DO CORPO À TERRA: uma análise do evento
FABIANA DE CASTRO OLIVEIRA
RESUMO:
O Evento Do Corpo à Terra foi realizado em Belo Horizonte em abril de 1970. Realizado no
Parque Municipal, com a participação de jovens artistas que emergiam no cenário nacional,
foi organizado pelo crítico de arte Frederico Morais e se adequava ao conceito da Arte
Guerrilha, desenvolvido pelo mesmo. Frederico Morais afirmava que o artista era como o
guerrilheiro, ou seja, este deveria atuar de maneira imprevisível nos eventos cotidianos,
rompendo com a arte tradicional dos museus e salões e se posicionando de maneira crítica em
seu contexto sócio-político. Seguindo estes preceitos o evento contou com manifestações e
propostas corporais, ecológicas e políticas que se transformaram em um ritual simbólico de
reivindicação libertária contra o terror e a repressão que imperavam no Brasil. Do Corpo à
Terra contava com vários aspectos inovadores, tais como a exposição de obras que não
estariam construídas, mas sim que seriam executada no local; a exposição das obras em locais
alternativos, fora dos museus e galerias do Palácio das Artes; a ocorrência de vários trabalhos
realizados simultaneamente de locais diferentes, o que impediria qualquer pessoa presenciar
todas as manifestações, entre outros. Outra questão fundamental era a discussão sobre a arte,
incluindo questionamentos sobre o Objeto como categoria artística, o papel da Nova
Vanguarda e sobre a estrutura formal e os materiais empregados na arte contemporânea.
Subvertendo a linguagem da arte tradicional e desarrumando o cotidiano da cidade de Belo
Horizonte o evento Do Corpo à Terra se configura como uma das manifestações artística
mais importantes da arte brasileira da década de 70.
Palavras-chave: Arte Contemporânea, Frederico Morais, Arte Guerrilha.
ABSTRACT:
The event Do Corpo à Terra was realized in Belo Horizonte, April of 1970. It happened in
“Parque Municipal”, with participation of young artists who emerged in national scene, being
organized by the critic of art Frederico Morais, and was suited for the Arte Guerrilha concept,
developed by him. Morais asserted of an ‘artist like a warrior’, acting in an imprevious way in
the daily events, breaking with traditional art of museums and halls and positioning in a
critical way in your social-politic context. Following those precepts, manifestations and
physical bodily exercise propositions had incorporated to the event, ecologic and political that
was changed in a symbolic ritual of freedom claim against the terror and repression prevailed
in Brazil. Several innovations were present in the event, like exposition of art pieces who only
took final form in the exposition place; alternative place for the pieces expositions, outside
halls and museums of “Palacio das Artes”, incidents of simultaneous expositions in different
places whom hindered anyone for every manifestation presence, and others. Besides this, it
had artistic debate, including questions about the Object as an artistic category, the role of
Nova Vanguarda, and about the formal structure and the used materials in contemporary art.
Subverting the traditional art language and disarranging the Belo Horizonte everyday life, the
Do Corpo à Terra event configures itself as one of the most important artistic manifestations
of the Brazilian scene of the 70’s.
Keywords: Contemporany Art, Frederico Morais, “Arte Guerrilha”
2
1 INTRODUÇÃO
Este artigo pretendeu desenvolver uma discussão sobre o evento Do Corpo à Terra,
realizado em 1970 em Belo Horizonte pelo crítico de arte Frederico Morais. Buscou-se
analisar as propostas artísticas realizadas no evento e os conceitos teóricos que
fundamentavam tais manifestações artísticas, além de uma reflexão sobre a repercussão do
evento no contexto histórico e artístico da época.
Do Corpo à Terra ocorreu entre os dias 17 a 21 de abril de 1970, promovido pela
Hidrominas, na época, empresa de turismo de Minas Gerais, e por Mari’Stella Tristão,
diretora do setor de Artes Visuais do recém inaugurado Palácio das Artes. Realizado com a
curadoria de Frederico Morais, a exposição daria início aos eventos no Palácio das Artes, que
se propunha a ser um moderno centro de artes e espetáculos.
Segundo Morais:
“É tarefa deste Palácio das Artes (verdadeiramente um museu de arte): mais que um
acervo, mais que prédio, o museu de arte é uma ação criadora – um propositor de
situações artísticas que se multiplicam no espaço-tempo da cidade, extensão natural
daquele. É na rua, onde o ‘ meio formal’ é mais ativo, que ocorrem as experiências
fundamentai do homem. Ou o museu leva à rua suas atividade ‘museológicas’,
integrando-se no quotidiano e considerando a cidade( o parque, a praça, os veículos
de comunicação de massa) sua extensão, ou será apenas um trambolho.”1
Frederico Morais elegeu o Objeto como categoria estética da exposição, incluindo o
Parque Municipal e toda Belo Horizonte como área de atuação dos artistas. Para Morais, o
Objeto seria o “veículo mais adequado para expressar as novas realidades propostas pela arte
pós-moderna (...) ele (o objeto) corresponde a uma nova situação existencial do homem” 2.
Entre os aspectos inovadores do evento destacou-se o fato de que, pela primeira vez no
Brasil, os artistas eram convidados a desenvolver seus trabalhos diretamente no local, ao invés
de trazerem obras concluídas. E para isso, recebiam uma ajuda de custo. Outra inovação foi o
caráter efêmero da obra, já que estas deveriam ser deixadas no local até a sua destruição.
Somou-se a isso à “crítica atuante”, ou seja, a participação de Frederico Morais tanto como
1
MORAIS, Frederico. Manifesto Do Corpo à Terra, Pp 296. In: Neovanguardas: Belo Horizonte, anos 60. Belo
Horizonte: Editora C/arte, 1997.
2
MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra: Um Marco radical na Arte Brasileira, Pp 5. Belo Horizonte: Itaú
Cultural, 2004.
3
curador quanto como artista que visava, assim, questionar o caráter judicativo da crítica de
arte.
Para que os artistas pudessem realizar os trabalhos no Parque Municipal foi concedida
uma carta do presidente da Hidrominas autorizando as manifestações. Esta carta legitimou a
radicalidade dos trabalhos, permitindo que os artistas transgredissem as regras. Isto, no
entanto, não eliminou os atritos com a polícia e com os funcionários do Parque Municipal.
Este deslocamento dos artistas para fora do museu tinha como intenção questionar a aura da
arte e subverter sua linguagem e sua ordem.
Durante os três dias do evento, foram realizadas propostas conceituais, ambientais,
ecológicas, políticas e rituais simbólicos que desarrumaram o cotidiano da cidade, invocando
um novo projeto de arte contemporânea brasileira.
