Artigo Este artigo apresenta i m p o r t a n t e s articulações entre linguagem e sujeit o , p r o p o n d o m a i s especificamente a relação entre m u t i s m o infantil e falhas na c o n s t i t u i ç ã o d o sujeito. A a u t o r a baseia-se em alguns conceitos, c o m o a função d o O u t r o P r i m o r d i a l , as inscrições p r i m o r d i a i s e a i n s t a u r a ç ã o d o circuit o p u l s i o n a l , assim c o m o apresenta ilustrações clínicas e relato de caso. Mutismo; constituição do sujeito; circuito pulsional A PLACE TO SPEAK... This article presents important articulations between language and subject sketching specifically relations between infantile mutism and a failure in the subject constitution. The author is supported by some concepts, like the primal Other fhnction, the primary inscriptions and the institution of the pulsional circuit, as well as she shows some clinical illustrations and a case report. Mutism; subject constitution; pulsional circuit U M LUGAR PARA FALAR... 1 S a n d r a P a v o n e de S o u z a ^ ^ ^ , uando na clínica, com crianças tendo dificuldades ou ausência de fala, somos levados mais adiante e passamos a nos questionar sobre o que estaria impedindo sua constituição como falantes, c o m e ç a m o s a deparar com inúmeras e intrincadas relações entre linguagem e constituição do sujeito. O mutismo infantil, bastante freqüente em casos de autismo, aponta para uma abrangência que nos convoca a situar questões de estruturação muito antes de tomarmos esse fenômeno como um sintoma. Fundamentalmente, neste artigo, busco aproximações que permitam elucidar o ato da fala ali onde a clínica nos indica que ele não é inato nem exclusivamente dependente do aparato biológico com que nasce uma criança. Mais especificamente, ressalto por um lado a função do Outro Primordial e a entrada da criança no campo da linguagem e por outro a instauração do circuito pulsional na constituição do sujeito. O grito, que a princípio é um meio de descarga da tensão acumulada e, ao mesmo tempo, a expressão do estado de desamparo e urgência inicial, vai sendo cada vez mais intencionalmente endereçado ao outro. Este Nebenmensch terá então uma função fundamental de inscrever esse corpo e suas manifes- • Psicanalista, membro da equipe da Derdic (PUC-SP), professora universitária. tações n u m u n i v e r s o de linguagem, n u m universo s i m b ó l i c o . Assim o g r i t o o u o e s p e r n e i o p a s s a m a ser s i g n o s de u m a d e m a n d a a o O u t r o , o u seja, u m s e m e l h a n t e , p o r é m d e s t i n a t á r i o de u m a o r d e m s i m b ó l i c a (Garcia-Roza, 1991). Esse o u t r o q u e inscreve a criança n u m referente s i m b ó l i c o investe-se e m relação a ela c o m o u m o u t r o privilegiado: O u t r o , "...o g r i t o d e n e c e s s i d a d e d o b e b ê deve ser t r a d u z i d o n o t e s o u r o d o s significantes d o O u t r o m a t e r n o p a r a se t o r n a r d e m a n d a , o que, ao m e s m o t e m p o , o aliena; ele passa a ser apenas d e m a n d a d o O u t r o , já que expresso n o s significantes deste" (Laznik-Penot, 1997, p.37). A que q u e s t ã o e s t r u t u r a n t e d o sujeito n o s r e m e t e e n t ã o a funç ã o d o O u t r o P r i m o r d i a l , d o Nebenmensch? A p o n t o a q u i a relev â n c i a desse t e m p o e s t r u t u r a n t e e dessa f u n ç ã o p a r a o q u e n o fut u r o p o d e r á vir a ser u m a fala. Trata-se, p o r é m , d o l a d o d a m ã e , de u m a i l u s ã o a n t e c i p a d o r a q u e lhe p e r m i t e e s c u t a r e o l h a r algo além d a realidade d a q u i l o q u e ali está. Esse m e s m o a t o c o m p o r t a , e n t r e t a n t o , a a t r i b u i ç ã o d e u m sujeito a o b e b ê q u e p r o d u z esses sons. "Por isso é q u e n ã o vacilam e e m b o r a s a i b a m que