CAPÍTULO 76
Anestesia para Criança Cardiopata
Submetida à Cirurgia não Cardíaca
Sérgio Bernando Tenório*
Introdução
Com base na incidência de cardiopatia congênita na população estima-se que nascem no
Brasil 30.000 crianças com cardiopatia congênita a cada ano. Graças ao grande avanço da medicina mais de 85% destas crianças chegarão à idade adulta 1 e muitas podem necessitar de cirurgias
não cardíacas. Entender a fisiopatologia da doença cardíaca e as modificações provocadas pela
própria cirurgia cardíaca utilizada na sua correção são passos importantes no manuseio perioperatório
destas crianças.
Fisiopatologia da cardiopatia e modificações decorrentes da correção cirúrgica
De modo simplista, mas suficiente para entender o que será discutido neste capítulo, podese classificar as cardiopatias congênitas em acianóticas e cianóticas (Tabela 1). Neste quadro
estão incluídos os defeitos mais comuns e que respondem por mais de 90% das cadiopatias
congênitas.
Cardiopatias acianóticas
Nas cardiopatias acianóticas com shunt as principais alterações funcionais são resultado do
aumento do fluxo e das pressões pulmonares. Quando o defeito por onde ocorre o shunt está
localizado apenas no septo atrial apenas há aumento do fluxo pulmonar. No entanto, quando os
* Prof. Adjunto da Universidade Federal do Paraná
Anestesiologia do Hospital Pequeno Princípio
Tabela 1 - Cardiopatias Congênitas
Medicina Perioperatória
ACIANÓTICAS
com shunt
Defeito do Septo Atrial
Defeito do Septo Ventricular
Defeito do Septo Atrio-ventricular
Persistência do Ducto Arterioso
com obstrução
Estenose Aórtica
Coarctação da Aorta
CIANÓTICAS
com baixo fluxo pulmonar
Tetralogia de Fallot
Atresia Tricúspide
Atresia pulmonar
sem baixo fluxo pulmonar
Transposição das Grandes Artérias
Conexão Anômala Total das Veias Pulmonares
Síndrome da Hipoplasia do Ventrículo Esquerdo
DSA
DSV
DASV
PDA
EA
CoA
TF
AT
AP
TGA
CATVP
SHVE
defeitos septais são de grande diâmetro de estão localizados no septo ventricular ou atrioventricular
as pressões sistêmicas são transmitidas para a circulação pulmonar e as pressões pulmonares podem ter a mesma magnitude das pressões sistêmicas. Como o shunt se faz da circulação sistêmica
para a circulação pulmonare não há cianose.
A correção cirúrgica neste grupo de cardiopatias baseia-se no fechamento do septo ou, no
cado do PDA, na ligadura do ducto arterioso. A expectativa de vida é normal para as crianças com
DSA, DSV e PDA pequenos. No entanto, as crianças mantidas sob regime de hipertensão pulmonar por longos períodos haverá alterações na microcirculação pulmonar com aumento da resistência vascular pulmonar (RVP) e risco de falência ventricular direita 2.
No outro grupo de cardiopatias acianóticas não há shunt mas sim alguma obstrução à passagem do sangue do ventrículo esquerdo para a aorta (EA) ou por estenose na própria aorta (CoA).
Na CoA há hipertensão arterial nos ramos pré coarctação e hipotensão arterial nos ramos pós
coarctação. Após a correção da CoA a aorta pode recoarctar e a hipertensão arterial pode persistir pela vida toda 3.
Cardiopatias cianóticas
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As cardiopatias cianóticas são mais complexas que as acianóticas. A cianose decorre da
mistura do sangue venoso ao sangue arterial por orifício localizado nos septos atrial e ventricular.
O fluxo pulmonar, nas cardiopatias cianóticas, pode estar reduzido, normal ou aumentado. As três principais cardiopatias congênitas com hipofluxo pulmonar são a AT 4, AP 5 e a TF
6
. Nas três cardiopatias há shunt veno-arterial (shunt D-E) e baixo fluxo pulmonar decorrente de obstrução à passagem do sangue para a artéria pulmonar ou de hipoplasia da artéria
pulmonar.
