A ESCRITA DO SURDO USUÁRIO DA LIBRAS Miliana Ester Fernandes Aluna do Curso de Especialização em Formação de Professores em Sociolinguística e Letramento. Graduada em Fonoaudiologia pela PUC Goiás em 2008. [email protected] Este artigo trata-se de uma revisão literária e tem como objetivo destacar os processos de aquisição e desenvolvimento da linguagem oral e escrita no portador de Deficiência Auditiva, assim como deste mesmo indivíduo usuário da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Para isto, iremos primeiramente compreender como esses processos ocorrem na criança dita normal, para posteriormente partirmos para o diferente. Aqui serão citadas a aquisição da linguagem oral e escrita do ouvinte, para o bom entendimento do processo de aquisição da escrita do não ouvinte que utiliza a escrita do ouvinte. No processo inicial de aquisição da comunicação escrita pelo qual percorre o ouvinte, é possível constatar um apoio na comunicação oral, através da qual se torna possível a fonetização da escrita. Isso significa dizer que a construção de uma segunda língua – no caso, a linguagem escrita – se desenvolve a partir dos princípios estruturais anteriormente fornecidos pela primeira língua – a linguagem oral1,2,3. Sendo assim, o indivíduo surdo que tem como meio de comunicação a linguagem de sinais possui limitações na construção do processo de aquisição e domínio da escrita empregada para os ouvintes. Logo, pessoas que tem essa privação sensorial não possuem uma base sonora para a realização da correspondência fonema/grafema, fundamental para o processo de aquisição da linguagem escrita1,2,3. Para a aquisição da linguagem oral (língua materna do ouvinte), escutar os sons é de suma importância; para isso, é necessário que as funções auditivas estejam se desenvolvendo naturalmente de maneira saudável4,5. Com o tempo, a criança amadurece e desenvolve a sua vocalização, propiciando a efetiva comunicação oral6. Em uma sequência lógica, os sons são primeiramente emitidos por murmúrios, seguidos de balbucio e - com a continuidade do amadurecimento do Sistema Nervoso Central, dos órgãos articulatórios e das funções cognitivas - inicia-se a imitação das vozes que ouve5,6. Se a criança aprende por intermédio da interação com o ambiente, é fundamental que os adultos conversem com ela e estejam atentos a ouvi-la, mesmo que não a compreendam ou pensem que ela não possa compreendê-los7,8. Com dois meses de idade, o bebê já distingue a voz humana de outros sons, e gosta de escutar a conversa das pessoas, sendo capaz de identificar a voz materna4,8. A comunicação expressiva do bebê começa com o primeiro choro. Ao chorar, ele se comunica automaticamente, e logo aprende que o simples choro para pedir socorro faz com que a mãe se apresse em atendê-lo4,5,9. Durante os três primeiros meses de vida, o bebê já produz som de murmúrio e após um melhor controle dos órgãos fonoarticulatórios, tem-se o início do balbucio (repetição de sílabas sem significado), que funciona como um "treino" articulatório para a emissão dos futuros fonemas4,9. Durante o período de sete a nove meses, o balbuciar modifica-se e apresenta uma variedade maior de sons e inflexões. O bebê começa também a adaptar as vocalizações, antes aleatórias, agora como imitação da língua mãe emitida no ambiente do lar. Os bebês começam então as descobertas de que sons diferentes significam coisas diferentes e isso os ajuda a se preparar para falar palavras reais4,5,6,9. A primeira palavra do bebê com significado ligado à língua de origem, ocorre entre dez e catorze meses de idade. Aos dezoito meses sua fala expressiva possui cerca de dez a vinte palavras concretas e aos dois anos de idade, já poderá estar usando cerca de duzentas palavras4,6. Com dois anos e meio, o vocabulário da criança aumenta significativamente, sendo ela então capaz de se expressar por sentenças simples. Finalmente, com três anos, ela entende a maior parte daquilo que ouve dos adultos, faz uso de novas palavras e sabe fazer uso da linguagem para conseguir o que deseja, conversando por meio de sentenças completas que podem ser entendidas em até 80% pelo ouvinte4. Aos quatro anos, já é capaz de pronunciar