Horizontes prováveis no campo da arte contemporânea
Daniela Mattos
Artista, pesquisadora e curadora (RJ)
Práticas globais, demandas locais
O panorama apresentado durante o seminário Reconfigurações do público: arte, pedagogia e participação foi bastante amplo, colocando em perspectiva discursos decorrentes de experiências e
momentos históricos diversos. Os debates estimularam a reflexão acerca das práticas artísticas e do
atual funcionamento no campo institucional da arte, em âmbito nacional e internacional, levando-nos a observar as particularidades de cada um dos projetos apresentados e, a partir disso, perceber melhor as necessidades e especificidades locais. Neste sentido, retomo duas questões que
de certo modo permearam momentos distintos do seminário e que devem permanecer ressoando
em nossas reflexões. Levando em consideração que as respostas a essas demandas não devem ser
paradigmáticas, estanques — já que quaisquer elaborações nessa direção se transformam e se modificam de acordo com aspectos culturais, sociais e históricos a que estão implicadas —, vamos às
perguntas: o que pode e deve ser hoje um museu de arte moderna e contemporânea, em especial
no contexto brasileiro? E ainda, qual o papel do artista, do curador, do crítico, do educador que atua
em instituições culturais — citando apenas alguns dos agentes que compõem o circuito da arte —
nas reconfigurações necessárias não só ao público, mas a todas as outras instâncias do sistema de
funcionamento da arte?
Produção de pensamento como produção de diferença
Uma das primeiras atividades realizadas no quadro do seminário foram os encontros intitulados
“grupos de estudo”. Inaugurando o debate, foram apresentadas algumas linhas de ação do Núcleo
Experimental de Educação e Arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com enfoque nas
práticas dos artistas/educadores que desenvolvem o projeto intitulado Irradiação. Neste projeto os
artistas/educadores desenvolvem ações elaboradas a partir do repertório de suas próprias pesquisas, gerando proposições dialógicas que são realizadas tanto dentro como fora do museu, e que se
fazem no contato com grupos diversos, vinculados a instituições educacionais, de saúde, ou mesmo
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com pessoas que trabalham no próprio MAM i . Tais iniciativas, cada uma à sua maneira, reinventam
os modos de funcionamento de um projeto de ação educativa em um museu, tal qual conhecemos:
elas promovem, ao ativar redes de produção de afetos e pensamento dentro e fora de seu espaço
físico, um engendramento de outros públicos para além daqueles que tradicionalmente participam
de ações oferecidas por programas educativos (como turmas de ensino formal, espectadores especializados e interessados em geral), ampliando o espectro e as possibilidades pedagógicas de um
museu de arte. Não menos importante, mas igualmente rara e imprescindível é a contribuição desta
iniciativa ao fomento e desenvolvimento das práticas desses jovens artistas. O que se percebe,
portanto, é que através destas — e outras diversas ações ii — o Núcleo Experimental de Educação
e Arte do MAM-RJ assume a responsabilidade de se manter como espaço de formação e produção
de experiências, de afetos, de encontros, de diferenças.
Em um dos capítulos de seu livro Pedagogia da autonomia, publicado em 1997, Paulo Freire destaca
a importância da assunção para a prática pedagógica. Ele se refere a assumir os riscos e conquistas
que o processo educacional pode proporcionar, nos fazendo atentar, por exemplo, para a potência
de transformação que os pequenos gestos, às vezes os mais simples, podem gerar. Fechando o
capítulo, com extrema boniteza — para usar aqui uma de suas palavras —, Paulo escreve que:
(...) Não é possível também formação docente indiferente à boniteza e à decência que estar no mundo,
com o mundo e com os outros, substantivamente, exige de nós. Não há prática docente verdadeira que
não seja ela mesma um ensaio estético e ético (...).
As afirmações de Freire acerca da prática pedagógica certamente podem ser recontextualizadas
e consideradas como atributos necessários à prática artística contemporânea, bem como às ações
educativas no campo da arte, áreas em que as dimensões do diálogo, da participação e da colaboração se fazem cada vez mais necessárias.
A importância das práticas experimentais fundadoras
É imprescindível que, no embate para tentarmos responder às questões colocadas na primeira parte
deste texto, não deixemos de considerar o que já foi feito até o momento em que nos colocamos
tais perguntas. Certamente o horizonte das práticas artísticas experimentais no Brasil,iv desde as
décadas de 1960 e 1970 até os dias atuais, pode nos fornecer entradas e repertório para configurar
não apenas uma, mas múltiplas respostas a essas e outras demandas. Sendo assim, retomo um excerto de texto usado como mote para os debates do grupo de estudos durante o seminário, intitulado Esquema geral da nova objetividade, escrito por um dos nossos mais inventivos e importantes
artistas: Hélio Oiticica. No texto em questão, Hélio aponta para a necessidade de se reelaborar o
contexto de atuação e o papel desempenhado pelo artista em seu circuito, já década de 1960, mais
precisamente em 1966:
(...) criar novas condições experimentais em que o artista assuma o papel de “proposicionista”, ou “empresário”, ou mesmo “educador”. O problema antigo de “fazer uma nova arte” ou derrubar culturas já não se
formula assim — a formulação certa seria a de se perguntar: quais as proposições, promoções e medidas a
que se deve recorrer para criar uma condição ampla de participação popular nessas proposições abertas,
no âmbito criador a que se elegeram estes artistas. (...) v
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Nesta afirmação, Oiticica nos permite refletir sobre a multiplicidade de papéis que o artista deve
estar inclinado a assumir para abrir um espaço de participação efetiva do outro na proposição artística, sendo que este participador possa também atuar em “condição ampla”, no “âmbito criador”,
sendo portanto o participador um colaborador, alguém de fundamental importância para o acontecimento desta proposição.vi Nesse sentido, Hélio também estaria apontando para a reconfiguração
da posição que o espectador deve estar disposto a ocupar a partir disso: a de participador ativo de
uma experiência.