Estas crianças poderão ter, após a correção do defeito cardíaco, algum grau de insuficiência
do ventrículo direito e insuficiência pulmonar.
Nas AT e AP há atresia, respectivamente, da válvula tricúspide e dos ramos da artéria pulmonar.
Nas duas cardiopatias o ventrículo direito é atrésico. A sobrevida destas crianças depende de um
defeito no septo atrial e do ducto arterioso pérvio. Com o fechamento do ducto arterioso, que
ocorre logo após o nascimento, não há fluxo pulmonar. Sem um shunt sistêmico pulmonar estas
crianças não sobrevivem aos primeiros dias de vida. Até hoje é utilizada a operação proposta por
Balock-Taussig que baseia-se na criação de uma anastomose entre a artéria subclávia e um ramo
da artéria pulmonar (figura 2).
Como estas crianças têm um único ventrículo funcionante não há correção definitiva possível
para o defeito cardíaco. Glenn 8 e posteriormente Fontan 9 demonstraram que a anastomose entre as
veias cavas e a artéria pulmonar pode prover fluxo pulmonar adequado à vida desde que a pressão
pulmonar seja mantida baixa. O sucesso destas duas operações depende de haver baixa pressão
pulmonar. Estas operações são realizadas após o 2º ano de vida em um ou dois tempos.
Anestesia para Criança Cardiopata Submetida à Cirurgia não Cardíaca
A TF 7 é a única cardiopatia com hipofluxo pulmonar onde é possível correção definitiva do
defeito cardíaco. Nas duas outras cardiopatias deste grupo só é possível correção paliativa na
forma de uma anastomose sistêmico-pulmonar (operação de Balock-Taussig) seguido de uma
anastomose entre as veias cavas e a artéria pulmonar (operação de Fontan). Esta segunda cirurgia
paliativa ocorre anos após a primeira. Os dois principais defeitos na TF são o defeito no septo
ventricular e a hipertrofia do músculo infundibular localizado na via de saída do ventrículo direito. O
espasmo do músculo infundibular pode reduzir a praticamente a zero o fluxo pulmonar e, se não
tratado, levar a morte. Na TF corrigida não há espasmo do infundíbulo, que foi ressecado na
correção do defeito cardíaco.
A correção definitiva da TF é realizada em geral após o 6º mês de vida e baseia-se no
fechamento do defeito do septo ventricular e na ressecção da via de saída do ventrículo direito e
sua ampliação com um remendo de pericárdio (figura 1).
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Medicina Perioperatória
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Muitas das crianças com AP raramente atingem condições para a correção de Glenn e
Fontan por causa da anatomia dos ramos pulmonares. As cirurgias de Glenn e Fontan estão também indicadas para outras cardiopatias com fisiologia univentricular como a SHVE (figura 3) e o
Ventrículo Único.
Um outro grupo de cardiopatias cianóticas não apresenta hipofluxo pulmonar. As crianças
com CATVP são muito cianóticas logo após o nascimento e devem ser submetidas à correção
definitiva antes do 1º mês de vida. Como todas as veias pulmonares drenam nas cavidades direitas
(átrio, veia cava superior ou veia cava inferior) o fluxo pulmonar é elevado e há congestão pulmonar
pelo hiperfluxo pulmonar e por problemas na drenagem das veias pulmonares anômalas. Normalmente, se a cirurgia cardíaca é realizada com sucesso, a função cardíaca será boa mas a hipertensão pulmonar pode persistir e ser causa de falência cardíaca direita.
Na TGA a artéria pulmonar emerge do ventrículo esquerdo e a aorta do ventrículo direito.
