A EFETIVAÇÃO DO DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO À
EDUCAÇÃO: DIMENSIONAMENTO DA RELAÇÃO EDUCAÇÃO
E TRABALHO
FEDATTO, Nilce Aparecida da Silva Freitas
UFGD
FREITAS, Dirce Nei Teixeira de
UFGD
Este trabalho origina-se de estudo realizado no desenvolvimento de pesquisa
sobre a “efetivação do direito à educação básica” no estado de Mato Grosso do Sul, no
período 1992-2004. Analisa o art. 5º. da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB/1996) enquanto realização da sociedade brasileira reveladora da relação
entre educação e trabalho. Lembramos que esse dispositivo legal foi brindado, na
década de 1990, como a grande conquista educacional brasileira. Mas, a história nos
permite revelar dimensões extremamente ricas desse intrigante e instigante artigo.
Desde a sua garantia inicial pela Constituição Federal de 1934, o direito à
educação apresenta avanços tanto em termos de reconhecimento como de proclamação,
porém sem igual correspondência em efetivação. Essa questão tem relevância na
história da educação brasileira, entre outras razões, porque o Brasil não logrou cumprir
compromissos firmados como signatário de declarações internacionais ao não efetivar o
direito à educação até mesmo no ensino obrigatório (ensino fundamental). O discurso
sobre direito à educação não coadunou com a prática que o Estado brasileiro adotou.
Apoiando-nos em Saviani, partimos do entendimento que “[...] a relação entre
trabalho e educação é uma relação de identidade”. Ou seja, os homens “[...]aprend[em]
a trabalhar trabalhando [...] [assim] educavam-se e educavam as novas gerações”
(2007, p. 154). Dito de outra forma, concordamos com o autor que o homem se
autoproduz e, nessa ação, trabalha e educa, pois ensina a pensar e agir. Igualmente,
entendemos com o autor, bem com os estudos de Nosella (1989, 2007) e Arroyo (1989,
1995), que a separação da instrução e da educação, limitando a última a um espaço
2
institucionalizado, separou escola e trabalho, educação e produção, teoria e prática e,
com isso, a negação do saber educativo que ocorre nos processos sociais.
A abordagem histórica do tema na primeira seção do texto é complementada, na
segunda, com considerações avaliativas acerca do atual cenário educacional no País. A
visão que resulta dessa abordagem é imprescindível para a compreensão do que vem
ocorrendo nas unidades federativas no tocante à efetivação do direito à educação.
1. O direito público subjetivo à educação em perspectiva histórica (1934-1996)
Historicamente podemos dizer que o direito à educação adquiriu um caráter
positivo nos processos de reordenamento do poder no mundo do pós-Segunda Guerra
Mundial, cujo marco é a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. No
início dos anos 1960, as conferências de Karachi e Adis Abeba fixaram metas de
alfabetização e escolarização universais para o ano de 1980. Em 1990, a Conferência
Mundial de Jomtien, estabeleceu metas relativas à educação básica para todos até o ano
2000. Todavia, em 2000 o Fórum Mundial de Dakar revelou avanços insignificantes,
porque nem mesmo o ensino obrigatório havia sido assegurado para todos e, mais, as
necessidades básicas indispensáveis para o usufruto desse direito permaneciam sem o
devido atendimento. Diante disso, as metas fixadas para o ano 2000 foram postergadas
para o ano 2015 (TORRES, 2001).
No Brasil, o reconhecimento do direito à educação emergiu no contexto da forte
demanda social configurada nas primeiras décadas do século XX. A Constituição de
1934 declara, pela primeira vez, que “[...] a educação é direito de todos [...] (artigo 149).
Para o tema que ora nos ocupa é interessante destacar que já na década de 1930 os
“pioneiros da educação” sinalizavam esse como direito público subjetivo. A rigor
defendiam os “pioneiros”
No que se refere ao direito à educação, a concepção doutrinária [...] é a de
considerar que o Estado moderno constitucional exige que se faça a
afirmação da educação como um direito individual à semelhança do direito
ao trabalho, à subsistência [...] um ‘direito público subjetivo’ que tem [...] o
mérito de [...] despertar aquele interesse indispensável aos poderes públicos
de modo que venha transformar em prática [...]. (ROCHA, 1996, p.125).