2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS E A ARTE-GUERRILHA
Em 1970, em seu artigo “Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da ‘Obra’”,
Frederico Morais desenvolveu o conceito de arte que iria fundamentar todo o suporte teórico
da manifestação Do Corpo à Terra. Nesse artigo, Morais afirmava que a arte, como obra,
havia acabado. A obra era um conceito estourado que deixava de existir fisicamente, se
libertando da parede, do suporte e do museu. A arte, então, passava a ser um processo, uma
situação ou uma vivência.
A destruição da arte enquanto obra já havia surgido na história desde a arte moderna.
Nessa nova “fase” a arte buscava se integrar à vida e negar tudo que a prendia ao conceito de
obra. Entre esses rompimentos está a negação dos suportes clássicos, o questionamento dos
espaços tradicionais da exposição da arte, o uso de materiais “pobres”, a apropriação de
objetos do cotidiano, o papel do artista e a sua relação com o público e com o cotidiano.
O museu e a galeria tiveram um papel essencial na história da arte. Segundo Canton,
“... uma das características que definem a existência da arte é o fato de ela ocupar um espaço
comumente pensado como espaço institucionalizado do museu e da galeria.” 3. No entanto,
nesse momento, a arte busca um rompimento com esses espaços, promovendo assim uma fuga
para o espaço público, a rua e outros lugares não tradicionais.
3
CANTON, Katia. Espaço e Lugar, Pp 15. In: Temas da Arte Contemporânea. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2009.
4
A mudança de suporte pôde ser vista tanto no uso de novos materiais na produção
artística quanto na apropriação de objetos existentes, os ready-mades. Os ready-mades são
objetos retirados do cotidiano pelo artista que, ao utilizá-los, confere a esses objetos novos
papéis, sentidos e significados.
Já a utilização de novos materiais, frequentemente visa a quebra da durabilidade da
obra, seja com o uso de materiais precários, como terra, areia ou detritos, ou com a utilização
de recursos cinéticos, como luz, imagens, som, entre outros.
As mudanças discutidas acima tinham como principais intenções a busca da
aproximação da arte ao cotidiano e a quebra da ideia da obra de arte.
Com o rompimento do paradigma da obra, a arte tornou-se a experiência. Dessa
maneira, a obra seria “uma proposta de tensionar o ambiente, visando um alargamento da
capacidade perceptiva do homem” 4. Assim, a busca do artista deixaria de ser a elaboração de
uma determinada obra, tornando-se o enriquecimento perceptivo do indivíduo. Aquilo que
provoca, questiona e leva o indivíduo a reconsiderar uma ordem pré-estabelecida ou uma
forma de organização do mundo.
O artista também teria sua função reavaliada. Para Morais, o artista não seria mais
aquele que faz a obra, e sim um propositor de experiências, um apropriador de objetos ou um
realizador de ideias. Caberia a ele gerar a situação na qual o processo artístico pudesse
ocorrer.
Com a mudança do papel do artista, a função do expectador também foi requalificada.
O mesmo deixava de ser passivo, sendo obrigado a aguçar seus sentidos e a tomar iniciativas.
O público tornou-se então participante e ativo. Com esta redefinição de papéis, todos
participam e tomam atitudes. O artista perdeu seu controle, uma vez que já não criava mais
obras, e sim propunha situações e objetos. Esse novo contexto traria o imprevisível e o
aleatório para a arte, possibilitando o alargamento cada vez maior da capacidade perceptiva
do espectador.
No entanto, um dos aspectos fundamentais do artigo “Contra a Arte Afluente: O Corpo
é o Motor da ‘Obra’” era o desenvolvimento do conceito de “arte-guerrilha” e a aproximação
da ação do artista ao do guerrilheiro. Esse artista defendido por Morais tinha como tarefa criar
para o público situações indefinidas, que provocassem um estranhamento, levando-o assim à
iniciativa e à criação:
4
MORAIS, Frederico. Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da ‘Obra’, Pp 170.In: Arte Contemporânea
Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
5
“O Artista, hoje, é uma espécie de guerrilheiro. A arte uma espécie de emboscada.
Atuando imprevistamente, onde e quando é menos esperado, de maneira inusitada
(...) o artista cria um estado permanente de tensão, uma expectativa constante. Tudo
pode transformar-se em arte, mesmo o mais banal evento cotidiano”5.
O conceito de “arte-guerrilha” propunha ações efêmeras de protesto e intervenções
artísticas nas quais os artistas se inspirassem nas lutas dos guerrilheiros políticos.
Morais conclamava artistas e críticos a se posicionarem radicalmente contra a arte
convencional e a atuar imprevisivelmente no processo de revolução artística dos eventos
cotidianos. Entretanto, o conceito de guerrilha artística também defendia que a nova
vanguarda deveria se envolver com os problemas sócio-políticos do país: “Arte e contestação
desenvolvem-se no mesmo plano: ações rápidas, imprevistas, ambas assemelham-se à
guerrilha. Dentro ou fora dos museus e salões o artista de vanguarda é um guerrilheiro” 6.
O artista guerrilheiro deveria reivindicar “um espaço para a liberdade de expressão
verbal, comportamental e política” 7. Analisando o contexto histórico, é preciso ressaltar o
enrijecimento da repressão no governo militar durante a vigência do Ato Inconstitucional N°
5, suspendendo os direitos individuais da população e estabelecendo a censura. Dessa
maneira, a “arte guerrilha” se manifestaria não apenas contra o sistema da arte vigente, mas
também contra o sistema político que existia no país.
A nova vanguarda artística acreditava que a arte deveria deixar de ser uma coisa
superposta à vida, misturando-se com o dia a dia e que o seu melhor environment seria a rua,
devido à sua simultaneidade de acontecimentos e ações.
Todas essas novas propostas e discussões sobre a arte deram suporte e contexto para
os trabalhos realizados no Do Corpo à Terra. No entanto, entre as diversas vertentes artísticas
que surgiam nesse momento, como resultado da quebra da obra de arte, é possível recortar
três principais possibilidades artísticas que fundamentaram os trabalhos desenvolvidos no
evento: a arte conceitual, a arte povera e a arte corporal.