A vida só é possível se houver shunt entre os átrios ou ventrículos. A única forma do sangue
venoso do átrio direito e o sangue arterial do átrio esquerdo atingirem, respectivamente, a circu-
Anestesia para Criança Cardiopata Submetida à Cirurgia não Cardíaca
lação pulmonar e sistêmica será pelo defeito septal atrial ou ventricular. Quanto maior o defeito
maior volume do sangue arterial atingirá a circulação sistêmica e do sangue venoso a circulação
pulmonar e menor será a intensidade da cianose. O septo atrial pode ser aberto no cateterismo
cardíaco. A cirurgia mais utilizada na correção da TGA é a cirurgia de Jatene10 (figura 4). De
modo resumido, nesta técnica a aorta e a artéria pulmonar são seccionadas nas suas bases e os
segmentos proximais anastomosados, respectivamente, nos cotos das artérias pulmonar e aorta.
A maior dificuldade da cirurgia de Jatene é o reimplante das artérias coronarianas na sua nova
posição. A cirurgia deve ser realizada antes do primeiro mês de vida porque a resistência vascular
pulmonar ainda é alta nesta fase e o ventrículo esquerdo (que ejeta na artéria pulmonar) tem
massa muscular capaz de vencer a resistência vascular sistêmica após a correção cirúrgica. Quando
não é possível realizar a cirurgia de Jatene a TGA é corrigida com a cirurgia de Mustard ou
Senning, ambas baseadas na inversão do fluxo dentro dos átrios. Os resultados tardios com
estas duas técnicas não são bons e pode-se esperar muitas complicações como arritmias, congestão pulmonar, insuficiência cardíaca etc.
A SHVE11 é uma das cardiopatias mais complexas e graves. Avanços recentes na cirurgia,
anestesia e cuidados pós-operatórios tornaram possível a sobrevia de cada vez mais crianças com
SHVE. Esta doença tem, basicamente, hipoplasia ventrico esquerdo e atresia da válvula aórtica e
do arco aórtico. Há apenas um único ventrículo funcionante que é ventriculo direito. O fluxo sistêmico
depende o ducto arterioso pérvio. A correção cirúrgica é feita em dois tempos. No primeiro tempo
um tubo é interposto entre o ventrículo direito e o ramo não atrésico da aorta para produzir um
shunt entre a artéria subclávia e a artéria pulmonar. No segundo tempo as veias cavas são
anastomosadas com a artéria pulmonar (operação de Fontan e Glenn).
Avaliação pré-anestésica
Independente do tipo de cirurgia realizada os cuidados com o paciente devem os mesmos
porque a descompensaçao cardíaca pode ocorre mesmo em pequenas cirurgias12. A avaliação
pré-anestésica é o momento apropriado para identificar os fatores de risco que deverão ser manipulados durante a cirurgia. Conhecer as alterações decorrentes da cardiopatia e da sua correçao
cirúrgica são essenciais para a compreensão da magnitide das alterações possíveis de ocorrer no
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Medicina Perioperatória
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per-operatório. Por exemplo, uma criança portadora de um DSA já corrido pode ter uma reserva
cardíaca normal e não exigir cuidados especiais do anestesiologista. No entanto, o mesmo não
poderia se dito de outra criança cianótica já submetida a operação de Blalock Taussig ao nascimento seguido por duas cirurgias de Fontan.
As principais sequelas tardias que podem ser observadas nas crianças cardiopatas já submetidas à cirurgia cardíaca são a hipoxemia, a insuficiência cardíaca por falência do ventrículo
direito ou esquerdo, as arritmias, o déficit neurológico e a hipertensão pulmonar 13.
A hipoxemia pode persistir nas crianças submetidas às cirurgias paliativas de Blalock-Taussig
e operação de Glenn ou Fontan. A hipoxemia na criança cardiopata em geral é resultado de desvio
do sangue venoso para a circulação sistêmica. A criança com hipoxemia crônica tem quimioreceptores
periféricos menos sensíveis à queda na PaO2. Estas crianças têm aumento da volemia e do número
das hemácias como mecanismo compensação para manter o conteúdo de oxigênio do sangue
arterial. Não são incomuns hematócritos tão altos quanto 70% o que as predispõe a risco de
trombose vascular além de causar aumento do trabalho cardíaco pela hiperviscosidade do sangue.