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Todavia, segundo o mesmo autor, embora o reconhecimento da educação como
direito de todos tenha sido uma vitória, no texto definitivo “[...] ele sai [...] mutilado
para que nada obrigue o Estado a um investimento em educação pública” (Ibid., p.126).
A mutilação fica mais evidente porque a Carta de 1934 mantém dispositivo que
responsabiliza os estados pelos seus sistemas de ensino (artigo 151) e embora
estabelecesse como privativo da União fixar as diretrizes e bases para a educação
nacional (artigo 5º, inciso XIV) isso não se verificou. Um dos principais motivos nós, os
brasileiros, sabemos: é que a Constituição de 1934 teve vida curta, revogada que foi
pela Constituição de 1937 (imposta pela ditadura do Estado Novo à população).
Ponto interessante na análise dos dois textos constitucionais é que no
aprovado em 1934, no período do governo “liberal” de Vargas, a dimensão do direito à
educação restringe-se ao ensino primário (artigo 150, alínea a), acrescido de um
ambíguo “integral”, talvez para contrapor-se ao “escolas de primeiras letras” que é autoexplicativo.
Consoante com a “filosofia” do Estado Novo — expressa principalmente no
preâmbulo e nos artigos 122 (incisos IX, X e XV) e 123 da Constituição de 1937 — a
educação desaparece como direito. Aliás, o texto constitucional, desde a ótica do
trabalho-educação, é exemplar, pois trata ele mesmo de instituir a separação trabalho
manual/trabalho intelectual ao estabelecer que “o ensino pré-vocacional profissional [...]
[é] destinado às classes menos favorecidas”. O texto é mais explícito ao determinar
como “dever” das indústrias “[...] criar [...] escolas de aprendizes aos filhos de seus
operários [...]”, ou seja, a Constituição tratou de traçar, inclusive, o “destino” dos filhos
dos operários brasileiros. (BRASIL, 1937, p. 16).
A omissão da Constituição de 1937 foi, em parte, compensada com a iniciativa
do Ministro da Educação Gustavo Capanema propondo a reforma da educação brasileira
por meio das “Leis Orgânicas do Ensino” mais conhecidas como “Reforma Capanema”.
Em que pese a opção por “[...] conduzir-se para o terreno das reformas parciais, [...]
(ROMANELLI, 1993, p.154), o fato é que esta foi a primeira iniciativa do Estado
brasileiro de tomar a educação como um todo.
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É bastante ilustrativa para o tema em foco a obra “Tempos de Capanema”,
organizada por Schwartzman, Bomeny e Costa (1984), na qual os autores expõem o
“lugar” destinado à educação-trabalho no Estado Novo:
O sistema educacional deveria corresponder à divisão econômico-social do
trabalho. A educação deveria servir ao desenvolvimento de habilidades e
mentalidades de acordo com os diversos papéis atribuídos às diversas classes
ou categorias sociais. Teríamos, assim, uma educação [...] destinada à elite da
elite, outra educação para a elite urbana, uma outra para os jovens que
comporiam o grande ‘exército de trabalhadores necessários à utilização da
riqueza potencial da nação’[...](p.189).
A citação acima dispensa comentários, mas é importante destacar que no Estado
Novo a separação entre educação e trabalho é explícita e se fazia conforme as diferentes
“vocações” dos estudantes descobertas pelos serviços de seleção e orientação
profissional. Quanto ao direito à educação, pode-se dizer que esbarra nos limites fixados
pela Constituição. Segundo o próprio Ministro (Idem, ibidem), “[...] não irá [...] o
governo federal manter escolas primárias pelo país afora.”
A Constituição de 1946, que marca o retorno do Brasil à normalidade
democrática, é apontada como “[...] caracterizada pelo espírito liberal e democrático de
seus enunciados, [...]” (ROMANELLI, 1993, p.169-70). Contudo, Oliveira (1996, p.
