabe exatamente onde pode
ser encontrada. Ele sabe o lugar exato de cada coisa na terra, ele vê
tudo debaixo do céu. Ele atribuiu a força dos ventos e estabeleceu a
medida das águas; Estabeleceu leis para a chuva, trovões e
relâmpagos. Mas, depois, concentrou-se na sabedoria, certificou-se de
que tudo estava estabelecido. Então, dirigindo-se aos homens, disse:
Aqui está! O temor do Senhor é a sabedoria, E afastar-se do mal é ter
entendimento.
Sagradas Escrituras (A Mensagem), Jó 28.
Um autor se dispõe a escrever algo, senta-se diante da mesa e olha
impotente a folha de papel em branco diante dele. Antes de pegar a
caneta e dispor-se a escrever, tinha tantas ideias em mente. [...] E
agora, qualquer frase com que pensa começar sua obra lhe parece
estúpida, torpe, estranha e artificial. O jovem escritor se encontra,
portanto, com um número enorme de problemas [...]
Valentin Volochinov
RESUMO
O fenômeno da linguagem verbal configura-se como uma das mais inquietantes
estâncias do conhecimento. Percebe-se, nos estudos de linguagem, desde as primeiras
produções, direta ou indiretamente, a pretensão de instaurar conceituações acerca de
sua definição, natureza, unidade, bem como os seus processos de aquisição e
desenvolvimento. Os últimos exercem papel de vanguarda nessa pesquisa que – sob o
prisma ofertado pela filosofia bakhtiniana da linguagem – pretende promover uma
justificativa dialógica sobre o processo de aquisição da linguagem verbal. A área de
Aquisição de Linguagem está engendrada nas ciências da cognição (SCARPA, 2006) e,
portanto, constrói sua autonomia em múltiplas relações com ciências que focam e
compartilham semelhantes questões, como é o caso da neurolinguística,
psicolinguística e biolinguística. De fato, Bakhtin e o Círculo não versam, abertamente,
acerca do processo de aquisição da linguagem verbal. Suas reflexões sobre um
fenômeno da linguagem sócio-historicamente constituído, inclusive em seu viés literário,
permitem, no entanto, erigir a possibilidade de tangenciar sua palavra com outras
palavras, palavras alheias, contrárias, camaradas. De sorte que são as brechas teóricas
(como, por exemplo, a nosso ver, a identidade do semiótico e a discussão entre o inato
e o adquirido) e possíveis parolas com algumas vertentes e pensadores como Chomsky
– Skinner – Piaget – Vygotsky, os lugares de encontro que nós, em nosso processo
reflexivo, encontramos entre o filósofo russo e a área de Aquisição de Linguagem.
Inferimos que, para além de coadunar-se e/ou contrapor-se frente às bases
epistemológicas da psicogênese (Empirismo – Racionalismo – Construtivismo –
Interacionismo), a palavra bakhtiniana interventivamente adentra o Interacionismo,
subvertendo-o com seus conceitos de dialogismo, enunciado-concreto, exotopia,
ideologia. Da mesma maneira, consideramos após reflexão e análise, suas premissas
acerca do sujeito, identidade linguagem e natureza do sentido, projetam a possibilidade
de uma nova ótica sob o processo de aquisição: uma Aquisição dialógica da linguagem,
sedimentada em uma base teórica específica, o Interacionismo dialógico.
Palavras-chave: Aquisição Dialógica da linguagem; Filosofia bakhtiniana da linguagem;
Interacionismo dialógico; Natureza do sentido.
ABSTRACT
The phenomenon of verbal language takes shape as one of the most disturbing
instances of knowledge. One could see, in language studies, from the earliest
productions, directly or indirectly, the pretense of establishing conceptualizations about
its definition, nature, unity, and its acquisition and development processes. The last
ones exercise vanguard role in this research which - through the prism offered by
Bakhtin's philosophy of language - aims to promote a dialogical justification for the
process of acquisition of verbal language. The area of Language Acquisition is
engendered in the sciences of cognition (SCARPA, 2006) and, therefore, builds its
autonomy in multiple relations with sciences which share similar issues, such as
Neurolinguistics, Psycholinguistics and Biolinguistics. In fact, Bakhtin and the Circle do
not deal, openly, with the acquisition of verbal language.Their reflections on a
phenomenon of the socio-historically constituted language, including their literary bias,
allow, however, erecting the possibility of tangencing their word with other words,
extraneous words, opposing words, fellow words. Lucky that the theoretical gaps (e.g.,
in our view, the identity of the semiotic and the discussion between the innate and
acquired) and potential paroles with some strands and thinkers such as Chomsky Skinner - Piaget - Vygotsky, are the mutual places which we, in our reflective process,
find among the Russian philosopher and the area of Language Acquisition. We infer
that, in addition to adjust itself to and/or counteract in the face of the epistemological
foundations of psychogenesis (Empiricism - Rationalism - Constructivism Interactionism), the bakhtinian word interventionally enters Interactionism, subverting it
with its concepts of dialogism, concrete-enunciate, exotopy, ideology. Likewise, we
consider that, after reflection and analysis, its assumptions about the subject, language
identity and nature of meaning, project the possibility of a new light on the process of
acquiring: a Dialogical language acquisition, established in a specific theoretical basis,
Dialogic interactionism.
Keywords: Dialogic Language Acquisition; Bakhtin's philosophy of language; Dialogic
interactionism; Nature of Meaning.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1
Anatomia e Áreas funcionais do Cérebro
27
Figura 2
Etapas da Aquisição da Linguagem
33
Figura 3
Figura 4
Processo de Aprendizagem para Piaget
O Interacionismo dialógico
39
73
10
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ....................................................................................................... 5
RESUMO.......................................................................................................................... 7
ABSTRACT...................................................................................................................... 8
LISTA DE FIGURAS ........................................................................................................ 9
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12
1- CAPÍTULO 1 – AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM: DILEMA HISTÓRICO .................... 25
1.1 – Uma Caixa fechada ou Behaviorismo Radical ................................................... 33
1.2 - Jean Piaget: Entre o simbólico e o orgânico ....................................................... 37
1.3 – A Gramática Gerativo-Transformacional ............................................................ 44
1.4 – A Realidade artificial da linguagem: O Conexionismo ........................................ 52
1.5 – Lev Vygotsky x Mikhail Bakhtin: Conterrâneos na dissidência, Contemporâneos
na alteridade ............................................................................................................... 55
2- CAPÍTULO 2 – ESTUDOS DA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM: DIÁLOGOS ........... 57
2.1 – Os estudos de linguagem: antes que fosse o tempo ......................................... 57
2.2 – Fundamentos símiles, práticas contraditórias: a dialogia-transformacional ....... 65
2.3 - Uma híbrida e diversa atualidade ....................................................................... 67
2.4 – Psicogênese Dialógica: Vygotsky com Bakhtin .................................................. 70
2.4.1 - Para uma Identidade Dialógica: O Discurso Interior ..................................... 74
3- CAPÍTULO 3 – POR UMA AQUISIÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM .................. 77
3.1 – Em Três Concepções: uma quarta via ............................................................... 77
3.2 – Estudos aquisicionistas e Bakhtin ...................................................................... 83
3.3 – Aquisição Dialógica: apropriação, constituição, internalização... ....................... 85
3.4 – Consciência como linguagem ............................................................................ 87
3.5 – Palavra bakhtiniana ............................................................................................ 89
3.5.1 – Concepção de Linguagem ........................................................................... 92
3.5.2 – Concepção de Sujeito: ativamente responsivo e alteritariamente constituído
................................................................................................................................. 92
3.5.3 – A Natureza do Sentido ................................................................................. 96
11
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 103
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 106
12
INTRODUÇÃO
[...] Ainda que seja por nada
insisto em apontá-las
mesmo sem vê-las
com a certeza que mesmo nas trevas
escondem-se estrelas.
Enganam-se os que crêem
que as estrelas nascem prontas.
São antes explosão
brilho e ardência
imprecisas e virulentas
herdeiras do caos
furacão na alma
calma na aparência.
Enganadoras aparências…
Extintas, brilham ainda:
Mortas no universo
resistem na ilusão da retina.
Velhas super novas
pontuam o antes nada
na mentira da visão repentina.
Sim
são infiéis e passageiras.
Mas poupem-me os conselhos,
não excluo os amores
por medo de perdê-los [...]
Mauro Iasi1
Em sua derradeira hora, quando a malha formada pelas relações gravitacionais
entre planetas e outros corpos celestes é rompida – em virtude da densidade da estrela
que singrou, durante o vasto tempo de sua existência, coeficientes cada vez mais
elevados de grandeza – toda a matéria é sugada pelo nível altamente superior de
massa concentrada para um vácuo sem fim, um outro universo talvez... Estilhaços...
Toda a multiforme gama de expressões da matéria em contato com o enorme espiral é
conduzida para o vórtice negro desagregando-se de sua forma original. Se aqui se
1
Sobre o Ofício de Construir Estrelas e os Riscos das Verrugas, Meta Amor Fases: coletânea de
poemas.
13
configuram ordenadamente, em sua condução e destino final, contrariamente,
esmiúçam-se transmudando lançadas então para o desconhecido, o fim-início. Mesmo
a luz é captada...
Estrelas não são palavras, palavras tampouco estrelas. Mas a palavra, feito o
lume das estrelas, presentifica as interações humanas com um brilho novo e, ao mesmo
tempo, antigo. A morte duma estrela e nascedouro de um buraco negro 2 alegorizam,
em certa medida, o que essencialmente constitui o objeto dessa pesquisa: a natureza
do sentido.
Para inaugurar nossa reflexão a respeito de objeto tão amplo, mas tão próximo,
lembremos um fato interessante. Entre as décadas de 1940-1960, o teórico russo
Mikhail Bakhtin forja um ensaio em que, ao falar sobre a constituição dialógica do
texto/enunciado, realiza a seguinte comparação: “O texto como mônada específica que
reflete todos os textos (no limite) de um dado campo do sentido. A concatenação de
todos os sentidos [...] texto pressupõe um sistema universalmente aceito” (2010[1979]
p. 309).
O conceito de mônada é proveniente da obra Monadologia do filósofo Leibiniz
(1646-1716) e representaria basicamente a essência original de toda substância. O
excerto de Bakhtin citado há pouco, dessa forma, guardadas as demais e possíveis
interpretações, conduz-nos para a percepção da ruptura do silêncio universal (ou da
subversiva atribuição de sentido ao próprio silêncio), não por meio de um sentido
inicialmente vazio, mas, ousemos dizer, pela natureza dialógica do exercício verbal, um
primeiro sentido abarcador de todos os outros, como se a dialogia fosse condição do
significar, o sentido como uma emergência arquitetônica proveniente do todo projeto de
dizer. Um sentido que, à semelhança dum universo paralelo resultante dos efeitos de
densidade gravitacional no núcleo de um buraco negro, tem em sua composição uma
formatação inédita de elementos antecedentes.
2
Os Conceitos de Buraco negro e Multiversos/Universos paralelos que, até meados do séc. XX, eram
assumidos como mera utopia, são hoje amplamente estudados.
Sobre a morte de estrelas
supermassivas, indicamos a leitura de O universo numa casca de noz (2001), do reconhecido físico
Stephen Hawking. Da realidade de universos possíveis, além da inferida porção conhecida deste
universo, acessar a obra Universos Paralelos, de Michio Kaku (2008).
14
Essa analogia “espacial” nos remete à questão do nascimento da linguagem 3
(gênese do sentido). Sobre o tema, o francês, antropólogo estruturalista, Lévi-Strauss
infere:
Quaisquer que tenham sido o momento e as circunstâncias de seu
aparecimento na escala da vida animal, a linguagem só pôde nascer de
uma só vez. As coisas não puderam começar a significar
progressivamente. Em consequência de uma transformação cujo estudo
não pertence às ciências sociais, mas à biologia e à psicologia, uma
passagem efetuou-se, de um estado em (sic) nada tinha sentido a um
outro que tudo o tinha. (apud AUROUX, 1998, p. 57)
Entender a natureza do sentido, sobretudo em nossos tempos, deveria constituir,
pretensamente, a essência de quaisquer empreendimentos nos estudos de linguagem –
seja em seus níveis estruturais ou discursivos – tendo em vista que a finalidade de tais
estudos, seja em seu vigor teórico-descritivo ou pragmático-aplicado, seria aproximarse da realidade do uso linguístico. Nesse cenário, sob o regimento de uma metodologia
dialógica, cabe a apresentação de nossa Questão de Pesquisa: Quais as contribuições
que os estudos bakhtinianos podem trazer para uma nova reflexão a respeito da
Aquisição da Linguagem?
Ao falarmos de sentido e sua natureza, vem à tona imediatamente a noção de
signo4. Afirma-se que as últimas décadas do século passado configuraram-se como a
3
A busca da origem da linguagem, em seu caráter orgânico e cultural, bem como de qual seria o primeiro
idioma manifesto foram exaustivamente discutidos, sobretudo no séc. XIX, de tal forma que, pelo rigor
cientificista do referido século nas ciências humanas, inclusive a púbere linguística, decidiu-se
desconsiderar quaisquer estudos sobre a origem da linguagem, por seu caráter não científico. Sobre o
assunto, ver a obra dos autores (OLIVEIRA FILHO, 1968; MOURA E CAMBRUSSI, 2008). Tais estudos
foram repaginados, atualmente, havendo uma expansão considerável em estudos de cunho evolucionista
que afirmam que, semelhantemente aos organismos vivos, a linguagem é advinda dum paulatino e
progressivo desenvolvimento. Uma referência sobre pesquisas darwinistas na linguística é a obra O
instinto da linguagem (PINKER, 2004).
4 Para nós, um signo seria uma representação simbólica expressa na interação social. De uma ordem
bem distinta da do signo linguístico (estruturalista), todavia. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem
(2006), sobretudo em seu primeiro capítulo, são elencados alguns predicados do signo: assemelha-se à
ideologia, pois sempre está vinculado a algo fora de si, disso resulta a percepção de que toda ideologia
manifesta-se signicamente e, em consequência, todo signo é ideológico. Vemos ainda na mesma obra
que no universo de signos há uma materialidade, pois o signo é oriundo e participante dos elementos da
realidade. O signo, dessa forma, é a entidade base do sentido e das infindáveis possibilidades de
significar, sua identidade está ligada ao diálogo, haja vista sua produção sempre dar-se num terreno
interindividual, aliás, a própria realidade do psiquismo é sígnica. Ele é uma arena microcósmica onde as
diversas posições existenciais são manifestadas. “[...] podemos dizer que o signo se dá em uma
15
época dos signos (PONZIO, 2011), em que houve uma inquietante revolução em busca
de entendimento da representação, da vida semiótica do mundo e do homem.
O signo e a representação são filtros, em muitas vezes, das ciências, para sua
concepção e objetivo. Araújo assegura que “O século XX foi o século da lógica e da
linguagem. A linguagem torna-se o pano de fundo obrigatório para o pensamento
filosófico contemporâneo (2004, p. 10).” Pensadores como Wittgenstein, Peirce e
Bakhtin compõem a vanguarda que estabeleceu a linguagem como um ponto de partida
sobre os dilemas das ciências humanas.
O processo de conquista ou entrada na vida semiótica é uma das facetas mais
intrigantes de toda a complexa dinâmica do fenômeno da linguagem na vida do ser
humano, e é justamente esta a residência a ser mais visitada nesta pesquisa. De um
ponto de vista específico, propomos mirar a Aquisição de Linguagem com um novo
olhar: a filosofia bakhtiniana da linguagem e do Círculo5.
Se tanto a Aquisição como a Filosofia da linguagem aqui são importantes, vale a
pena apresentar uma síntese de nossa compreensão a respeito.
Salientamos que a pesquisa se circunscreve à Linguagem Verbal (expressa no
período de aquisição, portanto em língua e realidade maternas) que, nos limites
teóricos do Círculo e de Bakhtin, é percebida como uma atividade da expressão
humana. Sua realização sempre se concretiza em terreno interindividual e sóciohistoricamente situado. Sua natureza é dialógica, sendo tributária do legado cultural da
humanidade e expressa nas interações verbais entre os sujeitos, isto por meio de sua
unidade básica: o enunciado concreto. Este é um elo material na cadeia ininterrupta da
comunicação humana, constitui-se não apenas com elementos linguísticos, mas uma
miscelânea de partes extraverbais e sociais. É produtivo informar que, em nosso ver, a
linguagem verbal está presente em todas as relações de sentido no âmbito humano. De
forma que, apesar de circunscrevermos nossa pesquisa à linguagem verbal, em
encruzilhada tripartite e inseparável: uma parte de material, uma parte de materialidade sócio-histórica e
uma parte de meu ponto de vista.” (GEGE, 2009, p. 93)
5 Em nosso estudo, qualificamos como palavra bakhtiniana, as diversas produções de teóricos
contemporâneos de Bakhtin, como Volochínov e Medviédev , que com ele compunham o reconhecido
Círculo de estudiosos. Aqui, portanto, levamos em conta a palavra do Círculo e seus membros.
16
específico ao processo de aquisição e desenvolvimento da mesma, não há um rigor
determinante em sua utilização, pois entendemos que, de forma direta ou indireta, a
linguagem verbal (em sua essência) participa de todas as expressões de sentido.6
Inserido neste contexto, o fenômeno da Aquisição da linguagem verbal se
complexifica, pois ultrapassa os limites fixos que a delimitam como fenômeno que se
subdivide em dois períodos básicos: o pré-linguístico, caracterizado pela paulatina
aquisição dos fonemas e das vogais, e linguístico, relativo ao desenvolvimento da fala e
utilização das palavras em frases complexas. (DUCROT; TODOROV, 1972). A
Aquisição (de língua materna ou primeira língua, em nosso estudo) enquanto área de
estudo, nesse caso, se responsabilizaria por uma catalogação descritiva das conquistas
verbais dos indivíduos adquirentes. Como assegura Corrêa:
O estudo da aquisição da linguagem visa a explicar de que modo o
ser humano parte de um estado no qual não possui qualquer forma
de expressão verbal e, naturalmente, ou seja, sem a necessidade de
aprendizagem formal, incorpora a língua de sua comunidade nos
primeiros anos de vida, adquirindo um modo de expressão e de
interação social dela dependente. O material empírico de que esse
estudo dispõe são dados da produção, da percepção e da
compreensão de enunciados linguísticos por crianças, obtidos em
condições naturais ou experimentais.” (1999, p. 339) [grifos nossos].
Frente à expressa concepção de linguagem que norteará nosso trabalho,
todavia, a área de Aquisição, semelhantemente a algumas correntes de base
materialista, como a vista nos estudos do Círculo e de Bakhtin, deve cuidar do ingresso
do sujeito no mundo sígnico, seus encontros iniciais com o universo do sentido e a
progressiva internalização/aquisição da capacidade de significar por parte dos sujeitos
falantes.
Apesar de sabermos da indefinição sobre o que seria Filosofia, “O pensamento
moderno recupera o sentido da filosofia como investigação dos primeiros princípios,
tendo, portanto, um papel de fundamento da ciência e de justificação da ação humana.”
(JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 77). Essa genérica definição abarca uma
expressão mais clássica de filosofia comprometida com uma sistematicidade e
6
Apesar de nossa postura teórica, tomamos em conta a divisão clássica entre Língua e Linguagem, bem
como Linguagens (Semiótica) e Linguagem Verbal (Linguística).
17
generalizações que dessem conta do homem e do mundo e, numa tentativa mais atual,
sobretudo neokantista, de dirimir as vivências e questões da vida, da história em suas
variadas e plurais expressões. (ARÁN, p.121, 2006; ARANHA; MARTINS, 1993).
Nestes termos, uma filosofia da linguagem poderia ser concebida como “[...] uma
filosofia a propósito da linguagem, isto é, de um estudo externo, que considera a
linguagem como um objeto já conhecido e investiga suas relações com outros objetos
[...]” (DUCROT, TODOROV, 1972, p. 95) ou mesmo preocupa-se em submeter a
linguagem, como um objeto de investigação, a um estudo interno. (idem, p. 96). O
trabalho filosófico com a linguagem percorreu, sob essas medidas, toda a história do
conhecimento em terreno ocidental, tendo em vista que desde a antiguidade clássica o
problema da linguagem de certa forma está presente, como é visto em obras de Platão,
Aristóteles e estoicas.
O período entre o final do século XIX e início do século XX, todavia, assistiu
aquilo que seria uma importante guinada e sistematização dos estudos de linguagem,
não apenas a filosofia, pois, como sabemos os estudos da linguagem tidos como nãocientíficos deram lugar a forte teoria estruturalista, inspirada e referendada pelo
linguista Ferdinand de Saussure. É justamente neste século que a linguagem estará no
centro das discussões filosófico-linguísticas. Isto, sobretudo na virada produzida pela
linguagem lógico-matemática de Gottlob Frege (1848-1925) e nos jogos de linguagem
de Ludwig Wittgenstein (1889-1951).
E uma filosofia (da linguagem) bakhtiniana, de que ordem seria? Nos textos do
Círculo não encontramos uma sistematização bem definida há, entretanto, insumo para
instituir as bases filosóficas que influenciaram a produção do Círculo e, por efeito,
assimilar a própria prática filosófica desses teóricos. A declarada influência do
pensamento grego, como se vê no conceito de Gêneros Discursivos, e a assumida
influência kantiana na formação intelectual de Mikhail Bakhtin já dão nota disso. Arán
(2006) condensa as reflexões de Bakhtin e do Círculo com a transcrição de uma
definição, “filosofia da expressão”, encontrada em seu importante texto Metodologia das
ciências humanas. Tal filosofia, “Metalinguística e filosofia da palavra.” (BAKHTIN,
2010, p. 389), está centrada no sujeito falante, pois “O objeto das ciências humanas é o
18
ser expressivo e falante.” (idem, p. 395). A bilateralidade do ser expressivo fica
evidente, haja vista que o mesmo “[...] só se realiza na interação de duas consciências
(a do eu e a do outro).” (idem, p. 396), isso inclui a dinâmica do próprio discurso interior
como veremos mais à frente.
Os enunciados concretos, dessa forma, são fonte e objeto de todo exercício
filosófico comprometido com a realidade social, uma vez que o sujeito se exprime por
meio deles. Tão somente o dialogismo daria conta de sustentar o constructo filosófico
do Círculo e de Bakhtin. Pois é na concepção da realidade dialógica entre os
enunciados pronunciados no percurso histórico das práticas sociais humanas que se
torna possível convergir, na filosofia dialógica (da linguagem), pontos primordiais da
vida e da linguagem: os problemas gerais, e as questões do sujeito. A materialidade
discursiva presente em cada enunciado é o lócus em que sujeito e sociedade se
mesclam sem a perda de algum. O enunciado concreto é expressão da singularidade
constituída pela dialógica rede social. Uma filosofia da linguagem comprometida com
esses predicados do fenômeno verbal certamente se envereda em terreno ideológico
movediço e conflituoso. O que se emparelha as discussões e necessidades filosóficas e
transdisciplinares destes tempos:
No es casual, por lo tanto, que el pensamento de Bajtín tenga cierto
carácter inconcluso y asistémico, y que sólo pueda ser aprehendido
como una totalidad aberta que elude todo tipo de sistematizaciones
externas. La preferencia por lo fragmentário, la multiplicidad de
enfoques, la conformación de esas zonas limítrofes (de cruce entre los
distintos saberes), son las pautas estabelecidas para um tipo de
conocimiento transdisciplinar que, en cierta medida, prefiguraba ya el
lugar que habría de ocupar, cada vez más, la filosofia y las ciencias
sociales a partir de la segunda mitad del siglo XX. (ÁRAN, 2006, p. 123)
Destacamos que refletir sobre essa área de estudos implica em considerar
questões primordiais como a relação entre pensamento e linguagem, cérebro e mente,
amplamente discutidas pelas ciências da cognição, como também, e não menos
críticas, as discussões filosófico-linguísticas sobre a natureza do signo, do sentido e da
compreensão, além do sempre presente problema mente-cérebro. A realidade da
linguagem humana, aliás, exige, não apenas possibilita, confluências de áreas diversas
do conhecimento. Nossa formação nos estudos de linguagem, todavia, desnivela, em
19
certa medida, esse pêndulo epistemológico, conduzindo-nos sobremaneira aos estudos
linguísticos para fundamentar nossa reflexão. Portanto, ao pensarmos em Aquisição de
Linguagem é impossível desconsiderar o imbricamento entre os estudos ontogenéticos
e filogenéticos nessa área.
Com Filogenia e Ontogenia linguísticas procuramos apresentar a relação entre a
parte histórica do fenômeno humano em sua versão orgânica e simbólica em seu
processo
de
formação
(como
o
que
é
cuidado
pela
paleolinguística
ou
antropolinguística), a Filogênese da linguagem. Como também, o estudo do processo
de formação da linguagem em sua realidade semiótica e orgânica no próprio sujeito
falante, desde as primeiras expressões de sentido, à maturidade linguística e velhice, a
Ontogênese da linguagem. A relação, que julgamos necessária, entre a palavra do
sujeito que significa verbalmente o mundo, a aquisição e a morte.
O fenômeno da linguagem verbal configura-se como uma das mais inquietantes
estâncias do conhecimento. Percebe-se, nos estudos de linguagem, desde as primeiras
produções, direta ou indiretamente, a pretensão de instaurar conceituações acerca de
sua definição, natureza, unidade, bem como os seus processos de aquisição e
desenvolvimento. Os últimos exercem papel de vanguarda nessa pesquisa que – sob o
prisma ofertado pela filosofia bakhtiniana da linguagem – pretende promover uma
justificativa dialógica sobre o processo de aquisição da linguagem verbal. A área de
Aquisição de Linguagem está engendrada nas ciências da cognição (SCARPA, 2006) e,
portanto, constrói sua autonomia em múltiplas relações com ciências que focam e
compartilham
semelhantes
questões,
como
é
o
caso
da
neurolinguística,
psicolinguística e biolinguística.
De fato, Bakhtin e o Círculo não versam, abertamente, acerca do processo de
aquisição da linguagem verbal. Suas reflexões sobre um fenômeno da linguagem sóciohistoricamente constituído, inclusive em seu viés literário, permitem, no entanto, erigir a
possibilidade de tangenciar sua palavra com outras palavras, palavras alheias,
contrárias, camaradas. De sorte que são as brechas teóricas (como, por exemplo, a
nosso ver, a identidade do semiótico e a discussão entre o inato e o adquirido) e
possíveis parolas com algumas vertentes e pensadores como Chomsky – Lacan –
20
Vygotsky, os lugares de encontro que nós, em nosso processo reflexivo, encontramos
entre o filósofo russo e a área de Aquisição de Linguagem.