adequadamente os fonemas de sua língua e sua linguagem, de forma geral, está completa, devendo apenas ser aprimorada. Portanto, já possui habilidades satisfatórias para expressar seus próprios desejos e necessidades4,6. A criança desenvolve sua fala conforme os estímulos do meio e de acordo com sua capacidade de abstração sensorial e linguística8,10. Para que se dê a aquisição plena da linguagem são necessários três elementos: 1) querer falar; 2) ter inteligência suficiente para assimilar a linguagem; 3) ter capacidade de utilizar os mecanismos fonador, articulatório, sensorial e gestual8,11. Portanto, para que a criança tenha um bom desenvolvimento de linguagem, são necessárias condições anatômicas e neurológicas intactas e um ambiente favorável. “A linguagem está interligada com outros aspectos do desenvolvimento que fazem parte da formação da função simbólica e que se torna possível graças à constituição da inteligência”8. Após compreender a maneira como as crianças ouvintes abstraem o código linguístico oral, passaremos agora a explanação da aquisição do código gráfico por parte das mesmas. A escrita é um método de comunicação criado pelo homem em resposta ao anseio de registrar a fala, além do que, também objetiva a transmissão de mensagens por meio de sistema convencional que representa conteúdos linguísticos12. A escrita não é uma ciência exata, mas sim um registro visível do conhecimento humano que reflete, pelo menos até certo ponto, a capacidade de pensar de modo abstrato a respeito de sua própria linguagem, ou seja, a transcrição da oralidade usual do indivíduo12,13. O sistema de escrita, de modos diversos, baseia-se na linguagem oral do ouvinte, fazendo parte dos processos cognitivos humanos gerais12. Inclusive este é o método de ensino predominante nas escolas, o método fônico, que ensina os alunos a fazerem correspondências regulares entre som e letra e assim se apropriarem da escrita. Desta forma, nos processos tradicionais de alfabetização a inserção do código gráfico é feita a partir de atividades nas quais é imprescindível o recurso da audição para que se obtenha sucesso na execução destas12,13,14. Caminhando por esta jornada rumo ao domínio da comunicação gráfica, as crianças elaboram diferentes hipóteses sobre a escrita e percorrem fases distintas e específicas para isso. Na fase pré-silábica são registrados traços no papel sem a preocupação de realizar conexão sonora do que foi proposto para a escrita. Inicialmente apresenta uma escrita indiferenciada e uma leitura instável e mais tarde há uma tentativa de criar diferenciações entre suas produções (diferenciação da escrita). Na fase silábica ocorre a tentativa de estabelecer relações entre o contexto sonoro e seu registro e, para tanto, se utiliza de uma letra para representar cada sílaba. A fase silábico-alfabética constitui-se um momento de transição, quando ora a criança faz uso de uma letra para cada sílaba, ora representa unidades menores que a sílaba. Isso se deve ao fato de seu domínio por um maior número de letras e de sua capacidade de associá-las ao seu valor sonoro. Finalmente, na fase alfabética a criança já compreende que a representação gráfica corresponde a valores sonoros menores que a sílaba, e vai progressivamente fazendo a análise sonora do que escreve, sendo capaz de associar o fonema ao grafema14. Tendo analisado as questões acima citadas, percebemos que a aquisição da leitura e escrita requer um ensino formal mesmo em se tratando de crianças inteligentes e saudáveis, enquanto para a aquisição da linguagem oral é necessário, apenas, que tais crianças sejam criadas em ambientes interacionais eficazes que sejam estimulantes, onde ocorra o uso funcional da linguagem12,14. Portanto, qualquer alteração anatômica e/ou fisiológica que altere o processo de aquisição da linguagem oral irá como consequência, refletir na aquisição da escrita convencional12,14. No entanto, cada indivíduo consegue desenvolver a comunicação da forma que lhe é permitido, fator este que irá determinar as variáveis dos símbolos utilizados para suas diversas formas de expressão oral e/ou escrita12,13,14. Por estes motivos devemos, para entender e auxiliar