A arte conceitual estrutura-se através da rejeição do tradicional objeto de arte. Em
substituição, surge uma ênfase na ideia. Segundo Smith, “Ideia em, sobre e em torno da arte e
5
MORAIS, Frederico. Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da ‘Obra’, Pp 171.In: Arte Contemporânea
Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
6
MORAIS, Frederico. Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da ‘Obra’, Pp 175.In: Arte Contemporânea
Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
7
ANDRÉS, Marília. Arte e Política no Brasil: A Atuação das Neovanguardas na Década de 60, Pp 175. In: Arte
e Política: Algumas Possibilidades de Leitura. Belo Horizonte: C/arte, 1998.
6
tudo mais” 8. Essas ideias seriam prioritariamente transmitidas não por um objeto, mas por
propostas e pelo uso que os artistas faziam dos mais variados tipos de linguagem.
Têm-se como “criador” da arte conceitual Marcel Duchamp, que reduziu o ato criativo
a uma decisão singular do artista de eleger um conceito ou uma atividade como “arte”. Para
ele, “Concepção e significado tinham precedência sobre a forma plástica, assim como o
pensamento sobre os sentidos.” 9.
No entanto, foi na década de 1960 que a arte conceitual expandiu-se de maneira
extensa e internacional. Essa nova geração de artistas influenciados por Duchamp ampliou a
arte conceitual de “arte como ideia”, para arte como filosofia, informação, linguística, crítica
social, irreverência e vários outros desdobramentos expressivos. O contexto histórico, de
agitação política e movimentos sociais dos anos 60, também foi um fator importante para que
esses artistas rompessem com o caráter elitista da obra de arte tradicional.
Alguns artistas se dedicaram a teorizar sobre a concepção ideal da arte conceitual,
como Mel Bochner, segundo o qual, a arte conceitual deveria ter um correlativo linguístico
exato, podendo assim ser descrita e vivenciada em sua descrição, além de poder ser realizada
infinitas vezes. Já Le Witt afirma que, “Em arte conceitual, a ideia ou conceito é o mais
importante aspecto da obra... todo o planejamento e as decisões são formulados de antemão e
a execução torna-se superficial. A ideia torna-se a máquina que faz a arte...” 10.
Outros artistas enfatizavam a relação entre a linguagem, ou sistemas linguisticamente
análogos, e as ideias, sendo essa relação a verdadeira essência da arte, relegando a experiência
visual e o deleite sensorial um caráter inferior. Entre estes estão Joseph Kosuth, para o qual
“A ‘condição artística’ da arte é um estado conceitual”
11
e Lawrence Weiner, que defendia
12
que “Sem linguagem não existe arte” .
De qualquer modo, a linguagem permitiu a esses artistas uma radicalização do
processo artístico, além de uma série de novos meios de trabalho:
“(...) o próprio equipamento da palavra impressa e falada oferecia todo um novo
espectro de meios para substituir a pintura e a escultura. Jornais, revistas,
8
SMITH, Roberta. Arte Conceitual, Pp 182. In: Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1991.
9
SMITH, Roberta. Arte Conceitual, Pp 183. In: Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1991.
10
LE WITT, Sol. Paragraphs on Conceptual Art, Pp 79-83. In: Artforum, 1967. In: SMITH, Roberta. Arte
Conceitual, Pp 185. In: Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
11
KOSUTH, Joseph. Art After Philosophy, I, Pp 134-137. In: Studio International, 1969. In: SMITH, Roberta.
Arte Conceitual, Pp 185. In: Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
12
WEINER, Lawrence. Entrevista com o artista. In: Avalanche, Pp 72, 1972. In: SMITH, Roberta. Arte
Conceitual, Pp 185. In: Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
7
publicidade, o correio, telegrama, livros, catálogos, fotocópias, tudo se converteu em
novos veículos e, ocasionalmente, em novos tópicos de expressão. Oferecendo
inúmeros caminhos para os artistas conceituais comunicarem sua arte ao mundo e,
com a mesma frequência, incluírem esse mundo em sua arte.” 13.
Assim como a linguagem, a fotografia, o vídeo e o filme também foram amplamente
utilizados pelos conceitualistas, devido a possibilidade de arte visual não-única representada
por esses meios.
Em resumo, na arte conceitual, a obra é eliminada, permanecendo apenas o conceito e
o diálogo entre o artista e o público. É a idéia como arte; a arte refletindo sobre si mesma, arte
sobre arte.
A arte povera utiliza materiais não nobres como lixo, areia, terra, comida, restos, etc.
Para essa vertente, o valor do trabalho está na ideia e não nos materiais utilizados. Ao recusar
os materiais ditos artísticos, nobres e belos, em troca do que H. Rosenberg defende como
“materiais verdadeiros”, a arte povera cria uma desestetização da arte, questionando assim seu
papel elitista. O caráter efêmero e não-rígido desses materiais também evidencia a intenção de
romper o conceito de permanência na obra de arte.
Outro aspecto da arte povera é o intuito de se opor ao binômio arte/tecnologia, que se
insere em um movimento de contestação contra o caráter repressivo da tecnologia e o
desperdício da sociedade consumista.
No Brasil, a arte povera ganha um aspecto de nacionalidade, pois a utilização de
materiais como café, terra, papelão, trabalhados por meio de emendas e colagens “são
indicativos não apenas da miséria, mas do sentido altamente criador e lúdico do brasileiro”14.
A arte corporal caracteriza-se pela utilização do próprio corpo como veículo artístico.
No entanto, na arte contemporânea, o corpo não é visto apenas com moldura ou tela, “Nas
obras contemporâneas, em suas sensibilidades diversas, o corpo assume os papéis
concomitantes de sujeito e objeto”
15
.
Na arte corporal, o corpo passa a ser o “locus
privilegiado onde o social, o político e o subjetivo se configuram em seus múltiplos sentidos e
direções”16
13
SMITH, Roberta. Arte Conceitual, Pp 185. In: Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1991.
14
MORAIS, Frederico. Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da ‘Obra’, Pp 177. In: Arte Contemporânea
Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
15
CANTON, Katia. Corpo, Identidade e Erotismo, Pp 24. In: Temas da Arte Contemporânea. São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2009
16
FREIRE, Cristina. O Latente Manifesto: A Arte Brasileira nos Anos 1970. Pp 237. In: GONÇALVES, Lisbeth
(ORG). Arte Brasileira no Século XX. São Paulo: ABCA: MAC USP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2007
8
A arte corporal evidencia uma nostalgia do corpo e uma intenção de volta aos ritmos
vitais do homem. Nela, a “obra” é o corpo, ou melhor, “o corpo é o motor da obra. Ou ainda,
é a ele que a obra leva. À descoberta do próprio corpo” 17.
A arte corporal faz uma crítica à alienação dos sentidos e do corpo provocados pela
tecnologia e pela máquina no mundo contemporâneo. Nesse contexto o corpo é coisificado e
ausente, se manifestando através de signos e sinais devido ao distanciamento provocado pela
televisão, telefone, jornal, etc.