seu bebê é i n c a p a z d e c o m p r e e n d ê - l o t u d o o s u p õ e f a l a n t e . . . c o l o c a r o seu filho na posição de escuta, q u a n d o n a verdade ele n ã o sabe escutar, m a s a p e n a s o u v i r , e e s c u t a r seu filho q u a n d o n a v e r d a d e ele n ã o p r o d u z n a d a que possa ser escutado, apenas o u v i d o . Essa sutil, mas decisiva d i f e r e n ç a de f u n ç ã o e n t r e p e r c e b e r a v o z - o u v i r - , e diferenciar u m a palavra - e s c u t a r " (Jerusalinsky, 1997, p.82). D o l a d o d o s pais, o q u e e s c u t a m o s m u i t a s vezes é e x a t a m e n t e a a u s ê n c i a n o seu d i s c u r s o dessa i l u s ã o a n t e c i p a t ó r i a . É c o m o se esses pais só p u d e s s e m ser a t i n g i d o s p e l o r u í d o q u e ali está, i m possibilitados de escolher para esse s o m u m s e n t i d o e de posteriorm e n t e incluir essa palavra n u m a rede de significantes. B. t e m agora 5 a n o s e, p o r volta d o fim de seu p r i m e i r o a n o , começava a falar, q u a n d o o s p a i s m u d a r a m d e c i d a d e . N a c i d a d e d e o r i g e m era p o s s i v e l m e n t e o avô q u e m exercia essa f u n ç ã o p a r a o m e n i n o , e o p a i a c r e d i t a q u e o f a t o d e o f i l h o ter p a r a d o d e falar p o s s a ser a t r i b u í d o a essa separação d o avô (sic). Ele m e c o n t a que só o avô é que conversava c o m o m e n i n o q u a n d o ele a i n d a n ã o falava n a d a e q u e o p r ó p r i o p a i e o u t r o s d i z i a m ao avô o q u a n t o ele parecia " d o i d o " f a z e n d o isso. C e r t a vez sua m ã e m e c o n t a q u e n o s m o m e n t o s e m q u e está p a r a d o r m i r seu f i l h o fica u m b o m t e m p o f a z e n d o " p a , pa, pa, pa..." Q u a n d o p e r g u n t o a ela o q u e a c h a q u e ele p o d e estar quer e n d o dizer, ela m e r e s p o n d e : - N ã o q u e r d i z e r n a d a , n ã o . É só b a r u l h o . I l u s ã o a n t e c i p a t ó r i a , ver u m a i m a g e m se s o b r e p o r a esse real. A l g u m a s mães c o m o aquela d o caso a c i m a n ã o se d e i x a m ilu- dir. Elas vêem o real ele m e s m o , sem n e n h u m a s u b s t i t u i ç ã o . Se o g r i t o , o b a l b u c i o ficar s e n d o ele m e s m o , se n ã o p u d e r ser m e n s a g e m p a r a esse o u t r o , o c o r r e r á o q u e Lacan (1962-3) chama no Seminário A angústia de a subjetivação d o a c o m o p u r o real. É p o r t a n t o f u n d a m e n t a l q u e alg u é m c o n s i g a e n c o n t r a r nesse b e b ê u m d i z e r q u e p o s s a fazer q u e r ê - l o (referente a u m s e m i n á r i o p r o f e r i d o p o r Alfredo Jerusalinsky n a Pré-Escola T e r a p ê u t i c a L u g a r d e V i d a , n a U S P , e m 1998). E o n d e u m p a i e u m a m ã e enc o n t r a m u m d i z e r de seu bebê? N o seu p r ó p r i o f a n t a s m a , o u , d i t o d e o u t r a m a n e i r a , q u e "a c r i a n ç a seja p o r t a d o r a , aos s e u s o l h o s , d a q u i l o q u e a eles faz f a l t a " ( L a z n i k - P e n o t , 1997, p.47). A m ã e d e B., a q u e l e g a r o t i n h o d o p r i m e i r o exemplo, é incapaz de relembrar ou relatar q u a l q u e r coisa q u e faça p a r t e d o i n í c i o da v i d a d a criança. Aliás, é m u i t o difícil ela dizer q u a l q u e r coisa. O p a i se q u e i x a de q u e ela passa o dia c o m o m e n i n o , m a s é de p o u c a c o n v e r s a , e ela r e s p o n d e a isso d i z e n d o : - C o m o é q u e p o s s o falar c o m ele? Ele n ã o fala! Se ele falasse, eu p o d e r i a c o n v e r s a r c o m ele. T r a n s f o r m a r o real d a v o z e m m e n s a g e m , e m dádiva: você q u e r m e dizer... Aí está essa i m p o r t a n t e difer e n ç a e n t r e o u v i r b a r u l h o s e escutar p a l a v r a s , o u