na aquisição da comunicação por meio do código gráfico, conhecer o perfil auditivo do indivíduo, entendendo assim, o processo de seleção para escolha dos métodos de alfabetização1. Para tanto, devemos expor neste momento um diálogo esclarecedor sobre as implicações da surdez nos processos de aquisição da linguagem oral. O ouvido é o órgão que capta os sons, transforma-os em estímulos elétricos que são enviados para o nervo auditivo, e daí ocorre sua condução até o cérebro. No sistema nervoso central (SNC) os sons são decodificados como uma palavra, como uma canção ou como um ruído aleatório. As falhas desse precioso mecanismo poderão provocar deficiências auditivas, detectadas em vários graus15,16,17. A surdez ou deficiência auditiva tem sua classificação quanto ao tipo de acordo com o local da lesão e quanto ao grau baseia-se na média para tons puros dos limiares da via aérea nas frequências de 500 Hz, 1000 Hz e 2000 Hz obtidos através de exame audiológicos16,17,18. A classificação do tipo de perda auditiva é feita para cada orelha isoladamente, o que significa que os limiares da via aérea e da via óssea devem ser obtidos em cada orelha, obrigatoriamente. Um outro critério é recomendado para os audiogramas em que aparecem componentes condutivo, misto ou neurossensorial e para os quais é difícil determinar qual o quadro predominante: se as frequências médias (500Hz ,1000Hz e 2000 Hz) mostrarem o mesmo tipo de perda, este audiograma deve ser classificado a partir desta informação16,17,18. Diversos autores classificam os tipos de perda auditiva, sendo consenso geral a que será citada. Os tipos de perda conhecidos são: Perda auditiva condutiva - resulta de alterações na orelha externa e/ou, mais frequentemente, na orelha média (Stach,1998), que reduzem a intensidade do som que alcança a orelha interna. Caracterizam-se por apresentar limiares de via óssea normais (até 20 dB NA), limiares de via aérea rebaixados (maior que 25 dB NA), gap (espaço) entre via aérea e via óssea igual ou maior que 15 dB (Silman e Silverman, 1997), com perda máxima na condução aérea de 60 - 70 dB (Goetzinger, 1978 in Hodgson,1980, pág. 212); Perda auditiva neuro-sensorial - resulta de alterações na cóclea ou no nervo auditivo (Stach, 1998). Caracteriza-se por apresentar limiar de via óssea abaixo dos limites da normalidade (maior que 20 dB), limiar de via aérea abaixo dos limites da normalidade (maior que 25 dB), gap aéreo/ósseo não significante (menor ou igual a 10 dB) (Silman e Silverman, 1997); Perda auditiva mista - resulta de perda auditiva tanto na via aérea quanto na via óssea; os limiares auditivos são maiores na via aérea do que na via óssea. Nestes quadros, tanto o componente condutivo como o neurossensorial estão presentes (Stach, 1998). Caracteriza-se por limiares de via óssea abaixo do normal (maior que 20dBNA), limiares de via aérea abaixo do normal (maior que 25dBNA), e gap entre via aérea/via óssea maior que 10 dB (Silman e Silverman, 1997)16,17,18. As dificuldades de comunicação são determinadas dependendo do grau da perda auditiva. Assim, tem-se outra classificação: a) 26 a 40 dB = Deficiência Auditiva Leve – o indivíduo consegue ouvir razoavelmente bem os sons da fala e os fonemas sonoros mais intensos, mas demonstra dificuldade de compreender fala em baixa intensidade; necessita de local preferencial na sala de aula e pode se beneficiar de treinamento de leitura labial; podem aparecer potenciais problemas de articulação, problemas de atenção auditiva, problemas de memória auditiva, problemas na compreensão auditiva e impacto sobre sintaxe e semântica; b) 41 a 55 dB = Deficiência Auditiva Moderada – o indivíduo demonstra compreensão de fala entre um metro a um metro e meio de distância; precisa de amplificação, local preferencial na sala de aula, treinamento de leitura labial e terapia fonoaudiológica. Ocorrem déficits na percepção da fala e problemas articulatórios de leve a moderado. Também há déficits de linguagem que variam de leves a significantes em relação à sintaxe, morfologia, semântica e pragmática; c) 56 a 70 dB = Deficiência Auditiva Moderadamente Severa - a fala deve ser intensa para recepção auditiva; existem