E é a partir dessa abordagem que o “corpo artista”, segundo Christine Greiner, deve atuar,
para questionar o padrão idealizado do corpo na sociedade de consumo. Greiner defende o
“corpo artista” como um meio desestabilizador de certezas e como algo que pode provocar
mudanças na forma de perceber o “eu” e o mundo.
Para Frederico Morais o corpo é um meio fundamental de expressão da arte, pois a
arte corporal é capaz de agir de modo essencial na Arte Guerrilha. A energia do corpo deve
ser utilizada como forma de guerrilha contra as máquinas de repressão e contra a arte afluente
do primeiro mundo.
Essas três vertentes da arte contemporânea: arte conceitual, a arte povera e a arte
corporal, servem como direcionamento para a produção e análise dos trabalhos realizados no
Do Corpo à Terra. Morais afirma que no Brasil, e nos demais países de terceiro mundo, essas
correntes artísticas tem um aspecto ainda mais particular, pois transformam a miséria e o
subdesenvolvimento em fonte de riqueza ao empregar o corpo, o lixo e a inteligência como
proposta artística.
3 DO CORPO À TERRA: MANIFESTAÇÕES E PROPOSTAS
Os fundamentos teóricos apresentados anteriormente serviram de base para os
trabalhos realizados no Do Corpo à Terra. Os trabalhos podem ser divididos em algumas
17
MORAIS, Frederico. Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da ‘Obra’, Pp 177. In: Arte Contemporânea
Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
9
linhas de atuação, para uma melhor análise. Em uma primeira linha, os trabalhos tiveram um
enfoque maior no questionamento dos postulados da arte e no debate sobre a participação do
espectador.
George Helt estendeu, no Palácio das Artes, uma faixa com pegadas litografadas e
convidou o público a caminhar sobre ela. Já Terezinha Soares produziu três camas com cores
de times e figuras de jogadores de futebol nas quais o expectador era incentivado a se deitar.
Ela me deu Bola foi o título da obra. José Ronaldo Lima confeccionou caixas táteis-olfativas
convidando o “público a participar de novas experiências sensoriais”
18
. Estes trabalhos
mostram uma vertente influenciada pelos dadaístas e pelo grupo FLUXUS, caracterizando-se
por certo niilismo e por uma tendência dessacralizadora da arte.
Figura 1: Obra: Ela Me Deu Bola
Fonte: BITTENCURT, Francisco. Dez Anos de Experimentação.
In: Depoimentos de uma Geração. [sem paginação]. Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
Entretanto, Umberto Costa Barros e Dilton Araújo produziram trabalhos de um maior
caráter “antiartístico”. Umberto escolheu o subsolo do Palácio das Artes, que ainda estava em
obras, para realizar seu trabalho. O artista empilhou e equilibrou tijolos, painéis, escadas e
18
ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea, Pp 262. In: Um Século de História das Artes Plásticas
de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997.
10
outros materiais de construção que se encontravam no próprio local, realizando assim uma
instalação que “oscilava entre o acaso e a ordem, entre o desfeito e o refeito” 19.
Figura 2: Instalação no subsolo do Palácio das Artes.
Fonte: BITTENCURT, Francisco. Dez Anos de Experimentação.
In: Depoimentos de uma Geração. [sem paginação]. Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
Dilton Araújo improvisou situações e ações inspiradas pelos acontecimentos do
evento. Este lançou pedras de cal no espaço, colocou uma caixa de fósforos no Palácio das
Artes ao lado da frase “uma possibilidade” e produziu um panfleto no qual teorizava obre a
“obra de arte” com afirmações como: “Fazer arte ou chutar uma lata velha pela rua. Não que
eu menospreze a arte, mas eu dou mais importância a chutar uma lata velha pela rua.”20.
Outra linha de trabalhos seria aquela de caráter mais cartográfico. Morais afirma que
estes trabalhos:
“escrutaram a enorme extensão do Parque Municipal, demarcando territórios,
delimitando fronteiras, apropriando-se de locais, lugares ou áreas, buscando para
cada um desses espaços novas funções e significados, procurando apreende-los de
forma poética, imaginativa conceitual ou segundo parâmetros sociourbanísticos e
antropológicos”21.
19
MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra: Um Marco radical na Arte Brasileira, Pp 15. Belo Horizonte: Itaú
Cultural, 2004.
20
MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra: Um Marco radical na Arte Brasileira, Pp 15. Belo Horizonte: Itaú
Cultural, 2004.
21
MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra: Um Marco radical na Arte Brasileira, Pp 11. Belo Horizonte: Itaú
Cultural, 2004.
11
Lótus Lobo realizou uma plantação de sementes de milho, segundo Lobo para “ver o
milho crescendo e florindo num lugar inusitado.”22. Luiz Alphonsus queimou uma faixa de
quinze metros estendia sobre a grama do Parque afirmando que, “Aquela faixa que eu estendi
sobre a grama e depois queimei era um acontecimento poético-planetário (marcar o chão,
deixar um rastro de arte no planeta)”23.
Figura 3: Faixa, Parque Municipal.
Fonte: BITTENCURT, Francisco. Dez Anos de
Experimentação.
In: Depoimentos de uma Geração. [sem paginação].
Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
Figura 3: Faixa, Parque Municipal.
Fonte: BITTENCURT, Francisco. Dez Anos de
Experimentação.
In: Depoimentos de uma Geração. [sem paginação].
Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
Dileny Campos espalhou setas com as inscrições subpaisagens, evidenciando assim
fissuras da paisagem urbana que “apontavam” os aspectos desconstrutivos da cidade, levando
o transeunte a ver uma outra paisagem dentro da paisagem – a paisagem da arqueologia
urbana”24. Lee Jaffe executou uma proposta de Hélio Oiticica, lançando uma trilha de açúcar
na terra vermelha da Serra do Curral.
22
MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra: Um Marco radical na Arte Brasileira, Pp 11. Belo Horizonte: Itaú
Cultural, 2004.
23
BITTENCURT, Francisco. Depoimentos de uma Geração, sem paginação. Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
24
MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra: Um Marco radical na Arte Brasileira, Pp 11. Belo Horizonte: Itaú
Cultural, 2004.
12
Figura 5: Palácio das Artes.
Fonte: ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea. In: Um Século de História das Artes
Plásticas de Belo Horizonte.
Horizonte Belo Horizonte: C/arte, 1997
Figura 6 : Serra do Curral.