164) afirma que “[...] o texto de 1946 é limitado em relação a uma série de questões
fundamentais para construir uma sociedade democrática [...]”. E, citando João Almino,
o autor aponta os marcos da contradição expressa na “[...]
manutenção das
desigualdades e a emergência das massas populares como agente a ser considerado” .
Assim, o artigo 166 enuncia essa contradição ao estabelecer que “A educação é direito
de todos e será dada no lar e na escola [...]”. Esse artigo é intrigante da ótica da
educação como direito subjetivo. Que educação será assegurada no lar? A educação
informal? A contradição continua no artigo 168 que determina a obrigatoriedade do
ensino primário. Como fazê-lo na educação “realizada no lar”? Foge aos nossos
propósitos a análise do texto de 1946 nesta direção, mas entendemos que o eixo
apontado por Oliveira é instigante.
Quanto ao direito à educação e à relação trabalho-educação, a Constituição de
1946 “[...] tende a manifestar-se na forma de separação entre escola e produção”
(SAVIANI, 2006, p.157). Todavia concordamos com Romanelli (1993, p.171) que a
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Constituição de 1946 “[...] se distanciava da ideologia liberal-aristocrática esposada
pelas nossas elites, no antigo regime”. Além disso, possibilitou o desenvolvimento de
um dos períodos mais fecundos em torno das questões da educação que resultou em
nossa primeira lei geral da educação.
Considerando o tema em tela, a primeira LDB (lei 4024/61) não traduz grande
avanço. Isso porque o seu artigo 2º. é transcrição quase literal do artigo 166 da
Constituição. O artigo 3º. trata de estabelecer os limites do direito à educação para todos
expressos nos incisos I e II. É de justiça, todavia, reconhecer que a Lei tem o mérito de
romper com a rigidez da organização da educação escolar brasileira e imprime uma
certa flexibilidade e articulação entre os ramos de ensino. Para o direito à educação e
por extensão à educação do trabalhador brasileiro é importante situar alguns
desdobramentos decorrentes da LDB: O Plano Nacional de Educação (PNE), de 1962, e
Plano Trienal para o período de 1963-65. (FÁVERO, 1996).
O PNE, buscando cumprir os dispositivos da LDB quanto ao direito de todos à
educação, apresenta a idéia de extensão da escolaridade primária para 06 anos, nas áreas
urbanas, além de ampliar o percentual destinado ao financiamento desse ensino dos
10%, previstos na LDB, para 12%. Quanto à relação educação e desenvolvimento
(Idem, p. 240) “[...] encaminhava-se [...] a necessidade de assumir a escolarização
obrigatória dos 7 aos 14 anos [...]. [E], buscava-se uma conciliação entre a educação
geral e a iniciação às práticas do trabalho [..] discutiam-se as bases dos ginásios
modernos [...] orientados para o trabalho”. Por seu lado, o Plano Trienal considera a
educação “[...] um pré-investimento para aperfeiçoar o fator humano”.
O período compreendido entre 1964 e 1985 contou com a Constituição de 1967
e a Emenda de 1969. Horta (1996, p. 217) assevera que o texto de 1967 “[...] mantinha
praticamente inalterados os dispositivos da Constituição de 1946 relacionados com a
educação”. A emenda de 1969, conforme observa Germano (1993, p. 105), apenas
introduz dispositivos com vistas à contenção da politização dos estudantes e professores
brasileiros “[...] através do controle político ideológico do ensino, visando à eliminação
do exercício da crítica social e política, para obter a adesão de segmentos sociais cada
vez mais amplos para o seu projeto de dominação”.
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Nesse cenário esvaziado de discussões é que se insere o ciclo de reformas
proposto pelo Estado Militar. A análise da reforma universitária foge aos objetivos e
limites deste estudo. Quanto à reforma da educação básica, denominada, a partir de
então, de ensino de 1º. e 2º. Graus, seu anteprojeto, escrito por uma comissão de
intelectuais fiéis ao regime, foi enviado ao Congresso (Idem, p.160) e “[...] num prazo
de 30 dias [...] a matéria tramitou e foi aprovada por unanimidade [...]” e se
transformou, sem vetos do Presidente, na Lei nº. 5.692, de 1971.