dificuldades na conversação em grupo e discussão em sala de aula; pode requerer turmas especiais para deficientes auditivos. Ocorrem déficits na percepção da fala, problemas articulatórios de leve a moderado. Déficits de linguagem que variam de leves a significantes em relação à sintaxe, morfologia, semântica e pragmática; d) 71 a 90 dB = Deficiência Auditiva Severa - a fala pode ser entendida a apenas trinta centímetros de distância da orelha; o indivíduo até pode discriminar as vogais, mas não as consoantes; precisa de classe para deficientes auditivos e permanece na escola comum por mais tempo. Estão presentes déficits na percepção da fala, problemas articulatórios moderados a severos. Também há déficits de linguagem que variam de moderados a significantes em relação à sintaxe, morfologia, semântica e pragmática; e) 91 dB acima = Deficiência Auditiva Profunda – o indivíduo não depende da audição como modalidade primária para a comunicação; pode se dar bem com o método de comunicação total; pode eventualmente precisar de ensino especial nos níveis escolares mais elevados. Ocorrem déficits na percepção da fala e problemas articulatórios severos. Ainda há déficits de linguagem em relação à sintaxe morfologia, semântica e pragmática19. Após entendermos melhor os tipos e as classificações existentes para a deficiência auditiva, passaremos a falar sobre o desenvolvimento da linguagem oral do surdo. São bem conhecidos os efeitos da perda congênita da audição sobre a comunicação diante da ausência de qualquer forma de abstração sonora da língua. Na criança com surdez congênita, a limitação auditiva leva ao reconhecimento da fala unicamente através da leitura labial, prática que parece ser aprendida e dominada lentamente20,21. A leitura orofacial que não dispõe da vantagem da informação concomitantemente da percepção auditiva, isto é, aquela que é aprendida exclusivamente com o apoio visual, não permite uma discriminação, isenta de ambiguidades, dos sons falados. Aliás, como aptidão visual, a leitura labial tem que compartilhar este canal unidirecional com outras funções direta e indiretamente relacionadas à comunicação20,21. Sendo assim, uma leitura labial não poderá substituir a combinação das informações auditiva e visual, sem as quais não é possível proporcionar uma aquisição da linguagem oral satisfatória para o surdo20,21. Para adquirirmos o domínio de uma língua específica, temos que aprender suas regras específicas, porém este processo só acontece quando é vivenciado o modelo da língua mãe em questão, o que ocorre naturalmente ao longo do desenvolvimento infantil1,20,21. Devido ao problema auditivo, as crianças surdas não recebem o modelo da língua de forma natural e, sem um tratamento adequado, se tornam incapazes de dominar o modelo de sua língua, mesmo já tendo adquirido alguns vocábulos, geralmente simples (como "pipa", "menino" etc.)21. Vejamos a seguir um exemplo do que estamos afirmando. A criança com perda auditiva severa ou profunda que não aprende o modelo verbal para a sentença "a pipa é do menino" possui pouca chance de dizer essa frase de forma correta, podendo usar "pipa menino", "o menino pipa" ou ainda "o menino é da pipa" etc. Neste último exemplo, a criança utilizou os vocábulos certos, mas no que ela errou? Todos hão de convir que ela só errou no modelo do código de regras que a língua portuguesa exige e, no entanto, isso é suficiente para que ninguém a entenda, apesar de seu esforço, ou seja, sua fala sempre será vista como uma falsa oralização. Devido a tais dificuldades é que o surdo frequentemente opta pela utilização da língua de sinais, não apenas por uma questão de conforto, já que esta língua condiz com a sua realidade sensorial, mas também por uma questão de compreender e fazer-se compreendido pelo menos em seu grupo de interesse20,21. Sendo assim, podemos concluir que “o nível linguístico ou aprendizagem da linguagem oral só é desenvolvido se a criança com perda auditiva tiver oportunidade de agir, vivenciar e experimentar como a criança ouvinte”21, o que poucas vezes ocorre. E o que podemos dizer quanto à aquisição da língua materna do surdo? Que língua seria esta: a linguagem