Fonte: ANDRÉS, Marília. Formação da Arte
Contemporânea. In: Um Século de Hist
História das
Artes Plásticas de Belo Horizonte
Horizonte. Belo Horizonte:
C/arte, 1997
Figura 7 : Serra do Curral.
Fonte: ANDRÉS, Marília. Formação da Arte
Contemporânea. In: Um Século de História das
Artes Plásticas de Belo Horizonte.
Horizonte Belo Horizonte:
C/arte, 1997
Ainda nessa linha houve um trabalho do próprio Frederico Moraes, que se apropriou
de quinze áreas da cidade através de fotografias colocadas nos próprios locais fotografados
13
para serem vistas pelos transeuntes como quadros ao ar livre, “convidando-os a reconstruir a
memória daquela paisagem”25.
Figura 8 : Parque Municipal
Fonte: ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea. In: Um Século de História das Artes
Plásticas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997
No entanto, os trabalhos mais marcantes do evento foram aqueles de conotação
política. Entre eles está o T.E. de Artur Barrio. Barrio produziu 15 trouxas ensangüentadas
que foram espalhadas por diversos locais da cidade, em especial no Ribeirão Arrudas. Estas
trouxas, confeccionadas por panos, ossos e carnes de animais, tintas vermelhas e cordas,
provocaram grande alarme na população, sendo necessária a intervenção do Corpo de
Bombeiros e da Polícia Militar. Este trabalho fez uma alusão à “desova” dos corpos de presos
políticos que eram torturados e mortos nas prisões do Governo Militar.
Barrio afirmou que essa radicalização do seu trabalho foi fortemente influenciada pelo
AI-5. Segundo ele:
“A partir daí foi aquela paranóia: ninguém se sentia mais seguro. A nossa reação foi
radicalizar ainda mais o trabalho, não se deixar subjugar. Saímos para as ruas com
nossos trabalho, passamos a atuar como se estivéssemos numa guerrilha artística.
25
ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea, Pp 265. In: Um Século de História das Artes Plásticas
de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997.
14
Até porque as instituições artísticas não ofereciam mais segurança. A solução, então,
era radicalizar o trabalho e apresentá-lo o mais rapidamente possível, enquanto ainda
era possível falar, fazer.”26.
Figura 9 : T.E.
Fonte: ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea. In: Um Século de História das Artes
Plásticas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997
Figura 10 : T.E.
Fonte: ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea. In: Um Século de História das Artes
Plásticas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997
26
BITTENCURT, Francisco. Depoimentos de uma Geração, sem paginação. Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
15
Além do caráter de crítica política, T.E. também dialogava com a recusa dos materiais
instituídos para a arte e criticava a estética tradicional. Segundo Sheila Cano:
“Desestetizar é o que Barrio pretende desde 1970, quando com T.E. expôs trouxas
ensanguentadas e agressivas, mantendo uma relação de desorganização com a ordem
estética e, assim, com a própria lógica causal inerente ao real racional moderno.”27
Assim, o uso de materiais precários, o caráter de deterioração da obra, o aspecto
marginal do trabalho T.E. (devido à toda controvérsia gerada com a polícia e com os
bombeiros) e sua discussão sobre o conceito da arte, fazem do trabalho de Barrio um dos mais
importantes do evento.
Assim como Barrio, a proposta de Thereza Simões também teve forte cunho de
questionamento político. A artista produziu carimbos, deixando marcas nas paredes e vidraças
do Palácio das Artes. Estes carimbos continham mensagens políticas, como frases de Malcom
X (Act silently), de Luther King, inscrições como Fragile ou palavras em tupi.
Segundo a artista:
“Para ‘Do Corpo à Terra’ preparei uns carimbos com textos de Luther King e outros
de caráter político (...) meu objetivo era criar uma situação incômoda. Existia um
carimbo maior no qual se lia Fragile e, com ele, eu mostrava a fragilidade que
vivíamos àquela época.”28.
Figura 10 : Carimbos.
Fonte: ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea. In: Um Século de História das Artes
Plásticas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997
27
CABO, Sheila. Barrio: a morte da arte como totalidade, Pp 103. In: Arte Contemporânea Brasileira. Rio de
Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
28
BITTENCURT, Francisco. Depoimentos de uma Geração, sem paginação. Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
16
Esse trabalho estabelecia um paralelo com o de José Ronaldo Lima. José fichou com
grafite as palavras (ver)melha e (grama)tica nas gramas e nas calçadas do Parque Municipal.
Ao lado das inscrições, ele colocou jornais com manchetes da revolução cultural chinesa e da
guerra do Vietnã.
Figura 11 : (VER)MELHA.
Fonte: Fonte: BITTENCURT, Francisco. Dez Anos de Experimentação.
In: Depoimentos de uma Geração. [sem paginação]. Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
Alfredo José Fontes produziu engradados de madeira pintados que lembravam
armadilhas para animais. Alfredo definiu que o trabalho simbolizava alternativas ou metáforas
do comportamento humano, como direita, esquerda ou volver.
Luciano Gusmão e Dilton Araújo separaram áreas do parque com cordonetas,
dividindo-as em áreas livres e áreas de repressão. Décio Noviello utilizou granadas coloridas
de sinalização militar, que, apesar de hoje serem usadas por torcidas de futebol, na época
eram de uso exclusivo do exército.
Finalmente Cildo Meireles realizou o trabalho Tiradentes: Totem-Monumento ao
Preso Político, um dos seus trabalhos mais controversos. Cildo acreditava na ligação entre a
arte, a estética, a cultura e a política. Para isso, sempre trabalhou com múltiplas linguagens,
constantemente incorporando aspectos de ordem social e política em suas obras.
Em seu trabalho no Do Corpo à Terra, Cildo ateou fogo em galinhas vivas presas a
um poste (totem) diante de uma platéia horrorizada. As galinhas sendo queimadas vivas
seriam uma “homenagem” as vítimas mortas pela repressão da ditadura Militar. A
performance aconteceu durante o feriado de Tiradentes, o que aumentou ainda mais a
17
referência à luta contra a opressão. Mais tarde Cildo afirmou que “jamais repetiria um
trabalho como Tiradentes (...) Ainda posso ouvir as pobres galinhas em minha memória
psicológica. Mas em 1970 senti que aquilo tinha que ser feito.”29.
Figura 12 : Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político.