Inferimos que, para além de coadunar-se e/ou contrapor-se frente às bases
epistemológicas da psicogênese (Empirismo – Racionalismo – Construtivismo –
Interacionismo), a palavra bakhtiniana interventivamente adentra o Interacionismo,
subvertendo-o com seus conceitos de dialogismo, enunciado-concreto, exotopia,
ideologia7, e, da mesma maneira, suas premissas acerca do sujeito e natureza da
linguagem, projetando a possibilidade de uma nova ótica sob o processo de aquisição:
um Interacionismo dialógico, num primeiro instante: “[...] o organismo e o mundo
encontram-se no signo.” (BAKHTIN, 2006, p. 48).
Relevância e justificativa são palavras-chave numa pesquisa científica. Estas
expressões cristalizaram-se no universo acadêmico e nos ouvidos receosos de
pesquisadores. Todavia, apesar de utilizadas em uma esfera de conhecimento formal,
são carentes da estabilidade e fidedignidade costumeiramente atribuídas à ciência.
Não obstante, consideramos haver três pontos básicos em que se sustenta a
relevância de nossa investigação: A ainda incipiente participação de estudiosos
bakhtinianos na área de Aquisição da Linguagem; o empreendimento de conceitos
bakhtinianos para uma área ainda pouco visitada por estudiosos dessa inscrição teórica
promove uma releitura refratária dos mesmos conceitos. Agrega-se a isso a questão de
que, apesar da existência de manifestações de pesquisa que coadunam conceitos da
obra de Bakhtin e o Círculo à pesquisa acerca da Aquisição de Linguagem, ainda não
se observa uma palavra eminentemente bakhtiniana sobre o tema. Ademais, debruçarse sobre a natureza da linguagem é encontrar caminhos para a compreensão do
próprio homem.
E é em caminhada, é pertinente salientarmos, que tem se mantido este trabalho
e as hipóteses e impressões aqui elencadas estão sendo estabelecidas numa jornada
7
Os conceitos elencandos foram trabalhados direta e indiretamente nessa pesquisa. Para
aprofundamento consultar Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de
Bakhtin, São Carlos-SP: Pedro e João Editores, 2009.
21
profícua e, por vezes, instável; tendo a premissa irrevogável de uma legítima pesquisa
em ciências humanas: o inacabamento.
Cabe aqui a acertada reflexão das pesquisadoras Bruna Frachetto e Yonne
Leite.
Se por um lado as teorias nos permitem ver e interpretar dados e, assim,
construir uma realidade, por outro só nos será revelado aquilo que está
em conformidade com suas premissas iniciais. Assim, ao mesmo tempo
em que uma teoria revela, ela também esconde.”
(FRACHETTO; LEITE, 2004, p. 49)
Como adquirimos a capacidade de significar, representar a realidade, forjar
mundos? Eis um dos desafios perpétuos dos estudos relacionados à linguagem. Atribuir
o qualificativo de mistério não fere os postulados de cientificidade presentes na
Linguística contemporânea. Em verdade, as conquistas das pesquisas sobre a
linguagem asseguram a assertiva de que o homem é tão da linguagem quanto esta o é
do homem. Parte de nossa pesquisa se dedicou a apresentar vertentes de relevo para
os estudos de Aquisição de Linguagem estabelecidos no século XX, em que,
precisamente, essa área do conhecimento adquire identidade e autonomia.
Ao levar em conta a premissa materialista8, no entanto, de que todos os sentidos
produzíveis e produzidos são realizados numa esteira de práticas (cumulativas) sociais,
não podemos desconsiderar o laborioso percurso realizado desde eras distantes para
entender o fenômeno da linguagem, afinal, como assevera um materialista histórico: “O
melhor modo de esclarecer um fenômeno é observar o processo de sua formação e
desenvolvimento.” (VOLOCHINOV, 2013, p. 134).
Segundo o Dicionário de filosofia Japiassu (2001), materialismo seria: “Na filosofia clássica a doutrina
que reduz toda a realidade à matéria [...]” (p. 126). Marx e Engels por sua vez realizam um
desdobramento e cunha o termo Materialismo histórico “[...] utilizado na filosofia marxista para designar a
concepção materialista da *história, segundo a qual os processos de transformação social se dão através
do conflito entre os interesses das diferentes classes sociais.” (idem). Vladimir Lênin, por sua vez,
influenciado pelo filósofo marxista Plekhanov, utiliza o termo materislismo dialético para “[...] caracterizar
sua doutrina, que interpreta o pensamento de *Marx em ter-mos de um *socialismo proletário. enfatizando
o *método dialético em oposição ao materialismo mecanicista.” (Idem). É sob essa esteira, e demais
teóricos marxistas, que surgem as reflexões materialistas nos estudos da linguagem, sobretudo em
meados da década 1960.
8
22
De fato, as primeiras manifestações de assimilação do referido fenômeno não
conceituam em suas bases uma compreensão declarada acerca da aquisição,
entretanto, ponderando três proposições básicas, verificamos que a consideração do
percurso histórico dos estudos de linguagem e a dialogia presente nestes são
necessários.
Elencamos as proposições:
1– A essencial postura dialógica necessária e constituinte da pesquisa implica
em situar sempre um enunciado em relação a outros. Nas palavras do filósofo russo, o
modo (ideal) de ser das ciências humanas é aquele que considera o sujeito falante
(BAKHTIN, [1979] 2010, p. 395), pois seu material são as enunciações/textos
produzidos por este, de forma que é impossível realizar ciência desconsiderando dois
pontos:
a) A relativa estabilidade e fidedignidade da palavra científica é forjada nos
embates e acordos com as múltiplas palavras epistemológicas num determinado tempo
e espaço, uma palavra única constituída por palavras outras... As psicanálises de
Jacques Lacan e Carl Jung, por exemplo, são releituras específicas da obra de
Sigmund Freud. Ou contrarrespostas constitutivas da cadeia dialógica, no dizer
bakhtiniano; e
b) ao passo que sua unicidade é proveniente do múltiplo/dialógico, uma vez que
os signos e os sentidos singulares se materializam numa base pré-existente de sentidos
presentes na realidade, a palavra da ciência é responsavelmente única, mas, ao
mesmo tempo de todos. Singularmente localizada, mas por outros sentidos constituída,
o que a implica e a direciona a um teor ‘modesto de verdade’ (GERALDI, 2012). O
epistemólogo Thomas Kuhn corrobora com essa percepção, ao apontar a subjetividade
presente nos interesses científicos, esclarecendo que a transformação é condição e
não apenas possibilidade no terreno científico, pois, ao apresentar-se insuficiente frente
aos dilemas da realidade, a ciência, de crise em crise, implementa revoluções
paradigmáticas. (KUHN, 1996).
23
Lembrando Amorim e Ponzio (2009, 2012), que trazem Bakhtin na cadeia
dialógica, somos alteritariamente constituídos e, sem conceber aqui algum tipo de
unilateralidade, a singularidade do sujeito se estabelece no encontro deste com o
mundo da cultura, o outro. E para o discurso da ciência, isso não é diferente.
2- Toda manifestação de pesquisa acerca da linguagem concebe, a despeito da
perspectiva ou faceta analisada, uma estabelecida conceituação sobre o que seria
linguagem e, consequentemente, qual seria sua unidade, seu objeto hipoteticamente
primo e sintetizador.
Nesse sentido, conhecer as concepções de linguagem que fundamentam as
pesquisas atuais em Aquisição da Linguagem mostra-se imprescindível, pois concede
subsídios para compreender as especificidades constituintes deste processo e
elementos provenientes do mesmo, como a concepção de sujeito falante, por exemplo.
Por último, uma extensão do segundo, 3 – De certa forma, os estudos de
linguagem intentam desvelar a própria natureza do sentido produzido nas enunciações.
Essa dinâmica de entendimento de como e do que é constituído o exercício da
linguagem fomenta um corpo analítico sobre as propriedades enunciativas externas dos
atos de fala e, também, consequentemente, das internas; o que, aliás, têm sido uma
das pedras de toque dessa área de pesquisa9.
A presente dissertação, pois, se organiza em três capítulos principais que
intentam, progressivamente, esboçar a palavra bakhtiniana sobre o assunto. No
primeiro capítulo, Aquisição da Linguagem: Dilema Histórico, realizamos um panorama
histórico sobre os estudos da linguagem, haja vista a necessidade de contextualização
para entender a Aquisição enquanto área de estudos. De forma que são elencadas as
escolas principais da Aquisição, e o suporte filosófico-científico em que estão
ancoradas.
9
Discussão aclamada nos estudos linguísticos: Qual seria a identidade da linguagem na mente? Seria
universalmente subsidiada por um aparato gramatical, como afirmavam os mentalistas de Port Royal ou
organizada de maneira particular frente às representações possíveis em cada cultura, conforme SapirWhorf? (MOURA; CAMBRUSSI, 2008). Um pouco de reflexão e análise demonstram que ambas
posições apresentam-se insuficientes, o que discutiremos posteriormente.
24
Já no segundo capítulo, Estudos da Aquisição da Linguagem: Diálogos, um
breve percurso acerca da filogênese e ontogênese da linguagem inaugura a seção.
Diálogos possíveis são testados entre Bakhtin e Chomsky, por exemplo. De um diálogo
entre Vygotsky e Bakhtin vislumbramos a possibilidade de uma psicogênese dialógica,
fundamentada no encontro do interacionismo vygotskyano com a teoria dialógica.
O terceiro e último capítulo tem a difícil tarefa de apresentar um eixo
epistemológico forte e variado em manifestações, o Interacionismo(s). A identificação
teórica entre o interacionismo e as produções do Círculo e de Bakhtin possibilitaram
repensar essa esteira filosófica das teorias de aprendizagem, de tal forma a estender
uma nova versão: o interacionismo dialógico. Um viés bakhtiniano da referida corrente,
Daí o título do Capítulo 3: Por uma Aquisição Dialógica da Linguagem, pois neste
capítulo levantamos a hipótese de que a presença bakhtiniana nas discussões
interacionistas, promovem uma substância para repensar também área de Aquisição da
linguagem de mesma base. São as concepções de linguagem, sujeito e natureza do
sentido as regiões que justificam a relevância e possibilidade da Aquisição dialógica da
linguagem.
25
1- CAPÍTULO 1 – AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM: DILEMA HISTÓRICO
A Aquisição da língua materna, milagre a que se assiste cotidianamente
com perplexidade e encantamento e cujos momentos cômicos são
habitualmente registrados na memória anedótica da família, constitui um
enigma teórico que tem desafiado as diversas tentativas de solução
empreendidas [...].
GOLDGRUB, 2001
[...] um aspecto importante e, ao mesmo tempo, desafiador dos estudos
que investigam o desenvolvimento linguístico da criança é que não
existe uma teoria ou abordagem única que seja capaz de fornecer
explicações consistentes para todos os aspectos do seu
desenvolvimento linguístico. Ao contrário, várias são as perspectivas
teóricas adotadas que contribuem, em alguma medida, para uma melhor
compreensão de como se dá esse impressionante processo.
QUADROS, 2008
A história da Aquisição, assim como qualquer área de estudo em ciências
humanas, engendra-se numa multiforme manifestação de pesquisas que, certamente,
transcende seu escopo e ponto de partida. É coerente afirmar que, basicamente, três
regiões de pesquisa promovem a emergência de seu surgimento: o desenvolvimento
das pesquisas sobre a linguagem, a estruturação da investigação do comportamento e
mente humanos por meio da psicologia, bem como o avanço das neurociências. Tais
aspectos constituem o programa científico que fundamenta o nascedouro da aquisição
da linguagem enquanto área do saber. Isto é confirmado pelo papel imprescindível da
psicolinguística, já propagada na terceira década do séc. XX.
Essa dinâmica entre linguagem e estudos da mente-cérebro fora sempre de mão
dupla (BALIEIRO JR., 2003), enquanto a psicologia do séc. XIX ansiava encontrar nos
estudos de linguagem (possivelmente relacionada ou constituinte da mente) um corpo
instrumental para um dos maiores dilemas sofridos pelos estudos relacionados à
filosofia e neurociências: a relação entre cérebro e mente, o que formaria uma
psicologia da linguagem, a Linguística, por sua vez, lograva encontrar nos estudos de
comportamento, da anatomia e funcionamento do cérebro ancoragens para entender o
material semiótico do discurso interior, entre outras questões.
26
Essa problemática afeta intensivamente os estudos contemporâneos que
investigam a relação complexa para a produção da linguagem com aparente
permanência para os passos futuros da ciência. Nestes termos, afirma Morato:
Praticamente terminada a década do cérebro, ainda não podemos
prognosticar qualquer acordo acerca da inter-relação entre linguagem e
cérebro. [...] as relações que ambos mantêm entre si – e na qual
seguramente intervêm a cultura, a história, a subjetividade [...]” (2003, p.
144).
Caso semelhante fora à impossibilidade acordada e disseminada no final do séc.
XIX de que se estudar a origem da linguagem não era salutar por não ser científico, nos
termos positivistas, obviamente. De maneira equivalente, a relação entre linguagem
como prática cultural e a linguagem enquanto faculdade humana (simbólico x orgânico)
engendrada num debate ainda maior, o problema mente-cérebro, promoveu e ainda
promove muitas discussões.
Até o início do séc. XIX sabia-se muito pouco sobre o cérebro e seu
funcionamento.
A frenologia10, concebida por Franz Gall, foi reconhecida como a
primeira manifestação formal de pesquisa, que objetivava cuidar da anatomia do
encéfalo e suas correlações com o comportamento de maneira dedutiva. O referido
século testemunhou um grande salto nos estudos sobre o aparelho cerebral, pois até
então só havia confabulações desmesuradas sobre o órgão mais complexo do corpo
humano, de forma que essas conquistas sedimentaram o nascedouro de um patamar
mais científico de estudos, que seria conhecido, posteriormente, como neurociências.
Certamente, podemos inferir que o pragmatismo científico estabelecido em meados
deste século otimizou as pesquisas nessa área.
Seria, segundo Maria Carlota Rosa (2010, p 178), “Proposta de localização, em áreas específicas do
cérebro, de características do comportamento humano, como a esperança ou a benevolência.”
10
27
Figura 1 - Anatomia e Áreas funcionais do Cérebro. Disponível em: <http://blog.tauedu.org/anatomyand-functional-areas-of-the-brain/#axzz33sDOoltY >. Acesso em: 10 Out. 2013.
A descoberta da área de Broca, em 1861, por Pierre Paul Broca, as contribuições
de Carl Wernick ao identificar outra área que levaria seu sobrenome em 1876, são
pontos altos da consolidação desses estudos. Tais conquistas que hoje são dirimidas
com certa clareza e naturalidade, naquela época, segundo Gazzaniga (2006) “fizeram
tremer a terra”. Um nome não menos emblemático para os trabalhos que investigam o
cérebro é o do espanhol Santiago Rámon Cajal, ganhador do prêmio Nobel de 1906,
sendo “[...] o primeiro a identificar não somente a natureza unitária do neurônio, mas
também a transmissão elétrica em uma única direção [...]” (p. 24). Esses achados
promoveram uma guinada nas ciências da cognição, que se frutificou em muitas
vertentes e interfaces, como é o caso da psicolinguística.
28
Se, por um lado, a esteira epistemológica da área de aquisição demonstra-se tão
vária e imbricada, por outro, fica evidente não apenas a necessidade de tais
referências, como também sua legitimidade, tendo em vista o caráter múltiplo da própria
linguagem e dos estudos sobre ela pretendidos. Como afirma Bakhtin, sobre a pesquisa
em ciências humanas: “São pensamentos sobre pensamentos, vivências das vivências,
palavras sobre palavras, textos sobre textos.” (BAKHTIN, 2010, p. 307). O trabalho nas
humanas, assim percebido, seria uma espécie de cotejo sensível e crítico dos sentidos
(enunciações, textos, divagações, lapsos...) existentes. Pois a própria linguagem e os
sentidos que a constituem manifestaram semelhante dinâmica em sua formação, são
oriundos da história humana, do seu legado cultural e biológico.
Avançando, é mister dizer que a origem da área de estudos sobre Aquisição da
Linguagem está amalgamada ao desenvolvimento da Psicolinguística. De fato,
inicialmente, podemos considerar os estudos aquisicionistas uma ramificação que, aos
poucos, conquistou autonomia da Psicolinguística.
A ciência psicolinguística surgiu pelo afã de, especificamente, entender a relação
entre linguagem e cérebro. É considerada como a única ciência estabelecida numa
conferência científica, no Seminário de Verão de Pesquisa em Ciência Social na
Universidade de Cornel, em 1951, mais precisamente.
A corrente behaviorista, que será retratada mais detidamente adiante, foi o
principal esteio para as pesquisas nesta área, promovendo estudos de cunho empirista
que analisavam os processos de codificação e decodificação na comunicação.
Atualmente, a psicolinguística detém um amplo arcabouço de pesquisas advindo de
reformas consideráveis, consequentes de dois abalos principais: a revolução instaurada
pela teoria Gerativo-Transformacional de Noam Chomsky, na década de 1960, e a
ampla envergadura e desenvolvimento das ciências da cognição. Vale salientar a
presença significativa da Neurolinguística, que tem demarcado suas inquietações em
pontos semelhantemente difíceis: as fronteiras entre cérebro e linguagem, bem como
consciência e linguagem, sobretudo em pesquisas sobre afásicos e outras patologias.
Informalmente, os estudos de Aquisição de Linguagem remontam ao século XIX,
em que as pesquisas fundamentavam-se em descrições paulatinas das conquistas
29
verbais obtidas nos primeiros anos de vida do infante ou em casos reconhecidos de
crianças selvagens. Outra prática que, a partir do século XX fora implementada com
mais intensidade, foram as pesquisas transversais que, sob as impressões empiristas,
analisavam o desenvolvimento das manifestações verbais num número maior de
sujeitos por meio das reiterabilidades enunciativas passíveis de experimentação. De
forma que Ingram:
[...] divide os períodos de estudos sobre a aquisição da linguagem em
três grandes momentos: o período dos estudos de diário (1876-1926), o
período dos estudos com amostras amplas (1926-1957) e o período
atual, de estudos longitudinais (a partir de 1957). (INGRAM, 1989)
Pode-se assegurar que a incipiente área, em meados do séc. XX desenvolveu-se
amplamente, sobretudo pela força teórica da Gramática Gerativo-Transformacional
chomskyana, de tal forma que a região epistemológica das ciências da cognição da
qual é tributária, atualmente, repensa-se e reconstrói-se frente ao vigor e avanços dos
estudos de Aquisição de Linguagem. Sobre isso, Scarpa ajuíza:
A Aquisição da Linguagem é, pelas suas indagações, uma área híbrida,
heterogênea ou multidisciplinar. No meio do caminho entre teorias
lingüísticas e psicológicas, tem sido tributária das indagações
advindas da Psicologia (do Comportamento, do Desenvolvimento,
Cognitiva, entre outras tendências) e da Lingüística. No entanto, na
contramão, as questões suscitadas pela Aquisição da Linguagem, bem
como os problemas metodológicos e teóricos colocados pelos próprios
dados aquisicionais, têm, não raro, levado tanto a Psicologia (sobretudo
a Cognitiva) como a própria Lingüística a se repensarem e a se
renovarem. (SCARPA, 2001, p. 204) [ grifos nossos].
.
No que concerne à língua materna, poderíamos, num primeiro momento, elencar
as manifestações teóricas mais influentes para a compreensão da dinâmica da
aquisição:
o
impacto
behaviorista,
Chomsky e
sua
Gramática
Universal,
o
construtivismo piagetiano e o interacionismo oriundo de Vygotsky.
Em alguns parágrafos acima, afirmou-se que as pesquisas em Aquisição
tomaram forma e independência apenas no século XX. Tomam-se forma na primeira
metade deste século, concomitante ao surgimento da Linguística, a partir da segunda
metade instaura-se uma revolução pela emblemática produção científica de Noam
Chomsky.
30
A produção das referidas bases epistemológicas possuem em si um vasto e
intricado percurso de estudos que, de fato, não são acessados inteiramente por
trabalhos dessa natureza. Inicialmente, pela extensão e complexidade, outro fator é a
natureza de nossa pesquisa, que valora e instaura dois pontos como referenciais de
partida e chegada: o fenômeno da Aquisição de Linguagem, por um lado, e o
pensamento bakhtiniano, por outro. Vale a pena, no entanto, considerarmos o esteio
epistemológico que forjou e ainda fundamenta as pesquisas em Aquisição de
linguagem: o Racionalismo, o Empirismo e o Construtivismo.
Antecipamos o percurso declarando, por meio de numa inspiração materialista,
que em seu desenvolvimento diacrônico as ideias filosóficas se correlacionam entre si e
são afetadas pelas dinâmicas sociais. Cada época, dessa forma, constrói ou ocasiona
uma prática filosófica que se detém sobre problemas correspondentes.
Em campos eminentemente opostos se encontram as duas primeiras
manifestações filosóficas: enquanto o Racionalismo, desenvolvido por filósofos como
Descartes (XVI), Spinoza (XVII) e Leibniz (XVIII), promulgava o primado da razão e do
raciocínio puro (metafísica) como a única forma livre e isenta de dirimir a realidade, o
Empirismo, por sua vez, via na percepção acurada e repetitiva das sensações e
vivências a ponte viável e acessível às realidades interiores e exteriores, tendo em vista
que, segundo esta corrente, fora as vivências externas não há meio (confiável e
científico) de entender os fenômenos da realidade. Francis Bacon (XVI e XVII), John
Locke (XVII) e David Hume (XVIII) destacaram-se na defesa e desenvolvimento do
Empirismo.
Estas tendências de pensamento, em verdade, bebem de discussões filosóficas
pré-socráticas: a visão dinâmica e cíclica de Heráclito (535 a.C. – 475 a.C.), que valora
a experiência frente à volubilidade constante da realidade e, em contrapartida, a
perspectiva da identidade imutável das vivências apercebidas pela razão humana, bem
como as relações de reciprocidade em todas as atividades a despeito do tempo,
conforme Parmênides (530 a.C. – 460 a.C.).
O Empirismo fundamentou aquela que seria a vertente mais forte dos estudos
sobre o comportamento e aprendizagem, o que inclui a linguagem, na primeira metade
31
do século XX: a escola behaviorista. Já do Racionalismo, temos um desdobramento
que contribuiria em muito para as reflexões aquisicionistas: a teoria gerativotransformacional de Noam Chomsky.
Se apresentamos a relação entre Racionalismo e Empirismo como pendular, de
extremos, a terceira via – o Construtivismo – intenta ser o lugar de intermédio: nem o
extremo do indivíduo (razão), tampouco o extremo do ambiente exterior. Um
psicogeneticista e epistemólogo suíço, Jean Piaget (1896 – 1980), foi o responsável
pela tentativa de forjar um constructo teórico de equilibrada ligadura entre indivíduo e
ambiente e, por meio das reflexões sobre a aprendizagem, promover desdobramentos
na ciência da educação.
Alguns pesquisadores reúnem, na mesma escola, outros pesquisadores como o
parisiense Henry Wallom (1879 – 1962) e o bielo-russo Lev Vygotsky (1896 – 1934),
que também desenvolveram teorias psicogenéticas que consideravam não apenas a
realidade exterior como também a relação entre esta e a base orgânica de cada
indivíduo. Vygotsky, em especial, inaugura um pensamento que, para muitos, como
trataremos mais à frente, em verdade, é autônomo (para outros uma extensão) ao
Construtivismo: o Interacionismo.
É prudente esclarecer que a dinâmica da ordem e apresentação dos pontos
primordiais de teorias relacionadas à Aquisição da linguagem em nosso estudo não é
sistemática cronologicamente, tampouco generalizante no que diz respeito às
especificidades de cada escola teórica. Por alguns motivos básicos: levamos mais em
conta a afinidade filosófica, para estabelecer a ordem, que a sequência temporal entre
uma teoria e outra (por isso a proximidade do conexionismo ao behaviorismo). Já as
escolhas de determinados assuntos e conceitos em detrimento de outros se justifica
pela identidade e objetivo de nossa discussão, por vezes mais próximas da filosofia da
linguagem (sobretudo a bakhtiniana) que da própria área de Aquisição de Linguagem.11
Tais frentes psicogenéticas, como dissemos há pouco, subsidiaram uma gama
11
Parte considerável dos estudos de Aquisição se concentra na estrutura do fenômeno da linguagem,
tanto na estrutura da língua, como na estrutura cognitiva do falante. Essas discussões são
imprescindíveis; contudo, discutir a legítima natureza daquele e daquilo que significa e o instrumento para
significar, a linguagem, é semelhantemente necessário, mas, por vezes, esquecido.
32
diversificada de estudos no século XX, dos quais destacamos, por hora, os principais,
em síntese, e em outras seções e capítulos, mais detalhadamente.
O behaviorismo emparelha o fenômeno da linguagem a qualquer outro domínio
do comportamento humano. Sob a égide de que, além do comportamento exterior não
há região da psique ou mente passíveis de estudo e descrição, estabelece-se a
premissa de que o indivíduo acessa e assume aprendizados por meio de estímulos e
reforços erigidos por companheiros de espécie maturados. A linguagem verbal seria,
para o comportamentalismo, correlata às outras formas de conhecimento e apreendida,
consequentemente, via estímulo exterior, tendo assim um caráter imitativo.
Se no comportamentalismo radical verifica-se o primado do exterior, na
revolucionária resenha A review of B. Skinner’s Verbal Behaviour (1959), de Noam
Chomsky, o pêndulo é direcionado para o lado contrário, a linguagem verbal seria uma
manifestação genética com morada em região específica no cérebro. Os fatores
exteriores presentes na vida da criança teriam apenas a propriedade de ativar seu
criativo interior: um dispositivo de aquisição de linguagem de natureza sintática. “A
aquisição da linguagem é um processo que apresenta padrões universais que são
acessados a partir do ambiente [...] determinada por princípios linguísticos inatos”
(CHOMSKY, 1988, p. 24).