O coração exposto à condições adversas por tempo prolongado está sujeito a desenvolver downregulation dos receptores â adrenérgicos o que o torna menos sensível aos â agonistas14. A própria
cirurgia para a correção da cardiopatia congênita está associada à alteração na resposta aos receptores â adrenérgicos15. A hipoxemia crônica pode causar alterações na coagulação sanguínea por
disfunção plaquetária, hipofibrinogenemia e fibrinólise. O TAP e o TTPa podem estar alterados16.
Longos períodos de parada circulatória total durante a cirurgia cardíaca associado a longos períodos de hipoxema antes da correção da cardiopatia congênita podem causar déficite neurológico
desde pequena redução no quociente de inteligência até graves limitações neurológicas sensitivas e
motoras17.
A insuficiência cardíaca pode estar presente tanto nas crianças cianóticas como nas acianóticas.
Estas crianças terão, invariavelmente, queixa de cansaço e limitação para a prática dos exercícios
próprios para sua idade. As crianças que conseguem brincar em igualdade de condições com seus
pares da mesma idade provavelmente têm boa reserva cardíaca. Os medicamentos mais utilizados
na criança cardiopata são os digitálicos, inibidores da ECA e os diuréticos. Muitos serviços preferem suspender os digitálicos no dia da cirurgia pelos riscos de arritmias em presença de hipopotassemia.
A presença de taquicardia, extremidades frias, respiração laboriosa, fígado aumentado de tamanho
e jugulares ingurgitadas são sinais presentes em maior ou menor grau na criança em ICC. Nos
casos mais graves pode-se auscultar o ritmo de galope. Down-regulation dos receptores â
adrenérgicos também pode estar presente na criança em ICC crônica devido a longa exposição da
fibra miocárdica às catecolaminas.
Muitas crianças com cardiopatias congênitas desenvolvem no pós operatório imediato e tardio
arritmias decorrentes de alteração na condução cardíaca. Eventos relacionados à cirurgia cardíaca
como as manipulações nos átrios, a canulação da veia cava superior, lesões nos feixes de condução
podem provocar arritmias persistentes no pós-operatório. Arritmias são muito comuns nas operações
que manipulam muito os átrios como ocorre nas operações de Mustard, Senning e Fontan13.
A hipertensão pulmonar está presente na maioria das crianças com hiperfluxo pulmonar pela
hipertrofia da camada muscular da microcirculação pulmonar. Crianças com DSV de grande diâmetro, com DSAV e CATVP podem manter a hipertensão pulmonar anos após submetidas à correção cirúrgica do defeito cardíaco. Crianças com hipertrofia muscular na microcirculação estarão
sujeitas a apresentarem picos de hipertensão pulmonar associados aos períodos de hipoxemia,
hipercarbia ou manipulação das vias aéreas. A principal consequência da hipertensão pulmonar é a
falência do ventrículo direito18.
Muitas destas crianças já sofreram anteriormente cirurgias e outros procedimentos dolorosos e
é provável que estejam estressadas antes de uma nova operação. A medicação pré-anestésica é útil
para aliviar a ansiedade e facilitar a indução da anestesia. Há, no entanto, crianças que se recusam a
ingerir a medicação pré-anestésica ou pode não haver tempo necessário para o completo efeito da
droga. A presença de um dos pais na sala de cirurgia até a indução da anestesia pode ser útil. O
midazolan, na dose de 0,5 a 0,75mg.kg-1 pela via oral é uma medicação rotineiramente utilizada no
mundo todo e considerada segura para a maioria das crianças 19. Deve-se ter especial cuidado com as
crianças muito cianóticas nas quais pequenas quedas na PaO2, que podem ocorrer após qualquer
sedativo, podem causar grandes reduções na saturaçao da hemoglobina arterial. Deve ser lembrado
que o gráfico que relaciona a PaO2 e a saturação de oxigênio tem a forma de um S. Pacientes com
valores de PaO2 abaixo de 60mmHg estão próximos da reta na curva de dissociação da hemoglobina.
