Fogo solto: Questões sobre a reconfiguração de práticas educativas em
museus de arte
Lígia Dabul
Professora do departamento de sociologia da UFF (RJ)
Durante três dias o setor educativo de um dos mais importantes museus de arte do Brasil, o MAM
do Rio de Janeiro, a exemplo do que o MoMA já havia feito, abriu-se para o debate com diferentes
curadores, educadores, artistas, produtores culturais, pesquisadores e outros tantos interessados,
em gesto que coincide com suas inquietações e ímpetos de desabotoar-se, e à arte que abraça,
para o mundo. De dentro desse exame, nesse seminário Reconfigurações do público: arte, pedagogia e participação, todo o tempo foi trazido para o centro do acontecimento o caráter público da
instituição, que corresponderia à natureza também, sempre, pública da própria arte.
Essas questões apresentadas por setores educativos de museus de arte partem de instituições bastante inquietas mas “não zeradas.” Isto é, supõem, cada uma delas, a existência de acervo que agregam e pelo qual zelam, a respeito do qual produzem pensamentos, discursos e inúmeras atividades;
e supõem igualmente maneiras bastante introjetadas e formas de avaliação da arte que conduzem
o tratamento do acervo e a incorporação temporária de trabalhos que também serão apresentados
e difundidos para o público. Em torno desses atributos, setores educativos se voltam especialmente
para a população que aflui ao seu espaço, e cujas características socioculturais podem ser conhecidas sem que isso nem de longe resolva a complexidade da vocação universal que de alguma forma
a maioria dos museus, especialmente os públicos, se coloca.
Quando Pierre Bourdieu e Alain Darbel inauguraram em 1966, com O amor pela arte: Os museus
de arte na Europa e seu público, os estudos sistemáticos sobre o público de museus de arte, em
enorme pesquisa que atestou a correlação entre a origem social dos frequentadores e o chamado
“amor pela arte” que os moveria em direção a exposições de arte, uma espécie de paradoxo estatístico estabeleceu-se para todas as investigações dessa natureza. Nunca haverá como considerar
adequadamente o público efetivo que acorre a exposições de arte como amostra de algo, já que
o universo de visitantes que se projeta nesse caso, o da arte colecionada, conservada ou exposta
pelos museus de arte, a rigor, consistiria em toda a humanidade. De certa maneira, refletir sobre a
importância dos museus tendo o público como medida autoevidente recai na imprecisão de uni-
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versais que com frequência constitui o mundo da arte, o trabalho com a arte e as perguntas que
fazemos a seu respeito. Assim é que a questão da abrangência da arte parece fundar com naturalidade mesmo as mais particulares e localizadas preocupações com a arte. Que dirá aquelas que se
referem à colocação para o público de obras, ideias, escolhas e dúvidas de um museu público e com
as dimensões do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Parece também constituir preocupação dos que juntos se perguntavam sobre as razões de ser dos
museus de arte e de seu caráter educativo hoje, e da própria razão de ser do trabalho com arte
(“Para quem crio?”, ecoava questão de Helio Oiticica), que todas as suas indagações só façam sentido entre aqueles que compartilham o que está sendo comunicado por meio dos objetos, ações,
circunstâncias e apresentações que museus e outros implicados diretamente no mundo da arte produzem. Mediadores, como arte-educadores e curadores veiculariam ou criariam significados com
vocação bastante extensiva a partir do trabalho de artistas considerados, por eles e pelos museus
que os abrigam, como relevantes, mas cuja produção não foi direcionada de fato (em que pesem as
intenções de universalidade de tantos artistas) para todos os indivíduos. A História da Arte e a Antropologia nos oferecem diversas análises a respeito do caráter contextual, e por isso restritivo, da
arte. O que nos parece importante, e do que pouco sabemos a respeito, são os desdobramentos e
as implicações dessa criação e trânsito de significados que os museus — seus curadores e educadores — operam junto àqueles que atraem, acolhem e para os quais os irradiam, o chamado público.
Tal como a cultura, a arte não é repertório guardado de objetos, ideias ou valores, sabemos, mas
dos objetos, ideias e valores em uso, o que implica em experiência, em contato, em um aqui e agora
que inclui presença — corpos e seus pensamentos e sentidos. Desse ponto de vista, a relevância
social da arte estaria situada nessa impermanente e especial situação. As perguntas acerca da arte,
me parece, poderiam estar vinculadas a essa experiência, pela qual indivíduos afluem a museus,
às exposições, e para a qual artistas dirigem seu trabalho. A imaginação que artistas veiculam em
performances, objetos e sons e tudo mais, que sempre estão avaliando e sobre a qual tanto pensam, não estará embrulhada em plástico preto numa gaveta trancada com as chaves das coleções,
restaurações e estudos. Ainda que não individualizem para quem se dirigem (e, de novo, a História e
a Antropologia muitas vezes vão decifrar este outro travestido de universalidade que habita solto a
cabeça dos artistas), remetem-se ao aqui e agora do contato, mesmo que o aqui e agora seja adiado
para depois do percurso incerto dentro de uma garrafa lançada ao mundo — imagem que muitos
usamos nos três dias de conversa para perguntarmos o porquê de “fazermos arte.”