As ideias de Piaget encontrar-se-iam, pretensamente, num intermédio entre os
radicalismos entre exterior (adquirido) e interior (inato). Ao estabelecer 4 estágios
básicos para psicogênese do indivíduo, o autor vê nos conceitos de assimilação e
acomodação ferramentas para dirimir as relações estabelecidas entre o sujeito,
organismo e conhecimento (QUADROS, 2008, p. 84). Já com base materialista, Lev
Vygotsky apresenta-se com uma perspectiva peculiar em relação aos demais. Os
fatores socioculturais, para o russo, são tão relevantes que seriam determinantes no
desenvolvimento cognitivo, afirmando, por exemplo, que, em determinado estágio, o
próprio material do pensamento seria semiótico, este reconhecidamente calcado no
exterior. O alteritário (social) é tão imprescindível que apenas este pode, durante o
desenvolvimento da criança, ponteá-lo do conhecimento que possui (real) e o
33
conhecimento que pode obter (potencial), desempenhando, assim, papel de
intermediação.
Abaixo
um
Quadro12
com
as
etapas
básicas
no
processo
de
Aquisição/Aprendizagem/Desenvolvimento da Linguagem, período que constituiu, e
ainda constitui o insumo para a maior parte das pesquisas na área de aquisição:
Figura 2 – Etapas da Aquisição da Linguagem
1.1 – Uma Caixa fechada ou Behaviorismo Radical
Afluente de uma longa crise na Psicologia, entre a psicologia objetiva (externa) e
a psicologia subjetiva (interna), o Behaviorismo apresenta em seu decurso um mote
filosófico bem determinado. Ao passo que as atividades da psicologia da época
12
Este Quadro é uma adaptação do estabelecido por PEDROSO FS; ROTTA, NT. Transtornos da
linguagem. In: ROTTA NT; OHLWEILER L; RIESGO RS. Transtornos da aprendizagem - abordagem
neurobiológica e multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed, 2006.
34
consideravam a ideia da mente e instrumentalizavam a introspecção como mecanismo
de pesquisa, as investigações behavioristas se debruçavam sobre a “realidade material”
e experimentável, com a premissa positivista de que, no que se reporta ao
comportamento, o que não pode ser observado não pode ser analisado e, portanto, não
se qualifica como científico, como é o caso da mente, por exemplo.
A insatisfação com a psicologia implementada naqueles tempos somada ao
anseio por cientificidade e resultados práticos formou um programa teórico forte,
materializando-se
em
três
manifestações/gerações
científicas
principais:
a
metodológica, a radical e a social13. A segunda vertente, o behaviorismo radical, pela
relevância e valor histórico, será privilegiada em nosso texto.
As raízes
comportamentalistas, no entanto, não são estabelecidas no século XX, em ambiente
norte-americano, como alguns asseveram. Apesar de alçar seu apogeu científico com o
psicólogo estadunidense Burrhus Frederic Skinner, o que foi denominado como
behaviorismo (radical) pragmático e generalizante, os estudos dessa área tiveram início
nos princípios positivistas do fisiologista russo Ivan Pavlov (1849-1936), que
estabelecera uma psicologia “efetivamente” científica, sobretudo no que concerne a
uma teoria do aprendizado, com o conceito de reflexo condicionado.
John Watson, ledor e discípulo teórico de Pavlov, é o responsável pelo marco
que dá início aos estudos comportamentalistas com o artigo Psicologia: como os
behavioristas a veem (1913), e assim define a vereda behaviorista:
“A Psicologia, tal
como o behaviorista a vê, é um ramo puramente objetivo e experimental da ciência
natural. A sua finalidade teórica é a previsão e o controle do comportamento.” (1953, p.
158). Com esse corpo conceitual, Watson estabelece o behaviorismo metodológico.
São
justamente
as
tarefas
de
estender
e
extremar
os
princípios
comportamentalistas as metas de B.F Skinner. Comprovar cientificamente a
aplicabilidade do corpo teórico de Watson era uma de suas metas e, com esse afã,
Com Watson, o behaviorismo metodológico “[...] concentra-se na busca de uma psicologia livre de
conceitos mentalistas e de métodos subjetivos e que possa reunir condições de prever e de controlar”. Já
o behaviorismo radical de Skinner preceitua que “[...] estudar o comportamento é fazer uma análise
funcional do comportamento.”, de forma que qualquer questão alheia à realidade material não possui
valor científico. Por último, o behaviorismo social, desenvolve-se com Arthur Staats, que considera as
escolas anteriores como “sistemas fechados e, portanto, reducionistas. Dessa forma, o behaviorismo é
direcionado a uma concepção mais humanística do comportamento.” Assim, abre-se a relações com
outras vertentes das ciências humanas. (TERRA, 2003).
13
35
emprega meios como a “Câmara Operante” (ou Gaiola de Skinner) utilizada para
observar e condicionar o animal que a ocupava. Logrou com esses experimentos o
desenvolvimento de uma metodologia, o condicionamento operante. Com ela,
literalmente, a escola behaviorista encontrou suporte para legitimar sua crença de que,
à semelhança dos animais, o aprendizado humano se dá por “respostas” oriundas de
“estímulos” externos.
O papel do cientista ou professor, no caso de ambientes educacionais, é de
primeiro considerar o status de “caixa-preta” de cada indivíduo, pois além de conceitos
como mente – consciência – razão serem arredios a uma postura rigidamente científica,
os estudos laboratoriais “provaram” que a aprendizagem se relaciona à estimulação
exterior, em nada inata. Em segundo lugar, e consequente do primeiro, com um corpo
metodológico definido, o cientista tem condições de participar, ou mesmo determinar,
interventivamente, no processo de aprendizagem dos indivíduos com instrumentos de
“reforço”, tendo em vista que, implementando uma cadeia direcionada de estímulos, o
pesquisador pode objetivar e conseguir determinado assentimento de aprendizagem.
O behavior (comportamento em inglês) é a palavra fundamental para a teoria
skinneriana, o ponto epistemológico de partida e a pragmática finalidade científica de
chegada. Ingrid Finger complementa e sintetiza:
Para este grupo de teóricos, o comportamento é a resposta dada por um
determinado organismo a algum fator externo que o estimule, cuja
resposta pode ser observada, descrita e quantificada [...] Partindo da
crença de que todos os tipos de aprendizagem são hábitos que resultam
da formação de associações entre estímulos e respostas – e reforços -,
gerados na interação dos organismos com o meio no qual estão
inseridos [...] (FINGER, 2008, p. 18-19).
A aprendizagem se reduziria ao exercício de recompensa e punição. Diante de
uma perspectiva comportamentalista, a aquisição da linguagem verbal não ficaria em
condições muito favoráveis. Num primeiro momento, por partilhar de uma concepção de
linguagem reducionista e, portanto, insuficiente, de percepção da linguagem, sobretudo
como equivalente a qualquer outra manifestação comportamental. Apesar de, no
entanto, valorar a linguagem verbal, como expresso no excerto mais à frente, o teórico
estadunidense Skinner não concebe a linguagem, em nosso ponto de vista, em sua
36
verdadeira realidade: “A maior parte do nosso comportamento é complexa demais para
ter ocorrido pela primeira vez sem tal ajuda verbal” (SKINNER, apud FINGER;
QUADROS, 2008)Assim afirmamos, pois a relevância ofertada por Skinner à linguagem
o é, sobretudo, em seu nível estrutural, ao passo que “[...] a redução da linguagem a
comportamento – em termos genéricos – faz com que Skinner passe por alto as
propriedades mais específicas do signo.” (GOLDGRUB, 2001, p. 36).
O Comportamentalismo fora tão impactante que imperou e, além disso, serviu de
fundamento para parte considerável das pesquisas relacionadas à mente-cérebrolinguagem, como o Conexionismo e a já citada Psicolinguística, uma vez que
estabelecera não apenas um corpo teórico bem como metodológico para a pesquisa,
dita científica, em ciências humanas. Ao mesmo tempo, apesar de seus pressupostos
filosóficos serem postos em cheque desde fins da década de 1960 com Chomsky, o
Behaviorismo conserva sua influente posição no mundo científico, como se vê nas
neurociências atualmente.
É claro que os teóricos estabelecem suas visões num panorama filosófico e
político-econômico tão distintos que não poderiam ser emparelhados sem prudência,
mas se confabulássemos uma parola entre o eminente representante da escola
behaviorista e o filósofo da dialogia, Bakhtin, teríamos rinha certa, supomos.
Inferimos que Bakhtin, em relação à realidade pendular entre Empirismo e
Racionalismo, transcrita um pouco acima, não optaria por Parmênides, tampouco
Heráclito isoladamente, mas sim por um entre-lugar dentre as equidistantes posições.
Apesar de aparentemente incoerente, conceitos presentes na obra do filósofo russo,
como enunciado concreto e dialogismo, deixam claro sua posição de equilíbrio:
enunciar implica, necessariamente, considerar os sentidos já produzidos e, em
concomitância, o ato de significar prescreve a irreiterabilidade do acontecimento. As
relações de similaridade, conforme Parmênides, amalgamadas às relações de sempre
presente novidade das vivências, como identificado por Heráclito. Seria o primado do
Ato, na condição de acontecimento único, fundado nos elos infindáveis dos
acontecimentos passados e, por inferência, futuros também. Essa percepção, vale
salientar, transcenderia o fenômeno da linguagem verbal, permeando a multiplicidade
das possíveis vivências.
37
De forma que, enquanto Skinner, com sua cientificidade positivista, observa as
atividades comportamentais de determinado indivíduo, buscando as generalizações em
suas ações, os estímulos que lhes deram origem, os resultados e formas de otimizar o
desenvolvimento do observado, é a singularidade impressa em cada atividade – sua
historicidade, seu conteúdo ideológico-vivencial, que gritam o sujeito e seus outros, os
pontos determinantes de análise para Mikhail Bakhtin.
O Empirismo, em seu modo de ser e de fazer ciência, é exitoso em questões
pragmáticas, desenvolvendo, em alguns aspetos, as pesquisas em ciências humanas.
Mas, por outro lado, acaba por aprisionar as ciências humanas em suas cadeias
epistemológicas, é o caso da justificativa psicogenética atrelada ao Behaviorismo.
Neste caso, como vimos, há um rigoroso método e aplicação, o corpus, todavia, apesar
de tantos predicados e especificidades, não possui o humano.
1.2 - Jean Piaget: Entre o simbólico e o orgânico
É adaptando-se às coisas que o pensamento se organiza a si próprio e é
organizando-se a si próprio que ele estrutura as coisas.
Piaget, 1979
“Dos mais importantes... Considerado por alguns como o Einstein da psicologia
[...]” palavras de Yves de La Taille, Professor Titular do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo e reconhecido pesquisador em teorias psicogenéticas14,
acerca de Jean Piaget, o suíço que, em 83 anos de vida, com uma produção científica
de mais de 70 livros, conseguiu construir um edifício teórico forte e influenciador: a
epistemologia genética.
Em função da especificidade e pretensão de nossa pesquisa, nos atentaremos
mais detidamente à percepção piagetiana sobre a linguagem, dito de outro modo, no
papel da linguagem em sua descrição acerca do processo de aprendizagem. Uma
síntese de sua produção científica, todavia, é bem-vinda.
14Documentário
Jean Piaget, por Yves de La Taille.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RuShcmUC-cc>. Acesso em: 13 Jul. 2014.
38
As justificativas psicogenéticas no início do séc. XX circunscreviam-se apenas à
postulada pela psicologia social, além da visão reducionista do comportamentalismo,
herança positivista. Nesse cenário vívido, Piaget lança mão de sua formação
acadêmica em biologia e psicologia, com a finalidade de construir uma visão científica
sobre o processo de desenvolvimento e aprendizado humanos, literalmente uma
epistemologia da gênese e caminhada do aprendizado humano que não se reduzisse, a
exemplo da postura conexionista acima exposta, à prática de atendimento a um dos
extremos inato x adquirido, mas a uma atitude equilibrada entre estes. Em virtude da
espetacular transformação vivenciada pela criança em seus primeiros anos de vida,
esta fora a fase eleita pelo teórico suíço como laboratório. Jacqueline, Lucienne e
Laurent, seus filhos, tornam seu vigor de pesquisa integral: filhos ao colo – filhos no
laboratório.
A Epistemologia genética seria uma espécie de filosofia da evolução da
construção do conhecimento, como é que os homens constroem conhecimento, qual a
gênese do conhecimento no humano e desenvolvimento da inteligência são
inquietações decisivas para ela. Uma experiência entre uma estrutura biológica latente,
“tendência natural à organização e à adaptação”, e seu meio natural.
Para Piaget, a interação é realizada pela ação da criança em consequência dos
desequilíbrios oriundos de seus encontros inéditos e desavisados com o meio em que
vive. O anseio por equilíbrio ocasiona um desenvolvimento cognitivo que conquista,
bem como potencializa a aprendizagem de tal forma a gerar novos desequilíbrios, no
sentido de ampliar a envergadura de possibilidades de percepção e assimilação da
realidade.
O indivíduo quer conhecer o mundo, característica distintiva do humano em
relação aos demais seres vivos: o sujeito do conhecimento para Jean Piaget. Essa
dinâmica sempre e, necessariamente, é processual. Conforme se dão os encontros do
indivíduo com o meio (entre desequilíbrios e equilíbrios), progressivamente, este, em
sua busca de equilíbrio, migra para um estágio ainda mais complexo do
desenvolvimento, sem jamais saltar uma das referidas etapas.
As etapas seriam cumpridas por meio de esquemas que, por sua vez, seriam:
[...] esquema é uma estrutura cognitiva, ou padrão de comportamento
ou pensamento, que emerge da integração de unidades mais simples e
39
primitivas em um todo mais amplo, mais organizado e mais complexo.
Dessa forma, temos a definição que os esquemas não são fixos, mas
mudam continuamente ou tornam-se mais refinados. (PULASKI,1986)
O Quadro a seguir15 ilustra esse processo na visão do epistemólogo suíço:
Figura 3 – Processo de Aprendizagem para Piaget
É justamente nessa lógica que assistimos à valoração da ideia de construção
para Piaget, a Embriogênese da mente é uma cadeia complexa e progressiva do
desenvolvimento humano, daí o termo Construtivismo,16 fruto de sua epistemologia
construtivista.
Didaticamente, o teórico suíço, expressa tais fases em quatro etapas:
1º período: Sensório-motor (0 a 2 anos):
15
16
Organizado pelo pesquisador.
A partir da concepção piagetiana, o termo construtivismo foi utilizado em diferentes momentos dentro
da área da educação, assumindo diferentes sentidos, por vezes muito distantes do que Piaget havia
pensado. Algo semelhante aplica-se à definição de interacionismo, como veremos no Capítulo II. Nos
estudos bakhtinianos a mesma confusão, entre concepção e aplicabilidade, ocorreu na viralização e
perda de identidade do conceito de gêneros do discurso.
40
Em que a criança realiza os primeiros esquemas de assimilação.
[...] é o período da "inteligência prática" porque é uma fase do
desenvolvimento cognitivo onde a criança não usa a linguagem,
emprega apenas as suas ações e percepções, daí a razão da
denominação desse primeiro estágio, pois é a ação e a percepção que
estimulam o desenvolvimento das estruturas mentais. (PÁDUA, 2009, p.
29)
São manifestações “primitivas”, como sugar e apalpar, que constituem esquemas
iniciais a serem cumpridos pela criança. Acerca disso Ramozzi-Chiarottino faz um
interessante comentário:
[...] o esquema de sugar é a primeira forma de agir sobre o mundo, a
primeira forma de organização do real, constituindo-se, ao mesmo
tempo, no primeiro ato assimilador (ou ato significador para o grande
semanticista Tullio De Mauro) e no primeiro juízo prático da criança.
(2008, p. 110-111)
A perceptibilidade da realidade interior e exterior, para Piaget caótica, dos
primeiros meses de vida, seria dirigida por essas formas orgânicas de atividade17.
2º período: Pré-operatório (2 a 7 anos):
A maturidade desse primeiro período oportuniza o surgimento de um fenômeno
revolucionário. Se até então houve um progresso em questões motoras e de
inteligência, agora a criança vivencia a realidade para além da própria realidade: a
função simbólica. Sua percepção da realidade transcende o aspecto imagético, a
linguagem funda as variadas versões em contraponto do fixo, é possível ver sem estar,
estar sem ver, ter sem tocar. O período em que o indivíduo apreende a significar o
mundo. Período em que, segundo Piaget, surgem: “[...] pensamento com linguagem, o
Num panorama diferente, cientistas finlandeses sugerem que: “[...] o cérebro do feto é capaz de
aprender sons antes de nascer e que mantém a memória desses sons depois do parto.” Disponível em:
<http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/2013/08/aprendizado-no-utero> Acesso em: 15 jul. 2014. A própria
atmosfera de sentidos contamina o sujeito potencialmente enunciador: “Desde o nascimento, o bebê é
mergulhado num universo significativo por seus interlocutores básicos, que atribuem significado e
intenção às suas emissões vocais, gestos, direção do olhar. Até mesmo os diversos tipos de choro são
"interpretados", "significados" e "classificados" pelo adulto interlocutor.” (SCARPA, 2001, p. 9)
17
41
jogo simbólico, a imitação diferenciada, a imagem mental, e as outras formas de função
simbólica". (PÁDUA, 2009).
Uma característica interessante presente nesses dois períodos iniciais é a
presença de jogos e de uma atmosfera lúdica como instrumentos de progresso para a
aprendizagem. As brincadeiras familiares são importantes para esse desenvolvimento.
O psicólogo cognitivista norte-americano Jerome Bruner (1915-), tributário das
conquistas vygotskyanas sobre o atos gesticulatórios da criança no primeiro ano de
vida e do construtivismo, aponta a atenção compartilhada entre adulto e criança nessas
atividades lúdicas como imprescindível para o desenvolvimento. Na releitura feita dos
estágios piagetianos, Ester Mirian Scarpa sintetiza o pensamento de Bruner:
Nos jogos descritos, a criança aprende uma espécie de embrião, na
ação e interação, em fases pré-verbais, do que mais tarde emergirá
como marcação linguística. [...] O que é gesto ou balbucio da criança
numa situação de troca comunicativa será verbal em etapas posteriores,
por meio, neste caso de flexão verbal de tempo e uso de partículas
temporais ou aspectuais. (2001, p. 223)
No artigo Relações entre Bakhtin e Bruner nos estudos em Aquisição, as
pesquisadoras Hilário, Paula e Bueno complementam:
[...] o jogo inclui o compartilhar de pressupostos, possibilitando a
antecipação de respostas, e a integração de sub-rotinas em rotinas mais
complexas. O espaço do jogo é entendido como um espaço de sentido,
uma fonte de aquisição do diálogo antes mesmo da estruturação da
linguagem propriamente dita. Trata-se justamente de um lugar de
estruturação da atividade linguageira. (DEL RÈ et al. 2014, p. 37).
3º período: Operações concretas (7 a 11 ou 12 anos):
Para Piaget, um percurso a ser empreendido por todos os seres humanos até o
início das Operações concretas é a ruptura do eu. O egocentrismo é uma das forças
propulsoras essenciais que arregimentam as etapas iniciais da vida. Ela é expressa em
todos os níveis comportamentais do indivíduo que apresenta uma desconsideração do
alheio em favor de seu status centralizador. O esvaziamento do ego é peça chave para
a percepção da realidade exterior e exercício da função simbólica ou semiótica. Além
disso, não apenas a capacidade de representar é desenvolvida, como também a
42
gerência de ação mental sem vínculo ou suporte físico exterior. É possível, agora,
deduzir e projetar relativamente o início e fim de determinado atividade ou problema.
4º período: Operações formais (11 ou 12 anos em diante):
Ápice dos estágios psicogenéticos, o quarto estágio, configura-se como a
equilibração dos próprios esquemas de aprendizagem. Não há uma estagnação do
aprender, a ideia de progressivo equilíbrio (assimilação/acomodação)/ desequilíbrio é
sempre presente. Há uma cristalização do formato e natureza do esquema de
aprendizagem.
Pelo resto da vida, suas novas experiências serão processadas racionalmente
sob um mesmo padrão mental. “O operatório-formal permite trabalhar com o
pensamento hipotético-dedutivo e estabelecer relações entre diferentes teorias.” De
forma que “[...] o sujeito terá à disposição instrumentos oriundos do plano das
possibilidades, os quais permitem estabelecer relações entre teorias, produzindo nelas
transformações.” (MARQUES, 2005).
As caminhadas e pretensões científicas são diferentes, pois, obviamente,
objetivam diferentes finalidades. A realidade semiótica, entretanto, é uma região
oportuna para um diálogo entre Mikhail Bakhtin e Jean Piaget.
Enquanto o suíço
distingue a inteligência da linguagem humana, vendo na linguagem um fruto das
conquistas da inteligência desenvolvida na revolução dos primeiros dois anos de vida, a
filosofia bakhtiniana conduz-nos a outra percepção.
Por influência da visão sistêmica saussureana, Piaget fragmenta a conquista da
linguagem em etapas que articulam separadamente sintaxe, semântica e pragmática.
Em sua construção teórica, comete a audaciosa tentativa de equilibrar uma discussão
que, durante muito tempo, conforme já assinalamos, articulou-se entre extremos, ou o
conhecimento é inato ou é adquirido. A Epistemologia genética se organizou para
promover neste dilema pendular uma parada no meio. O desenvolvimento seria
resultante da relação entre um organismo em processo de maturação e propenso à
aprendizagem (base inata) e a realidade ambiental (fatores externos). Todo este
processo, como expresso há pouco, se daria por meio de esquemas de aprendizagem
que, ao serem plenamente realizados, conduziriam o indivíduo a um estágio mais
43
complexo e maduro do aprender. Este ponto, aliás, foi o responsável pela principal
divergência entre Chomsky e Piaget, pois o primeiro atribui à base genética como
fundante da capacidade e desenvolvimento da linguagem humana, e não as relações
entre o indivíduo e o meio como afirmava Piaget.18
A linguagem neste edifício epistemológico cumpriria papel definitivo, pois:
[...] o ser humano não chega ao conhecimento científico sem passar
pela linguagem natural, que é a base para a posterior construção da
linguagem científica (formalizada). Foi por isso que a aquisição da língua
materna entrou na história da gênese do conhecimento na teoria de
Piaget. (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 2008, p. 85)
Apesar de Piaget atribuir papel de relevo a esta fase (Pré-operatória), não ocorre
o mesmo com o período da própria Aquisição da linguagem (Sensório-motor), tendo em
vista a inteligência ser autônoma e preceder a linguagem verbal no processo de
aprendizagem. A própria constatação da identidade da função simbólica (ou semiótica)
nos faz notar a paradoxal desvalorização: “capacidade neurológica de distinguir o
significado do significante” (idem, ibidem). De modo que a criança inicialmente
assimilará seus “encontros” com o mundo via imagens mentais, as associações lógicas
entre estas que, futuramente, promoverão o nascimento da linguagem verbal manifesta
por meio da fala.
Essa cadeia normativa, influência do estruturalismo, entre significante e
significado é que, em nosso ver, prejudica a percepção do papel da linguagem na teoria
piagetiana. Suas provas laboratoriais para comprovar o conceito de equilibração e a
existência e passagem dos estágios do desenvolvimento deveriam servir como base
para fomentar uma ideia de continuidade e semelhança na natureza dos recursos
semióticos/imagéticos realizados pela criança em seu percurso de aprendizagem. A
atmosfera de sentidos constituinte do meio também deveria ser considerada. A própria
ideia de memória seria revisitada, pois uma memória de sentidos plenos (ainda que
incipientes) em pouco se assemelha a uma coletânea de imagens arquivadas no
primeiro ano de vida.
18
Para contextualização Debate entre os teóricos indicamos: Piaget e Chomsky: Um Encontro Histórico
para o Ensino de Línguas, de Eddy Rosseel. Disponível em: file:///C:/Users/Diego/Downloads/872826077-1-PB.pdf> Acesso em: 22 Set. 2014.
44
Na visão de Freitas:
“A perspectiva cognitiva de Piaget reduz toda a compreensão da
construção do conhecimento à constituição da inteligência lógicomatemática, enfatizando a construção do conhecimento científico.
Portanto, nem o social, nem o cultural são considerados como de
relevância para o desenvolvimento do ser humano. (FREITAS, 2002, p.
66)”
Por fim, refletimos, uma percepção efetivamente dialógica do processo de
aprendizagem auxiliaria, se na criança e em seu microcosmo encontra-se o lócus para
dirimir a epistemologia genética. Sem dúvida, a criança, em sua universalidade
dialógica, em aspectos orgânicos e vivenciais, contribuiria para a formação duma
epistemologia condizente ainda mais com a realidade da aprendizagem.
1.3 – A Gramática Gerativo-Transformacional
A gramática é uma só e a mesma para todas as línguas em sua
substância, as diferenças de superfície entre elas são variações
meramente acidentais. Roger Bacon, Séc. XVI
“Dar existência a ou nascer; Germinar; Procriar. Dar origem a; Produzir,
Capacidade de gerar. Causar, provocar.”, são definições de o verbete gerar do
reconhecido Dicionário Aulete da Língua Portuguesa. Virtudes materialmente presentes
em toda a produção chomskyana. Como um vetor pungente, sua teoria reverberou
primeiro numa revolução e, depois, em muitas extensões, cuja força fora tão implacável
que, em terrenos linguísticos, ocupou lugar de vanguarda e prevalência em
determinados assuntos, e ainda hoje sua palavra é paradigmática.
Filho de um judeu russo professor de hebraico, radicado em solo estadunidense,
Avram
Noam
Chomsky
é
considerado
um
dos
maiores
intelectuais
vivos,
primeiramente, pela revolução instaurada no campo da linguística na década de 1960,
segundo, e atualmente mais por este, por seu ativismo político que, de acordo com o
próprio Chomsky, se organiza num anarquismo/socialismo libertário. Atualmente como
professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), trabalha nestas duas frentes.
45
Esgotar todas as (re)formulações teóricas feitas por Chomsky não é nossa
pretensão. A extensão e riqueza de sua jornada científica nos impossibilitariam. Por
essa razão, parece-nos coerente, portanto, referenciar alguns aspectos de sua teoria
que tangenciem o escopo de nossa reflexão, a natureza do sentido e aquisição de
linguagem.