Indução e manutenção
A profilaxia da endocardite (Tabela 2) deve ser feita de acordo com protocolo do serviço de
cardiologia. O esquema da tabela II é utilizado por muitos serviços de cardiologia pediátrica20.
A indução inalatória pode ser necessária na criança com veias pouco visíveis e difíceis de
serem canuladas. O sevoflurano em concentrações de 6 a 8% é, na maioria dos casos, seguro21. A
adição do N2O aos anestésicos voláteis é útil por reduzir a CAM destes. Ao contrário do que
muitos acreditam, o N2O não está contra-indicado nas crianças cianóticas porque a cianose destas
crianças não decorre da falta de oxigênio no ar inspirado mas sim do desvio do sangue venoso para
a circulação sistêmica. A criança respira em condições normais 21% de oxigênio e os 50% que são
normalmente administrados na anestesia inalatória são suficientes para saturar toda a hemoglobina
das hemácias que circula pelos pulmões. Com uma veia puncionada deve-se utilizar algum opióide
potente para bloquear os reflexos da entubação traqueal e reduzir as concentrações necessárias
dos anestésicos voláteis. O fentantil é bastante empregado na anestesia balanceada em cirurgia
cardíaca pediátrica e as doses dependem da intensidade do estímulo cirúrgico e da duração da
cirurgia22. Procedimentos pequenos e médios podem requerer não mais que 1 a 5µg.kg-1 de fentanil
enquanto para os procedimentos mais longos serão necessárias doses maiores.
A manutenção da anestesia pode ser feita com isoflurano e N2O associado à um relaxante
muscular como o rocurônio, cisatracúrio ou atacúrio.
A anestesia regional pode ser utilizada nas várias técnicas disponíveis, raqui, anestesia peridural,
bloqueio de nervo periférico. Os bloqueios espinhais são úteis para bloquear os estímulos cirúrgicos, reduzir a concentração dos anestésicos sistêmicos e facilitar a recuperação no pós-operatório
pelo melhor controle da dor. A hipotensão arterial decorrente do bloqueio das fibras simpáticas
entre T1 e L1 raramente é um problema nas crianças com menos que 8 anos de idade. Bloqueios
epidurais torácicos são frequentemente utilizados na criança cardiopata submetida às cirurgias maiores em tórax e abdome superior.
A cetamina é classicamente utilizada na indução da anestesia na criança cianótica por aumentar a resistência vascular sistêmica e melhorar o fluxo pulmonar. Todavia, as alucinações são um
efeito colateral muito desagradável e limitante, especialmente para os procedimentos ambulatoriais.
A anestesia intravenosa total com propofol em infusão contínua associado ao remifentanil ou alfentanil
vem sendo cada vez mais considerada na criança cardiopata. A vasodilatação provocada pela
maioria das drogas anestésicas pode provocar hipotensão arterial nas crianças hipovolêmicas que
Anestesia para Criança Cardiopata Submetida à Cirurgia não Cardíaca
Medicação pré-anestésica
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Medicina Perioperatória
Tabela 2 - Recomendações para Profiçaxia da Endocardite Bacteriana sub Aguda
devem receber, antes ou durante a indução da anestesia, infusão de solução cristalóides para repor
os déficites hidroeletrolíticos.