seja, a t r i b u i r s e n t i d o s e a n t e c i p a r palavras n a q u i l o q u e é ainda u m a p u r a voz, u m p u r o grito. "Para que o objeto não fique s e n d o ele m e s m o e s o m e n t e ele mesm o , é necessário transformar cocô em d á d i v a - e isso as m ã e s s a b e m fazer m u i t o b e m " (Jerusalinsky, 1997, p.82). O p a i d e u m g a r o t o d e 8 a n o s q u e n ã o fala v e m c o n t a r o q u e se passa c o m o m e n i n o : - D o u t o r a , m e u filho está i n c o m p l e t o . A n d o u , m a s n ã o falou. Às vezes diz papapa, mamama. Palavras sem s e n t i d o . C e r t a m e n t e . P a r a esse p a i n ã o h a v i a c o m o a t r i b u i r s e n t i d o , c o m o p o d e r s u p o r q u e isso fosse m e n s a g e m e q u e p o r t a n t o l h e dissesse r e s p e i t o . N ã o p a r e c e possível elevar essa v o z a u m l u g a r simbólico. E o mais surpreendente do exemplo é a proximidade disso q u e o m e n i n o b a l b u c i a c o m as palavras " p a p a i " e " m a m ã e " . Essas p a l a v r a s q u e v i r ã o n o m e a r as p r o d u ç õ e s da criança, rec o r t a n d o e s e p a r a n d o os objetos, n ã o serão q u a i s q u e r palavras. São significantes q u e s u s t e n t a r ã o o t r a b a l h o de separar os p e d a ç o s d o corpo, l a n ç a n d o o sujeito à s i m b o l i z a ç ã o , o u seja, às s é r i e s substitutivas. A palavra q u e v e m representar o objeto, s u b s t i t u i n d o o, a m p l i a as p o s s i b i l i d a d e s s i m b ó l i c a s , isto é, da p r ó p r i a i n s c r i ç ã o e d o f u n c i o n a m e n t o das r e p r e s e n t a ç õ e s . "A e n t r a d a n a l i n g u a g e m , este r e c a l c a m e n t o d e v i d o à v o z da m ã e , se faz a o p r e ç o d i s s o q u e j u s t a m e n t e a v o z d a c r i a n ç a vai p e r d e r , o u seja, ela vai se p e r d e r e n q u a n t o voz, p a r a t o r n a r - s e d a l í n g u a , tornar-se d a fala" (Bergès & B a l b o , 1996). A f u n ç ã o m a t e r n a p e r m i t e r e c o r t a r , s e p a r a r esses o b j e t o s d o p r ó p r i o c o r p o à m e d i d a q u e a m ã e diz n ã o a esses objetos, e isto ela o fará se n ã o ficar presa ao objeto c o m o ele m e s m o . É p o r sua i l u s ã o a n t e c i p a t ó r i a q u e se c o n s t i t u i r á essa i m a g e m real, f o r m a d a p e l o c o n j u n t o desses p e q u e n o s a, s u r g i n d o e r e c o r t a n d o o c o r p o d a criança. A INSTAURAÇÃO DO CIRCUITO PULSIONAL P e n s o q u e se a v o z é u m desses o b j e t o s q u e serão e x t r a í d o s , p o s s i b i l i t a n d o a inscrição da representação de u m a falta, r e c o r t a n d o o c o r p o , isto é, i n s e r i n d o - o n u m a p u l s i o n a l i d a d e , p o d e m o s consid e r a r o p r ó p r i o a d v e n t o d a fala d o p o n t o d e v i s t a d o c i r c u i t o pulsional. É n e s s a o p e r a ç ã o q u e a voz v a i se p e r d e n d o c o m o t a l , n a m e d i d a e m q u e sua t r a n s p o s i ç ã o p a r a o u t r o registro, o d o s i m b ó lico, t o r n a o p r ó p r i o o b j e t o - agora de o u t r a m a n e i r a aí apresent a d o - p e r d i d o , o u , s i m p l e s m e n t e , r e p r e s e n t a d o . " N a o p e r a ç ã o de l i b i d i n i z a ç ã o , de n o m e a ç ã o , de a n t e c i p a ç ã o desse g r i t o em fala, h á algo e m t o r n o d o q u e t u d o isso gira, e m t o r n o d o q u e t u d o isso se a n t e c i p a : u m a v o z , a v o z d a m ã e , a v o z d a p r ó p r i a (Bergès & B a l b o , 1996). criança" Lacan, n o Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), n o s t r a z u m a extensa r e t o m a d a d o c o n c e i t o de p u l s ã o a p a r t i r d o t e x t o de F r e u d (1915) "As p u l s õ e s e suas vicissitudes". E m Lacan, a pulsão n ã o é u m conceito