Essa profusão científica materializada em dezenas de obras e artigos não foi
ocasionada por um lapso de genialidade original e autônomo. Noam Chomsky, em
entrevistas e algumas obras, não apenas faz referência como também credita suas
fundamentações e inspirações a determinados pensadores. A estirpe racionalista
cartesiana certamente é a mais influenciadora, no entanto, como vemos na epígrafe
deste capítulo, o empirismo baconiano também contribui para a autenticidade de seu
pensamento. Entre a indução empirista e a dedução racionalista, Chomsky decidiu-se,
vale recordar, pela postura filosófica-científica de Galileu Galilei, que “pode ter sido o
primeiro a reconhecer claramente o significado da propriedade central, e uma das mais
distintivas, da linguagem humana: o uso de meios finitos para expressar uma vastidão
ilimitada de pensamentos.” (CHOMSKY, 2006, p. 53).
O Mentalismo praticado pelos gramáticos de Port Royal19 também foi
imprescindível para promover a emergência Gerativista. Sobre Arnauld e Lancelot,
comenta o próprio Chomsky: “[...] ficaram impressionados com a ‘maravilhosa invenção’
de um meio de construir a partir de umas poucas dúzias de sons uma infinidade de
expressões que nos tornam capazes de revelar a outras pessoas o que pensamos e
imaginamos e sentimos.” (1996, p. 2). Vale acrescentar que um biólogo e um estudioso
da linguagem e, ambos do século XIX, foram decisivos nas formulações chomskyanas:
sem o evolucionismo de Charles Darwin (1809-1882) e as reflexões sobre língua interna
19O
Dicionário de Termos Linguísticos nos auxilia: “Escola filosófica francesa fundada em princípios do
século XVII, onde se desenvolveram algumas bases do cartesianismo e no âmbito da qual surgiu a
Grammaire Générale et Raisonnée, da autoria de Arnauld e Lancelot. Com esta obra, os autores
propõem-se mostrar os aspectos comuns e específicos das línguas do mundo, postulando a existência
de estruturas básicas, ocultas sob a aparência exterior dos sons, que reflectem a forma de pensar. A
Grammaire Générale et Raisonnée deu origem ao aparecimento de gramáticas filosóficas em várias
línguas.” (1992, Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/136375453/Dicionario-de-Linguistica-pdf>.
Acesso em: 21 jul 2014)
46
e externa de Wilhelm Humboldt (1737-1835), dificilmente Chomsky alcançaria sua
estabilidade teórica.
A Gramática Gerativo-Transformacional é fruto de um extensivo programa
científico em favor do inatismo20. Gerativo porque, a partir de um número limitado de
termos relacionados dentro de um corpo específico de regras, gera-se uma infinitude de
sentenças; e Transformacional pela habilidade criativa constituinte da linguagem
humana manifestada em diversas expressões gramaticais. A tese de que a linguagem
humana é um fruto genético e seria abrigada num dispositivo específico na mente
(Dispositivo de Aquisição de Linguagem – DAL)21, cuja natureza seria sintática, levou a
ciência linguística a rearticular a sua concepção sobre a linguagem.
As inquietações abaixo conduziram parte considerável das pesquisas gerativistas
(CHOMSKY, 1988, p. 133):
(a) O que é o sistema de conhecimento da linguagem? O que o falante
de uma determinada língua sabe para ser capaz de compreender e falar
essa língua?
(b) Como o sistema de conhecimento da linguagem desenvolve-se na
mente/cérebro do falante? Que tipo de conhecimento é necessário
pressupor que a criança tenha a priori para que seja possível a
aquisição de uma língua particular?
(c) Como o falante usa esse conhecimento?
(d) Quais os mecanismos físicos fundamentais que constituem o
conhecimento da linguagem e possibilitam o uso desse conhecimento?
(apud FINGER; QUADROS, 2008, p. 49)
20
Vale salientar a problemática envolvendo o inatismo enquanto conceito ou doutrina filosófica. Eis
alguns fatos: há uma indefinição conceitual que percorre desde o não adquirido a o que está presente
desde o nascimento; também o conceituam como determinado geneticamente ou produto de causas
internas, aproximam-se dessas definições o que não é apreendido ou que se demonstra que não pode
ser aprendido. (ROSA, 2010, p. 54-55). Esses níveis de inatismo condicionam práticas racionalistas
também diferentes, pois cada vertente racionalista concebe conhecimento prévio à sua maneira.
21 Em inglês Language Acquisition Device (LAD). “Mediante este dispositivo el hablante accede al
conocimiento [...] Actualmente la existencia del DAL está ampliamente aceptada, pero los estudios
difieren en cuanto a su caracterización y en cuanto a su función en relación con el aprendizaje de
segundas lenguas.” (Disponível em:
<http://cvc.cervantes.es/ensenanza/biblioteca_ele/diccio_ele/diccionario/dispositivo.htm>. Acesso em: 22
jul. 2014).
47
Afinal, como podem os seres humanos, frente à escassez de contatos e
oportunidades
no
decurso
da
vida,
acumularem
tamanho
contingente
de
conhecimento? (Problema de Platão). Há uma Pobreza de Estímulo22 que seria
resolvida da seguinte forma:
Uma visão moderna desta resposta seria, na visão de Chomsky, a de
que certos aspectos do nosso conhecimento e compreensão são inatos,
geneticamente determinados, assim como os elementos da nossa
natureza de seres humanos que fazem crescer em nós pernas e braços
ao invés de asas. (FOPPA, 2011, p. 96).
De forma semelhante, Chomsky se envereda em outro Problema, neste caso
levantado por Descartes: Como, por meio de um sistema linguístico finito, com um
corpo de regras delimitado, é possível criar sentenças novas nunca dantes formadas?
(Problema de Descartes). Tendo em vista que “[...] não há limites para tal inovação. O
aspecto criativo da linguagem, portanto, forneceria a melhor evidência de que
organismos que se assemelham uns aos outros possuem, da mesma forma, mentes
que funcionam de forma semelhante.” (FOPPA, 2011, p. 99). É a conclusão de
Chomsky. Além disso, essa criatividade não seria ensinável (ou aprendível, seria
natural), mais um indicativo da base genética para a manifestação da linguagem.
A linguística mudou de casa, até então seu objeto era o sistema linguístico
expresso no Curso de Linguística Geral, e se agrupava nas ciências humanas e sociais,
com papel de vanguarda inclusive, mas com a obra Syntatic Structures (1957), sob a
égide de que a linguagem “[...] é um objeto natural, um componente da mente humana,
representado fisicamente no cérebro e integrado ao patrimônio biológico da espécie”
(CHOMSKY, 2006), a linguística passa a compor as fileiras das ciências da cognição,
em especial da psicologia.
22
Este termo será essencial na teoria chomskyana, tendo em vista que as experiências dos falantes no
período dos dois primeiros anos de vida são irrisórias frente à proficiência e criatividade apresentada por
estes a partir dos dois anos de vida. “As considerações sobre a pobreza de estímulos apoiam a visão de
que o estado cognitivo inicial, longe de ser tábua rasa dos modelos empíricos, já é um sistema
magnificamente estruturado. A teoria do estado cognitivo inicial é chamada Gramática Universal [...]”
(CHOMSKY, 2006, p. 10)
48
Seus efeitos foram sentidos por todos os lados desde as ciências da cognição,
com a segunda revolução cognitiva23, mesmo o próprio Estruturalismo foi repensado. É
neste período, sobretudo pela obra chomskyana, que a área de Aquisição de
Linguagem
se
desenvolve,
inclusive
os
estudos
sobre
Bilinguismo
e
Aquisição/Aprendizagem de Segunda língua.
Seu programa teórico percorreu três fases principais: a Gramática (Universal)
Gerativo Transformacional, Princípios e Parâmetros e o Programa Minimalista.
Poderíamos afirmar que a mola propulsora originária do gerativismo é sua
insatisfação com vertente behaviorista, “A invasão empirista foi finalmente detida nas
fronteiras da linguagem” (GOLDGRUB, 2004, p. 34). Em sua resenha Verbal Behavior,
Noam Chomsky, além de refutar o ideário skinneriano, sintetiza sua primeira formulação
teórica, a Gramática Universal (GU): o mecanismo inato de ordem sintática que
representa o início da manifestação da linguagem na cognição, “[...] expressa as
propriedades universais das línguas naturais [...] os universais biologicamente
necessários, as propriedades que são universais porque são determinadas por nossa
faculdade inata de linguagem, um componente do patrimônio biológico da espécie.”
(CHOMSKY, 2006, p. 10).
Dessa forma, considerando tal concepção chomskyana, poderíamos pensar em
Aquisição de língua e não em Aquisição de linguagem. Como se a língua fosse estágio
subsequente de sua condição prévia (a linguagem manifesta na GU): “A aquisição de
língua é bem semelhante ao crescimento de órgãos de maneira geral; é uma coisa que
acontece com a criança, e não uma coisa que ela faz.” (CHOMSKY, 1996, p. 5).
Em uma Conferência na UFRJ, no ano de 1996, Chomsky afirma: “A gramática gerativa teve origem no
contexto do que muitas vezes é chamado de "a revolução cognitiva" dos anos 50, e foi um fator
importante no desenvolvimento dela. Seja ou não apropriado o termo "revolução", aconteceu uma
mudança de perspectiva importante: do estudo do comportamento e seus "produtos" (textos, por
exemplo) para os mecanismos internos que entram em jogo no pensamento e na ação.” (p. 4).
“Mostrando que a faculdade de linguagem é acessível ao estudo dentro das diretrizes do estilo galileano,
esta é, então, a essência da segunda revolução cognitiva no estudo da linguagem. Iniciada pelas
contribuições de Chomsky na década de 50, esta abordagem influiu profundamente no estudo da
linguagem desde então, contribuindo de maneira decisiva para o surgimento da ciência cognitiva
moderna.” (CHOMSKY, 2006, p. 5)
23
49
Nessa perspectiva, a linguagem se expressaria na língua em duas estruturas
básicas, uma profunda (de ordem lógica) e outra superficial (as relações entre termos
nas frases). Essa ideia é aprofundada na Segunda etapa da teoria Gerativista,
denominada Princípios e Parâmetros.
Durante esse período, a Gramática Universal é aprofundada, apresentando-se
em duas vias: os princípios são as características e estruturas fundamentais,
constituintes da GU, presentes em todas as línguas, os parâmetros, por sua vez, seriam
as especificidades pertencentes a cada língua disponíveis para seus usuários. De sorte
que a tarefa do gerativista é a de identificar e descrever os princípios e parâmetros
linguísticos. Essa alteração teórica renova o panorama acerca da Aquisição da língua:
Em termos desses modelos, a aquisição de uma língua significa a
fixação de parâmetros da Gramática Universal com base na experiência.
A criança interpreta os dados que entram, usando os instrumentos
analíticos oferecidos pela Gramática Universal, e fixa os parâmetros do
sistema, baseando-se nos dados analisados, sua experiência linguística.
Adquirir uma língua, portanto, significa selecionar, entre as opções
geradas pela mente, as que combinam com experiência e descartar
outras. [...] o aprendizado, assim, realiza-se “por meio do esquecimento”
[...] (CHOMSKY, 2006, p. 18)
Uma bela alegoria para definir a Teoria de Princípios e Parâmetros:
[...] o estado inicial da faculdade de linguagem com uma fiação fixa
conectada a uma caixa de interruptores; a fiação são os princípios da
linguagem, e os interruptores são as opções a serem determinadas pela
experiência. Quando os interruptores estão posicionados de um modo,
temos o banto; quando estão posicionados de outro modo, temos o
japonês. Cada uma das línguas humanas possíveis é identificada como
uma colocação particular das tomadas -- uma fixação de parâmetros, em
terminologia técnica. (CHOMSKY, 1996, p. 7)
Se a descrição24 é indisponível para o estabelecimento de uma teoria coerente e
substancial, a condensação e reducionismo, por outro lado, são imprescindíveis para
24
A jornada descritivista promovida pela Teoria dos Princípios e Parâmetros se esbarrou com a
necessidade de inteligibilidade explicativa: “Há considerável tensão entre estas duas tarefas da pesquisa.
A busca da adequação descritiva parece conduzir à crescente complexidade e variedade dos sistemas
de regras, enquanto a busca da adequação explicativa requer que a estrutura das línguas seja invariante
[...]” (CHOMSKY, 1996, p. 6)
50
torná-la inteligível e aplicável. Eis a pretensão básica do Programa Minimalista, terceira
das principais fases da produção chomskyana.
O Programa Minimalista é a linha de investigação que tomou a
gramática generativa a princípios dos anos noventa. Apresenta-se como
programa, e não como teoria, porque pretende ser um modo de
investigação, caracterizado, ademais, pela flexibilidade à hora de
abordar as múltiplas direcções que seu minimalismo possibilita. Isto é,
em última instância, o Programa proporciona o marco conceptual que
guia o desenvolvimento da teoria linguística generativa, mas nem
oferece soluções específicas a problemas técnicos já conhecidos nem
explicações sobre fenómenos linguísticos observados. Em palavras de
Noam Chomsky, há perguntas minimalistas, mas não respostas
minimalistas; entre essas perguntas, desempenha um papel relevante
não só a questão a respeito de que são exactamente as propriedades da
linguagem, senão também a de por que são como são. Por sua vez, o
conceito de minimalismo apela à ideia de que a capacidade da
linguagem nos humanos mostra indícios de estar constituída segundo
um desenho óptimo e uma extraordinária organização, que parecem
indicar o funcionamento interno de umas leis computacionais muito
singelas e generais em um determinado órgão mental. Com outras
palavras, o Programa minimalista trabalha sobre a hipótese de que a
Gramática Universal constitua um desenho perfeito, no sentido de que
só contenha o estritamente necessário para cobrir nossas necessidades
conceptuais, físicas e biológicas. 25
A teoria Gerativo-transformacional se estendeu e ramificou-se em diversas
frentes. Em alguns casos, companheiros de pesquisas ou alunos foram os
responsáveis por fomentarem a discussão e produção chomskyana, é o caso de Steven
Pinker, respeitado por suas hipóteses darwinistas-gerativistas sobre a linguagem
humana, noutros casos a proximidade trouxe cisão.
Contrafações teóricas à Gramática Universal sempre existiram, sem, todavia,
jamais superá-la em expressividade26. Das mais recentes e impactantes encontramos
justamente em solo brasileiro, às margens amazonenses do Rio Maici, precisamente.
Daniel Everett (1951-), linguista e ex-aluno de Chomsky, que já contribuiu nas
25
(Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/51271723/Programa-minimalista>. Acesso em: 22 Jul. 2014).
Goldgrub afirma: “[...] a gramática gerativa parece constituir o enfoque mais promissor e se desconhece
qualquer abordagem alternativa com reconhecimento semelhante no que se refere à sintaxe. Tampouco
são oferecidas objeções de peso com referência aos princípios, leis e regras enunciados pela teoria
gerativo-transformacional.” (2004, p. 40).
26
51
Universidades de Illinois e de Bentley, e desde a década de 1970 possui relações
acadêmicas com nosso país. Este pesquisador viu, na Tribo dos Pirahãs, o lócus de
pesquisa que promoveria um considerável abalo no mundo da Linguística.
No ponto de vista de Everett, a língua pirahã não possui o que segundo
Chomsky é o elemento x da linguagem: a recursividade, que, basicamente, é a
capacidade de relações entre sentenças diferentes em favor de um único sentido, ou
presente numa mesma cadeia enunciativa. Somado a isto, não possui a mesma
realidade matemática presente em boa parte das línguas humanas, como quantificar
todas as relações e objetos, por exemplo. Cerca de 300 falantes do idioma são a base
da pesquisa que pretensamente fere a identidade da Gramática Universal.
Paradoxalmente, no entanto, apesar das críticas à teoria saussureana e auto
percepção distanciada do estruturalismo e engajamento contra os pressupostos
empiristas – as pendências essenciais vistas na concepção de linguagem27, de
sujeito/indivíduo, ou mesmo na indefinição conceitual de inatismo – acabam por fazer
da teoria chomskyana uma espécie de neoestruturalismo ou estruturalismo cognitivo.
Augusto Ponzio, na obra A Linguística chomskyana e a ideologia social, alega que as
limitações das teorias gerativistas estariam:
[...] sobretudo pelo fato de que seu caráter explicativo se reduz à
dedução dos objetos linguísticos abstratos a partir dos níveis
taxonômicos da análise linguística [...] as teorias não levam em
consideração outra dimensão da linguagem verbal a não ser a da língua
[...] a língua deve ser considerada na totalidade à qual efetivamente
pertence, isto é, no universo sígnico social. (2012, p. 22).
27Chomsky
descreve seu ponto de vista sobre os níveis da linguagem: “A língua envolve, portanto, três
espécies de elementos: as propriedades de som e significado, denominadas "traços"; os elementos que
são montados a partir dessas propriedades, denominados "unidades lexicais", e as expressões
complexas construídas a partir dessas unidades "atômicas". Disto se segue que o sistema computacional
que gera expressões possui duas operações básicas: uma ajunta traços montando itens lexicais, e a
segunda, começando com os itens lexicais, compõe objetos sintáticos maiores a partir dos já
construídos.” (1996, p. 11)
52
1.4 – A Realidade artificial da linguagem: O Conexionismo
Advinda da intersecção entre as conquistas da ciência da computação e o
desenvolvimento das neurociências, compartilhador das premissas empiristas do
Behaviorismo, a escola conexionista estabeleceu uma importante evolução nos estudos
que trabalham considerando a articulação entre a linguagem e o aparelho cerebral. A
atualmente reconhecida Engenharia neuromórfica ampliou, ainda mais, a possibilidade
de materializar seu escopo fundamental, a saber: o de virtualizar, em regime de
reprodução, as conexões neuronais.
Para o teórico conexionista, o problema central para dirimir o processo de
aprendizagem humana é a realidade do aparelho cerebral, bem como sua dinâmica de
funcionamento. Em relação a isso, dois pontos são fundamentais: 1) Em sua
materialidade, o cérebro centraliza seu funcionamento sob as relações sinápticas28
que, de certo modo, podem ser reproduzidas em ambientes computacionais; e 2) Se o
aprendizado se dá neste aparelho, a dinâmica de desenvolvimento da linguagem na
cognição pode ser deslindada com os mesmos instrumentos, tendo em vista ser a
linguagem um elemento cognitivo comum a qualquer outro.
Interessante notar que esse ensejo por entender o cérebro já era implementado
desde o século XIX com a incipiente e, em certo ponto, mística frenologia. Apesar de
existirem manifestações, na década de 1950, de estudos conexionistas, foi a década de
1980, com Rumelhart – Hilton - McClelland entre outros, a responsável por abarcar as
mais expressivas manifestações forjando uma forte tendência na atualidade.
Seu
programa
científico
apresenta-se
como
uma
terceira
via:
nem
inatista/gerativista, tampouco eminentemente empirista/comportamentalista. Sem o
narcisista primado da individualidade ou o vigor incrédulo da tabula rasa, o conexionista
intenta se posicionar num lugar intermediário em que “[...] a aprendizagem não é
governada por regras (que subjazem à construção do conhecimento), mas é baseada
Sinapse: “[...] é o nome dado à região de comunicação entre dois neurônios (neuro-neural) ou entre um
neurônio e uma fibra muscular (neuro-muscular). [...] A comunicação não ocorre por transmissão direta
dos impulsos nervosos, mas sim pela liberação de neurotransmissores, moléculas liberadas pelas
terminações do axônio na fenda sináptica quando a estas chega um impulso nervoso. Disponível em:
<http://www.passeiweb.com/estudos/sala_de_aula/biologia/sist_nervoso_sinapse>. Acesso em: 24 jul.
2014.
28
53
na construção de padrões associativos. [...] ocorre como resultado de mudanças
graduais na força das conexões das redes, por meio da experiência.” (FINGER, 2008,
p. 167). E no que diz respeito à Aquisição e seus atributos inatos para o conexionismo,
a autora ainda complementa: “[...] a aprendizagem é centralmente moldada pelas
demandas do ambiente ao qual o aprendiz é exposto, e o que são universais são os
mecanismos de aprendizagem utilizados pelos aprendizes nesse processo. (p. 167).
Tais especificidades teóricas estabelecem algumas tomadas de decisão sobre
pontos relevantes na Aquisição de Linguagem.
Enquanto a visão chomskyana
promulga a existência de um Dispositivo de Aquisição de Linguagem (DAL), com uma
localização cerebral e identidade (gramatical) específicos (o que se denomina por
modularidade), os conexionistas percebem a linguagem verbal como um fenômeno
plástico que engendra em sua realização variadas estâncias e conexões sinápticas no
cérebro, de forma que não se reduz a uma localidade e natureza específica, nãomodularidade, como diriam os gerativistas.
Outro ponto que, aparentemente, os singulariza é a questão de não ver a
linguagem como simbólica, pois se o que há de universal são os padrões associativos
entre as redes de neurônios e não a identidade sintática da linguagem, a ideia
representacionalista presente não apenas no Gerativismo não corresponderia à
realidade da linguagem na cognição, sendo insuficiente, ou desprezível, portanto. Com
isso, há uma batalha que perdura e se avoluma entre simbolistas e conexionistas entre
conceber aquisição ou aprendizagem.
Essa rinha, entretanto – entre teóricos simbólicos e teóricos conexionistas – é
desfeita com uma acurada avaliação sobre a função da percepção distinta em relação à
identidade de funcionamento da linguagem no cérebro. Feita essa avaliação, é
perceptível a proximidade existente entre estes aspectos no que concerne à valorização
da estrutura da linguagem. Essa proximidade torna-se ainda mais estreita em relação à
concepção de linguagem encrustada em cada uma dessas perspectivas. Ambas
atribuem a ferramentas virtuais a possibilidade de reproduzir a realidade de
funcionamento da linguagem em ambientes digitais, fundamentando-se “[...] no
pressuposto de que o processamento cognitivo ocorre de forma semelhante à
interconexão dos neurônios no cérebro que os conexionistas modelam fenômenos
54
comportamentais ou mentais através de técnicas de simulação computacional baseada
em uma analogia a neurônios.” (FINGER, 2008, p. 150).
Tal crença em “uma técnica de modelagem computacional, baseada em uma
analogia a neurônios”, para nós, demonstra inicialmente uma visão ainda estruturalista
sobre a linguagem e, além disso, reducionista no que se refere aos fatores extra verbais
comprovadamente pertencentes aos enunciados. Essa visão se vincula à própria
identidade das ciências tecnolinguísticas, como é o caso do conexionismo. Auroux
elenca suas etapas históricas:
[...] a primeira revolução tecnolinguística foi a invenção da escrita, cujos
efeitos foram ampliados com a criação da imprensa. A segunda foi a
gramatização das diferentes línguas do mundo, amplificada ela também
pelo estabelecimento de políticas lingüísticas nacionais e da
alfabetização. [...] terceira grande revolução nesse domínio, a do
tratamento eletrônico da informação apresentada em linguagem natural.
Trata-se verdadeiramente de uma mecanização das formas privilegiadas
da comunicação humana.” (1998, p. 289)
O mapeamento das redes neuronais e sinápticas do cérebro reunido à
percepção da linguagem verbal correlata à linguagem algorítmica (de certa forma
compartilhada por Chomsky) oportunizaram a possibilidade de reproduzir, em ambiente
artificial, a linguagem humana. Apesar dos avanços nesta tentativa, cremos que, numa
visão enunciativo-discursiva, a aventura é ainda maior.
Certamente, há uma cadeia normativa nas enunciações, como assevera Araújo:
“Afirmar que os níveis inferiores ao discurso são irrelevantes, que tudo na linguagem é
uma questão de falante e contexto, dilui a dimensão discursivo-pragmática no terreno
lodoso do subjetivismo e do solipsismo. [...] sem as regras de uma língua não há
produção discursiva” (2004, p.14). No entanto, a realidade do fenômeno verbal está
para além de sua irrefutável realidade estrutural. Reproduzir em ambientes virtuais as
especificidades do diálogo é um procedimento científico dos mais complexos, para não
dizer, talvez, impossível de se realizar.
55
Como o Homem de lata, da obra infantil O Mágico de Oz29 (de L. Frank Baum,
1900), a linguagem reduzida a seu nível estrutural não possui o elemento para seu fluxo
vital, um coração: sem os componentes extraverbais que, na percepção bakhtiniana
comungam com qualidades como a singularidade e a irreiterabilidade, não possuímos
nada além de, apesar de complexa e incrível, lataria. Outra questão é o inescapável
problema mente-cérebro. Mesmo as redes e nós estabelecidos pelas diversas
conexões sendo possíveis de se reproduzir em ambientes virtuais, como a linguagem
emergente destes corresponderia à realidade da linguagem verbal?
A dinâmica: Input – Processamento – Output, daria conta de resolver a questão
do sentido, daquilo que significa e comunica? Provavelmente, as respostas estariam em
terreno negativo, como boa parte das ofertadas aos principais dilemas enfrentados pela
área de Aquisição de Linguagem. Como afirma Auroux, relembrando Jacques Lacan:
“O pensamento humano é consciência: onde não há consciência não há pensamento
nem linguagem, no máximo uma imagem do pensamento ou da linguagem.” (1998, p.
224)
1.5 – Lev Vygotsky x Mikhail Bakhtin: Conterrâneos na dissidência,
Contemporâneos na alteridade
Uma visão essencial compartilhada por ambos pensadores russos fora a questão
da relevância das práticas sociais no processo de formação do sujeito. Apesar de não
possuir formação específica nas áreas de biologia ou psicologia, sua formação em
direito e amplo conhecimento das humanidades consubstanciaram uma das teorias
psicogenéticas de maior densidade.
Diferentemente de Bakhtin, que percorreu 75 anos de existência, Vygotsky (1896
– 1934) morreu prematuramente aos 38 anos. Dentre tantos pontos biográficos, dois
chamam atenção, o primeiro o de não haver provas cabais de um encontro virtual ou
pessoal entre estes, outro, resultante da opressão ditatorial stalinista, o silenciamento
imposto em décadas de monologismo científico e cultural.
No espaço teórico, as afinidades se estreitam. Os autores de Transgressões
Convergentes sintetizam essas relações em quatros elementos básicos:
29
Novela infantil de L. Frank Baum, publicada em 1900.
56
(a) Partilha de interesse de ambos pela literatura.