O autor ajuda a esclarecer o motivo que levou o Estado Militar a seguir com um
projeto de reforma educacional que além de dobrar a escolaridade obrigatória (de 4 para
8 anos) estabelece o ensino profissionalizante no nível médio ou 2º grau, criando
paradoxalmente a escola única defendida pelos setores mais progressistas da educação
brasileira, desde o Manifesto do Pioneiros, de 1932 . Segundo Germano,
No Brasil, uma parte substancial da sua população, pertencente [...] às classes
subalternas, sequer tem acesso à escola. [...] Nesse sentido, a ampliação dos
anos de escolarização visa, entre outras coisas, absorver temporariamente a
força de trabalho ‘supérflua’, contribuindo, dessa forma, para regular o
mercado de trabalho. Visa também atender a uma demanda social, pois à
medida que o sistema escolar se expande os empregadores tendem a exigir
uma elevação dos requisitos educacionais da força de trabalho [...]
(GERMANO, 1993, p.165).
O ensino de 2º. Grau, à primeira vista, parece ser a proposta de escola única com
vistas à (Idem, p. 176) “[...] elevação cultural das classes subalternas ao vincular
trabalho e conhecimento, o que possibilita o controle do processo produtivo por quem
trabalha [...]”. Na perspectiva adotada pelo Estado Militar no tocante às relações entre
educação e trabalho “[...] trata-se de subordinar a educação à produção”. O que
aparentava ser uma proposta de educação para todos, na verdade, configurava-se como
um reforço da função discriminatória da reforma de 2º. Grau, apesar da valorização da
educação escolar no nível do discurso como estratégia para obtenção de legitimidade.
Outro ponto importante a ser destacado é que o Estado Militar pôs para ele
mesmo a meta ambiciosa de escolarizar de forma regular toda população de 7 a 14 anos
durante 8 anos, isso implicaria (CUNHA,1980, p. 254) “[...] mais do que duplicar a
capacidade instalada das escolas, no seu equipamento de material de consumo, na
formação [...] de professores”. Entretanto, o próprio Estado reconhece a impossibilidade
de cumprir tal meta via escola regular, dessa forma busca atingi-la lançando mão do
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rádio e da televisão, além de uma campanha nacional de alfabetização, o MOBRAL,
para adultos, adolescentes e pré-adolescentes, apresentada como “[...] importante para
melhorar a qualidade da força de trabalho, melhorar seu padrão de vida e, como
resultado de tudo isso, contribuir para o seu desenvolvimento”.
Pelo exposto sumariamente, é possível afirmar que o Regime Militar não
cumpriu o compromisso no que diz respeito à escolarização/qualificação da força de
trabalho potencial e ativa, (GERMANO, 1993, 104) “[...] apesar da constante
valorização da educação escolar no nível do discurso”. Na prática, a política
educacional adotada se constituiu em mecanismo de exclusão social que acabou (Idem,
p.267) “[...] por desqualificar e degradar o ensino público [...] [transformando] a
educação em mercadoria de alto custo” e o direito à educação para todos em peça de
retórica.
A década de 1980 é considerada por analistas como “perdida” em termos
econômicos, contudo do aspecto social foi fecunda e tivemos muitos ganhos no que diz
respeito à organização e mobilização da sociedade civil e o desenvolvimento da
consciência dos professores que saíram da apatia e fundaram (ou voltaram a) sindicatos
e associações. Nesse contexto de reorganização da sociedade brasileira na segunda
metade da década de 1980 é que se insere o texto constitucional de 1988 (BRASIL,
1999a), cujo artigo 208, e seu desdobramento no artigo 5º. da LDB (BRASIL, 1996),
constitui o foco destas reflexões.
Essa Constituição estabeleceu o direito de acesso e o dever da oferta da
educação em nível básico e superior, com atendimento a ser prestado em diferentes
modalidades e com a definição de um padrão mínimo de insumos e de conteúdos
mínimos. Foram, também, instituídos os instrumentos jurídicos para a defesa desse
direito, para a sua reparação e para punição da negligência dos Poderes Públicos em
assegurá-los para todos (OLIVEIRA, 1995).