Se a cultura — e por isso a arte — só existe de fato, isto é, só é socialmente relevante quando experimentada, em uso, é o conhecimento desse uso que não apenas consiste no que interessa da
cultura e da arte, mas no único que podemos de fato conhecer a respeito delas se, como Clifford
Geertz assinalou, não quisermos entrar na cabeça das pessoas, mas observar ao lado delas o que
vivem juntas. Nesse sentido, só conhecemos o que compartilhamos também, o que experimentamos ser compartilhado, e isso exclui do debate sobre a oportunidade de um museu comportar seu
setor educativo qualquer discussão que não leve em conta indivíduos contatando a arte, e nossa
aproximação efetiva desse contato, e nosso interesse efetivo por ele.
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A arte — a vida — que não sabemos
Em pesquisas recentes pude constatar que em museus e centros culturais esse contato com a arte
é na imensa maioria das vezes coletivo, efetuado por indivíduos que interagem tanto com aqueles
que os acompanham às exposições e outras ocasiões culturais, como com aqueles que encontram
nelas, no seu espaço — os outros visitantes, frequentadores, educadores. Esse contato com a arte
é, ele mesmo, significativo, muito porque envolve outros indivíduos, com os quais não raro se tem
uma história de amizade, de parentesco, de trabalho etc. Assim é que o contato com a arte não é
só com a arte, mas com as pessoas e muitos outros fatos, isto é, não é “puramente artístico” nem
vinculado aos eixos de significados que consideramos oportunos para apresentar à aqueles que
afluem às exposições. Deriva disso a singularidade profunda da arte na vida das pessoas, e no tanto que ela é atada, misturada, a esse estar junto e às situações reais e tão variadas nas quais estão
inseridas. Entre as inúmeras coisas que indivíduos fazem durante uma exposição está por exemplo
a conversa — ao lado da brincadeira, do namoro, do estudo, do descanso, das fotos, da espera, do
convívio etc. — e com ela constroem o sentido da arte que contatam, se perguntam sobre o que os
artistas querem dizer, avaliam objetos e eventos que para eles se apresentam, e tematizam infinitas
questões e acontecimentos de suas vidas, frequentemente prolongados para assuntos que não mais
têm a ver com o que está exposto, e tantas vezes retomados noutros tempos e lugares, com outras
pessoas e situações.
A arte que de fato os indivíduos experimentam não apenas está sempre mesclada a temas que não
são artísticos e que dizem muito respeito às suas vidas, mas embaralha-se com outras experiências
da vida social, como a conversa, a que entabulam durante uma exposição ou a que acontece na
mesa de um bar, quando, por exemplo, alguém pergunta se gostam de Café noturno, a conhecida
tela de Van Gogh. A arte das exposições também transita na experiência anterior dos que as visitam
— uma família se prepara para conhecer uma exposição, crianças excitadas atravessam uma rodovia
afastando-se pela primeira vez do bairro onde moram em um ônibus que a escola conseguiu para
que fossem visitar um museu — e na que virá — o que se lembrará do que foi vivido ali, o teatro que
começa logo depois, o encontro com os amigos que de fato foi o que mobilizou um adolescente
que circula no espaço da exposição com tanto interesse. E há também as experiências chamadas
educativas, encontradas nessas instituições, misturadas a tantas outras que têm lugar durante as visitas, e que contam com educadores voltados para a focalização dos trabalhos e temas que o museu
organizou e pretende apresentar.
Nem tudo é isso
Do ponto de vista dos educadores, e dos curadores e outros envolvidos com o museu, o trabalho
educativo que fazem tem muitas outras dimensões e não se restringe à orientação que dão aos
visitantes em torno da visita. Em primeiro lugar, já há os que tematizam a situação de contato com
os visitantes como ela própria produtora de sentido, experiência sui generis, talvez autônoma e
possivelmente da ordem da que o museu mobiliza e apresenta a partir da produção de artistas em
suas exposições. Aspectos criativos, artísticos mesmo, comporiam uma experiência profundamente
relacionada à arte que se mostra em exposições, mas que redireciona a natureza da presença de
educadores e visitantes em situação de interação. Artistas, atores produzem essas experiências
muitas vezes durante atividades “convencionais” de mediação durante visitas.