(b) Centralidade atribuída por ambos à linguagem.
(c) Compromisso de ambos com o futuro.
(d) O processo de constituição da subjetividade pela relação com a
alteridade. (GERALDI; BENITESI; FICHTNER, 2006).
Suas reciprocidades vão do mundo científico ao cultural. Tal proximidade nos incentiva
a pensar uma confluência, em relação ao interacionismo, entre os autores:
A relação interna (de constitutividade) que Vigotski aponta entre linguagem e cognição torna possível uma articulação do tipo
epistemológico entre seu construto teórico e uma Lingüística de
orientação enunciativa, cujos interesses se pautam pela análise dos
processos de significação e dos vários movimentos de sentido em jogo
nas diversas práticas discursivas. Reside aqui, provavelmente, a maior
contribuição dos trabalhos de Vigotski para certas áreas da lingüística,
que ganham força se orientadas discursivamente. (MORATO, 2000, p.
153)
No próximo Capítulo serão apresentados diálogos possíveis entre Bakhtin e o
Círculo e autores, inclusive Vygotsky e Bakhtin, bem como questões relevantes para os
estudos aquisicionistas
57
2- CAPÍTULO 2 – ESTUDOS DA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM: DIÁLOGOS
2.1 – Os estudos de linguagem: antes que fosse o tempo
A fala é origem de todas as coisas, mas o silêncio é o pai da própria origem.
provérbio africano
O estudo da linguagem é um dos ramos mais antigos de investigação sistemática [...]
CHOMSKY, 1996
Robert Henry Robins, na introdução de sua clássica Pequena História da
Linguística, identifica: “Embora o dom da fala articulada seja normalmente aceito sem
maiores discussões, o seu poderio e alcance sempre despertaram, na maioria das
comunidades culturais do mundo, a atenção de certos espíritos.” (1979, p. 1).
Construindo inclusive mitos etiológicos como os judaicos ou indígenas, por exemplo.
Como bem afirma Eugen Rosenstocky: “A origem da fala humana é a fala da origem
humana.” (2002).
É usual ouvir que o homem é um ser de linguagem, de modo que se torna
notória sua presença em cada atividade e assimilação humanas, é o que temos afinal.
Por meio dela, o intangível é acessado, o insano é dirimido, a (re)invenção é
possibilitada, dito de forma mais apropriada por Émile Benveniste (1995) “O homem
sentiu sempre − e os poetas frequentemente cantaram − o poder fundador da
linguagem, que instaura uma sociedade imaginária, anima as coisas inertes, faz ver o
que ainda não existe, traz de volta o que desapareceu.”
Do que foi realizado no mundo ocidental, que, reitere-se aqui, geralmente
ideológica e materialmente se preserva/impõe-se mais em relação às outras culturas, a
história dos estudos de linguagem confere como texto inaugural a obra platônica do
séc. III a.C., O Diálogo de Crátilo. As discussões transcritas sobre a arbitrariedade do
signo e a busca pela identidade do simbólico ali e em outros clássicos constituíram a
nascente para um rio caudaloso de estudos subsequentes. Linguistas (como Auroux
(1998) – Weedwood (2002) – Kristeva (2007), entre outros.) reúnem aos estudos da
58
antiguidade grega uma catalogação de períodos que abarcam desde o surgimento e
expansão dos estudos gramático-normativos, passando pela efervescência da
linguística histórico-comparativa em meados do século XIX, até a cientificidade advinda
do pensamento saussureano no início do século XX, estendida a uma multiforme gama
de estudos, não apenas estruturalistas como também racionalistas e materialistas
durante o referido século.
Segundo Robins (1983): “É [...] razoável fazer da história da linguística europeia
a base de toda a história da linguística [...] (p. 5)”, tendo em vista, a linearidade dos
estudos de linguagem em terreno europeu, o que resultou, durante a história, na
formação de um arcabouço variado de ‘métodos, conceitos e objetivos’, mas com um
laço indissolúvel entre estes, o que não invalida a relevância de manifestações não
europeias como a Gramática de Panini.
A história dos estudos de linguagem, em verdade, ultrapassa cronologicamente o
diálogo entre as personagens Crátilo, Hermógenes e Sócrates (III a.C.). Amostras de
interesse pela linguagem anteriores ou deslocadas da Europa são variadas em tempo e
localização. Justificativas etiológicas “[...] que procuram descrever a origem da
linguagem ou da língua adotada pelo povo.” (ROBINS, p. 5) são vinculadas geralmente
a cosmologias de muitas culturas que atribuem ao Transcendente a concessão que
origina a linguagem humana, são um bom exemplo.
Da mesma forma, há uma infinitude de narrativas sobre a origem da linguagem
verbal e, sobre estas, afirmam as pesquisadoras Frachetto e Leite (2004): “No mundo
mítico, não há uma cadeia evolutiva lenta e gradual. Antes um salto transformador [...]”
(p. 10), sendo que o compromisso de explicar a realidade fundamenta-se em
sedimentos bem distintos do conhecimento científico. O relato Judaico-Cristão é, em
território ocidental, o mais difundido, onde Deus institui Adão30, pai de todos os homens,
30
A palavra adâmica: rompedora do silêncio universal, conforme os capítulos iniciais de Gênesis,
primeiro livro das Sagradas Escrituras, possui valor alegórico decisivo no pensamento de Bakhtin e do
Círculo. Em Estética da Criação Verbal, no reconhecido texto sobre Os Gêneros do Discurso, o autor
assevera que “O falante não é um Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não
nomeados, aos quais dá nome pela primeira vez.” (2010, p. 300), nestes termos, a própria vida tem por
condição a dialogia. Uma observação mais acurada do relato bíblico, em verdade, nos apresenta uma
impossibilidade de criar tal alegoria, pois Adão fora forjado em condições de significar (Gên. 2:19) num
59
com capacidade de significar num mundo de sentidos, tendo a oportunidade de nomear
as demais criaturas.
O conhecimento dessas percepções de origem dá uma consistente noção da
valorada presença da linguagem (e mitos relacionados à sua origem) nas formações
culturais e na construção identitária de povos e nações. A força da representação, força
figurativa, compõe a ontogênese e filogênese da palavra, de sorte que acessar e
manejar as realidades do semiótico fora sempre, na reflexão de Volochínov (2013),
status: “Os primeiros filólogos e os primeiros linguistas sempre e em toda parte foram
sacerdotes [...] Competia aos sacerdotes-linguistas decifrarem o segredo da palavra
sagrada.” (p. 121). Esta preocupação e anseio por entender a palavra sagrada/alheia
não apenas oportunizou a sistematização de ritos, como também a base onde “[...]
nascem as mais antigas filosofias da linguagem: a teoria védica da palavra, a teoria do
Logos dos antigos pensadores gregos e a filosofia bíblica da palavra.”31 (idem, ibidem).
O que é a linguagem? Escrito por Volochínov, em 1930, demonstra que a
questão da origem da linguagem era discutida inclusive entre os membros do Círculo.
Neste texto, apresenta o que seria um percurso materialista-evolucionista sobre como o
humano alçou à capacidade de representação:
“[...] a linguagem não é um dom divino nem um presente da natureza. É
o produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus
elementos tanto a organização econômica como a sociopolítica da
sociedade que a gerou. [...] as forças motoras que determinaram as
origens e o desenvolvimento da linguagem: a organização do trabalho
na sociedade e a luta de classes [...]” (2013, p. 141 e 157).
Apesar do vigor argumentativo, cremos ser salutar ampliar a reflexão a respeito
do assunto, levando em conta inicialmente, o contexto ideológico e histórico que
reveste o percurso dedutivo do pensador russo, pois discussões unilaterais sobre a
origem de qualquer fenômeno coadunam paradoxalmente coragem e precariedade em
sua legitimidade.
mundo de sentidos, o que se comprova pela sensibilidade de sentir-se solitário enquanto, com
criatividade, nomeava os animais.
31 Religião védica [...] Rgveda’V. O antigo filosofia do Logos e a doutrina alexandrina do Logos [...]
(VOLOCHÍNOV, p. 121).
60
Irrevogável é afirmar que os estudos feitos até os períodos recentes a respeito
da linguagem e os materiais catalogados, a despeito de posicionamento ideológicocientífico, são insuficientes para dirimir e descrever de forma completa a realidade do
fenômeno da linguagem verbal.
Se não há mais dúvidas da necessidade de fatores sociais para significar, como
descrevem antropólogos e linguistas de base materialista, e se há um bom tempo, é
compartilhada a certeza de que possuímos um aparato orgânico geneticamente
ofertado para linguajar, como afirmam estudos evolucionistas e gerativistas, são ainda
em pouco justificadas a realidade dialógica dos sentidos e a emergência32 (sem
referências anteriores) de nascedouro do sentido vivencial e concreto presente nas
enunciações que estão para além da reprodução e estrutura. De fato, por mais avanços
científicos existentes, a ideia da linguagem oriunda duma paulatina e adaptativa
evolução apresenta suas carências como qualquer manifestação científica ou crença.
Investigar a origem das coisas é um tema sempre presente, e sobre isso
refletem, numa síntese, Franchetto e Leite:
Se a ciência de hoje, com sua metodologia, tipos de argumentação e
provas, oferece explicações de nossa origem bem diferentes das dos
karajás, tapirapés, povos do Xingu e da Bíblia, há algo comum a esses
mundos distantes: a evidência da universalidade de um mal definido
“espírito” humano, qual seja, a necessidade comum e perene de saber
quem somos, de onde viemos e para onde vamos. (2004, p. 11)
Textos como ideogramas chineses entalhados em carapaça de tartaruga
possuem valor paleolinguístico33, em virtude da materialidade que, para alguns
cientistas, datam, de maneira controversa, aproximadamente de 9.000 anos atrás
(TRIPICCHIO, 2004, p. 32). Artefatos sumérios e hieróglifos egípcios também
32
Em sua tese de doutoramento, Tripicchio (2004) corrobora com a perspectiva de uma emergência
abrupta ocasionadora da linguagem, assim exemplifica emergência: “[...] no processo natural adaptativoevolutivo, um biossistema atinge seu ponto crítico de saturação em complexidade, irrompe algo de novo,
inesperado, trazendo mudanças de natureza qualitativa, como resultado de uma, também inesperada,
mutação genética. Se o elemento emergente for adequado, teremos uma adaptação convergente com
maiores probabilidades de evoluir pela seleção natural. Se a adaptação for divergente, as probabilidades
diminuirão [...].” (p. 87).
33 A Paleolinguística vai ainda além em inferências cronológicas: “[...] vários tipos de linguagem foram
surgindo desde centenas de milhões de anos [...] Evoluindo, aperfeiçoando-se [...] sendo a nossa espécie
pois, na realidade, não a criadora dessas linguagens mas a herdeira das mesmas [...]” (OLIVEIRAFILHO, 1968, p. 11)
61
consubstanciam a ideia de que trabalhos formalizados sobre a linguagem precedem O
Diálogo de Crátilo. Tábuas de argila com conteúdos relacionados à estrutura linguística
(fonética e silabários), difíceis de decifrar, apontam e distanciam de 3 a 6.000 anos
antes da era cristã (TRIPICCHIO, 2004; AUROX, 1998).
Digno recordar o alfabeto consonantal sírio-fenício gerado entre os séculos XIII e
XI a.C., sedimentando posteriormente o desenvolvimento do alfabeto grego que,
conjuntamente ao latino, deitou as bases para a estrutura gramatical das línguas indoeuropeias. Entalhados em madeira, a Gramática dos Vedas (cânticos sagrados do
hinduísmo) produz impacto interventivo no desenvolvimento dos estudos de linguagem.
Ao ser ‘descoberta’, durante a colonização inglesa em solo indiano, no final do século
XVIII, a Gramática Sânscrita de Panini (por etimologia: polida, esmerada, perfeita)
promove a impressionante, porém paradoxalmente óbvia relação de parentesco entre
as línguas europeias, forjando, em regime hipotético, uma protolíngua: o indo-europeu.
Nos tempos subsequentes testemunhamos o desenvolvimento e legitimação da
gramática normativa, os aprofundamentos dos sistemas descritivos da fonética e
fonologia, de tal forma que, o século XIX assistisse uma explosão da linguística
histórico-comparativa. A profusão de estudos no expresso século, além de contemplar,
de sua metade para o fim, uma aparente derrocada dos trabalhos comparatistas, em
função, sobretudo, do trabalho dos neogramáticos, traz à tona, também, figuras
relevantes e originais como o alemão W. Humboldt, que já imprimia conceitos e
inquietações como uma visão dicotômica da linguagem (interna e externa) que seriam
revisitados por Saussure e Chomsky anos depois. (WEDWOOD, 2002, p. 109)
Até aqui identificamos para este longo período um corpo histórico apresentado
como estudos de linguagem, pois até este momento não se atribuiu cientificidade às
pesquisas de linguagem pela ausência de um ‘compromisso científico’ e quadro
metodológico determinados. No século XX, por sua vez, versaremos em ciência da
linguagem, pois a atmosfera positivista vigorante na Europa daquele tempo estabeleceu
as bases para uma reflexão sobre a linguagem calcada em duas premissas: a
experimentação e a reiterabilidade, num corpo metodológico bem definido de pesquisa.
62
O ideário do Positivismo nasce em solo francês com August Comte, formalmente
em meados do séc. XIX, e é em território de fala francesa, seguidamente, por meio do
franco-suíço Ferdinand de Saussure, que as diretrizes e atribuições da Linguística
surgem, em 1916, precisamente, com a publicação póstuma do Curso de Linguística
Geral. A ideia sistêmica da linguagem verbal do saussurianismo reverberou na
construção duma forte corrente linguística: o Estruturalismo, ramificações e refutações a
este estabeleceram boa parte do que se fez da ciência da linguagem durante o século
XX.
Uma observação interessante e necessária a ser instaurada sobre o percurso
realizado até aqui é a de que as diversificadas perspectivas de estudos da linguagem
inseridas e correspondentes a seu tempo cultural-ideológico compartilham de um
predicado comum: a desarticulação identitária da linguagem verbal.
Se é notória a distância existente entre os silabários sumérios e a força
comparativa entre gramáticas no século XIX, não é, por sua vez, menos evidente a
valoração da estrutura em lugar das enunciações vivas do falante por parte de ambas
expressões de conhecimento da língua(gem). Afirmamos ser uma desarticulação, tendo
em vista que a natureza da linguagem verbal transcende os aspectos estruturais, como
bem afirma Valentin Volochínov em Discurso na vida e discurso na arte: “O discurso
verbal é o esqueleto que só toma forma viva no processo da percepção criativa,
conseqüentemente, só no processo da comunicarão social viva.” (2013 [1926], p. 12).
A justificativa para referida desarticulação, inferimos, está num desafio de relevo
e constante presença nas ciências humanas: problematizar um fenômeno presente
constituinte/constituído do e no humano; outro fator é a influência analítica cartesiana,
sistematizada no positivismo, que influenciou o universo científico a qualificar e
assimilar os fatos observados, por meio de normas fixas. Isso inclui as pesquisas em
ciências humanas como será observado na escola de pensamento behaviorista.
De fato, aceitável e ajuizado fora descrever a parte mais estável e reiterável da
língua, pois, ao considerar os elementos extraverbais como o dialogismo e o ideológico
presentes nas enunciações produzidas na cadeia comunicativa, como faz o Círculo,
63
adentramos não apenas em terreno fértil, mas ideologicamente diversificado, que tem
na multiplicidade uma condição e não uma possibilidade.
Nesse sentido, é seguro ponderar o papel rearticulatório implementado pelas
linguísticas de fundamentação materialista no segunda metade do século XX. A teoria
da enunciação do francês Émile Benveniste (1902-1976) e a teoria dialógica da
linguagem de Mikhail Bakhtin (1895-1975) (e o Círculo) se destacam como pioneiras no
que concerne a uma leitura mais acurada do fenômeno verbal. Levando em conta que,
desde a antiguidade clássica até a incorporação dos estudos de linguagem num regime
cientificista, por meio da obra póstuma de Ferdinand de Saussure (1865-1913), Curso
de Linguística Geral (1995), a linguagem havia sido relegada a uma pseudointeireza
que jamais abarcava sua natureza dialógica e sua identidade ideológico-responsiva, os
estudos eram assim frutos de abstração. No sentido de almejar sem, todavia,
comprometerem-se com a realidade dos eventos enunciativos, os estudiosos
estruturalistas selecionam destes enunciados elementos estruturais que, apesar de
imprescindíveis, ao serem isolados, não correspondem ao fenômeno verbal vivo. As
produções de Benveniste e Bakhtin, diferentemente do trabalho estruturalista com a
língua enquanto sistema formal (langue), focavam a fala intrinsecamente social.
Na obra do Círculo e de Bakhtin, salientamos, a Linguagem é entronizada em
sua legítima morada: as praças, a vida, a boca do enunciador. Tendo em vista que: “A
unidade da forma é a unidade da posição axiológica ativa do autor-criador, realizada
por meio da palavra (tomada de posição pela palavra), mas que se refere ao conteúdo.”
(BAKHTIN, 1975, p. 64) e, mais a frente conclui:
Tomamos a língua não como um sistema de categorias gramaticais
abstratas, mas como uma língua ideologicamente saturada, como uma
concepção de mundo, e até como uma opinião concreta que garante um
maximum de compreensão mútua, em todas as esferas da vida
ideológica. Eis porque a língua única expressa as forças de união e de
centralização concretas, ideológicas e verbais, que decorrem da relação
indissolúvel com os processos de centralização sócio-política cultural”
(p. 81)
Como se linguajar fosse uma eterna novidade. O diálogo enquanto lugar da
ressignificação de sentidos passados e, ao mesmo tempo, o lugar da repetida
64
subversão, enunciado que explica e concomitantemente responde. A força dialógica da
linguagem implica em realizá-la sempre num lugar dual, nas palavras do russo, o
enunciado concreto, unidade real da linguagem, é um Jano bifronte34, carregando
consigo sempre o velho e o novo, o óbvio e o inesperado, a palavra e a contrapalavra.
(2006, p. 38; 2010, p. 43).
Percebe-se que a arbitrariedade e a convencionalização dos significados
discutidos desde o Crátilo são questões imprescindíveis para o compartilhar sentidos.
Afinal: “Existem leis linguísticas que não podem ser infringidas, ou a compreensão
recíproca se tornaria impossível.” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 132). De fato, sem uma
estrutura linguística bem definida, bem como um léxico cristalizado, ficamos num
terreno demasiado movediço para significar. Essa parte sistêmica valorada desde o V
século a.C., no entanto, não corresponde à realidade discursiva presente nos eventos
discursivos. São resultantes da interação humana e com ela compartilham uma
realidade material, uma semiose que efetivamente significa. Bakhtin/Volochinov
declaram em Marxismo e Filosofia da Linguagem sobre a linguagem:
Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas
verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais,
agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de
um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que
compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que
despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.
(2006, p. 193)
De sorte que, se por um lado encontramos o premente sistema linguístico
enquanto suporte de representação, do outro e, de encontro a este, avistamos uma
feroz força criativo-subversiva (ideológico-vivencial); como se justamente este choque
entre nuvens de estruturas frias e nuvens quentes de elementos extraverbais
promovesse a tão desejada chuva e, por vezes, tempestades de interação verbal por
34
Personagem mitológico que, segundo Hacquard, em seu Dicionário de Mitologia Grega e Romana,
possuía duas faces sendo uma “[...] divindade exclusivamente romana, é o deus do início de todas as
coisas. Ovídio identifica-o ao Caos primordial, dado o carácter indistinto que o seu duplo aspecto
relembraria.” (1996, p. 183). Em Para uma filosofia do Ato, afirma Bakhtin: “O ato da atividade de cada
um, da experiência que cada um vive, olha, como um Jano bifronte, em duas direções opostas: para a
unidade objetiva de um domínio da cultura e para singularidade irrepetível da vida que se vive [...]” (2010,
p. 43)
65
meio das enunciações. As convenções identificadas por Saussure, em nível sistêmico,
sob esse prisma, são insuficientes, pois ultrapassam os elementos estruturais da língua,
são de ordem discursiva. É irrefutável notar a existência de convenções genéricas,
comuns a todos, na comunicação verbal, tais convenções, no entanto, refletem as
enunciações da vida, sendo assim “[...] tipos relativamente estáveis de enunciados [...]”
como assevera Bakhtin (2010, p. 262), que articula os fatores reiteráveis presentes na
cadeia comunicativa, sejam estruturais ou ideológicos, em função de sua origem: o
enunciado concreto realizado em algum gênero discursivo.
2.2 – Fundamentos símiles, práticas contraditórias: a dialogia-transformacional
O poder criativo e a dissidência com o paradigma vigente são pontos de
confluência entre as obras de Mikhail Bakhtin e Noam Chomsky. Interessante notar que
um
mesmo
materialismo
dialético
de
Marx
sedimenta
práticas
científicas
consideravelmente distintas. Chomsky aparentemente dissocia o sujeito biológico do
sujeito sócio-político concedendo, a cada um destes, um tratamento bem distinto.
O teórico gerativista, desde a infância, esteve nos cruzamentos entre a política, a
filosofia e a ciência. Sua ascendência judia promoveu uma preocupação inclusive com
o conturbado Estado sionista. E apesar de receber financiamento do governo
estadunidense em boa parte de seu percurso acadêmico, inclusive em período de
guerra35, suas relações com os governos não foi das melhores, por conta de seu
ativismo político esquerdista.
O engajamento de Noam Chomsky, como em sua obra Contendo a
democracia, esmorece em terreno linguístico. Sua reconhecida revolução nos estudos
de linguagem e mesmo da cognição foram muito mais efetivados pela clareza e valor
atribuídos ao indivíduo em seu processo individual psicogenético, do que na pertença
deste às massas em marcha, na vida social. O que se inferiria de uma produção
“Sua entrada para o MIT ocorreu em 1955. [...] Ele vai trabalhar uma atividade de que discordava, o
desenvolvimento de uma máquina de tradução, para decodificar comunicações cifradas, na Guerra Fria.
A pesquisa tinha patrocínio de nada menos que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica americanas, mais
a Nasa, a agência espacial.” (2002, FISCHER, p. 5).
35
66
científica de base marxista, como assim se manifesta o linguista octogenário. “O
Chomsky militante tem interesse no mundo social, ao passo que o cientista não quer
saber dele diretamente. Só muito abstratamente, como ele costuma dizer, os dois
universos se encontram.” (2002, FISCHER, p. 5).
É precisamente na assimilação do materialismo histórico que encontraremos as
divergências entre a teoria chomskyana e o pensamento de Bakhtin e do Círculo.
Certamente, no que concerne à linguagem, o fazem de maneira diferente. Com a
pretensão de inaugurar uma filosofia da linguagem legitimamente materialista, na
segunda seção do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochínov partem
de uma crítica às duas principais orientações epistemológicas vigentes no mundo da
linguística da época, as quais denominam: objetivismo abstrato (Estruturalismo, um
exemplo) e subjetivismo idealista. Se fôssemos enquadrar a escola gerativista em uma
dessas orientações, observamos haver ligações com ambas, contudo há relações mais
próximas com o objetivismo abstrato, em virtude de compartilharem raízes
semelhantes, fundadas no Racionalismo:
Entretanto, como veremos, no terreno do racionalismo tal qual o
descrevemos, os fundamentos da segunda orientação do pensamento
filosófico-lingüístico são inteiramente compatíveis com a idéia de uma
língua universal racional artificialmente criada. (2006, p. 80)
É importante ter em mente que a concepção de linguagem que fundamenta as
reflexões chomskyanas é bem distinta da de Bakhtin e do Círculo. Enquanto o
gerativista vê a linguagem como uma faculdade cerebral perpetuada – desenvolvida –
constituinte da espécie humana oriunda duma propensão interna, o filósofo russo a
concebe proveniente e constituinte das práticas sociais, do encontro entre o sujeito e o
mundo exterior. Isso nos preserva da incoerente ideia de acusações e predileção por
este ou aquele teórico. Afinal, realizar filosofia da linguagem é diferente de utilizar-se
duma esteira filosófica para explicar o fenômeno da linguagem. A própria linguagem, no
entanto, nos concede condições de realizar encontros que, conflituosos ou não, acham
nela (a linguagem no processo de aquisição em nosso caso) um intermédio. Sobre o
subjetivismo idealista, asseveram os russos:
67
O subjetivismo individualista tem razão em sustentar que as
enunciações isoladas constituem a substância real da língua e que a
elas está reservada a função criativa na língua. Mas está errado quando
ignora e é incapaz de compreender a natureza social da enunciação e
quando tenta deduzir esta última do mundo interior do locutor, enquanto
expressão desse mundo interior. A estrutura da enunciação e da
atividade mental a exprimir são de natureza social. A elaboração
estilística da enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia
verbal, à qual se reduz em última análise a realidade da língua, é social.
Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda a dinâmica da sua
evolução. (2006, p.124)
O dialogismo bakhtiniano promoveria o insumo necessário para legitimar a ideia
de geração e transformação nas enunciações humanas decisivas na teoria linguística
de Chomsky, retirando-as de seu estado de carência: altamente complexas árvores
milimétrica e singularmente arquitetadas, mas sem seiva de vida, a substância social
nutritiva da linguagem.
O Chomsky marxista se desencontra do Chomsky linguista por este conceber a
linguagem como não ideológica, alheia à realidade sócio-histórica do homem e da
própria
linguagem.
Retomando
a
ideia
de
sentido
inaugural,
presente
nas
considerações iniciais desse estudo, o primeiro sentido, mesmo do organismo infantil
ainda não maturado, não pode expressar-se no isolamento universal. O próprio sentido,
não apenas o homem, é dialógico essencialmente e, em essência, não se exprime na
monologia. Pois o território de sentidos no qual o infante se encontra e se desperta é,
da mesma forma, abarcador de uma dialogia grande que exprime sua atemporalidade
nas singularidades de cada tempo, de cada homem e de cada evento enunciativo.
2.3 - Uma híbrida e diversa atualidade
Se a força do Programa Gerativista promoveu o declínio do império behaviorista,
estabeleceu, em seu lugar, uma hegemonia não menos influente. Na realidade, o
impacto gerativista não apenas se empossou de parte das pesquisas na linguística, ou
modificou as pesquisas na psicologia, contribuindo para o desenvolvimento do corpo de
pesquisa reconhecido como ciências da cognição, como também o nascimento da
68
teoria Gerativo-Transformacional gerou, com status de oficialidade, a área de Aquisição
da Linguagem. Surge de certa forma autônoma em relação à psicolinguística, haja vista
que o paradigma behaviorista tinha influência sobre as pesquisas da relação linguagem
e pensamento.