Todavia, a reforma constitucional dos anos 1990 — em especial a expressa na
Emenda Constitucional nº. 14, de 1996 (BRASIL, 1999b) — e a legislação
infraconstitucional dela decorrente explicitaram os limites dentro do qual o Estado
brasileiro viabilizaria o direito à educação para todos os seus cidadãos. Assim, somente
o ensino fundamental acabou garantido — com as leis nº. 9.394 e nº. 9.424 (BRASIL,
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1996b), ambas de 1996 — como direito público subjetivo, uma vez que apenas para ele
se fixou o estatuto da obrigatoriedade vinculado ao da gratuidade (HORTA, 1998). O
mesmo não se verificou na educação infantil e no ensino médio, embora tenha sido
estabelecido o dever do Estado de oferecê-los com gratuidade em estabelecimentos
oficiais e com padrão de qualidade.
Uma leitura mais atenta dá conta que até mesmo o ensino garantido como direito
público subjetivo, o ensino fundamental, sofreu restrições quando ofertado para jovens e
adultos. Isso ficou evidente com os vetos presidenciais a artigos da Lei 9.424/96,
restringindo, desse modo, os mecanismos de financiamento dessa modalidade de
atendimento educacional e com a fixação da faixa etária 7 a 14 anos como prioridade da
administração pública educacional, no Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2001).
O alcance do direito público subjetivo à educação foi ampliado pela Lei nº
11.274, de 6 de fevereiro de 2006 (BRASIL, 2006a), passando a incluir a população de
6 anos de idade.
Mesmo assim, reduzida ao mínimo e, ainda, admitindo formas precárias de
atendimento (§ 5º do artigo 5º. da Lei nº. 9.394, de 1996), a garantia do direito à
educação é, sem dúvida, uma das inacabadas realizações da sociedade brasileira, no
século XX e o grande desafio para esse início de século.
Para concluir este item, considerando nosso propósito de entender a relação
entre trabalho e educação no Brasil a partir da garantia da educação como direito
público subjetivo, realizamos uma rápida análise do “lugar” destinado à educação
profissional e, por extensão, à educação dos trabalhadores pertencentes às classes
populares nesse contexto.
Na nossa avaliação, a LDB, ao retirar a educação profissional do âmbito da
educação básica, consagra a separação trabalho manual/trabalho intelectual o que
significa
[...] voltar atrás no tempo, não apenas em relação à Lei 5692 de 1971, mas
em relação à LDB de 1961 já que esta flexibilizou a relação entre os ramos
do ensino médio de então, permitindo a equivalência e o trânsito entre eles
quebrando [...] a ‘dualidade de sistemas’ própria das reformas Capanema da
década de 40, na vigência do Estado Novo. (SAVIANI, 1998, p.57-8).
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A constatação de Saviani ajuda a esclarecer a relação entre educação e trabalho
no Brasil e a extensão do direito público subjetivo à educação, o qual, a nosso ver, só
pode ser entendido por meio de análise de conjunto do texto da lei, para então
percebermos que a efetivação desse direito é feita nos limites que permitam tirar o País
da estatística dos que não têm cumprido as metas estabelecidas pelas declarações
internacionais.
2. O básico realizado: cenário atual
Nesta seção, buscamos ressaltar traços da efetivação do ensino fundamental no
Brasil, considerando que ele foi expressamente estabelecido como direito público
subjetivo no ordenamento legal vigente. Interessa-nos ressaltar o perfil de um direito
visto, agora, não mais como objeto de declarações, garantias e políticas públicas, mas,
sim, como obra do Estado e da sociedade brasileiros. Também importa chamar a
atenção para o dimensionamento da relação entre educação e trabalho que aí se
evidencia, uma vez que entendemos que é na concreta realização do ensino fundamental
que se pode iniciar a reflexão sobre essa relação enquanto realidade histórica, no caso
brasileiro.
Aceitemos, para fins de reflexão, o argumento de Sposati (2000) de que
significativos avanços na superação da “exclusão social” podem ser obtidos se
considerarmos o ensino fundamental o padrão mínimo de escolarização para todos, que
precisa ser concretizado com a devida qualidade, no País.