oral ou a língua de sinais? Devido às dificuldades anteriormente apresentadas para que haja o exercício da pronúncia, já podemos descartar a possibilidade da linguagem oral ser considerada a primeira língua do deficiente auditivo, ou seja, sua língua materna, a não ser em casos de incisiva intervenção terapêutica e aplicação de estratégias eficazes para isto. Certamente, a língua que está ao alcance das necessidades biológicas e intelectuais do surdo é a linguagem de sinais. Todas as pesquisas desenvolvidas nos últimos anos sobre a aquisição da língua de sinais evidenciam que essa pode ser comparada à aquisição das línguas orais em muitos sentidos. Normalmente, as pesquisas envolvem a análise de produções de crianças surdas, filhas de pais surdos. Somente esse grupo de crianças surdas apresenta o input linguístico adequado e garantido para possíveis análises do processo de aquisição. Entretanto, ressaltase que essas crianças representam apenas 5% a 10% das crianças surdas 1. O que queremos dizer com isto é que aquela criança com deficiência auditiva que também possui pais surdos e se comunica com eles através da linguagem de sinais cresce com um embasamento intelectual satisfatório consequente da importância da internalização prévia de uma língua. Nos outros 90% a 95% dos casos, isto é, crianças surdas com pais ouvintes, percebemos a lamentável pobreza linguística com que elas vivem por não conhecerem um código de comunicação satisfatório que seja capaz de fazê-las expressarem-se, interiorizarem conceitos, entenderem e serem entendidas. Caso a criança não seja exposta a um ambiente que lhe faça adquirir uma língua, ela sofre prejuízos graves no processo de aprendizagem, afinal, ela é um ser que não domina linguagem alguma, nem a oral, nem a de sinais. Assim como na linguagem oral, o desenvolvimento da língua de sinais também respeita etapas de aquisição1. No período pré-linguístico, o balbucio é um fenômeno que ocorre em todos os bebês, sejam estes surdos ou ouvintes, como fruto da capacidade inata para a linguagem1,6,20. Nos bebês surdos, foram detectadas duas formas de balbucio manual: o balbucio silábico e a gesticulação. O balbucio silábico apresenta combinações que fazem parte do sistema fonético da língua de sinais. Ao contrário, a gesticulação não apresenta organização interna1,20. O estágio de um único sinal inicia por volta dos doze meses até aproximadamente dois anos de idade. As produções neste período incluem as formas chamadas “congeladas” na produção adulta. São sinais que não são flexionáveis1. O estágio das primeiras combinações ocorre por volta dos dois anos. A criança segue a ordem sujeito – verbo – objeto e num período subsequente sujeito – verbo e objeto, concomitantemente1. O estágio de múltiplas combinações ocorre em torno de dos dois anos e meio a três anos de idade, onde ocorre a chamada explosão de vocabulário. A criança começa utilizar formas idiossincráticas para diferenciar nomes e verbos. Por volta dos cinco anos é adquirido o domínio completo dos recursos morfológicos da língua1. Hoje, a língua de sinais não sofre mais tantos preconceitos a respeito de seu uso, pois está sendo percebida como algo positivo na vida do surdo, como elemento indispensável para garantir sua apropriação dos elementos culturais, de integração à sociedade e de acesso ao conhecimento (acadêmico ou não), além de um bom desenvolvimento cognitivo e afetivo1,2. LIBRAS é a sigla empregada para designar a Língua Brasileira de Sinais, desenvolvida e utilizada por comunidades de surdos no país, tendo sua origem na Língua de Sinais Francesa18. Diferentemente dos outros idiomas, que são auditivo-orais, as línguas de sinais se caracterizam por sua modalidade visual-espacial22,23. Ao contrário do que muitos imaginam, as línguas de sinais não são simplesmente mímicas ou gestos soltos utilizados pelos surdos para facilitar sua comunicação. Elas apresentam organização e estrutura formal e gramatical próprias. Assim, uma pessoa que entra em contato com a linguagem de sinais irá aprender outra língua, assim como o Francês, Inglês etc.; porém em cada país os sinais são preconizados de formas distintas22,23,24. Sendo assim, as