A partir de meados da década de 60, os estudos aquisicionistas tornaram-se
sobretudo gerativistas (GOLDGRUB, 2001). Entretanto, em virtude da identidade
interdisciplinar dessa área, tais estudos se multiplicaram em diversas frentes que, aos
poucos, também lograram autonomia científica. Ester Scarpa sintetiza as principais
vertentes da área de Aquisição da seguinte maneira:
a) aquisição da língua materna, tanto normal quanto "com desvios",
recobrindo os componentes "tradicionais" dos estudos da linguagem,
como fonologia, semântica e pragmática, sintaxe e morfologia,
aspectos comunicativos, interativos e discursivos da aquisição da
língua materna. Sob a égide de "desvios", contam-se: aquisição da
linguagem em surdos, desvios articulatórios, retardos mentais e
específicos da linguagem etc; b) aquisição de segunda língua,
quer como bilingüismo infantil ou cultural, quer na verificação dos
processos pelos quais se dá a aquisição de segunda língua entre
adultos e crianças, seja em situação formal escolar, seja informal de
imersão lingüística; c) aquisição da escrita, letramento, processos
de alfabetização, relação entre a fala e a escrita, entre o sujeito e a
escrita nesse processo etc.” (2001, p. 204, grifos nossos)
Em território nacional, as pesquisas em Aquisição, efetivamente, se iniciam
durante a década de 1970, com as pesquisas de Cláudia de Lemos na Universidade de
Campinas. “É nessa década que tem início o projeto de Aquisição da Linguagem,
coordenado por Cláudia de Lemos na UNICAMP a partir do qual irradiou, em grande
parte, o interesse sobre esse tópico no país [...]” (CORRÊA, 1999, p. 349), e os nomes
de Scliar Cabral e Mota Maia, posteriormente Maria de Lemos e outros tantos,
compartilhariam de tais estudos. Pode-se dizer, após as décadas que se seguiram, que
estas pesquisas não apenas iniciaram como também construíram um programa
científico forte e autoral, de tradição psicanalítica, detidamente à lacaniana, no sentido
de estabelecer uma percepção autônoma da Aquisição de língua materna. Cláudia De
Lemos relata sobre os dilemas iniciais da área de aquisição:
69
[...] se no primeiro passo o que se interrogava era o conhecimento da
língua pela criança e sua fala não passava de direta e inquestionável
evidência desse conhecimento, em um dos mais recentes o que se
afirma é a impossibilidade de fazer dessa fala, ou de um corpo que fala,
um corpus, isto é, um conjunto de “dados”. (LEMOS, 2002, p. 42)
A presença das inquietações era evidente, elas mesmas compunham o despertar
das pesquisas em Aquisição de Linguagem no país:
Foi uma época rica em idéias, que deu margem a muitos
direcionamentos para o estudo da aquisição da linguagem. Ao mesmo
tempo foi uma época povoada por mal-entendidos, devidos, até certo
ponto, à não distinção entre diferentes tipos de questões: questões
relativas à aquisição de uma determinada língua, ao desenvolvimento de
habilidades de processamento lingüístico e ainda a formas de expressão
dependentes de uma linguagem verbal. A interdisciplinaridade que
passou a caracterizar o estudo da aquisição da linguagem, ao mesmo
tempo que enriquecia o tratamento do problema, contribuía para uma
flutuação conceitual que dificultava o debate [...] (CORRÊA, 1999, p.
350)
A conjuntura atual das pesquisas em Aquisição é a da multiplicidade. Os estudos
são fiéis à natureza híbrida e interdisciplinar característicos do início da área. Com o
advento das tecnologias e das neurociências, os estudos aquisicionistas tornaram-se
variados, além de promoverem um aprofundamento de estudos de patologias
relacionados à linguagem e ao exercício desta em sujeitos especiais como deficientes
auditivos e visuais. Contemplam desde as pesquisas mais pragmáticas que atendem às
questões duras – como o aparato cognitivo e orgânico, e questões estruturalistas e
normativas – até a realidade enunciativo-discursiva do falante em seus momentos
iniciais.
Poderíamos destacar a presença ainda forte da Psicolinguística em nosso
tempo, o avanço do mapeamento das redes sinápticas pelos estudos conexionistas e
da capacidade de reproduzi-las em ambientes virtuais, como é visto em pesquisas
surpreendentes de Miguel Nicolelis (2011). O legado de Cláudia de Lemos, e de seus
companheiros de pesquisa, produziu o que se configura como uma das manifestações
mais fortes nos estudos aquisicionistas no Brasil.
70
2.4 – Psicogênese Dialógica: Vygotsky com Bakhtin
O diálogo por certo aconteceu, superando as barreiras do tempo e do
espaço. (...) esse diálogo se evidencia quando se discute aquilo que os
aproxima. Maria Freitas, 2012
Se, para Piaget, a aprendizagem configura-se por meio do encontro do indivíduo
(propenso organicamente a conhecer) com seu meio, para outros teóricos a ideia alterase um pouco, uma vez que tal concepção é construída em outras bases.
Vygotsky, por exemplo, vê na mediação entre pares e, pela cultura, o modo e a
região de progresso do infante fomentar o desenvolvimento cognitivo (intra), em
consequência das relações sociais (inter). Henry Wallon (1879 - 1962), por sua vez,
percebe nas emoções a origem da consciência. Em sua visão, as emoções resultariam
da afetividade orgânica constituinte de cada sujeito.
Essa tríade – Piaget, Vygotsky e Wallon – compõe o sustentáculo do imbricado
problema da vertente construtivista, ou sócio-construtivista – sócio-interacionista –
interacionista social, interacionista-construtivista, dependendo do posicionamento
teórico. A existência de uma variada nomenclatura já denuncia as conflitantes
percepções a respeito.
Sabemos que, para muitos, a teoria walloniana e vygotskyana são extensões, de
mesma ordem, do construtivismo piagetiano, para outros tantos (GOLDGRUB, 2001),
contudo, Vygotsky possui uma visão tão peculiar que, em seus estudos, materializou
uma legítima autonomia em relação ao epistemólogo suíço. De acordo com Freitas,
“Piaget mencionou o fator social, mas não o incluiu no estudo da formação das
estruturas cognitivas.” (FREITAS, 2002, p. 66)
Quedar-nos-emos assim: se denominamos Piaget construtivista com um ponto
de vista particular, reconheceremos as particularidades dos demais (não apenas
Vygotsky, que aqui será tratado, e Wallon, como outros) dentro de um arcabouço,
ideologicamente diverso, o Interacionismo.
Infere-se que para construirmos uma teoria psicogenética, ou seja, uma teoria
que vai pensar a gênese ou origem dos mecanismos e instrumentos para o
aprendizado, faz-se necessária a presença de um psicogeneticista, ao menos de um
biólogo. Como vimos, no entanto, um psicogeneticista (pela obra e não por formação)
71
como Vygotsky atribui papel relevante para este processo e, em sua reflexão, instaurou
novas perspectivas sobre a linguagem verbal. Pensamos, nesse contexto, ser possível
propor uma reflexão sobre uma psicogênese dialógica. Se um psicogeneticista interferiu
na linguagem, um filósofo da linguagem poderia, a nosso ver, interferir na psicogênese.
A convergência fundamental entre os referidos teóricos é a valoração da
interação, sobretudo da interação verbal. O mesmo sedimento materialista organiza
suas reflexões às práticas sociais, a premente necessidade de expressão do sujeito no
mundo de sentidos que o significa e o conduz à construção de sentido, alimentando,
como veremos mais à frente, a formação da própria consciência do sujeito. “Partindo
de dentro de si mesmo, sem nenhuma mediação do outro que ama, o homem nunca
conseguiria falar a seu próprio respeito [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 47)
As impressões e concepções acerca de que modo é e como se dá o exercício da
linguagem, e as características do sujeito que enuncia tomadas por esse arcabouço
teórico seriam de suma importância.
Podemos
nos
apropriar
da
alegoria
volochinoviana
para
pensar
uma
psicogênese dialógica:
[...] por si mesmo, com seus próprios recursos, o indivíduo isolado não
está absolutamente em condições de incorporar-se à história. Somente
como membro de um grupo social, numa classe e por uma classe, ele
acede à realidade e à atividade históricas. Para entrar na história, não
basta nascer fisicamente [...] É necessário, por assim dizê-lo, um
segundo nascimento, um nascimento social. (VOLOCHÍNOV, 2013, p.
30)
Na agenda epistemológica desses teóricos, a questão social é primordial, pois
são as práticas sociais o eixo central não apenas da dinâmica social, como também
mola propulsora do despertar do sujeito e de suas etapas de desenvolvimento. É na
relação permanente com os pares do mundo da cultura que o sujeito alça novos
degraus do conhecimento.
Apesar de contemporâneos à distância, pois não há relatos materiais do
encontro entre Bakhtin e Vygotsky, de certa forma eram conterrâneos da dissidência
crítica que promoveu uma releitura e profícua dos textos marxistas.
72
Vigotski e Bakhtin (e seu Círculo) se situam em uma mesmo grupo e se
diferenciam de outros autores da corrente marxista que trabalham nos
mesmos campos de investigação porque ambos partem das carências
do marxismo no que se refere ao estudo da consciência, da linguagem e
de formações ideológicas concretas como a arte (PONZIO, 2012, p. 71).
Além dessas, é possível notar outras semelhanças nas produções entre os
russos.
A língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical
– não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas
mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós
mesmos reproduzimos na comunicação discursiva. [...] Aprender a falar
significa aprender a construir enunciados (porque falamos por
enunciados e não por orações isoladas [...] (BAKHTIN, 2010, p. 282283)
O Freudismo, obra tributada à Bakhtin/Volochinov, estabelece uma crítica forte e
pontual à Psicanálise de Sigmund Freud (1856 – 1939). É oportuno trazê-la aqui por
alguns motivos. O primeiro deles é por seu próprio conteúdo: ao criticar a obra
freudiana, os membros do Círculo tangenciam muitas questões correlatas à Aquisição
da Linguagem verbal, como consciência, discurso interior e a presença histórico-sócioideológica na aprendizagem, e expressão individual.
Outro fator de destaque é que das vertentes discursivas na área de estudos
aquisicionistas, seja de língua materna ou estrangeira, em que há uma forte herança
lacaniana, sobretudo em território nacional, como é o caso das pesquisadoras
responsáveis por parte considerável da produção da área no país, Cláudia e Maria De
Lemos.
Este é um dos elementos que justificam e oportunizam um diálogo bakhtinano
nesta área, tendo em vista, a discrepância na concepção de linguagem e de sujeito
entre Lacan e Bakhtin e o Círculo. Pois, em uma das bases dos estudos de Jacques
Lacan se encontra o Estruturalismo saussureano e uma prática marxista que se
distanciam das reflexões de Bakhtin acerca da linguagem e ideologia, por exemplo.
Outro fator que legitima nossa decisão é o de ponderarmos uma inserção da
palavra bakhtiniana em um corpo epistemológico específico, o Interacionismo, tendo em
vista suas afinidades com o teórico fundador da referida escola, Vygotsky. As
73
produções do Círculo, dessa forma, afetariam, por suas especificidades, a identidade
do interacionismo, outorgando-lhe uma nova manifestação: o interacionismo dialógico.
Entre semelhanças e divergências com as demais vertentes sobre a
aprendizagem,
o
interacionismo
dialógico
poderia
ser, em função
de
suas
singularidades, uma opção.
Figura 4 – O Interacionismo dialógico
Para pensarmos uma psicogênese dialógica refletiremos, primeiramente, sobre
uma das pedras de toque dos estudos de psicogênese, aprendizagem, consciência
(mente cérebro): o discurso interior.
74
2.4.1 - Para uma Identidade Dialógica: O Discurso Interior
O Organismo e o mundo encontram-se no signo.
Bakhtin/Volochínov
“Há um universo dentro de nós”, corre às bocas desavisadas, “Grandes mistérios
habitam o limiar do meu ser [...]”, poetiza o escritor português; a poeta cuiabana36, por
sua vez, denuncia: "Quantas declarações [...] já não morreram sufocadas na garganta".
De fato, são vozes – gritos – autorreflexão – imprecações – epifania e confissões, um
turbilhão de sentidos. O certo é que há um barulho, uma balbúrdia, uma festa plurivocal
dentro de cada sujeito, seus limites e natureza são insatisfatoriamente conhecidos. O
silêncio que ocupa seu lugar constitui-se num vazio que significa. Sonhos, projeções de
dizer, lapsos de genialidade e subvertidas memórias desordenadamente se ordenam e
fundem-se no discurso interior, neste reduto, sua morada, chamado consciência.
E nos quedamos frente a isso como um teórico que, apesar de viver apenas 38
anos, produziu muito a respeito: “O significado e todo o aspecto interior da linguagem, a
sua faceta que se encontra voltada para a pessoa e não para o mundo exterior, tem
constituído até hoje um território desconhecido.” (VYGOTSKY, 1991, p. 129).
A neurociência cognitiva e a própria filosofia reconhecem há tempos a indefinição
do chamado problema da consciência ou o problema mente-cérebro, parte considerável
desse dilema é tributado ou se relaciona à questão, ainda não resolvida em sua
inteireza, do discurso interior. Seja em questões como a organicidade da consciência
ou sua identidade enquanto fenômeno humano, tais assuntos tocam diretamente o
material que, para algumas e diferentes bases teóricas, engrena parte considerável da
consciência: a palavra, o signo, o discurso interior.
[...] a própria compreensão não pode manifestar-se senão através de um
material semiótico (por exemplo, o discurso interior), que o signo se
opõe ao signo, que a própria consciência só pode surgir e se afirmar
como realidade mediante a encarnação material em signos.
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 32)
36
Fernando Pessoa e Lucinda Persona, respectivamente.
75
Em nossa perspectiva teórica, a assertiva de que o humano é constituinte e
constituído da e pela linguagem possui poucas e insustentáveis refutações. Para além
de definições e catalogações historiográficas, uma concepção aceitável do discurso
interior, todavia, levanta-se como uma questão primordial para sedimentar uma tela
sobre o fenômeno da linguagem. Se o que sabemos sobre a linguagem verbal
corresponde a um percentual deficitário, muito menos captamos sobre sua identidade
interior. Isso, em nosso ver, é decisivo para tornar inteligível o processo de Aquisição de
linguagem. Até mesmo Piaget (2002) localiza a fala egocêntrica como determinante
para a alçada humana ao sentido.
A criança não está de modo algum sozinha em face do mundo que a
rodeia. As suas relações com o mundo têm sempre por intermediário a
relação do homem aos outros seres humanos; a sua atividade está
sempre inserida na comunicação. A comunicação, quer esta se efetue
sob a sua forma exterior, inicial, de atividade em comum, quer sob a
forma de comunicação verbal ou mesmo apenas mental, é a condição
necessária e específica do desenvolvimento do homem na sociedade.
(LEONTIEV, p. 267, 1978)
Sua ordem insondável estabelece, ao mesmo tempo, o modesto reconhecimento
da insuficiência de manejo e entendimento da linguagem e, seguidamente, a
necessidade duma compreensão acurada sobre sua natureza. Da imbricada relação
entre insuficiência e necessidade, tomamos, nesta seção, a decisão de articular as
palavras de três teóricos russos sobre o assunto: Lev Vygotsky, Valentin Volochínov e
Mikhail Bakhtin.
A então URSS não fora apenas o único ponto de convergência entre estes. A
dialética marxista, o terreno gélido, a primeira metade do século XX (em particular o
testemunho da revolução e efervescência científico-cultural de 1917), além de uma
visão dialógica da vida e da linguagem são atributos também por eles compartilhados.
Refletir acerca da linguagem interior condiciona problemas que transcendem as
próprias questões linguísticas. A controvertida definição de mente, cérebro, consciência
e pensamento é um bom exemplo da complexa rede que envolve o exercício de
linguagem. Não sendo indiferentes às ciências da cognição, bem como às ciências
humanas que perpassam os estudos de linguagem, daremos predileção aos expressos
76
autores no intento de, articulando suas palavras, perceber as confluências entre estes
sobre o assunto e, a partir disso, instaurar um novo olhar sobre o discurso interior.
77
3- CAPÍTULO 3 – POR UMA AQUISIÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM
A natureza dialógica da consciência. A natureza dialógica da própria
vida humana. [...] A vida, por sua própria natureza é dialógica. Viver
significa participar de um diálogo: fazer perguntas, prestar atenção,
responder, concordar [...] Nesse diálogo, uma pessoa participa
totalmente e com toda a sua vida: com os olhos, lábios, mãos, alma,
espírito, com todo o seu corpo e todas as suas ações. Ela investe todo o
seu eu no discurso, e esse discurso entra no tecido dialógico da vida
humana, no mundo do simpósio.
Bakhtin37
Neste capítulo, em continuidade ao anterior, assumimos alguns compromissos:
pensar a vertente interacionista, pensar a possibilidade de incluirmos nela Bakhtin, e
refletir as afetações de Bakhtin em tal vertente, a fim de verificar as singularidades
promovidas pela presença do Círculo e de Bakhtin neste território e, por efeito disto,
estabelecer a possibilidade de uma Aquisição Dialógica da linguagem.
3.1 – Em Três Concepções: uma quarta via
Apesar de genéricas, tendo em vista a diversificada manifestação em tempo e
estudo que abarcam, as três concepções de linguagem são convenientes para uma
ideia sintética das visões sobre o fenômeno verbal, bem como da percepção que estas
visões teriam sobre o discurso interior.
Se a linguagem expressa o pensamento, como afirma a primeira concepção da
linguagem, o discurso interior, além de distinto da realidade externa da linguagem
verbal, com ela não possuiria relações. Assim, as enunciações teriam um estatuto de
tradução da realidade psíquica. O que nos conduziria, por exemplo, a supor que aquele
se não expressa exteriormente, não pensa ou que em determinada língua se pensa
com mais profundidade que em outra. (GERALDI, 1984, p. 43). Afinal,
No fundo toda a tradição científico-filosófica acerca da linguagem a toma
como uma espécie de exteriorização de conteúdos cognitivos ou
mentais que seriam subjetivados e aparentemente inacessíveis ao
investigador. Afinal, para os antigos, a linguagem, essa espécie de “dom
37
Bakhtin 1979, p. 293 (apud MORSON; EMERSON, 2008, p. 78)
78
divino” dado ao homem (portanto, inata, essencial, verdadeira, lógica e
transparente), não se confundia com a realização humana (a fala), que a
deformava, mas com a mente (o espírito), que a continha. (MORATO,
2003, p. 149)
Na reflexão saussureana, por exemplo, cada pensamento empreenderia um
dicotômico sentido configurado, basicamente, pela imagem e pelo sentido dela
projetado, após a recepção dum estímulo psicofisiológico. Seriam os signos linguísticos
os responsáveis pelo funcionamento da comunicação verbal, o que leva a uma
valorização do sistema linguístico em detrimento de outros componentes do ato
comunicativo.
Essa
relevante
vertente
linguística,
reunida
a
extensões
do
Estruturalismo como a Teoria da Comunicação, de Roman Jakobson, forjou a segunda
concepção da linguagem. Nela, a linguagem é vista como um instrumento de
comunicação capaz de, por meio de códigos, produzir sentido, justificando, de maneira
mecânica, a complexidade de um diálogo por meio da existência de emissor, receptor e
uma mensagem.
Se as enunciações da vida cotidiana são desarticuladas da realidade com
predileção a um sistema semiótico de unidades estanques e, por isso, rasas,
resumindo-se a um contexto insuficiente, descontextualizado, em relação à realidade
comunicativa, o mesmo é estendido ao discurso interior. Essa posição é contrariada
pela terceira concepção da linguagem.
Advinda das linguísticas enunciativo-discursivas de base materialista, a terceira
concepção da linguagem reconhecida como ‘a linguagem como interação verbal’,
destoa em alguns aspectos das anteriores. Nela, a linguagem verbal ganha status
especial, pois é percebida como engrenagem das relações sociais, seria tão do homem
que se configuraria como pontes lançadas entre o eu e o outro. Todas as práticas
sociais seriam permeadas e exercidas pela linguagem.
Poderíamos identificar o
discurso interior, sob esse novo prisma, de algumas formas, tendo em vista o número
de correntes que a base materialista, reunida com manifestações epistemológicas
distintas, gerou.
Durante o século XX, houve um avanço considerável de pesquisas no campo
das ciências da cognição, o que contribuiu para novos olhares sobre a consciência e,
79
indiretamente, sobre o discurso interior. Outro apontamento importante é o fato de que,
apesar de compartilharem da filosofia marxista, as correntes linguísticas vinculadas à
terceira concepção da linguagem conflitam em algumas especificidades teóricas como a
noção de ideologia, ou o conceito de sujeito falante. Todavia, tais dissensões são
atenuadas pela ideia nuclear: a interação.
A enunciação enquanto tal é um puro produto da interação social, quer
se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo
contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de
uma determinada comunidade lingüística. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,
2006, p. 124)
Os teóricos escolhidos para esta reflexão (e os membros do Círculo de
intelectuais do qual dois, dos elencados, faziam parte) residem num local particular em
tais questões, pois realizam uma releitura singular de pontos basilares dos paradigmas
marxistas. Isto ocasionou, consequentemente, uma visão independente sobre o
exercício de linguagem e do discurso interior, e é justamente esta visão que adotamos
aqui.
Observamos, com essas informações, uma espécie de quarta via das
concepções de linguagem, ao menos uma prática um pouco distinta da terceira
concepção. Este é, salientamos, o lócus que possibilitou pensarmos as ideias do
Círculo e a corrente interacionista e deste modo ponderar uma Aquisição dialógica da
Linguagem.
As concepções oportunizam o surgimento de duas questões: Qual a natureza da
linguagem exercida internamente? Seria recíproca à identidade do sentido expresso
exteriormente? Para respondê-las, é necessário definições com clareza por parte da
esteira teórica escolhida para esta reflexão. O psicogeneticista Vygotsky tem papel de
vanguarda ao refutar as concepções piagetianas sobre o processo de aprendizagem e
desenvolvimento da criança e, nesse exercício, instaura um autêntico lugar teórico
inaugurando uma forte vertente, o interacionismo.
No que concerne ao discurso interior não é diferente, enquanto Jean Piaget
qualifica o discurso egocêntrico, implementado nos primeiros anos de vida, como
80
independente do discurso interior, Vygotsky aponta uma relação entre estes, sendo que
o processo de socialização promove uma paulatina alteração de discurso: duma baixa
até uma elevada performance social. Afinal:
O discurso egocêntrico desenvolve-se segundo uma curva ascendente e
não segundo uma curva descendente: segue uma evolução não uma
involução. No termo dessa evolução transforma-se em discurso interior.
(VYGOTSKY, 1991, p. 112)
Ponto de semelhança entre Bakhtin e Vygotsky é o refinado trato discursivo para
defender suas impressões científicas, talvez pela reciprocidade dialógico-materialista
ambos instauram seu pensamento num terreno substancioso de conhecimento e
reflexão sobre palavras alheias e contrárias às suas. Continua o psicólogo russo: “[...]
se deve encarar o discurso interior, não como um discurso sem som, mas como uma
função discursiva totalmente diferente.” (1991, p. 117). E mais à frente, sobre o
exercício da escrita, cria uma bela alegoria sobre quando se projeta ou pensa o que se
escreverá: “[...] trata-se também de um rascunho, embora apenas em pensamento. [...]
este rascunho mental é um discurso interior.” (p. 122). Numa leitura descuidada, a ideia
de rascunho pode promover a noção de inferioridade ou volatilidade do discurso
interior, no próprio Vygotsky, no entanto, verificamos, há pouco, que se trata de uma
manifestação discursiva diferente e não necessariamente inferior ou indefinida.
Volochínov auxilia com o seguinte percurso dialético: Se o insumo que subsidia a
expressão é, necessariamente, exterior (pois é dele que se originam as possibilidades
de significação), é razoável ponderar que o discurso interior, por ser da ordem do
sentido, possui correspondências com a dinâmica e essência daquilo que significa
exteriormente. “Toda a vida interior do homem depende dos meios que lhe servem para
expressá-la.” (VOLOCHÌNOV, 2013, p. 155). O sentido interno tem relações com o
sentido externo. A imagem amorfa e desordenada comumente atribuída ao discurso
interior se assemelha de certa forma, com a enunciação do falante no mundo exterior
de sentidos (prévios futuros e presentes).
A presença exotópica de outrem e dum horizonte social são garantias que há
uma reciprocidade identitária entre estes discursos. Um argumento ainda mais
essencial é o de que, sendo verídica a premissa vygotskyana de que o pensamento é
81
verbal, não é possível desvincular o material de significar dos polos intra e
interpsíquicos. Vale acrescer que tal hipótese fora antecipada pelo filósofo alemão J.G.
Herder do séc. XVIII, este: “[...] afirma a inseparabilidade de linguagem e pensamento:
a primeira é a forma, o conteúdo, o instrumento do pensamento humano.”
(FRANCHETTO;LEITE, 2004, p. 22)
Os pensadores do Círculo corroboram com a
referida premissa no capítulo sobre o psicologismo de Marxismo e Filosofia da
Linguagem: “a compreensão é dialógica” (BAKHTIN;VOLOCHINOV, [1930] 2006, p. ).
São dialogias ou facetas do mesmo dialogismo.
Para a tríade russa aqui erigida como sedimento teórico, o discurso interior está
para além da representação do mundo exterior de forma autômata. Um propulsor
imprescindível para o desenvolvimento inter e intrapsíquico.
As palavras não se limitam a exprimir o pensamento: é por elas que este acede à
existência (...) O pensamento sofre muitas alterações ao transformar-se em fala. Não se
limita a encontrar expressão na fala; encontra nela a sua realidade e a sua forma.
(VYGOTSKY, 1939 apud GOLDGRUB, 2001). Ao passo que, apesar de expressarem
com elementos e realidades um pouco diferentes, a realidade do discurso interior seria
a de microdiálogo. Uma versão microcósmica com mesma essencialidade discursiva do
discurso exterior. Essa nomenclatura é utilizada por Medvedev em Método Formal nos
estudos literários (2012).