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Já se colocam também — para além das perguntas em torno dessa maneira como o museu, em
carne e osso, através de educadores e visitantes, ou educadores artistas e visitantes, ultrapassa os
vestígios do que alguns artistas, os expostos, criaram por meio de suas obras — diversas indagações sobre o contato que, a partir do próprio museu, artistas do setor educativo estabelecem com
grupos de indivíduos em espaços outros que não o museu — skatistas, pacientes psiquiátricos,
como relataram artistas vinculados ao setor educativo do Museu de Arte Moderna. São criações
conjuntas, já nesses outros espaços compartilhadas, fluxos de imaginação em torno de seus modos
de criar, de maneiras de dizer e do que querem ver dito. Além de contradizer tendência marcante de
instituições com espaços expositivos, dos quais os artistas que apresentam seus trabalhos em geral
se afastam depois do vernissage, afastando-se com isso do seu público, essas experiências artísticas
propiciam pesquisa em torno também dos lugares do artista em situações de ensino.
Em ambas as situações (visitas como criação artística e artistas educadores atuando com outros
indivíduos fora do espaço dos museus), visualizamos ímpetos que talvez correspondam a algumas
preocupações de Paulo Freire e Augusto Boal, acionados muito frequentemente durante esses três
dias nos debates, tal como noutros tantos lugares do mundo, em torno das razões e modos de ser
da arte contemporânea e suas instituições. Se consideramos realmente as ações desses dois educadores, e suas proposições sobre a educação, somos levados a entender não somente os indivíduos
como detentores de saberes anteriores à ação educativa e sobre os quais os educadores devem
debruçar-se sob pena de não haver eficácia na sua atuação — como a dos educadores envolvidos
em mediação durante o contato de visitantes com obras expostas nos museus. Mas partindo da
pedagogia paulofreireana e boaliana, provavelmente chegaremos a formular que todos os indivíduos são artistas, e que o resultado de um processo educativo estará situado muito fortemente no
quanto contribuímos para suscitar essa aptidão.
Esse tipo de concepção de processo educativo ultrapassa bastante diálogos e escuta de visitantes durante uma exposição de arte, ou a apresentação de possibilidades criativas vinculadas a exposições em oficinas promovidas nos museus — o que vem muitas vezes constituindo a matéria
das discussões estabelecidas em museus sobre seu trabalho educativo, e a respeito do qual eles
guardam muita experiência e conduzem bastante reflexão. Mas diferentemente disso, supõe-se
processo, duração, ao longo do qual artistas compartilham experiências com indivíduos que não
necessariamente se pensam como tais. De outro lado, e continuando referidos aos educadores
[“Augusto Boal e Paulo Freire”] que animaram muitas das questões levantadas durante aqueles três
dias sobre a educação em arte, educadores-artistas sairiam tão efetivamente transformados nesse
processo quanto os educandos. Como prolongamento desse raciocínio, poderíamos supor que os
processos criativos de artistas serão fertilizados e redefinidos, suas concepções de arte, revisitadas,
suas razões de imaginar por meio de imagens, sons, conceitos, texturas etc., postas, noutros planos,
em questão: um diálogo, a comunicação deliberada, mais que gesto, em interações concretas entre
artistas e o seu público em carne e osso, e já estaríamos tratando então de suas obras.
Contudo, desdobrando ainda mais implicações dessas referências, provavelmente Paulo Freire e
Augusto Boal nos perguntariam sobre como mudaria o mundo essa arte compartilhada deliberadamente através da educação, que suscita a aptidão para a criação artística de indivíduos não
necessariamente artistas, que redefine a arte de artistas vinculados a instituições como o museu. O
convite, então, estaria dirigido para entender que mudanças interessariam, a quem interessariam, e
quais estariam em curso.
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Musas incendiárias
As obras, as ideias e muitas outras realizações de Augusto Boal e Paulo Freire percorreram diferentes momentos de nossa história, e de tantas histórias, e assumiram as mais diversas formas, e ainda
hoje atuam, como vimos no seminário do Museu de Arte Moderna, como pedras de toque quando
nos debatemos na sondagem do que trata a educação somada à vontade de reconfigurar o mundo.