línguas de sinais não são universais, já que elas sofrem as influências da cultura da língua do país onde estão. Tem-se então que cada país possui a sua própria língua de sinais com expressões que se diferem de região para região (os regionalismos), o que a legitima ainda mais como língua22. As línguas de sinais podem interferir de maneira considerada negativa na produção da escrita pelo surdo em sua estrutura superficial, mas, ao mesmo tempo, contribuir para a obtenção de coesão e coerência textuais, isto é, contribuir para a estruturação profunda do texto24. Uma criança surda, ainda que exposta intensivamente a interações por meio da língua oral, pouco apropriação fará dessa língua, pois está em uma modalidade incompatível com sua realidade sensorial. Entretanto, quando essa mesma língua é apresentada numa modalidade escrita, torna-se acessível às possibilidades visuais do surdo, favorecendo sua apropriação1,2,21. É de suma importância que a criança adquira uma primeira língua (L1), seja ela oral ou gestual, antes de evoluir para o processo de aprendizagem da linguagem escrita (L2), como acontece naturalmente, também, com a criança ouvinte1,2,25. Este pré-requisito acontece não apenas devido às possibilidades de interação que esta língua provoca, mas também ao aparato linguístico fornecido por ela. Já vimos que, no caso de crianças surdas, a língua considerada materna ou a primeira língua - L1 - é a linguagem gestual, por esta ser compatível com a sua condição sensorial. Sendo assim, quanto mais efetivo é o acesso da criança surda à língua de sinais, melhores chances ela tem de fazer uma apropriação mais consistente de uma escrita1,2,3. Durante o processo de construção conceitual da escrita, a partir de determinado momento, a criança ouvinte passa a relacionar o que é escrito ao que é falado (período silábico) e essa compreensão lhe conduz a construir hipóteses que permitam prever, antecipar e corrigir suas escritas a partir da oralidade14. Crianças surdas com perda auditiva severa ou profunda não possuem resquícios auditivos suficientes que auxiliem na captação da linguagem oral para, a partir desta, fazer uso de uma escrita convencional. Sendo assim, suas chances de praticarem qualquer regulação sonora – seja silábica, seja fonética – desse sistema são nulas2. Como já citado anteriormente, é por meio da fala que a grafia será prognosticada e, mesmo com irregularidades entre fala e escrita, a criança conseguirá produzir um significante, pelo menos, semelhante ao esperado2. No caso das crianças surdas usuárias da língua de sinais, a busca de significações desta língua para produzir a escrita de outra língua - no caso do Brasil, o português - é ainda mais complexa, se considerarmos a condição linguística de cada língua, na sua especificidade2,3. Na LIBRAS, em específico, a comunicação ou “palavras” não se constroem a partir de sons que se combinam, mas de mãos que se movimentam no espaço e que se organizam de forma simultânea e não-linear. Condição de expressão, portanto, totalmente diferente do oralismo utilizado pelo ouvinte2. Tendo como subsídio o processo da alfabetização de surdos baseado na língua de sinais, a criança tem como referência, ao invés de sons, configurações de mãos. A língua de sinais é usada como elemento de significação da escrita por indivíduos de todos os níveis conceituais, idades e séries. Mesmo nos estágios mais iniciais, onde a escrita busca ainda na imagem, apoio e complementação do sentido1,2. Uma estratégia utilizada exclusivamente por crianças surdas no processo de aquisição da escrita diz respeito à representação que estas fazem da escrita através dos desenhos dos sinais. Isto se deve por ser a LIBRAS uma língua exclusivamente visuo- espacial e, por isso pode ser, ao contrário de qualquer língua oral, “desenhada”, isto é, representada figurativamente2. Assim como crianças ouvintes utilizam como apoio a oralidade ao escrever as palavras, na tentativa de fonetizar a escrita, as crianças surdas usam da datilologia (soletrar as palavras por meio de letras da língua de sinais) antes de ler ou escrever alguma palavra2,14. Para grande parte dos surdos, a linguagem evolui através da língua