Para essa reflexão, consultamos uma literatura que, trabalhando com fontes de
natureza estatística e avaliativa, logrou crescente visibilidade no debate educacional
desde os anos 1980. Também recorremos a dados estatísticos para analisar a situação
em momento recente, entendendo que se pode apanhar a realidade, ao menos em parte,
por meio e nos limites da leitura estatística. Consideramos esse tipo de dado revelador
para o estudo da questão que nos ocupa neste trabalho, mesmo não isento de
imprecisões decorrentes da fragilidade do controle da qualidade (correção, exatidão,
veracidade) da sua geração, em razão tanto da complexidade desse processo, como de
limitações e entraves de ordem técnica, administrativa, econômica, política e cultural
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que o perpassam, no caso brasileiro. Por outro lado, sabemos que, por sua própria
natureza, os dados estatísticos não se prestem à apreensão do leque de particularidades
qualitativas dos objetos, ainda que expressem determinada qualidade, uma vez que
quantidade e qualidade não existem uma sem a outra, sendo inseparáveis (GRAMSCI,
1991).
Com essa abordagem, relembramos aqui realidades que não são desconhecidas
por aqueles que procuram acompanhar a geração e disseminação de dados e indicadores
estatísticos, bem como os resultados de avaliações realizados pelo INEP/MEC. Sem o
compromisso da novidade, nos detemos na reflexão sobre a circunscrição da relação
entre educação e trabalho manifesta no real perfil do básico dimensionado no direito
público subjetivo à educação como realização social.
Primeiro, os dados mostram que a universalização do ensino fundamental ainda
não foi realizada pela sociedade brasileira, ainda que analistas venham afirmando que,
em termos de acesso, se trata de tarefa realizada para a faixa de 7 a 14 anos. Mas,
concordamos com Ferraro (1999, 2004) que a grandeza da “exclusão da escola” não é
irrelevante. Não apenas porque denuncia a “ineficiência do sistema educacional” e os
“custos adicionais” que isso representa para a sociedade, com o que se preocupa
Schwartzman (2004). O autor, com base em dados da PNAD/IBGE 2003, mostra que a
taxa líquida de atendimento no ensino fundamental é de 93%, sendo a taxa bruta
próxima a 120%, o que indica um custo adicional de 20% “pago pela ineficiência do
sistema”.
É preciso atentar para o que esse quadro revela. Para além da “ineficiência” do
“sistema educacional” e o “gasto” que representa, sobressai a não-efetivação do direito
público subjetivo à educação. Não é irrelevante que mesmo o acesso ao ensino
fundamental não esteja universalizado, num tempo em que a eqüidade e a inclusão são
reclamadas por diversas forças sociais. Mais que revelar “custos adicionais” a taxa bruta
no ensino fundamental evidencia a grandeza da não-realização daquele direito, ou seja,
do “padrão básico” (ensino fundamental) que deveria ser assegurado a todos em tempo
propício. Ainda que a taxa bruta informe uma positiva ação de reposição do direito à
educação para pessoas fora da faixa etária regular (7 a 14 anos), não deixa de denunciar
o custo humano e social, bem como a continuidade da postergação e da violação de um
direito constitucionalmente reconhecido e garantido, no País.
11
Trabalhando com dados da PND/IBGE, Klein (2006) nos permite ver que, em
2003, muitos estudantes com 14 anos que deveriam estar concluindo o ensino
fundamental cursavam séries anteriores. Também estudantes com 17 anos que deveriam
estar concluindo o ensino médio ainda estavam no ensino fundamental (Tabela 1).
Tabela 1 - Percentual de alunos com 14 e 17 anos no ensino fundamental, por série – Brasil, 2003
Séries
Estudantes
1ª.
2ª.
3ª.
4ª.
5ª.
6ª.
7ª.
8ª.
14 anos
0,8
1,3
2,5
4,5
9,6
12,1
18,3
35,1
17 anos
0,5
0,4
0,5
1,3
2,1
2,7
3,7
7,4
Fonte: Klein (2006, p. 50 e 51).