A eritroferese pode ser necessária nas crianças com hematócritos acima de 60%. O cálculo da
quantidade de sangue que deve ser retirado do paciente é muito simples e direto. Por exemplo, uma
criança com 1000mL de volemia e hematócrito de 65% tem 650mL de hemácias. Para reduzir este
hematócrito para 50% devem ser retirados 150mL de hemácias. Considerando-se que cada 100mL de
sangue deste paciente tem 65mL de hemácias calcula-se o montante retirado com uma regra de três
simples (x= 15000/65=230mL). Deve-se repor, concomitantemente, 3 a 4 vezes este volume em solução cristalóide para evitar a hipovolemia. Deve-se evitar reduzir o hematócrito abaixo de 50% para não
diminuir em demasia o conteúdo arterial de oxigênio. A hipotermia aumenta a viscosidade do sangue e a
resistência vascular. Os cuidados para a manutenção da temperatura corporal incluem o uso de soluções
aquecidas nas cavidades, colchão térmico e, principalmente, o sistema de ar quente forçado.
A hidratação deve ser ajustada às condições clínicas da criança. As soluções cristalóides são
importantes na manutenção do conteúdo de Na e água do organismo. No entanto, crianças com
ICC toleram pouco sobrecarga de volume. Por outro lado, as crianças policitêmicas necessitam
maior hidratação para reduzir a viscosidade do sangue. A reposição básica simplificada para as
crianças com ICC é adequada (10mL/kg na primeira hora e 3 a 4mL nas horas subsequentes). As
crianças policitêmicas devem receber maior volume de líquido desde que não estejam em ICC.
Monitorização:
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Nas cirurgias de pequeno porte não é necessária monitorização invasiva. Como o fluxo pulmonar é baixo em muitas crianças cianóticas o CO2 expirado final registrado no capnógrafo será
inferior ao CO2 arterial e esta diferença é proporcional à diferença entre o fluxo sistêmico e o fluxo
pulmonar. Como os oxímetros de pulso são calibrados para valores de saturação de hemoglobina
superiores aos encontrados nas crianças cianóticas mais graves sua acurácia será menor nestas
Tratamento das complicações per-operatórias cardíacas
Como muitas destas crianças apresentam limitações funcionais e têm pequena reserva
cardiocirculatória não é improvável haver, durante a cirurgia, agravamento da ICC ou hipoxemia.
As drogas inotrópicas são recursos frequentemente utilizados para a melhora do débito cardíaco
(Tabela III). As drogas escolhidas devem já estar diluídas e prontas para serem infundidas tão logo
se inicie a cirurgia. Crianças com hipoxemia ou ICC crônicas podem apresentar down-regulation
dos receptores â adrenérgicos do miocárdio e podem não responder às catecolaminas endógenas
e exógenas. A dopamina nas doses iniciais de 5µg.kg-1.min-1 pode ser a primeira opção de droga
inotrópica. No neonato, no entanto, podem ser necessárias doses maiores de dopamina. Quando a
resposta à dopamina é insatisfatória pode-se empregar a adrenalina em doses que variam entre
0,05 a 0,5µg.kg-1.min-1, tomando-se o cuidado de infundi-la em veias centrais ou calibrosas pelos
riscos de isquemia de pele em caso de extravasamento do vaso. Na última década foi introduzido
na clínica um novo grupo de inotrópicos que age por inibição da fosfodiesterase III, enzima que
converte o AMPcíclico, o segundo mensageiro intracelular da fibra miocárdica. Por não atuarem
sobre os receptores â adrenérgicos este grupo de drogas tem resposta satisfatória mesmo em
crianças com down-regulation dos receptores â15 . Dentre os dois inibidores da fosfodiesterase
III, a enoximone e a milrinone (Primacor®), apenas o último vem sendo empregado na criança,
pelo menos em nosso meio. Os inibidores da fosfodiesterase III melhoram o débito cardíaco e
reduzem a resistência vascular sistêmica, ambos os efeitos são benéficos no paciente com baixo
débito cardíaco. No entanto, a hipotensão arterial e as arritmias são duas complicações que devem
exigir atenção. Uma causa frequênte de baixo débito cardíaco em neonatos e lactentes é a
hipocalcemia24. Isto ocorre porque, nesta faixa etária, os retículos sarcoplasmáticos da fibra muscular não estão totalmente desenvolvidos e sua capacidade de armazenamento do cálcio é muito
baixa. A infusão lenta de cálcio pode ser necessário portanto para tratar o baixo débito cardíaco
(Tabela 3).