de sinais, que amplia as possibilidades cognitivas e conceituais para nomear e categorizar a realidade ao seu redor1,2. Embora a escrita também se constitua de signos que veiculam e ampliam os conceitos acima citados, em um formato materializado, no indivíduo não ouvinte ela dificulta a construção do sentido, sendo necessário a busca na língua não escrita dos elementos conceituais para atribuir sentido aos signos escritos (específicos de cada língua de origem do país do indivíduo), e para tal são utilizados mecanismos próprios do grupo usuário de LIBRAS, como o tradutor-intérprete2,26. Por outro lado, a linguagem escrita possibilita ao sujeito um registro fixo da realidade, permitindo que o surdo recorra a ela sempre que necessário. O mesmo não ocorre com a língua de sinais, a qual está sempre sendo produzida livremente, além de ser utilizada por uma população restrita e não conhecida e difundida, tão comumente, no meio social3. É então, importante, destacar a necessidade de apresentar e dar condições ao surdo, usuário de LIBRAS, a aquisição da linguagem escrita, mesmo com restrições já sabidas e estudas3. O Português, para o não ouvinte, é tido, portanto, como segunda língua, causando muitas vezes um estranhamento semelhante ao que o ouvinte tem quando depara com uma língua estrangeira sem o domínio de sua escrita2. Interpretar ou produzir uma escrita estranha à própria língua confronta nossa organização de linguagem e nosso conhecimento gramatical, exigindo uma produção de novas significações que só conseguiremos construir tendo como base a nossa língua materna1,2. Uma criança ouvinte, ao embarcar no processo de aquisição da linguagem escrita, constantemente comete erros decorrentes do espelhamento que esta faz em sua língua materna – linguagem oral – como, por exemplo, grafar “mininu” em vez de “menino”, escrevendo da forma que se fala8. Da mesma forma, uma criança surda, ao ser alfabetizada na língua portuguesa, passa a construir seu discurso escrito com os termos próprios desta língua, porém com uma estrutura gramatical própria de sua primeira língua a LIBRAS1,2,3. É, portanto, comumente observado na escrita do surdo, usuário da LIBRAS, a omissão de conectivos ou flexões verbais, por exemplo, já que tais estruturas são inexistentes na LIBRAS, sendo assim, esta representação gráfica vem de encontro com as teorias que afirmam ser a linguagem oral necessária para uma evolução gramaticalmente correta da linguagem escrita26. Existem propostas educacionais, utilizadas por escolas, que propõem tornar acessível à criança duas línguas no contexto escolar. Um destes métodos é denominado bilinguismo, que simplesmente significa possuir e utilizar funcionalmente duas línguas23,24. Em tese, aceita-se a aquisição da língua de sinais como primeira língua e a língua portuguesa como segunda língua numa visão que vem ocupando o espaço do senso comum, entre pesquisadores e profissionais da área da educação do surdo 23. Inclusive, em termos de legislação, podemos recorrer ao Decreto nº 5.626, de 22 de Dezembro de 2005, no Capítulo III, o qual afirma que no ensino, a LIBRAS será adotada como a primeira língua do surdo e o Português na modalidade escrita será tratado como segunda língua. As discussões sobre o estudo dos processos de bilinguismo devem estar baseadas no conceito de que são: (1) sistemas significantes distintos, como natureza e estruturação distintas; (2) organizados por signos que demonstram as diferentes formas de categorização da experiência; (3) sistemas abstratos que afetam diretamente mentes potenciais que introduzem experiências concretas de mundo no processo de geração dos significados. Deste modo, o uso de dois sistemas significantes distintos por um mesmo individuo dá uma instrumental de conversão das experiências percebidas em cognições, através de leis e regras que estruturam o sistema de linguagem 23. Outro método educacional conhecido chama-se bimodalismo, que por sua vez nomeia certas formas de comunicação simultânea. Esse novo termo veio significar que fala e sinalização estão sendo praticadas consistente e congruentemente24. Os modelos brasileiros que se tem ocupado em descrever e comprovar a eficiência