Mas, a sociedade brasileira não só não tem assegurado à população em idade
propícia o acesso ao fundamental da educação básica (ou seja, ao básico do básico),
como até mesmo o “elementar” desse básico não tem sido assegurado.
Ilustra isso o analfabetismo da população de 10 a 14 anos registrado pelo IBGE
em 2000. Das 17.348.067 pessoas nessa faixa etária 1.257.873 eram analfabetas, o que
corresponde a 7,2% dessa população. Nesse mesmo ano e grupo etário, 663.555 pessoas
não tinham instrução e 3.519.444 tinham até três anos de instrução, o que representa,
respectivamente, 3,8% e 20,2% dessa população. Das 136.910.358 pessoas com 10 anos
e mais 40.847.827 estavam entre as sem instrução, menos de um ano a até três anos de
instrução, o que representa 29,8% dessa população (BRASIL, 2007).
A quase universalização do acesso ao ensino fundamental convive com uma
situação de não-universalização da conclusão dessa etapa da educação básica. Esse
quadro revela que o direito não-efetivado subtrai de parcelas da população a experiência
de trabalho que se dá por meio da educação (neste caso, especificamente a escolarização
fundamental).
A reprodução continuada desse quadro se dá pelo não-acesso, pela nãopermanência e pela exclusão no processo daqueles que têm acesso e permanecem, mas
são submetidos a mecanismos de reprovação e repetência, entre outros, que os levam ao
abandono e à evasão escolar.
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Estudos de Ribeiro (1991, 1993), Fletcher e Castro (1993), Klein e Ribeiro
(1995), Ferraro (1999, 2004), Soares (2004), entre outros, apontam a exclusão no
processo de escolarização (exclusão na escola, como a denomina Ferraro) como o mais
grave problema do ensino fundamental brasileiro. Obviamente que esse fato não
suprime a importância e a urgência de se tratar devidamente a exclusão da escola, como
alerta Ferraro (2004).
O caráter excludente do ensino fundamental na escola brasileira tem sido
apontado como problema econômico, político, cultural, pedagógico a depender da
perspectiva analítica e do referencial teórico utilizado. Para Arroyo (2000), uma cultura
escolar excludente segue produzindo fracasso escolar, que, aliado ao questionável
sucesso escolar, alimenta a “exclusão social” e dela se nutre, conforme ressalta Sposati
(2000).
Nesse contexto excludente, o trabalho de professores e estudantes deixa de se
constituir princípio educativo na escolarização de parcelas da população. A educação se
nega enquanto tal, na medida em que deixa de operar, para vários estudantes, como
prática de humanização. Conforme Severino (2006), isso lhe é essencial.
Uma face da “exclusão na escola” pode ser vista no registro momentâneo
(retrato) de parte do cenário do ensino fundamental no ano 2005 exibido nos dados da
Tabela 2 sobre rendimento do ensino fundamental.
Ainda que os dados não ofereçam a visão histórica do objeto, bem como a
dinâmica e as tendências da realidade, basta-nos para a reflexão pretendida. A
aprovação, a reprovação e o abandono no ensino urbano e rural diurno e noturno são os
indicadores considerados.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que aprovação não necessariamente
significa sucesso escolar ou não-exclusão, como bem argumentam Arroyo (2000),
Sposati (2000) e Ferraro (2004), entre outros. Principalmente porque não significa
aquisição e apropriação do básico esperado do ensino fundamental. Assim, mesmo os
aparentemente “incluídos” e “bem sucedidos” são alcançados por mecanismos escolares
excludentes associados à qualidade do ensino, da escola, das políticas e gestão públicas
da educação escolar básica. A dimensão desse problema tem sido aferida por meio de
avaliações em larga escala, desde 1990.
13
Tabela 2 – Rendimento do ensino fundamental no Brasil, por localização e turno (2005)
Localização
Situação
Total
Nº.
URBANO
Nº.
%
Nº.