Mas sempre, agregada ao ímpeto de mudá-lo, estava posta com ênfase pelos dois uma maneira de
perceber o mundo extremamente crítica, atenta às relações de dominação estabelecidas entre os
homens, às diferentes formas de opressão que deveriam ser suprimidas mais que tudo por meio da
ação dos que se veem oprimidos. O processo educativo, para ambos, portanto, seria em todos os
casos instruído por um olhar nunca neutro, por uma tomada de posição frente a um mundo a ser
criativamente ultrapassado; e uma pedagogia que valesse a pena deveria compor, animar, suscitar
transformações profundas na vida humana por meio de novas maneiras de organizar a sociedade
também para que haja menos opressão e injustiça. Se estendemos para a arte essa pedagogia, assumimos os movimentos do mar aberto, do céu aberto, dos enormes riscos.
Teríamos, por exemplo, que entender esses processos. A arte tem acompanhado formulações de
disciplinas como a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia, a Comunicação, produzindo discursos
muitas vezes imprecisos para simultaneamente diagnosticar o mundo que vivemos e dar sentido ao
que artistas produzem e ao que suas instituições apoiam e apresentam. Talvez, como foi sugerido
em alguns momentos do evento, caiba de um lado liberar artistas da incorporação de discursos e
de questões que não estão levantando ou vendo colocados de fato na sua experiência e pelo seu
trabalho. De outro, mais que disseminar, inserindo ideias e discursos hegemônicos no campo acadêmico no seu próprio discurso, ideias e práticas, talvez se faça relevante para artistas e para o mundo,
hoje — e esse seminário e suas preocupações são provas disso —, a arte se perguntar radicalmente
que lugar é esse, ou que lugares são esses, que arte e que artistas podem ocupar e criar no mundo.
De outro lado, para assumir uma pedagogia transformadora, teríamos que conhecer o que artistas
têm feito nessa direção. De fato, de uma forma talvez nova para museus com história e atuação tão
duradouras vinculadas a seus próprios acervos, aquisições, colaboradores e pensamentos, haveria
então a produção de pesquisa em torno de iniciativas de artistas, contemporâneos ou não, que se
desdobraram em transformações sociais, especialmente as que contaram com a participação criativa de não artistas. E como vimos e vem sendo demonstrado por tantos estudos, a arte não incide
sobre um vazio de relações e lutas sociais. Assim é que mesmo as mais localizadas situações, se
pensamos em uma pedagogia de fato, para usarmos expressão de Paulo Freire, libertadora, estarão
projetadas de modo a agregar-se a desejos de transformação que talvez as ultrapassem. Não haveria ilhas de intenções pedagógicas e artísticas libertadoras, mas processos de mudança avaliados
em função também de uma clareza em relação a conjunturas de transformações sociais mais amplas
e profundas.
Finalmente, parece haver pensamentos circulando vivamente em torno da própria arte esgarçar-se,
como que incluindo na sua realização interações de artistas e não artistas em torno da produção
mesmo de discussões sobre a vida social e eventos que colocassem em primeiro plano esse ímpeto.
Ela coincidiria com aberturas do chamado espaço público, trazendo para si novas configurações —
entre elas a redefinição do lugar de instituições como os museus para a criação da arte e do mundo
contemporâneos. E estaríamos, então, revendo a discussão sobre arte e pedagogia noutros termos,
dessa vez reconhecendo que talvez não valha a pena realmente remetermos aos espaços e materiais
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dos museus o sentido dessas novas maneiras de inserir a arte — e os museus — na sociedade. Nada
universal, o público nesses casos consiste nos que participam dessas, às vezes tão localizadas, situações voltadas para uma nova maneira de viver. Nada ensimesmada, a arte se mistura então, como
sempre se misturou, mas agora sabendo disso e apostando em transformações, ao que interessa ou
poderá interessar na vida coletiva.
Paulo Freire argumentava que mudanças importantes muitas vezes convivem com a manutenção de
instituições. “Hendrix punha fogo na guitarra. Esse fogo está solto”, escreveu Arnaldo Antunes. E
está mesmo. Mas pode ser o caso de não queimar todas as guitarras.
O seminário Reconfigurações do público: arte, pedagogia e participação ocorreu no Museu de Arte Moderna Rio de Janeiro nos
dias 8 a 10 de novembro 2011 com o patrocínio Petrobras e Unimed-Rio, contando com a Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Rio
de Janeiro. Coordenado pelo Núcleo Experimental de Educação e Arte o seminário foi organizado pela curadoria do l em parceira
com o Departamento de Educação e Programa Internacional do MoMA de Nova York, Casa Daros, Fundação Bienal do Mercosul e
Universidade Federal Fluminense contando com o apoio de Fundação Roberto Marinho.
Patrocínio Publicação Digital Petrobras - Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Rio de Janeiro
Realização Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
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