da prática bimodal pelo uso de uma forma mais completa de expressão sinalizada da língua oral é o português sinalizado24. O bimodalismo é um sistema artificial e inadequado, tendo em vista que desconsidera a língua de sinais e sua riqueza estrutural e acaba por desestruturar também o português27,28. A comunicação total também é um método comumente aplicado e parte do princípio de que é direito da criança surda aprender a utilizar todas as formas de comunicações disponíveis para desenvolver a competência linguística, tais como gestos, fala, sinais formais, alfabeto digital, leitura labial, leitura e escrita, assim como outros métodos que possam se desenvolver no futuro24,28. No entanto, na comunicação total, o importante é que o surdo desenvolva uma maneira de se comunicar, não importando a forma e sim o conteúdo a ser transmitido, daí o apelo a diferentes recursos expressivos. A linguagem deve ser eficiente para se comunicar, não em termos de gramática correta24,25. Através desse estudo podemos concluir que, se tratando da escrita do indivíduo surdo, faz-se necessário a utilização de duas línguas: a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) e o Português, uma vez que para tal processo em português, a LIBRAS pode desempenhar um papel intermediador na construção do significado, ou seja, na leitura do mundo e apreensão dos mecanismos cognitivos importantes no ato de ler e escrever. Como a leitura não é apenas uma decodificação da palavra escrita e a escrita não é apenas codificar expressões linguísticas, o domínio da língua de sinais é importantíssimo para o desenvolvimento de estratégias cognitivas, semânticas e pragmáticas do indivíduo surdo. Para que profissionais e sociedade envolvidos na habilitação e/ou reabilitação dos deficientes auditivos possam entender a realidade vivida por eles, é de extrema importância o esclarecimento destas particularidades no processo de aquisição da escrita dos surdos, possibilitando a real percepção das dificuldades existentes frente à aquisição de sua escrita, já que muitos tem como escolha comunicativa, seja por opção ou por necessidade, apenas a LIBRAS e, por vezes, nem mesmo esta. Bibliografia: 1 – QUADROS, R. M. Educação de Surdos – Aquisição da Linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 2 – PEIXOTO, R. C. Caderno Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 205-229, maio/ago. 2006. 3 – RABELO, A. S. A construção da escrita pelo surdo. Goiânia: Editora da UCG, 2001. 4 – SACALOSKI, M.; ALAVARSI, G. & GUERRA, G. R. Fonoaudiologia na Escola. São Paulo: Lovise, 2000. 5 – PETITTO, L.A. e MARANTETTE, P.F. Modo Manual de Balbuciar – Evidência da Ontogenia da Linguagem. 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Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. 15 – http://www.bibliomed.com.br - 17.03.2008 - 16:50hs. 16 – SANTOS, T. M. M. e RUSSO, I. C. P. A Prática da Audiologia Clínica. São Paulo: Cortez, 2005. 17 – KATZ, J. Tratado de Audiologia Clínica. São Paulo: Manole, 1999. 18 – SILMAN, S. e SILVERMAN, C. A. Auditory diagnostics: principles and applications. San Diego: Singular, 1997. 19 – LLOYD e KAPLAN. Audiometric Interpretation – A manual of Basic Audiometry. Baltimore: University Park Press, 1978: 151 – 159. 20 – MOGFORD, K. Desenvolvimento da Linguagem em Circunstâncias Excepcionais. Rio de Janeiro: Revinter, 2002. 21 – CORRÊA, J. M. Surdez e os Fatores que compõem o Método Áudio + Visual de Linguagem Oral para crianças com perda auditiva. São Paulo: Atheneu, 2001. 22 – http://www.libras.org.br/libras.php - 13.03.2008 - 14:00hs. 23 – FERNANDES, E. Surdez e Bilingüismo. Porto Alegre: Mediação, 2007. 24 – CICCONE, M. Comunicação Total – Introdução e estratégias – A pessoa surda. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 1996. 25 – MARCHESI, A. El desarrollo cognitivo y lingüístico de los niños sordos – Perspectivas Educacionais. Madrid: Alianza, 1987. 26 – QUADROS, R. M. Estudos Surdos I. Santa Catarina: Editora Arara Azul, 2006. 27 – DUFFY, J. T. Ten reasons for allowing deaf children exposure to american sign language. 1978. 28 – BRITO, F. L. Integração Social e Educação de Surdos. Rio de Janeiro: Babel, 1993.