Fonte: ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea. In: Um Século de História das Artes
Plásticas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997
Os trabalhos de cunho político transformaram-se em um ritual simbólico de protesto
contra a repressão e o terror que vigorava durante o Governo Militar. Segundo Marília
Andrés:
“Essas propostas audaciosas, reafirmando o emblema da morte na cultura brasileira,
simbolizavam o protesto dos artistas contra o sacrifício humano das vítimas do terror
e o repúdio à ação paramilitar do Estado contra militantes políticos, torturados e
mortos em prisões brasileiras.” 30.
29
BITTENCURT, Francisco. Depoimentos de uma Geração, sem paginação. Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea, Pp 262. In: Um Século de História das Artes Plásticas
de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997.
30
18
Figura 13 : Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político.
Fonte: ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea. In: Um Século de História das Artes
Plásticas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997
Outra característica dos trabalhos da manifestação foi a inortodoxia da estrutura
formal e dos materiais utilizados pelos artistas. Enfim, no evento houve um diálogo entre
diversas tendências da arte contemporânea, em uma manifestação que reivindicou a liberdade
na arte e na sociedade brasileira.
4 MANIFESTO DO CORPO À TERRA
A exposição Do Corpo à Terra não contou com um catálogo. Entretanto Frederico
Morais produziu um manifesto divulgado durante o evento. Com um discurso incisivo e uma
atitude provocativa perante o Estado Militar, Morais reivindicava liberdade de expressão para
os artistas brasileiros.
Segundo o crítico:
“A afirmação pode ser temerária. Mas tenho para mim que não existe ideia de nação
sem que ela inclua automaticamente a ideia de arte. A arte é parte de qualquer
projeto de nação, integra a consciência nacional. Noutro sentido, pode-se dizer que a
arte toca diretamente o problema da liberdade - a arte é, na verdade, um exercício
19
experimental de liberdade. Claro, também, é que o exercício criador será tanto mais
efetivo quanto maior for a liberdade”31
Para o crítico a arte seria uma necessidade social já que é uma necessidade vital do
homem. O instinto lúdico do homem seria essencial para a vida social e a repressão deste
instinto ameaçaria a vitalidade da sociedade. Então caberia ao governo, às instituições
culturais, aos artistas, aos críticos, e aos professores criarem condições para efetivar a
realização estética do corpo social. Esses seriam responsáveis por auxiliar o indivíduo a
compreender a arte, treinar sua percepção e exercitar sua capacidade criadora.
A função do museu de arte também deveria ser repensada, tendo com função
primordial ser um espaço de integração entre a arte e a vida. O museu deveria se inserir no
cotidiano da cidade e não apenas expor, mas ser um propositor de ações artísticas, “um
laboratório de experiências, campo de provas visando a ampliação da capacidade perceptiva
do homem, exercício continuado de seu instinto lúdico” 32. O museu precisa levar à rua suas
funções museológicas, “integrando-se no quotidiano e considerando a cidade sua extensão, ou
será apenas um trambolho” 33.
Segundo o manifesto, o horizonte da arte seria ambíguo e impreciso, contudo este não
deveria se distinguir da vida e do cotidiano. Assim, não existiria mais a separação da realidade
do quadro, ou da obra, com a realidade externa. O espaço da arte passaria a se confundir com
o espaço da vida. A antiga estrutura de representação ruiu e agora é o espectador que preenche
o quadro branco.
Morais propõe então um novo sentido da arte:
A vida que bate no seu corpo – eis a arte. O seu ambiente – eis a arte. Os ritmos
psicofísicos – eis a arte. Sua vida intra-uterina – eis a arte. A supra-sensorialidade –
eis a arte. Imaginar (ou conceber – faça-se a luz) – eis a arte. O pneuma – eis a arte.
A simples apropriação de objetos, de áreas urbanas e suburbanas, geográficas ou
continentais – eis a arte. O puro gesto apropriativo de situações humanas ou
vivências poéticas – eis a arte.” 34.
O manifesto também invocava a importância da recuperação do corpo e da terra. Em
ambos estaria presente o objeto, não o representado, mas o apresentado. O objeto modificado,
31
MORAIS, Frederico. Manifesto Do Corpo à Terra, Pp 295. In: ANDRÉS, Marília. Neovanguardas: Belo
Horizonte, anos 60. Belo Horizonte: Editora C/arte, 1997.
32
MORAIS, Frederico. Manifesto Do Corpo à Terra, Pp 296. In: ANDRÉS, Marília. Neovanguardas: Belo
Horizonte, anos 60. Belo Horizonte: Editora C/arte, 1997.
33
MORAIS, Frederico. Manifesto Do Corpo à Terra, Pp 296. In: ANDRÉS, Marília. Neovanguardas: Belo
Horizonte, anos 60. Belo Horizonte: Editora C/arte, 1997.
34
MORAIS, Frederico. Manifesto Do Corpo à Terra, Pp 296. In: ANDRÉS, Marília. Neovanguardas: Belo
Horizonte, anos 60. Belo Horizonte: Editora C/arte, 1997.
20
enigmático, encontrado. O objeto que se colocaria na frente do homem e o obrigaria a tomar
iniciativas. Este objeto deveria ser encarado como situação, e não como categoria, pois este
seria dinâmico, aberto, orgânico.
A recuperação do corpo proposta pela arte não deveria se prender apenas à visão, mas
ampliar-se para todos os sentidos. O corpo deveria alargar sua capacidade perceptiva e
participar de forma essencial de todos os acontecimentos.
Morais ainda ressaltou a importância da terra. Esta envolve o corpo e proporciona o
estrutural básico à vida. O corpo deveria reaprender a vivenciar o ar, o fogo, a água e a terra,
pois estes seriam capazes de produzir “sensações táteis ou hápticas capazes de transmitir
sutilmente um mundo subjetivo e lírico” 35.
O manifesto concluiu ser necessário produzir um novo homem, um homem pacífico e
livre. E a arte teria função essencial na construção desse novo indivíduo, sendo ela a própria
experiência de liberdade.
5 RECEPÇÃO E IMPACTO DO EVENTO
Finalmente, cabe uma rápida análise sobre a recepção do evento pelo público e pela
comunidade artística. É necessário ressaltar que, apesar da carta concedida aos artistas
autorizando-os a executarem seus trabalhos no Parque Municipal, isso não impediu que
ocorressem atritos com os funcionários do parque e com a polícia.
Lótus Lobo foi uma das artistas que sofreu com esses incidentes. Ela foi interceptada
pela polícia e precisou interromper a sua plantação. Outro exemplo é o de Luciano Gusmão e
Dilton Araújo. Várias de suas áreas cercadas por cordonetas foram desfeitas por funcionários
do parque.