Essa dinâmica vê-se clarificada numa dedicada observação do próprio
sentido/significado, pois é justamente o ponto de confluência dos elementos presentes
na cadeia comunicativa, bem como na realização do fenômeno do sentido, sobre isso
afirma Vygotsky: “É no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem em
pensamento verbal. É no significado, então, que podemos encontrar as respostas às
nossas questões sobre a relação entre o pensamento e a fala”. (1991, p. 5).
Haveria, dessa forma uma relação dialógico-dialética de contaminação recíproca
entre os discursos exterior e interior. A essência de sentido apodera-se, como um filtro,
a fim de significar. Seja no processo de expressão verbal exterior da dinâmica verbal
interior, seja o processo de tornar inteligível mentalmente os eventos discursivos
exteriores. (BAKHTIN, VOLOCHINOV, 2010, p. 66, 67)
82
Bakhtin/Volochínov elevam essa reflexão sensivelmente, dedicando-se a uma
visão profunda de sua natureza, valorando não apenas a dinâmica do próprio discurso
interior, como também mirando e lançando a posição do signo ideológico entre os
limites social x individual, cultural x orgânico, afirmando que o signo é o lugar do homem
enquanto sujeito social, que erige mundos e representa, mais que isso, o material
semiótico é o corpo de ligadura entre a base orgânica e o que chamamos de mundo
consciente.
A semiose seria, nesse sentido, o lugar de definições sobre os dilemas do
fenômeno da linguagem, o que inclui o discurso interior. O atribuir sentido, o que
significa o estado condenatório do homem de significar, “[...] face a um sujeito que está
condenado a interpretar [...]” (ORLANDI, 1999), a insuficiência da realidade vista e o
anseio por entes e mundos que não bastam, em poucas palavras, o signo ideológico,
na percepção do Círculo é o lócus propulsor e emergente das práticas humanas.
A linguagem em suas variadas manifestações semióticas, nesse sentido, possui
um grande valor. Não opera como tradutor de pensamentos, como assimila a primeira
concepção da linguagem, ou como instrumento comunicativo na visão estruturalista,
mas como a localidade limítrofe entre o sujeito e a realidade.
Remetendo à epígrafe dessa seção, compreendemos, portanto, o discurso
interior como o ponto de encontro entre o organismo e o mundo. “A linguagem interior é
a esfera, o campo em que o organismo passa do ambiente físico ao social. Nele se dá
toda a sociologização de todas as reações e manifestações orgânicas” (VOLOCHÍNOV,
2013, p. 151). O signo seria a engrenagem fundamental que subsidia a consciência, de
forma que o sujeito não apenas se configura socialmente, mas que sua consciência
(semiótica) se estende para o ambiente social que, em mesma intensidade, caminha a
seu encontro. Um sujeito alteritariamente construído em outras palavras. Pois: “[...] todo
campo da vida interior, todo o mundo de nossas sensações, move-se numa área que o
situa entre o estado fisiológico do organismo e a expressão exterior.” (idem). De sorte
que:
A completa falta de ser, similar ao estado de inconsciência, ou ao sono
sem sonhos. Para voltar ao estado normal “consciente” deveremos
romper esse muro do não-ser, regressar à confusão viva das palavras e
83
das imagens com que tomam corpo nossos pensamentos, desejos e
sentimentos; deveremos pronunciar palavras para nós mesmos, ainda
que seja somente uma pequena palavra, “eu”. Chamaremos a esse fluxo
de palavras que observamos em nós mesmos de linguagem interior.
(VOLOCHÍNOV, 2013, p. 146-147)
E sem este ainda indefinido e cativante fenômeno, tão intrínseco a nós, relemos
Volochínov (idem, ibidem): “Não somos Nada”.
3.2 – Estudos aquisicionistas e Bakhtin
O percurso editorial de Mikhail Bakhtin foi conturbado, de forma semelhante à
jornada de sua própria vida, vale dizer. Uma personalidade ímpar suprimida em muito
tempo pela pertença à vida comum, às mudanças territoriais, ao exílio marginalizante, à
doença e às necessidades cotidianas. A despeito da inflamada discussão sobre a
autenticidade de alguns textos e a legitimidade autoral de outros38, Bakhtin e os demais
membros do Círculo tiveram dificuldades de publicação mesmo na União Soviética.
Décadas foram necessárias para o Ocidente, por meio de portas francesas, ouvir o
ressoar dialógico de vozes tão destoantes da realidade científica e filosófica da época.
Certo tempo foi preciso para as ideias do Círculo serem assimiladas, e muitas delas,
consideramos, ainda hoje não o sejam.
O ano de 1979 assistiu a primeira tradução em solo brasileiro, Marxismo e
Filosofia da Linguagem (tradução da língua francesa). No início da mesma década,
todavia, os escritos bakhtinianos já eram lidos por estudantes de pós-graduação. O
professor da Universidade de São Paulo, Boris Schnaiderman, é o nome de vanguarda
nesse aspecto, pois fora o responsável por introduzir as questões do teórico russo em
suas aulas de literatura. (ORNELLAS, 2010).
38
Como aludimos anteriormente, durante o convívio com o Círculo foram publicadas obras e artigos
assinados pelos integrantes do grupo. Essa questão gerou polêmica, porque há casos de livros
publicados sob a assinatura de Volochínov e Medvedev postos em dúvida se seriam mesmo destes
autores
ou
se
elaborados
por
Bakhtin
(ORNELLAS,
2010)
Disponível
em:
<https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero43/brabaj.html>. Acesso em: 23 jul 2014.
84
Após a entrada de Bakhtin na realidade acadêmica do país, sobretudo na década
de 1990, houve uma profusão de estudos bakhtinianos, sobretudo relacionados à
realidade educacional de Língua Portuguesa e dos Gêneros Discursivos, contudo, um
tempo maior decorreu para que surgissem trabalhos que articulassem Bakhtin e o
fenômeno da aquisição da linguagem.
Os trabalhos aquisicionistas de orientação bakhtiniana em nosso país
testemunharam, nestes últimos anos, uma ascensão ainda não vista. Antes desse
período fértil, entretanto, é possível localizar textos em que tais assuntos convirjam. É o
caso da obra Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin, de Solange Jobim e
Souza, e Vygotsky e Bakhtin – Psicologia e educação: Um intertexto, de Maria Tereza
Freitas, ambas publicadas em 1994.
Mais direcionado à Aquisição de Linguagem é o artigo de Komesu, O Dialogismo
na Aquisição (2002), um dos primeiros trabalhos que articulam conceitos bakhtinianos
para pensar a Aquisição com ferramentas enunciativo-discursivas de análise. Rosana
Hilário (2010) se envereda num caminho semelhante, com sua pesquisa intitulada:
Contribuições de Bakhtin para os Estudos em Aquisição De Linguagem. Já Del Ré,
influenciada por teóricos como Frédéric François e Anne Salazar-Orving (1999), utilizase de sua formação psicolinguística (2006) para analisar, sob um viés bakhtiniano,
entre outros assuntos, a ironia no universo infantil (2011).
As duas autoras elencadas, Hilário e Del Ré, juntamente com Jaqueline Viera e
Marina Mendonça, entre outros, coordenam Grupos de Pesquisas responsáveis por
trabalhos e discussões relevantes que tangenciam nossas principais inquietações:
Aquisição de Linguagem e estudos bakhtinianos.
GEALin – SLOVO – NAlingua e
GED39. Recentemente duas obras40, oriundas desses grupos de pesquisa, ganham
destaque nos estudos aquisicionistas de orientação bakhtiniana.
GEALin-FCLAr – Grupo de Estudos em Aquisição da Linguagem, da Faculdade de Ciências e Letras
da Unesp, Araraquara, Nalingua – Núcleo de Estudos em Aquisição da Linguagem, Unesp, Araraquara;
GED- Grupo de Estudos Discursivos, Unesp, Assis; SLOVO, Grupo de Estudos do Discurso, UNESP,
Araraquara (DEL RÉ et al, 2014 p. 18).
40 ______. Alessandra; PAULA, Luciane; MENDONÇA, Marina (orgs). A linguagem da criança: um
olhar bakhtiniano. São Paulo: Contexto, 2014.
39
85
A teoria bakhtiniana tem reverberado em diversas áreas nos últimos tempos,
pensamos em Bakhtin e no Círculo, mas também com eles. É o que se manifesta nos
estudos com patologias no uso da linguagem, por exemplo. Podemos citar, ainda, a
professora da Unicamp, Rosana Novaes-Pinto, que tem feito reflexões sobre a afasia,
repensando a Neurolinguística Discursiva sob um viés dialógico.
Uma necessidade e um desafio que vislumbramos, para alçar novos degraus, é
pensar com Bakhtin e o Círculo a Aquisição de linguagem e não apenas utilizar
conceitos e elementos de sua teoria para os estudos aquisicionistas. Tal reflexão é o
que buscamos iniciar nas próximas etapas da dissertação.
3.3 – Aquisição Dialógica: apropriação, constituição, internalização...
Mesmo os gritos de um recém-nascido são orientados para a mãe.
Bakhtin/Volochinov (2010)
Uma exigência conceitual logo surge ao tomarmos esse caminho: o da Aquisição
da Linguagem. A exigência se justifica, inicialmente, por dois motivos: a) na própria área
de aquisição há uma conflituosa rede de nomenclaturas que oscilam entre aquisição x
internalização ou constituição x apropriação, por exemplo. E b) alguns textos
bakhtinianos, ao menos indiretamente, não assumem expressões como Adquirição ou
Aquisição para o fenômeno do despertar humano para o sentido, isso poderia trazernos um problema de ordem conceitual. Pois, como falar em Aquisição dialógica, se
textos do Círculo apontam para outra percepção?
Ao levarmos, no entanto, em conta os fundamentos materialistas do Círculo e de
Bakhtin, e a consideração de uma Análise Discursivo-Dialógica resultante destes,
vemos que seria possível e adequado utilizarmos o termo Aquisição. Antes de justificar
o porquê de nossa escolha, vejamos alguns fragmentos em Bakhtin e Volochínov são
indispostos à aquisição em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2010):
______. Alessandra; PAULA, Luciane; MENDONÇA, Marina (orgs). Explorando o discurso da criança.
São Paulo: Contexto, 2014.
86
Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma
de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua
pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação
verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que
sua consciência desperta e começa a operar. (p. 109)
E, mais à frente declaram: “Os sujeitos não “adquirem” sua língua materna; é
nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência”. (p. 110).
Numa primeira leitura, pode se pensar que seria impossível coadunar a
expressão Aquisição à filosofia bakhtiniana da linguagem. Não chegamos à mesma
conclusão, haja vista que essa decisão conceitual é dependente da forma com que
concebemos o que seja Aquisição e, articuladamente, sobretudo, o que seja linguagem
e sentido.
Antes, porém, reconhecemos que há uma certa dificuldade em se encontrar um
termo que exprima, com clareza, o fenômeno do despertar da consciência e atividade
de significar numa ótica bakhtiniana. O que nos serviria? Constituição? Apropriação?
Internalização da linguagem? Todos, em nosso ver, prefiguram como signos que são
em diferentes áreas de estudos, diferentes concepções ideológicas acerca da
linguagem que, de algum modo, se afastariam da de Bakhtin e do Círculo sobre a
linguagem. Sobre o termo internalização, por exemplo, Damasceno afirma sobre Alexei
Leontiev, o companheiro de pesquisa de Vygotsky:
[...] prefere o termo “apropriação” ao invés de “internalização” para
designar o caráter ativo da aprendizagem. O conceito de
internalização dá maior valor ao papel da sociedade (do exterior)
na gênese das funções psicológicas superiores, enquanto o de
apropriação ressalta o papel (do interior) do sujeito, de sua
personalidade, de seus aspectos emocionais e motivacionais, que
lhe fornecem a razão fundamental e a energia necessária para se
engajar ativamente nas tarefas. (DAMASCENO, 2004, p. 6)
Nessa conjuntura, propomos o termo Aquisição Dialógica da Linguagem porque,
primeiramente, o termo não esvazia a possibilidade de se avaliar o processo de
maneira integralizada e compartilhada. É possível pensar em níveis de aquisição, visto
que a questão a ser dirimida é a de como a criança adquire e não necessariamente se
se adquire ou não. De maneira autônoma e individualista, como visto na acepção
87
chomskyana, nossa observação mais direta nos autoriza a dizer que não. Justamente,
é essa percepção reducionista de adquirir, em específico a da vertente objetivista
abstrata, que Bakhtin/Volochínov refutam em Marxismo e Filosofia da Linguagem. No
mesmo texto, alegam que:
O processo pelo qual a criança assimila sua língua materna é um
processo de integração progressiva da criança na comunicação verbal.
À medida que essa integração se realiza, sua consciência é formada e
adquire seu conteúdo. (2010, p. 110)
Por outro lado, a área de Aquisição de Linguagem tem legitimado sua autonomia
já algum tempo, forjada na interdisciplinaridade e variedade de pesquisas. De certa
forma, a expressão “Aquisição” transcendeu sua primeira utilização. É como alegar que
Mikhail Bakhtin não fora um linguista41, pois entra em desacordo com algumas
premissas da percepção estruturalista de Ferdinand de Saussure, fundador da ciência
linguística. Não concebemos assim, uma vez que ambos, com olhares e posições
ideológicas diferentes, miravam o mesmo objeto: a comunicação verbal.42
3.4 – Consciência como linguagem
A linguagem é tão antiga como a própria consciência e se a linguagem é
a consciência-para-os-outros prática e conseqüentemente, consciênciapara-mim, então não apenas um pensamento particular mas toda a
consciência está vinculada à palavra. A palavra é algo em nossa
consciência, como disse Ludwig Feuerbach, totalmente impossível para
uma pessoa, mas que se torna uma realidade para duas. A palavra é a
expressão direta da natureza histórica da consciência humana.
A consciência se reflete numa palavra como o sol na gota d’água. Uma
palavra se relaciona à consciência como a célula viva se relaciona ao
organismo em sua totalidade, como um átomo se relaciona com o
universo. A palavra é um microcosmo da consciência humana.
Vygotsky43
41
Apesar do próprio Bakhtin apresentar-se como um filósofo, um pensador, que tentava estabelecer uma
translinguística ou metalinguística.
42 Em seu artigo Heterocientificidade nos estudos linguísticos, Wanderlei Geraldi, expressa algo
semelhante. (GEGE, 2012, p. 22-23)
43 Apud Goldgrub 2001, p. 82
88
É justamente num problema que, de alguma forma, precede as discussões sobre
o fenômeno da aquisição de linguagem, o problema mente-cérebro ou problema da
consciência, a região que possibilita tangenciar as palavras de Bakhtin, Vygotsky e
Lacan.
Seria difícil apontar quem, entre os três, possui papel vanguardista no assunto.
Vygotsky, no entanto, destaca-se, uma vez que: “É lícito considerar, com base em
Pensamento e Linguagem, que seu próprio objetivo teórico consistia em elucidar, nada
mais nada menos, a relação entre consciência e linguagem.” (GOLDGRUB, 2001, p.
82).
Há uma convicção, em Marxismo e Filosofia da linguagem, sobre a materialidade
da consciência, bem como o vínculo indissolúvel entre esta e o social: “Fora de sua
objetivação, de sua realização num material determinado (o gesto, a palavra, o grito), a
consciência é uma ficção.” (2010, p. 122). A consciência tem uma existência real e
representa um papel na arena do ser. Diferentemente do apregoado pela psicanálise
freudiana, não é possível pensar um sujeito que se constitui de maneira ilhada e
autônoma. Por mais forte que seja as propensões orgânicas/naturais, o humano possui
em seu gene a tendência a ser social.
Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do
mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros [...] com a sua
entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional. A princípio eu tomo
consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as
formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim [...]
Como o corpo se forma inicialmente no seio (corpo) materno, assim a
consciência do homem desperta envolvida pela consciência do outro.
Mais tarde começa adequar a si mesmo. (BAKHTIN, 2010, p. 373).
Neste processo de relações inter e intrapsíquicas há uma invasão que se inicia
logo nos primeiros contatos, nos processos de mimese por parte da criança, por
exemplo, o social infiltra-se no organismo do indivíduo. (BAKHTIN apud PAULA et al,
2014, p. 129).
89
3.5 – Palavra bakhtiniana
O sentido é de fato a condição fundamental que todas as unidades de
todos os níveis devem preencher para obter status linguístico.
(BENVENISTE, 1995)
O cenário é comum, ambiente doméstico/familiar de relacionamento entre Pai e
Filha... No diálogo com seu pai a menina Isabela44, com recursos de uma aparente
proto-linguagem, vocifera a seu tutor o anseio de ser assistida pela liberdade presente
em uma porta aberta: “Não fecha a porta! Tá, pode ser?!”. Há uma forte entoação 45
(que diz mais que as próprias palavras em alguns momentos), sentenças e palavras
articuladas numa precisão estrutural profundamente exemplar e há um todo que
significa. Literalmente há um diálogo, sem pares desnivelados, sem compromissos
superficialmente normativos, nossos personagens são ao mesmo tempo, no que
concerne ao sentido, inteiramente autônomos e ao mesmo dependente um do outro.
Estão ligados pelo elo invulnerável e inescapável do significar...
A menina Isabela nos encanta, gerando, inicialmente, sentimentos entre o senso
de paternidade e a admiração pelo mistério da simplicidade.
Após essas afetações paternais, todavia, somos consumidos pela perturbadora
constatação de que um serzinho, cuja base orgânica ainda não fora maturada
suficientemente46, imprime na realidade da vida sua legítima participação de sentido.
Visita-nos, dessa forma, inquietações sempre presentes nos estudos de linguagem e na
filosofia que nos auxiliam a (re)pensar o processo de Aquisição de Língua materna.
Afinal como significamos o mundo? Qual a relação entre a realidade simbólica e
realidade física? Como a linguagem funciona na mente? Ou qual sua relação com a
consciência? De maneira mais localizada indagam Bakhtin/Volochínov, questionando a
44
O vídeo Não fecha a porta, tá? Tranquilo?, Em que pai e a filha dialogam sobre um fato cotidiano, pela
simplicidade e cativação, viralizou nas redes virtuais. Para nós, um bom exemplo do exercício do
complexo fenômeno da linguagem verbal em suas fases iniciais. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=hPYf951wQ1M&list=UU5plBLsekBX9bQd_EZWYXfw&index=13>.
Acesso em: 23 jul. 2014.
45 Entoação: “O aspecto menos estudado da vida do discurso. Não é o mundo dos tropos, porém o
mundo dos tons e matizes pessoais [...]” (BAKHTIN, 2010, p. 391).
46 Fato interessante no terreno dos estudos aquisicionistas: aqueles que se encontram em etapas
primárias, tidas por alguns como inferiores, do desenvolvimento cognitivo possuem, paradoxalmente,
condições mais amplas de progresso na mobilidade motora ou aprendizado de uma língua estrangeira,
por exemplo.
90
Linguística de seu tempo: “No que consiste o objeto da filosofia da linguagem? Onde
podemos encontrar tal objeto? Qual é a sua natureza concreta?” (2006, p. 68) Enfim, o
que podemos ou devemos estudar?
Há, como descrevemos há pouco, algumas manifestações dialógicas de
pesquisa na área de Aquisição, um desafio é erigir análises dialógicas sobre os eventos
discursivos do falante inicial, a fim de, em experiências epistemológicas, metodológicas
e analíticas, consubstanciar uma Aquisição Dialógica da Linguagem, enquanto área e
fenômeno humano. Algumas pesquisas já possuem a identidade bakhtianiana como
expresso anteriormente. É um desafio, com medidas de difícil mensurabilidade,
catalogar os eventos discursivos presentes na vida, levando em conta a historicidade e
multiplicidade de elementos sociais e linguísticos presentes nos enunciados concretos.
A pesquisadora Fabiana Komesu, como veremos mais abaixo, implementou uma
tentativa, no artigo Diálogo e Dialogismo no Processo da Aquisição da Linguagem
(2002), aqui compartilhamos suas ideias e, sobretudo, inquietações centrais, pois seu
escopo era tangenciar conceitos bakhtinianos à área de Aquisição da linguagem.
A autora lança mão de um conjunto de dados presentes em uma importante
plataforma de dados nacional, a do Projeto de Pesquisa em Aquisição da Linguagem da
Unicamp que, como sabemos, possui importante papel na história e valor dos estudos
aquisicionistas no Brasil.
M. Cê gosta do Danilo?
A. Danilo muito bonzinho. Deu uma bicicleta pra mim... Aquela! Mas o
meu pai não é bon- zinho, quero que / meu pai comprou essa daqui não,
porque essa daqui é feia, né? Vai sobrar pra Juliana agora...
M. Vai o quê?
A. Vai sobra pra Juliana!
M. Essa aqui?
A. Banquinho dela! Pode ligar rádio!
M. Esse banquinho, pra pôr rádio por cima, né?
A. É. Ela pode ligar / ela pode mexer aqui, mas sem / sem 'sagar.
M. Hum-hum. Sem estragar.
A. Mas quando ela ficar grande, né? Ficar nenezinha assim...
M. Maiorzinha...
(Série Anamaria, 3;9.20. Arquivo Cedae/Unicamp)
91
(KOMESU, 2002, p. 55-56)
Os diálogos da criança que constituem o corpus de análise de Komesu que,
aliás, é filha de uma das pesquisadoras que acompanham Cláudia Lemos em seus
estudos, descrevem uma cena cotidiana de relacionamento entre a menina Ana Maria e
sua Mãe e adultos. Precisamente “A menina expressa à mãe os sentimentos por Danilo,
a pessoa que lhe deu uma bicicleta, supostamente melhor do que aquela com a qual
estava brincando na varanda de sua casa [...]” (idem, p. 56). Na análise, a autora se
serve de reflexões feitas por De Lemos em sua primeira leitura de Bakhtin. E avança
explorando novos conceitos do filósofo russo. Nesse processo articula as ferramentas
analíticas já existentes na área de Aquisição coadunados ou tendo como suporte
conceitos bakhtinianos.
A qualidade da análise apresenta não apenas conquistas para entender o
universo do infante em seu processo de aquisição da língua materna, mas da mesma
forma, demonstra a criteriosidade metodológica necessária para uma análise dialógica
que não estanque os exercícios de linguagem da criança numa virtualidade
descontextualizada.
Este anseio de trabalhar com o sujeito falante de enunciados da vida
efetivamente é visto na prática de outros pesquisadores também. Como explicitam as
autoras no excerto abaixo, em que se inspiram em Bakhtin ao recordar a constatação
realizada pelo pensador russo em que assinala os gêneros como o lugar de
aprendizado da língua(gem):
Partir do princípio de que a criança entra no mundo da língua(gem) pelo
gênero significa dizer que ela adquire enunciados que fazem parte de
um cenário: o das conversas em família, [...] o que significa que existe
todo um universo linguístico que acompanha essas situações. (DEL RÉ
et al, 2014, p. 26)
Supomos que, das muitas contribuições de Bakhtin para a Aquisição, temos
razões e insumo para, no contexto provisório e não muito profundo de nossa pesquisa,
apresentar três vias principais que aqui didaticamente se fragmentam, mas
92
necessariamente estão correlacionadas: 1) A Concepção de linguagem, 2) A
Concepção de Sujeito e 3) A Natureza do sentido.
3.5.1 – Concepção de Linguagem
Quanto a mim, em tudo eu ouço vozes e relações dialógicas entre elas.
(Bakhtin, 2010)
A linguagem da vida. Das falas filosóficas, o grito de gol, a fofoca entre
comadres. Essa é a linguagem perseguida pelo Círculo de estudiosos russos.
Seções anteriores levantaram a necessidade de apresentação da concepção de
linguagem do Círculo e de Bakhtin que, como explanamos, é vivencial, dinâmica e
ideológica. A linguagem é o fenômeno daquilo que significa e este, por sua vez, está
engendrado nas múltiplas realidades culturais e sócio-ideológicos. A linguagem é da
ordem do dizer. Tadeu Souza sintetiza com Bakhtin:
A linguagem é dinâmica, ou seja "é um produto da vida social que não é
de nenhum modo algo congelado ou petrificado, ela está em perpétuo vir
a ser e, em seu desenvolvimento, ela segue a evolução da vida social
[...] Ela é um fenômeno histórico-fenomelógico e sociológico: “a essência
verdadeira da linguagem é o acontecimento social que consiste em uma
interação verbal, e se encontra concretizada em um ou mais
enunciados.” [...] A linguagem é ideológica, “ela procede da organização
social do trabalho e da luta de classes. [...] E como todo conceito do
Círculo ela é dialógica: “a linguagem vive apenas na comunicação social
daqueles que a usam. “É precisamente essa comunicação dialógica que
constitui o verdadeiro campo a vida da linguagem.” [...] “o diálogo – a
troca de palavras - é a forma mais natural de linguagem.” (SOUZA,
2002, p. 53-54)
3.5.2 – Concepção de Sujeito: ativamente responsivo e alteritariamente
constituído
O pensador jamaicano Stuart Hall, em A Identidade Cultural na Pós-modernidade
(2006), didatiza os processos de transformação da concepção de identidade em três
fases:
sujeito
do
Iluminismo,
sujeito
sociológico
e
sujeito
pós-moderno.
Progressivamente, por influência dos paradigmas sócio-históricos de cada época, a
identidade do sujeito migrou de centralizada e univocal (sujeito do Iluminismo),
93
passando por uma identidade interativa e relacional entre eu e sociedade (sujeito
sociológico), chegando ao sujeito pós-moderno que, em função de seu enquadramento
ao ideário contemporâneo, é volúvel, líquido, descentrado, relativo e movente.
Mikhail Bakhtin, ainda na juventude, intentou construir uma filosofia prima47 que
dessa conta de entender a realidade da criação, a relação entre os mundos ético e
estético, como dizia.
Nesse percurso, lançou mão do que seria a centelha, um
microcosmo, uma condensação prévia de todo seu arcabouço teórico. Isso se
materializa ainda aos vinte e poucos anos com a obra Para uma Filosofia do Ato
Responsável (2010 [1919-21]). Entre tantas coisas apresentadas na obra, o jovem
Bakhtin erige uma percepção bem definida do sujeito que enuncia. Discussões
semelhantes são estabelecidas em Arte e responsabilidade, antes de PFA, e O autor e
o herói na atividade estética.