A criança cianótica pode ter sua hipoxemia agravada no per-operatório por fatores que piorem
o shunt D-E ou por efeito espaço morto. Pressão positiva moderada no final da expiração (5mmHg)
Anestesia para Criança Cardiopata Submetida à Cirurgia não Cardíaca
crianças. Na interpretação dos dados obtidos com o oxímetro de pulso e o capnógrafo na criança
cianótica deve-se levar em consideração estas caracteríticas. Isto, no entanto, não tira a utilidade
destes dois monitores pois mais importante que os valores absolutos são as variações que podem
ocorrer durante a cirurgia. A avaliação da pressão arterial pode ser feita pelos métodos não invasivos
nas cirurgias de pequeno porte23. Nas cirurgias mais complexas e longas, no entanto, deve-se
cateterizar a artéria radial ou outra artéria periférica para a avaliação contínua da pressão arterial.
Nas crianças submetidas a operação de Blalock-Taussig a artéria radial ispilateral ao lado da
anastomose entre a artéria subclávia e a artéria pulmonar pode não retratar a pressão arterial real
por alterações no calibre da artéria subclávia. Nas crianças com operação de Fontan ou Glenn
deve-se evitar a punção das veias profundas do lado direito do pescoço. A medida da pressão
venosa central será falseada nestas crianças por alterações anatômicas decorrentes da anastomose
entre a veia cava superior e a artéria pulmonar. A hipotermia, que, reconhecidamente, aumenta o
risco cirúrgico na criança normal pode ser ainda mais deletéria na criança cianótica por aumentar a
viscosidade do sangue e o trabalho cardíaco e ainda as predispor às arritmias cardíacas. Os sensores
do termômetro podem ser colocados no reto, esôfago ou no nasofarínge. A monitorização da
diurese por sondagem vesical deve ser reservada para as cirurgias mais longas pelos riscos de
infecção urinária e alergia ao látex.
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pode ser necessária para resgatar alvéolos colabados mas esta manobra pode reduzir o débito cardíaco. O aumento da FiO2 para 1 em geral não produz melhora a saturação de oxigênio porque a
hipoxemia não se deve à falta de oxigênio nos pulmões mas sim ao shunt do sangue venoso para a
circulação sistêmica todavia pode aumentar a reserva de oxigênio na capacidade residual funcional.
As crianças com operação de Fontan e Glenn prévia
É cada vez mais provável que o anestestesiologista se defronte com uma criança ou adulto
portador de alguma cardiopatia com fisiologia univentricular e tendo recebido previamente operação de Fontan ou Glenn. Estas operações objetivam basicamente prover fluxo pulmonar por uma
anastomose entre a veia cava e a artéria pulmonar, único meio disponível de manter a vida em
pacientes com um único ventrículo funcionante.
Medicina Perioperatória
Tabela 3 - Drogas de Suporte Cardiocirculatório
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Estas cirurgias, embora paliativas, melhoram significativamente a qualidade de vida dos pacientes portadores de cardiopatias graves como a AT e a SHVE e estima-se que 60% deles estarão
vivos com a idade de 25 anos25. Apesar das modificações funcionais e anatômicas que este tipo de
operação provoca a maioria dos adultos ou crianças com a operação de Fontan mantém-se bem a
curto e médio prazo e com saturação do sangue arterial de aproximadamente 95% 26 . Infelizmente
muitos apresentam grave cianose, arritmias, ICC, aumento do átrio direito e policitemia e se constituem em um grupo de altíssimo risco.
Deve-se evitar todo fator que aumente a RVP como a hipoxemia, a manipulação das vias
aéreas, a hipercarbia, a acidose e elevadas pressões intratorácicas pois o fluxo pulmonar é inteiramente passivo e se reduz sempre que houver aumento da RVP. A hipertensão venosa é comum
pela falta da bomba ventricular direita. Edema periférico, fígado aumentado e derrame pleural
são outras complicações observadas no pós-operatório imediato e tardio da operação de Fontan.