Ativar experiências que contassem com ampla participação do público também era um dos objetivos de Frederico Morais ao organizar em 1971 os Domingos da Criação. Depois de promover em
1968, meses antes da implementação do AI-5, o evento Arte no Aterro (rebatizado por Hélio Oiticica e Rogério Duarte como “Apocalipopótese”), Frederico propõe a realização dos Domingos da
Criação, ao convidar artistas para, segundo ele, discutir “a relação entre a arte e o espaço público, a
arte e a rua, a arte e a vida”. Os encontros se davam nos pilotis do MAM-RJ, onde artistas e público
se utilizavam de materiais como sobras industriais, terra, restos de tecido e fios para (co)produzirem
experimentos artísticos. Outro aspecto importante destacado por Morais como mote do evento era
o de colocar em questão o conceito do dia de domingo como dia de descanso para investigar suas
relações com o museu e o trabalho diário. vii
Frederico, que na época era coordenador do setor de cursos do Museu de Arte Moderna, a partir
de sua iniciativa conseguiu produzir um território de liberdade e de possível reinvenção das subjetividades, aspectos vitais para se atravessarem os anos de chumbo da política ditatorial. Esse ambiente coletivo e libertário de criação fica ainda mais claramente perceptível a partir dos depoimentos
de alguns dos participantes do evento, registrados no documentário Um domingo com Frederico
Morais, recém-realizado pelo cineasta Guilherme Coelho e que foi exibido no seminário, precedendo a fala de Frederico.
Mobilidade de horizontes
Por certo, muitas outras perguntas e respostas acerca das reconfigurações necessárias ao campo
da arte, pedagogia e participação, além das que estão esboçadas aqui, devem ser enunciadas.
Refletir acerca das práticas artísticas e pedagógicas, bem como do pensamento que se produz a
partir delas, fazer com que nossa herança no campo da arte experimental e todo o seu legado não
sejam esquecidos, mas cada vez mais valorizados, configuram entradas possíveis a estas questões.
Considerando a mobilidade e a pluralidade de horizontes que a arte contemporânea abarca, seja no
contexto brasileiro ou internacional, tais respostas podem também indicar outros campos a serem
reconfigurados. Para tanto, não podemos deixar de considerar que cada trabalho de arte é constituído por um universo de questões e possibilidades dialógicas expansíveis e móveis, possibilitando
que a cada contato com o espectador, o participador, o outro (esse outro que somos todos nós) sejam (re)inventadas diferentes possibilidades de aproximação. A prática artística contemporânea em
sua movência de sentidos e pontos de contato nos ensina, talvez por ser um exercício experimental
de liberdade,viii que ela mesma potencialmente se produz no contato com o outro, através de uma
conjunção estético-ética própria, dando pistas de sua própria pedagogia.
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Como é o caso do coletivo de skatistas, intitulado Brisa, que promove atividades extracurriculares em uma escola pública em Irajá, Zona Norte do Rio
de Janeiro, e colaborou com o projeto de intervenções urbanas da artista-educadora Anita Sobar; o Papel Pinel, grupo de ações culturais formado por
terapeutas e pacientes de uma instituição pública de saúde mental com o qual a artista-educadora Bianca Bernardo, que trabalhou propondo atividades
que envolveram experimentações com fotografia e escrita; e alguns funcionários do MAM que foram convidados pelo artista-educador Leonardo Campos para pensar as relações entre a arquitetura, o museu e a paisagem que o cerca.
ii
Mais detalhes acerca do Núcleo e das atividades desenvolvidas encontram-se acessíveis no endereço http://nucleoexperimental.wordpress.com/.
iii
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997. p.45.
iv
Entendendo como prática artística não apenas a produção de trabalhos de arte, ações, intervenções, entre outros, mas também textos de artista, organização de eventos etc.
v
FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília (orgs). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p.167.
vi
Uma importante iniciativa contemporânea neste sentido é o projeto do artista Ricardo Basbaum intitulado “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, que vem sendo desenvolvido desde 1994. Textos e imagens documentando as experiências de participação no projeto estão disponíveis no website http://www.nbp.pro.br/.
vii
Dados acerca desta e de outras atividades realizadas por Frederico Morais, comentadas por ele, podem ser encontrados na entrevista feita pelo pesquisador Gonzalo Aguilar com o crítico, acessível no link http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=3279 (último acesso em 18/12/11).
viii
Em citação à célebre frase do crítico Mário Pedrosa no texto “Por dentro e por fora das Bienais”, de 1970 (in: AMARAL, Aracy (org). Mário Pedrosa
— Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. Coleção Debates).
O seminário Reconfigurações do público: arte, pedagogia e participação ocorreu no Museu de Arte Moderna Rio de Janeiro nos
dias 8 a 10 de novembro 2011 com o patrocínio Petrobras e Unimed-Rio, contando com a Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Rio
de Janeiro. Coordenado pelo Núcleo Experimental de Educação e Arte o seminário foi organizado pela curadoria do l em parceira
com o Departamento de Educação e Programa Internacional do MoMA de Nova York, Casa Daros, Fundação Bienal do Mercosul e
Universidade Federal Fluminense contando com o apoio de Fundação Roberto Marinho.
Patrocínio Publicação Digital Petrobras - Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Rio de Janeiro
Realização Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
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