Percorrendo uma esteira dialógica, Bakhtin traz a lume uma vasta expressão de
pensadores para pensar seu mundo. Emanuel Kant (1724-1824) é o mais influente
entre os selecionados, desde a adolescência (12 anos), aliás, este filósofo será uma
leitura referencial para Bakhtin.
Kant e seus influenciados (os neokantianos) arrazoaram que a razão, enquanto
pura e destituída das corrompidas versões da realidade promovidas por cada olhar, a
razão pura dissecada, a razão enquanto aparato racional humano era, de fato, o centro
duma filosofia primeira, a melhor possibilidade de elevar a filosofia a um status de
legitimidade. O trabalho de um filósofo não seria, dessa forma, conhecer o mundo,
antes, no entanto, conhecer as raízes racionais que concebem e antecedem o mundo.
Apesar das influências, Bakhtin não adota a mesma percepção sobre a
necessidade prima de uma filosofia da linguagem. À semelhança das releituras
subversivas de conceitos de Karl Marx, Bakhtin inaugura uma visão diferente da de
Kant.
47
O Dicionário de Filosofia (JAPIASSÚ, 2001) conceitua Filosofia primeira da seguinte forma: (lat.
philosophia prima) Expressão que traduz a fórmula aristotélica pro-té philosophia. [...] Consagrada pela
*escolástica medieval. [...] considera a problemática [...] Ser e dos primeiros princípios [...] questão central
da filosofia, da qual todas as demais dependem. Utilizada por veres como sinónimo da própria metafísica.
94
Se o filósofo alemão opta pela razão abstrata, o filósofo da linguagem russo
estabelece a materialidade da razão na vida como seu ponto de partida, denomina-a:
Ato, um centro que justifica de maneira mais integrada sua filosofia. O Ato, como a
expressão de sentido do sujeito na vida, é o lugar das reflexões bakhtinianas.
Com uma fundamentação materialista, Bakhtin decide pela realidade material da
razão: o ser é ser para a vida, e não um ser, em si mesmo, ensimesmado. Qual seria,
nesse contexto reciprocamente participativo, o sujeito enunciador? Um sujeito dialógico.
O sujeito que organiza sua singularidade nos encontros com a realidade social,
tendo em vista que o ato expressa uma resposta aos outros atos e enunciados da vida.
Se todo ato enunciativo é endereçado a alguém, que constitui inclusive o sentido
impresso nesse mesmo ato, o enunciador por sua vez enuncia de um lugar
determinado, conclui Bakhtin, um lugar singularmente determinado. “Esse excedente
constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro, é condicionado
pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num
conjunto de dadas circunstâncias [...]” (BAKHTIN, 1997, p. 44).
A singularidade, em sua visão, é uma condição e não uma possibilidade para
agir na vida, pois não há álibi na existência. A singularidade outorga ao enunciador um
dever com aquilo que diz, sua respondibilidade/responsividade carrega todo
compromisso do mundo, uma vez que aquele que significa o faz de um lugar específico,
numa situação sócio-histórica definida. Não há ninguém em seu lugar. Por mais afetado
que seja pelo constructo de paradigmas e ideologias de seu tempo, não há substituto
para ocupar seu lugar no mundo. Contrapondo Kant, Bakhtin percebe que: “[...] o ato
de pensar um pensamento é necessário não por uma necessidade lógica, mas por uma
necessidade ética [...]” (AMORIM, 2010, p. 23). Como afirma Geraldi (2010), a
responsabilidade é a argamassa que amalgama os mundos da ciência e da arte em seu
centro formador, o sujeito. “A expressão como campo de encontro de duas
consciências. A configuração dialógica da compreensão.” (BAKHTIN, 2010, p. 396).
Certamente, o sujeito nasce em um mundo de sentidos (como bem apregoa as
Análises do Discurso em suas múltiplas linhas), numa arena ideológica gigantesca,
erigida no grande tempo. Tal situação, entretanto, não o desresponsabiliza de seu agir
95
na vida, e das consequências de responder as perguntas e vivências favorável ou
desfavoravelmente. Nestes aspectos, os de sujeito e da respondibilidade, o ponto de
vista do Círculo e de Bakhtin se distanciam das leituras estabelecidas por pensadores
como Benveniste e Pêcheux, por exemplo. Por mais circunscrito que esteja a uma
realidade.
Essa respondibilidade constitutiva do sujeito dialógico é assistida inclusive em
seus encontros iniciais com a realidade exterior:
É nos lábios e no tom amoroso deles que a criança ouve e começa a
reconhecer seu nome, ouve denominar seu corpo, suas emoções e seus
estados internos; as primeiras palavras, as mais autorizadas, que falam
dela, as primeiras a determinarem sua pessoa, e que vão ao encontro
da sua própria consciência interna, ainda confusa, dando-lhe forma e
nome, aquelas que lhe servem para tomar consciência de si pela
primeira vez e para sentir-se enquanto coisa-aqui, são as palavras de
um ser que a ama. As palavras amorosas e os cuidados que ela recebe
vão ao encontro da sua percepção interna e nomeiam, guiam,
satisfazem — ligam ao mundo exterior como a uma resposta, diríamos,
que demonstra o interesse que é concedido a mim e à minha
necessidade — e, por isso, diríamos que dão uma forma plástica ao
infinito “caos movediço” da necessidade e da insatisfação no qual ainda
se dilui todo o exterior para a criança, no qual se dilui e se afoga
também a futura díade de sua pessoa confrontada com o mundo
exterior. Essa díade, os atos amorosos e as palavras da mãe contribuem
para revelá-la com seu tom emotivo-volitivo que impregna o clima em
que se individualiza e se estrutura a personalidade da criança, um clima
imbuído de amor no qual ela encontrará seu primeiro movimento, sua
primeira postura no mundo. A criança começa a ver-se, pela primeira
vez, pelos olhos da mãe, é no seu tom que ela começa também a falar
de si mesma, como que se acariciando na primeira palavra pela qual
expressa a si mesma [...] (BAKHTIN, 1997, p. 67-68).
Sujeito decentrado, movente, que exerce sua provisoriedade nas fatídicas
relações cotidianas seu inacabamento discursivo e vivencial é materializado no todo
orgânico do diálogo, da criação de sentido.
A questão da dimensionalidade corpórea, os limites do ser consigo sendo
ditados ou constituídos pelo ser com o mundo por meio do sentido. O que dalguma
forma já fora visto com Piaget, sem esse a mesma valoração à palavra, todavia.
96
O estabelecimento de si, em seus níveis cognitivo e de personalidade, sob os
ditames da palavra alheia. Inicialmente a palavra materna. Vale salientar a confluência
entre as percepções de Bakhtin e Henri Wallon em tais questões. A afetividade, em
suas diversas expressões, é imprescindível para a psicogênese humana (WALON,
2007). O Círculo e Bakhtin aprofundam, todavia, a relevância da linguagem verbal para
alcançar o desenvolvimento. Isso fica evidente em conceitos como dialogismo, exotopia
e não-indiferença, por exemplo.
Nessas medidas o sujeito da aquisição, é, por sua vez, o sujeito dialógico da
aquisição, ou a aquisição é dialógica no sujeito.
Seja pelo que chamam legado cultural, reunida a este a tão pronunciada
interação, o organismo é afetado de tal maneira que se reorganiza e se desenvolve
pelas interferências recíprocas.
Como já discutimos acerca do discurso interior, a dinâmica semiótica interior é
correspondente a exterior, tendo em vista ser despertada pela realidade social, ser
responsiva à mesma realidade e utilizar-se dos mesmos esquemas dialógicos para seu
próprio auto-funcionamento. A compreensão é dialógica por utilizar recursos
semelhantes aos do diálogo social em sua dinâmica possui um interlocutor, contexto
sócio-histórico, é responsivo,
Mesmo o monólogo, como analisamos acerca do discurso interior, é dialógico e
como veremos a própria compressão se configura em bases semelhantes. A primária
confluência convergente entre ser eu e ser outro. E na relação exotópica assumir minha
inescapável localidade sem álibi no agir da existência.
3.5.3 – A Natureza do Sentido
O fato de a linguagem significar implica que há conexão entre os signos
linguísticos, as representações mentais e o mundo exterior. (Auroux,
1998)48
48
Sylvain Auroux tratando da intencionalidade na obra de Husserl. (1998, p. 224).
97
Frente à concepção de linguagem do Círculo e de Bakhtin, e à difícil assimilação
do fenômeno do significar, somos conduzidos à impressão de que, no que concerne ao
sentido, o todo é o mais importante. Visto que os elementos que o compõem, sejam
componentes verbais ou extraverbais, são espécies de epifenômenos de um fenômeno
maior, o enunciado concreto49, a unidade que significa. Como expresso por Bakhtin:
“Nós assimilamos as formas da língua somente nas formas das enunciações [...]” (2010,
p. 283).
Desse fato surge o problema, tão bem trabalhado por Bakhtin em seus textos, de
refletir cientificamente sobre a linguagem verbal, objeto humanamente holístico e
investigável, em sua totalidade. Qualidade que promoveu um eximir-se e algumas
dificuldades interpretativas por parte das concepções tradicionalistas no campo da
ciência linguística. Certamente, há escalas graduais de sentido, como promulga os
estudos fonológicos, por exemplo, o que fica didatizado nos conceitos de Tema e
Significação descritos no sétimo capítulo de Marxismo e Filosofia da Linguagem, em
que se entende por Tema “Um sentido definido e único, uma significação unitária, é
uma
propriedade
que
pertence
a
cada
enunciação
como
um
todo.”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010, p. 133). Já a significação abarcaria “[...] os elementos
da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos.” (idem, p.
134)
O que importa na linguagem é aquilo que significa, na acepção de que tudo
corrobora para o sentido e por ele contamina-se. Para sua produção, o sentido presente
num enunciado concreto, a unidade mínima de sentido para o Círculo, apreende para
sua confecção diversos fatores: cultural, gramático-estrutural, e uma infinidade de
elementos extraverbais. A síntese ofertada pelos russos é esclarecedora e profunda:
49
Apesar de termos nos referido mais de uma vez ao conceito de enunciado concreto, a unidade real da
comunicação humana, vale uma resumida definição. Para isso escolhemos Pável Medvedev: “Qualquer
enunciado concreto é um ato social. [...] Sua realidade enquanto elemento isolado já não é a realidade de
um corpo físico, mas a de um fenômeno histórico. [...] Dessa forma, a própria presença peculiar do
enunciado é histórica e socialmente significativa. Da categoria de uma realidade natural, ela passa a
categoria de uma realidade histórica. O enunciado já não é um corpo nem um processo físico, mas um
acontecimento histórico, mesmo que seja infinitamente pequeno.” (2012, p.183). E uma síntese de
Ponzio: “[...] podemos chamar de enunciado o significado de uma enunciação que está ligada a
compreensão responsiva, ou seja, o sentido. (2012, p. 94).
98
A primeira palavra e a última, o começo e o fim de uma enunciação
permitem-nos já colocar o problema do todo. O processo da fala,
compreendida no sentido amplo como processo de atividade de
linguagem tanto exterior como interior, é ininterrupto, não tem começo
nem fim. A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um
oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e as formas dessa
ilha são determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório.
A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma
expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto não
verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou
pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação.
(idem, p. 129, 130)
Com este olhar, abarcador da realidade enunciativa, todavia, a tarefa torna-se
plena, mas ainda mais complexa. A prática do estudioso da linguagem transcende a
análise dos aspectos estruturais constituintes do enunciado, a realidade gramatical,
como se sabe, não atenderia a pretensão de entender o que significa. Mesmo os
elementos extraverbais, como as forças do endereçamento comum a qualquer
enunciado, ou localização deste em certo horizonte social, as forças ideológicas
presentes em qualquer ato significativo ou condição de elo na cadeia dialógica
ininterrupta da comunicação humana, pois “A identidade do signo é sempre postergada:
não é possível apagar o efeito de sua peregrinação, de sua transmigração a outros
corpos sígnicos [...]” (PONZIO, 2012, p. 162).
O problema é tão intrínseco ao todo que o contrário feriria a própria identidade do
signo, enquanto instrumento de sentido, de qualquer sentido dialogicamente
convencionado/criado: “A multiplicidade das significações é o índice que faz de uma
palavra uma palavra.” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010, p. 135). Dessa forma, as
palavras/signos atendem à natureza constitutiva da representação e da linguagem, a
saber, a possibilidade de significar e financiar sentidos.
Mas o quê seria o sentido afinal? Temos uma boa resposta que conduz-nos,
entretanto, a outras inquietações:
Chamo sentidos às respostas a perguntas. Aquilo que não responde a
nenhuma pergunta não tem sentido para nós. [...] A índole responsiva do
sentido. O sentido sempre responde a certas perguntas. Aquilo que a
nada responde se afigura sem sentido para nós, afastado do diálogo.
(BAKHTIN, 2010, p. 381).
99
O sujeito quer dizer, como vimos em etapas posteriores, a própria condição para
o existir é significar. Se levarmos em conta a alegoria bakhtiniana, expressa na
introdução deste trabalho, o texto/enunciado como mônada dos sentidos, somos
impelidos a reconhecer que não apenas os sentidos da vida, mas até mesmo o sentido
original, acrescentamos aqui as primeiras manifestações comunicativas do bebê, têm
de ser dialógicas. Não há como sair, sem a dialogia, do mundo inertemente monovocal
e
silencioso,
para
a
carnavalesca
e
polifônica
realidade
do
significar.
O
Protodialogismo.
De alguma forma, a natureza do sentido transcende os limites do ser. Suas
linhas limítrofes se encontram nos desencontros do ser consigo e se encontram nos
encontros do ser com o mundo, seu próprio mundo, e o mundo alteritário que o abstrai
e o faz simbolizar as realidades presentes além de sua própria orgânica realidade. O
Simbólico calcado na realidade social, de certa maneira, a ultrapassa:
O sentido não quer (e não pode) mudar os fenômenos físicos, materiais
e outros, não pode agir como força material. Aliás ele nem precisa
disso: ele mesmo é mais forte que qualquer força, muda o sentido
total do acontecimento e da realidade sem lhes mudar uma vírgula
na composição real (do ser); tudo continua como antes mas adquire
um sentido inteiramente distinto (a transfiguração do ser centrada no
sentido). Cada palavra do texto se transfigura em um novo contexto.
(BAKHTIN, 2010, p. 404) [grifos nossos].
Os
sentidos,
dessa
forma
possuem
uma
personalidade
transgrediente
semelhante à das nuvens, uma vez que mesmo em formas infindáveis preservam a
mesma essência... Ora dragões e cavaleiros, entes e etéreas dispersões, ora
precipitação e corrente. Em fúria: tufão, tempestade... “O sentido não nasce nem morre,
não pode ser iniciada nem concluída a série de sentidos da vida [...]” (BAKHTIN, 2010,
p. 99). Múltiplas personalidades de uma mesma personagem.
O sentido é potencialmente infinito, mas pode atualizar-se somente
em contato com outro sentido (do outro), ainda que seja com uma
pergunta do discurso interior [...] Um sentido atual não pertence a um só
sentido mas tão somente a dois sentidos, que se encontraram e se
contactaram. Não pode haver “sentido em si” – ele só existe para
outro sentido, isto é, [...] com ele. É um elo na cadeia dos sentidos. [...]
Na vida histórica essa cadeia cresce infinitamente e por isso cada elo
100
seu isolado se renova mais e mais, como que torna a nascer. (idem, p.
382) [grifos nossos].
As artimanhas e atributos do sentido, que levam em conta sempre o que
significa, nos faz, a semelhança de Padilha (2014), deitar por terra uma dicotomia ainda
presente nos estudos de linguagem: a relação distintiva entre linguagem verbal e não
verbal:
Assim teríamos o “texto no sentido amplo” e, por conseguinte, um
“verbal” abrangente, que remonta ao “Verbo” bíblico, que sempre
existira, que fora desde o princípio. O Verbal. Por extensão, o Verbal
como aquilo que significa, o sentido em seu estado bruto, anterior
a qualquer estratificação, gramaticalização, estruturação, movimentos
próprios da organização das línguas. (PADILHA, 2014, p. 9) [grifos
nossos].
Se o problema do sentido é aquilo que significa é tempo oportuno de inaugurar
ou mesmo aprofundar a discussão da natureza dos discursos interior e exterior.
De alguma forma, o sentido está na confluência dialógica entre pares. Nossos
enunciados inacabados materializam nossa orgânica condição interativa para a vida e
para a sociedade não nos acabamos para os outros não se acabarem. Nossas
respostas enunciativas sempre têm um quê de perguntas. Somos conduzidos a ideia do
encontro, a interação, de fato, é o reduto da de todas as manifestações e expressões
de sentido. Essa não-indiferença nunca indiferente é um predicado humano que
justifica, inicialmente, o processo de criação de sentidos num terreno interindividual,
mas esbarramos na dificuldade de estabelecer-lhe os limites (se é que os tem), dar
nome as suas partes (caso seja fragmentável). Pois como dizem: ninguém fala para não
ser ouvido. Acerca da audibilidade ou possibilidade da palavra ser ouvida, Ponzio
parafraseia Bakhtin: “A escuta, é logo, a arte da palavra, o seu fazer, o seu ofício, a sua
atitude, a sua prerrogativa, o seu peculiar modo de ser.” (PONZIO, 2012, p. 252).
101
Essa presença dialógica constitutiva da linguagem e das relações humanas é,
pela semioética50, estendida até mesmo na dinâmica da natureza em seus mecanismos
de funcionamento relacionais e integrados.
A cadeia comunicativa, como expressa pela percepção estruturalista, prescrevia
dois polos bem estabelecidos no ato comunicativo entre os extremos de emissor e
receptor coligados por uma assimilação individual da mensagem enviada. Para
Saussure o heteróclito circuito comunicativo (fala) se dividiria em três partes básicas:
a) numa parte exterior (vibração dos sons indo da bôca ao ouvido) e
uma parte interior, que compreende todo o resto;
b) uma parte psíquica e outra não-psíquica, incluindo [...] os fatos
fisiológicos [...] e os fatos exteriores ao indivíduo;
c) numa parte ativa e outra passiva; é ativo tudo o que vai a centro
de associação duma das pessoas ao ouvido da outra, e passivo tudo o
que vai do ouvido desta ao seu centro de associação. (SAUSSURE,
1995, p. 20)
Nessa visão, que seria desdobrada por Roman Jakobson, há uma espécie de
solitária e mecânica autonomia dos pares interessados. Seu papel é, ora produzir uma
mensagem enquadrada nas convenções linguísticas, ora decodificar a mensagem a ele
destinada utilizando as mesmas convenções.
Para o Círculo, diferentemente, os sentidos são/estão no entre lugar e
correspondem não a uma cadeia separadamente definida, contrariamente, estes
atendem a ordem do imbricamento entre o social e o individual, reclamam para seu
surgimento toda a provisória infinitude dos elementos necessários para o significar. Se
nos cabe uma alegoria: nem um polo, nem outro: o sentido é a terceira via. (Somos a
terceira margem do rio). O sentido além de dual, como um Jano, também se exprime
sempre em um terreno de dialogia:
A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como
também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do
locutor e do receptor. [...] É como uma faísca elétrica que só se produz
quando há contato dos dois pólos opostos. [...] Só a corrente da
Segundo Petrilli (2007): “La semioética es un criterio de aproximación específi- co en la semiótica
entendida como semiótica global. Esto significa que tiene que ver con cuidar la vida desde la perspectiva
de la semiótica global y de la biosemiótica que consideran la semiosis y la vida como coincidentes. Sin
embargo, la semioética refleja la idea de semiótica, refiriéndose a su más an- tigua definición, la de
sintomatología, que prestaba atención a los síntomas.” (p. 466).
50
102
comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010, p. 137).
A mutualidade dialógica existente entre o discurso exterior e interior é reciproca e
resultante da própria natureza dialógica das relações humanas.
O discurso interior, o enunciado interior, assume, da mesma forma que o
enunciado exterior ‘um ouvinte e se orienta em sua construção em
relação a esse ouvinte. O discurso interior é um tipo de produto e
expressão da comunicação social como é o discurso exterior’ (SOUZA,
2002, p. 89).
Se os sentidos são oriundos de um substrato dialógico em que o encontro entre
um eu e um outro são imprescindíveis, inclusive no plano da consciência, pois “A
compreensão é uma forma de diálogo [...]” sempre respondente, pois sempre reconstrói
o sentido alheio e posiciona-se responsivamente a este (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,
2010, p. 97, 137). Podemos afirmar, assim, que os sentidos são alteritariamente
construídos, os sujeitos que o enunciam também o são. “A socialidade interior. O
encontro de duas consciências no processo de interpretação e estudo do enunciado.”
(BAKHTIN, 2010, p. 371)
O sentido é a própria vida. O sentido é o próprio homem, e seu outro.
103
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Das etapas do desenvolvimento de uma planta, a da semente é notavelmente
singular. Dela, de alguma forma, surge a árvore frondosa que por sua vez produzirá
novas sementes. Apesar de pequena, a semente é composta por partes ainda menores
(como tegumento, cotilédone e embrião) cada uma com uma funcionalidade específica.
Durante o processo de Qualificação, nossa pesquisa foi averiguada como sendo uma
incipiente semente de estudo de uma questão ainda maior. Reflexão que deveria ser
germinada, nutrida paulatinamente, e avançar em suas etapas de crescimento até
alcançar a maturidade orgânica e produzir frutos e novas sementes. As etapas de
desenvolvimento certamente ultrapassariam os limites cronológicos do mestrado,
segundo a avaliação. Se nosso percurso conduziu-nos ao status de semente,
avaliemos quais são suas características e particularidades.
O Tegumento, popularmente conhecido como casca, é o invólucro da semente
constituído como uma capa de revestimento, a fim de cumprir sua função básica que é
reter e proteger os demais elementos da semente. Cremos que o tegumento de nossa
pesquisa foi a bifurcação principal entre os caminhos da linguagem verbal, e a via
paralela do fenômeno da aquisição da linguagem verbal. Os dois imbricados e
inquietantes fenômenos são as grandes áreas que serviram como pano de fundo para
pensarmos a questão de pesquisa. A correlação entre as realidades filogênicas e
ontogênicas foram decisivas para isso. Deram-nos suporte para saber em que eixo
poderíamos pensar: “Quais a contribuições que os estudos bakhtinianos podem trazer
para uma nova reflexão a respeito da Aquisição da Linguagem? O Capítulo I e parte do
Segundo Capítulo auxiliaram nesse processo de localização, pois construímos uma
esteira das confluências filosóficas que consubstanciaram a Aquisição da linguagem,
enquanto área de estudos, vimos também as principais manifestações de pesquisa
nessa área. Percebemos que em reciprocidade a seu objeto, a área de Aquisição é
transdisciplinar, resultante de esforços e reflexões provenientes de toda a história dos
estudos de linguagem que se desenvolveu sobretudo no século XX. Por se ocupar dos
estágios iniciais dos falantes compartilha de inquietações presentes há muito tempo no
mundo filosófico-científico, como o problema mente-cérebro (a consciência) e a
natureza da representação.
104
A parte mais substanciosa que ocupa parte considerável da semente é chamada
Cotilédone. É a reserva nutritiva que irá alimentar o embrião em seu desenvolvimento.
O Exercício dialógico em nosso ver identificou-se com essas funções na dissertação.
Ele teve o papel articulatório para sedimentar as bases, a fim de compreendermos todo
o processo de formação histórica dos estudos da linguagem e o problema da aquisição
da linguagem verbal. A dialogia é fertilizante, instaura possibilidade de crescer em
terrenos variados. Assim com a contaminação dialógica foram possíveis as pretendidas
parolas e intervenções bakhtinianas com o mundo da Aquisição. Esse processo
percorreu todo o texto em especial nos diálogos de Bakhtin com a vertente
interacionista e seus representantes (Vygotsky, Leontiev, Luria, Wallon...). Esses
encontros fecundaram uma quarta via, uma concepção de linguagem apropriada a seu
fenômeno.
Um Embrião apesar de pequeno guarda em si os elementos da vida e
personalidade das etapas futuras, literalmente o DNA do futuro vegetal. Nele
encontram-se as especificidades características que, agora latentes, caso sejam
assistidas por nutrientes e condições de fomento, se desenvolverão.
Nosso embrião, ainda sem os traços familiares na face, mas guardando em si,
em nosso ver, a legitimidade da singularidade existencial, foi revestido pela percepção
que vê no processo de desenvolvimento e aprendizagem o lugar de encontro
constitutivo entre o sujeito e o mundo da cultura. O sujeito enunciador se encontra e se
constitui no mundo da cultura pela interação verbal. Essa convergência entre o
interacionismo e teoria dialógica (do Círculo e de Bakhtin), o interacionismo dialógico,
oportunizaram a reflexão de um psicogênese dialógica. Um meio, como visto na
acepção piagetiana, tampouco a influência da sociedade, determinam a aprendizagem
e desenvolvimento dos sujeitos.
É preciso pensar numa confluência, sem limites ou proporcionalidade, entre o
sujeito em sua latência orgânica de interagir e significar e o mundo dos sentidos (os
sujeitos e as práticas sociais, a sociedade). Sem uma concepção definida de
Linguagem, Sujeito e da Natureza daquilo que Significa não é possível ponderarmos
uma quarta via. Escondido ou protegido por essa necessária reflexão encontra-se
105
nosso prematuro embrião: a Aquisição dialógica da linguagem. Frente a um sujeito que
adquire/internaliza/apropria-se dialogicamente a capacidade de atribuir sentido e
comunicar-se.
O processo embrionário, como a linguagem, tem um quê de inacabado e um
percurso conflituoso; muito próximo da realidade da pesquisa em ciências humanas.
Suas etapas de maturação podem, por sua vez, gerar novas perguntas inicialmente,
como também novas práticas nos estudos aquisicionistas, tendo em vista estar certo
que o sedimento teórico (dialógico) conduz a expressões condizentes. Nesse sentido
poderia se estender inclusive como suporte para repensar o ensino-aprendizagem.
Se o inacabamento e a respondibilidade são constitutivos do sujeito e de suas
enunciações. Nossa palavra, provisória mas singular, pode encontrar respostas
variadas em terreno acadêmico.
106
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