Pós-operatório imediato
Finda a cirurgia poderá ser necessário uma unidade de terapia intensiva em algumas situações: a) se houver instabilidade cardiocirculatória; b) agravamento da cianose; c) dependência
de inotrópicos em infusão contínua; c) necessidade de ventilação mecânica. Preferencialmente,
no entanto, estas crianças devem ser encaminhadas à sala de recuperação pós-anestésica normal
e observadas pelo tempo necessário. Entre os critérios de alta estão a capacidade de manter a
SpO2 sem necessidade de oxigênio suplementar. O tratamento da dor pós-operatória é de extrema importância por reduzir o estresse cirúrgico, a liberação de catecolaminas e de outros
hormônios. A anestesia regional é, reconhecidamente, a forma mais eficiente de bloquear a dor
pós-operatória e deve ser utilizada sempre que indicada. A anestesia peridural com bupivacaína
0,25%, ropivacaína 0,1% provê analgesia eficiente por várias horas. Seu efeito pode ser
potencializado com algumas drogas coadjuvantes adicionadas ao anestésico local como a clonidina
(1 a 1,5µg.kg-1) ou a cetamina (0,5mg.kg-1). O emprego de morfina espinhal deve ser reservado
aos pacientes que receberão vigilância direta no pós-operatório. A colocação de um catéter
peridural permite a infusão prolongada do anestésico local que deve ser utilizado em concentrações mais baixas (bupivacaína 0,1%). Os analgésicos venosos devem ser empregados
concomitantemente com a anestesia regional ou como técnica única de analgesia. A dipirona
(20-50mg.kg-1) associada ao cetorolaco (Toradol®) e um opióide como a morfina (100µg.kg-1)
ou o fentanil (1µg.kg-1) são eficazes para tratar a dor do pós-operatório imediato da maioria das
cirurgias. Deve ser lembrado que a associação entre a morfina sistêmica e espinhal é a principal
causa de depressão respiratória no pós-operatório.
Anestesia para Criança Cardiopata Submetida à Cirurgia não Cardíaca
A redução do volume diastólico final do ventrículo esquerdo pode requerer uma fenestração do
tubo que liga a veia cava inferior à artéria pulmonar para melhorar o débito sistêmico. Este
procedimento melhora o débito sistêmico mas reduz a saturação de oxigênio do sangue arterial.
Sempre que possível deve-se utilizar a ventilação espontânea pois propicia melhor fluxo pulmonar desde que não haja acúmulo do CO227. A função hepática pode estar comprometida nas
crianças com Fontan28 e a enteropatia perdedora de proteínas é uma complicação grave mas
felizmente rara.
Trombose venosa tardia pode afetar até 20% dos pacienes com operação de Fontan29. Estes
pacientes podem estar recebendo drogas que alteram a coagulação como o warfarin e a aspirina.
Podem ocorrer complicações tardias como a presença de trombos gigantes no átrio, flutter atrial,
pancitopenia, varizes esofageanas e circulação colateral da veia cava superior para o átrio esquerdo. Congestão sistêmica crônica é descrito com frequência. Hiperesplenismo e varizes esofageanas,
no entanto, não são comuns30.
Conclusão
Não há como negar que as crianças cardiopatas pertencem a um grupo de risco para a
anestesia. No entanto, o caminho simplista de negar-lhes o benefício da terapêutica cirúrgica sob a
justificativa de que podem não “suportar a anestesia” não tem, hoje, fundamento científico. O risco
anestésico é sim alto mas será minimizado com o conhecimento das alterações provocadas pela
doença cardíaca e pela própria cirurgia cardíaca. Este tipo de paciente deve ser avaliado, sempre
que possível, com antecedência suficiente para haver tempo de esclarecer dúvidas e, principalmente, para consultoria com o cardiologista pediátrico.
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Medicina Perioperatória
Referências Bibliográficas
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