%
22.258.962
82
21.571.587
83
687.375
50
Reprovados
3.291.437
12
3.116.963
12
174.474
12
Abandonaram
1.705.004
6
1.184.088
5
520.916
38
27.255.403
100
25.872.638
100
1.382.765
100
Aprovados
4.058.009
71
3.841.567
72
216.442
61
Reprovados
1.009.625
18
968.415
18
41.210
11
609.486
11
509.797
10
99.689
28
5.677.120
100
5.319.779
100
357.341
100
Aprovados
26.316.971
80
25.413.154
81
903.817
52
Reprovados
4.301.062
13
4.085.378
13
215.684
12
Abandonaram
2.314.490
7
1.693.885
6
620.605
36
32.932.523
100
31.192.417
100
1.740.106
100
Abandonaram
Subtotal
Total
%
Noturno
Aprovados
Subtotal
RURAL
Diurno
Fonte: INEP/MEC (BRASIL, 2006b)
As primeiras constatações são as de que os indicadores de rendimento escolar
são menos favoráveis no atendimento localizado em área rural e período noturno, sendo
o abandono escolar acentuado neste último. A exclusão escolar, expressa pelo
abandono, atinge mais fortemente os estudantes trabalhadores, que representam parte
expressiva do ensino noturno. Aí está mais uma face da relação entre educação e
trabalho que se mostra problemática. A “exclusão na escola”, por meio do mecanismo
reprovação, é maior no ensino rural e no ensino diurno. Neste caso, é importante
considerar a hipótese de que a menor reprovação no ensino noturno esteja associada a
um menor grau de exigência nos processos avaliativos escolares, estratégia adotada
diante da dimensão do abandono escolar.
Em que pesem as reservas no tocante à lógica da avaliação externa em larga
escala, realizada no Brasil pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) do
INEP/MEC (SOUSA, 1997; OLIVEIRA e SOUSA, 2003; FREITAS, 2005), temos que
atentar para seus achados.
Os sucessivos relatórios do SAEB no período 1995 a 2005 indicam que os
estudantes do ensino fundamental apresentam níveis de proficiência nos componentes
14
curriculares avaliados aquém do mínimo esperado, o que tem sido comentado em
diversos estudos e pesquisas (SOARES, 2005; OLIVEIRA E ARAUJO, 2005; KLEIN,
2006).
Soares (2004), analisando o desempenho de alunos do ensino fundamental
registrado pelo SAEB 2001, constatou que a maioria dos estudantes tem desempenho
menor do que o esperado para a série que cursa, sendo expressivas as diferenças entre
estudantes de distintas regiões do País, posições sociais e cor de pele, o que, para ele,
evidencia problemas de qualidade e de eqüidade no processo de escolarização. Ressalta
que “A qualidade do ensino não se distribui de forma equânime para todos os estratos
da população [...] Pior, quando se observa alguma qualidade, o ambiente é o de forte
desigualdade”.
Com a não-efetivação do direito público subjetivo à educação, pessoas
continuam a ser privadas da legítima vivência da educação como trabalho singular,
sendo-lhes restringidas as possibilidades de inserção e relações na esfera do trabalho.
3. Finalização
Conclusivamente é possível afirmar que o Estado e a sociedade brasileiros têm
muito ainda a realizar para que o direito à educação seja uma realidade para todos. Os
avanços jurídico-legais nessa direção não transpuseram os limites do ensino obrigatório,
que corresponde ao básico da educação básica: o ensino fundamental. Este, com estatuto
de direito público subjetivo, é atualmente destinado à população da faixa etária de 6 a
14 anos. Todavia, mesmo para estes, nem acesso, nem permanência, nem conclusão,
nem eqüidade e nem qualidade têm sido universalmente propiciados.
Até o momento, o ensino reconhecido e garantido como direito público subjetivo
não logrou ser realizado plenamente no país, mesmo que a garantia vigore há quase
duas décadas. Tanto as normas jurídicas e político-administrativas como os indicadores
estatísticos e avaliativos são reveladores da parcial e precária garantia e realização do
direito à educação no Brasil. Desse modo, a reprodução da relação entre educação e
trabalho prossegue obstando transformações sociais.
15
Assim, a efetivação do direito de todas as pessoas à educação fundamental, no
mínimo, é chave para que o Estado e a sociedade cumpram uma das tarefas inacabadas
do século XX.
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Nilce Aparecida da Silva Freitas Fedatto e Dirce Nei