Da mesma maneira, o açúcar lançado na Serra do Curral deveria ser deixado no local
para ser devorado pelas formigas. No entanto, foi destruído por tratores de uma empresa
mineradora. Luiz Alphonsus quase teve seu trabalho interrompido.
O artista afirma que:
35
MORAIS, Frederico. Manifesto Do Corpo à Terra, Pp 299. In: ANDRÉS, Marília. Neovanguardas: Belo
Horizonte, anos 60. Belo Horizonte: Editora C/arte, 1997.
21
“nós tínhamos uma autorização da Hidrominas, patrocinadora do evento, para
trabalhar no parque, então usei isso para transgredir as regras. Com o fogo
apareceram os bombeiros, pessoas querendo apagar o incêndio. Quase fui agredido
pelo diretor do parque.”36.
Entretanto, os trabalhos que mais provocaram reações foram o de Artur Barrio e o de
Cildo Meireles. As trouxas ensangüentadas de Barrio provocaram um impacto tão grande na
população que tiveram que ser retiradas rapidamente pelos bombeiros. O alarme da população
era devido à crença de que tais trouxas eram na verdade corpos de pessoas assassinadas pelo
Esquadrão da Morte.
Cildo Meireles foi intensamente criticado por seu trabalho, em especial nos discursos
realizados pelos deputados durante a Semana da Inconfidência.
Francisco Bittencurt afirmou:
“Cildo Meireles fêz uma experiência terrível, que chamou Esboço Monumento
Totem. Traduzindo: Amarrou cinco galinhas a uma estaca e as incendiou com
gasolina A possível beleza desse gesto está além de nossa compreensão (...) Cildo
Meireles abandonou a pesquisa para matar animais.”37.
Ao se analisar a recepção de evento no público, observa-se as manchetes do jornal
Estado de Minas que antecedem o início da manifestação. Nelas pode-se perceber uma grande
expectativa. Segundo as matérias, o evento prometia trazer o que havia de mais “novo” na arte
contemporânea, “...Reunindo quinze jovens artistas de vanguarda, que trarão trabalhos de arte
paticipacional, povera, cinética, conceitual, ecológica, ‘happinings’, apropriações. Todos eles
na linha do que há de mais avançado na arte atual, em todo o mundo.” 38.
Outra expectativa era a de elevar Belo Horizonte a um panorama artístico equiparável
aos de outros grandes centros: “Em todo o mundo, ao invés de se transportarem as obras a
tendência é convidar os próprios artistas para no local realizarem seus trabalhos – previstos
para durar pouco. Foi o que fez a Hidrominas, ao acolher a sugestão do crítico Frederico
Morais, que coordenou a manifestação.”39.
No dia da abertura da exposição, Mari’Stella Tristão publicou um artigo também no
Estado de Minas, discorrendo sobre o evento:
“A exposição mostra trabalhos dos mais revolucionários da realização artística, nos
quais são utilizados os mais variados objetos (...) Esses trabalhos são de autoria dos
mais conceituados artistas da vanguarda brasileira (....) Os artistas vão realizar, a
partir de hoje, no parque municipal manifestações artísticas que tomaram o nome de
36
BITTENCURT, Francisco. Depoimentos de uma Geração, sem paginação. Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
Bittencurt, Francisco. Geração Tranca-Ruas. Jornal do Brasil, 08 de maio de 1970.
38
Jornal Estado de Minas, 17 de abril de 1970.
39
Jornal Estado de Minas, 17 de abril de 1970.
37
22
‘Do Corpo à Terra’, uma experiência rápida já realizada no Rio, mas já bastante
desenvolvida e praticada na Europa e nos Estados Unidos (...) Atingimos com essa
exposição o ‘clímax’ das realizações vanguardistas e pioneiras de Belo
Horizonte.”40.
Entretanto, Belo Horizonte se mostrou abismada com o que havia de mais pioneiro no
mundo. Tanto o público quanto os próprios patrocinadores estavam chocados com a mostra.
Segundo Bittencurt:
“certamente o órgão oficial mineiro que patrocinou ‘Do Corpo à Terra’ nunca
pretendeu oferecer à pacata população de Belo Horizonte os rituais de sacrifício e o
macabro espetáculo de distribuição de trouxas ensangüentadas em que se
transformou a promoção (...) a entidade do Estado de Minas Gerais viu-se a braças,
de repente, com algo que ultrapassava de muito sua imaginação, um desafio quase
insuportável aos valores ‘culturais’ tradicionais e às belas artes. Entraram , esse
patrocinadores, a contragosto para a história da evolução da arte brasileira, e por isso
serão lembrados”41.
A reação da imprensa foi ora de um incômodo silêncio, ora de críticas mordazes. O
jornalista Wilson Frade publicou pequenas chamadas no jornal com o nome “problemas de
Vanguarda”. Entre as informações veiculadas estavam a de que o prefeito de Belo Horizonte
estaria bastante irritado com a mostra e alegava que “Não sabia que era isso!”42. O prefeito
ainda declarou que:
“O Secretário Diz Ventura, do governo, que representou Israel na abertura da
exposição de vanguarda que está no Palácio das Artes para quem quiser ver revelou
a algumas pessoas quando viu ‘aquilo’ lá: ‘Se o governador Israel Pinheiro tivesse
vindo aqui teria mandado fechá-la na hora.”43.
Entre a comunidade artística, a reação mais importante foi a de Francisco Bittencurt.
Este escreveu um artigo sobre o evento para o Jornal do Brasil intitulado Geração Trancaruas, no qual também faz uma entrevista com Frederico Morais.
Segundo Bittencurt o evento foi um exercício de total liberdade criadora no qual os
artistas entregaram-se “a um trabalho de desmantelamento de todos os cânones que regem as
artes plásticas tradicionais”44.
40
Jornal Estado de Minas, 18 de abril de 1970.
BITTENCURT, Francisco. Dez Anos de Experimentação, sem paginação. In: Depoimentos de uma Geração.
Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
42
Jornal Estado de Minas, 24 de abril de 1970.
43
Jornal Estado de Minas, 24 de abril de 1970.
44
Bittencurt, Francisco. Geração Tranca-Ruas. Jornal do Brasil, 08 de maio de 1970.
41
23
Figura 14 : “A Geração Tranca Ruas”.
Fonte: ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea. In: Um Século de História das Artes
Plásticas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997
Sobre o trabalho de Oiticica e Jaffe, Bittencurt faz a seguinte crítica: “Hélio Oiticica é
conhecido internacionalmente (...) Achamos, no entanto, que sua trilha de açúcar foi uma
ofensa aos pobres de Belo Horizonte.”45.
Para Bittencurt, os artistas que participaram do “Do Corpo à Terra” faziam parte da
“geração tranca-ruas” e possuiam “Todo um plano de criação, de construção nesta feroz e
vital exposição(...) vendo-os, assistindo suas experiências, conversando com eles, não
podemos deixar de nos entusiasmar. São os jovens o sal da terra, a esperança enfim.”46.
Dez anos mais tarde, Francisco Bittencurt fez uma nova análise do evento em seu
artigo “Dez Anos de experimentação”. Neste trabalho Bittencurt reviu seu posicionamento
sobre o evento e afirmou que o De Corpo à Terra produziu trabalhos experimentais cujo nível
de invenção raramente fora ultrapassado depois.
45
46
Bittencurt, Francisco. Geração Tranca-Ruas. Jornal do Brasil, 08 de maio de 1970.
Bittencurt, Francisco. Geração Tranca-Ruas. Jornal do Brasil, 08 de maio de 1970.
24
E, se, em sua primeira análise, a obra de Cildo Meireles era uma “experiência terrível”
na qual a beleza estava além de sua compreensão, neste segundo artigo Bittencurt afirmaria
que:
“Cildo Meireles realizou nesta ocasião um sacrifício com galinhas vivas para
lembrar o massacre e a repressão de seres humanos, aqui ou no Vietnã e chamou a
esse projeto de Esboço Monumento Totem. Assumindo a crueldade dos que matam
seres indefesos, o artista certamente se violentou para sentir na carne o horror da
morte injusta”47.
Assim, reavaliando sua crítica sobre o evento, ele concluiu:
“... foi em Cildo Meireles e Barrio que a manifestação assumiu o tom sombrio de
uma situação limite. Ninguém antes deles no Brasil reagiu com tal intensidade
dentro do campo estético à realidade do momento. Os trabalhos que fizeram em
Belo Horizonte ultrapassaram na verdade a simples polêmica estética para adquirir a
feição de luta pela vida de todo um povo.”48.
6 CONCLUSÃO
Do Corpo à Terra foi um dos eventos artísticos de maior destaque na segunda metade
do século XX no Brasil. Isto não se deve apenas ao valor artístico dos trabalhos nele
apresentados, mas também ao importante discurso sócio-político ali presente.
Conseguindo reunir grande parte dos artistas que despontavam na nova geração de arte
contemporânea brasileira, o evento foi fortemente estruturado por um embasamento teórico e
trouxe à tona várias discussões e questionamentos sobre a arte contemporânea que se
apresentavam tanto no panorama nacional quanto internacional.
No aspecto sócio-político, o evento apresentou um posicionamento de crítica bastante
forte contra a repressão da ditadura militar. Esse posicionamento foi viabilizado tanto pelo
apoio teórico dado pelo crítico Frederico Morais aos artistas, quanto pela concessão da
Hidrominas de que os trabalhos fossem realizados no local. Essa concessão permitiu que os
artistas conseguissem burlar os controles da censura, que normalmente vetava os trabalhos de
cunho político nas demais exposições de arte da época.
47
BITTENCURT, Francisco. Dez Anos de Experimentação, sem paginação. In: Depoimentos de uma Geração.
Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
48
BITTENCURT, Francisco. Dez Anos de Experimentação, sem paginação. In: Depoimentos de uma Geração.
Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
25
Anos mais tarde, Frederico Morais concluiu que o evento foi a última manifestação
coletiva urbana da nova vanguarda brasileira. Independentemente disso, é possível afirmar
que outros eventos ocorridos na década de 70 não tiveram a mesma força e radicalismo
presentes no Do Corpo à Terra.
Abordando temas como ecologia, corpo, consumo, liberdade, repressão e sociedade o
evento marcou o “derradeiro grito libertário dos artistas e críticos que acreditavam na
possibilidade utópica de uma contra-revolução cultural no Brasil”49.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRÉS, Marília. Arte e Política no Brasil: A Atuação das Neovanguardas na Década
de 60. In: Arte e Política: Algumas Possibilidades de Leitura. Belo Horizonte: C/arte, 1998.
ANDRÉS, Marília. Formação da Arte Contemporânea. In: Um Século de História das
Artes Plásticas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/arte, 1997.
BASBAUM, Ricardo(Org.). Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2001.
BITTENCURT, Francisco. Dez Anos de Experimentação. In: Depoimentos de uma
Geração. [sem paginação]. Rio de Janeiro: Banerj, 1986.
BITTENCURT, Francisco. Geração Tranca-Ruas. Jornal do Brasil, 08 de maio de 1970.
BITTENCURT, Francisco. Depoimentos de uma Geração. [sem paginação]. Rio de Janeiro:
Banerj, 1986.
CABO, Sheila. Barrio: a morte da arte como totalidade. In: Arte Contemporânea
Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
CANTON, Katia. Corpo, Identidade e Erotismo. In: Temas da Arte Contemporânea. São
Paulo: Editora Martins Fontes, 2009
CANTON, Katia. Espaço e Lugar. In: Temas da Arte Contemporânea. São Paulo: Editora
Martins Fontes, 2009.
FREIRE, Cristina. O Latente Manifesto: A Arte Brasileira nos Anos 1970. In:
GONÇALVES, Lisbeth (Org.). Arte Brasileira no Século XX. São Paulo: ABCA: MAC USP:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007
49
ANDRÉS, Marília. Arte e Política no Brasil: A Atuação das Neovanguardas na Década de 60, Pp 176. In:
Arte e Política: Algumas Possibilidades de Leitura. Belo Horizonte: C/arte, 1998.
26
KOSUTH, Joseph. Art After Philosophy, I. In: Studio International, 1969. In: SMITH,
Roberta. Arte Conceitual. In: Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1991
LE WITT, Sol. Paragraphs on Conceptual Art. In: Artforum , 1967. In: SMITH, Roberta.
Arte Conceitual. In: Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
MORAIS, Frederico. Manifesto Do Corpo à Terra. In: ANDRÉS, Marília. Neovanguardas:
Belo Horizonte, anos 60. Belo Horizonte: Editora C/arte, 1997.
MORAIS, Frederico. Do Corpo à Terra: Um Marco radical na Arte Brasileira. Belo
Horizonte: Itaú Cultural, 2004.
MORAIS, Frederico. Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da ‘Obra’. In: Arte
Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
SMITH, Roberta. Arte Conceitual. In: Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1991.
WEINER, Lawrence. Entrevista com o artista. In: Avalanche, 1972. In: SMITH, Roberta.
Arte Conceitual. In: Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
Download

DO CORPO À TERRA: uma análise do evento