que articula o b i o l ó g i c o e o p s í q u i c o tal c o m o c o n s i d e r a d o p o r F r e u d . Ela é s o b r e t u d o u m c o n c e i t o q u e a r t i c u l a significante e c o r p o . A p a r t i r desses vários destinos, vicissitudes q u e a p u l s ã o p o d e seguir, F r e u d vai falar d a s c o n d i ç õ e s d a s a t i s f a ç ã o p u l s i o n a l . O e n l a ç a m e n t o p u l s i o n a l , seu f e c h a m e n t o e m f o r m a de c i r c u i t o , é o q u e p õ e em j o g o o q u e é d a o r d e m d a s a t i s f a ç ã o . Esta n ã o e s t a r i a l i g a d a ao e n c o n t r o de u m objeto ligado à satisfação de u m a necessidade, mas à execução de u m trajeto e m f o r m a de c i r c u i t o , q u e n a d a m a i s é q u e u m trajeto " q u e v e m se e n l a ç a r s o b r e o p o n t o de p a r t i d a : a fonte, a z o n a e r ó g e n a " (Lacan, 1964, p.42). "... esse m o v i m e n t o c i r c u l a r d o i m p u l s o q u e sai a t r a v é s d a b o r d a e r ó g e n a p a r a a ela r e t o r n a r c o m o s e n d o seu alvo, a p ó s ter feito o c o n t o r n o de algo q u e c h a m o o o b j e t o a. (...) - é p o r aí q u e o sujeito t e m de a t i n g i r a q u i l o q u e é, p r o p r i a m e n t e f a l a n d o , a d i m e n s ã o d o O u t r o " (Lacan, 1964, p.183). É a p a r t i r d o q u e F r e u d (1915) t r a b a l h o u a respeito d o s d o i s pares de o p o s t o s s a d i s m o - m a s o q u i s m o e v o y e u r i s m o - e x i b i c i o n i s m o , m a r c a n d o os p o s s í v e i s d e s t i n o s n a m o n t a g e m p u l s i o n a l , q u e se p o d e s i t u a r esse c i r c u i t o e m três t e m p o s : 1) ativo: i n d o e m d i r e ç ã o a u m o b j e t o e x t e r n o , 2) reflexivo: corpo, t o m a n d o c o m o objeto uma parte do próprio 3) passivo: e m q u e a p r ó p r i a pessoa se faz ela m e s m a o b j e t o de u m o u t r o q u e vai ser p o s t o n o l u g a r de sujeito. Lacan vai t r a b a l h a r esse p e r c u r s o m a r c a n d o q u e a n t e s de seu e n l a ç a m e n t o "a p u l s ã o se m a n i f e s t a s o b o m o d o d e u m s u j e i t o acéfalo" (Lacan, 1964, p.171). H á u m a relação e n t r e a c o n s t i t u i ç ã o d o c i r c u i t o p u l s i o n a l e o s u r g i m e n t o d o s u j e i t o . Ele a p a r e c e n o m o m e n t o em que a p u l s ã o p o d e fechar seu curso circular. D i t o de o u t r o m o d o , p a r a q u e se possa falar p r o p r i a m e n t e e m sujeito d a p u l s ã o , é necessário o seu f e c h a m e n t o e m c i r c u i t o , o q u e n ã o será possível antes desse terceiro t e m p o . Lacan s u s t e n t o u sua n o ç ã o de surgimento do sujeito da pulsão p o r m e i o d o que Freud c h a m a de " n o v o sujeito", que surge n o t e r c e i r o t e m p o d o c i r c u i t o p u l s i o n a l . Esse sujeito n o v o n ã o é o Ich, ele é o o u t r o . Ele diz que esse sujeito é p r o p r i a m e n t e o o u t r o , q u e o o l h a , q u e o escuta, etc. N e s s e m o v i m e n t o d a p u l s ã o , " n ã o p a r e c e q u e , ... a p u l s ã o i n v a g i n a n d o - s e pela z o n a erógena, está encarregada de ir buscar de algo q u e , de cada vez, r e s p o n d e n o O u t r o ? " (Lacan, 1964, p.185). A a p a r i ç ã o desse n o v o sujeito parece e n t ã o estar f u n d a m e n t a l m e n t e l i g a d a a o t e m p o d a a l i e n a ç ã o , já q u e é c o m o o b j e t o do o u t r o que o sujeito aparece aqui. N a s palavras de Lacan, " o sujeito só é sujeito p o r seu a s s u j e i t a m e n t o ao c a m p o d o O u t r o " (Lacan, 1964, p . 1 7 8 ) . A r t i c u l a m - s e a q u i o s u r g i m e n t o d o sujeito a p a r t i r d o a s s u j e i t a m e n t o a o c a m p o d o O u t r o e o s u r g i m e n t o d o sujeito n o terceiro t e m p o p u l s i o n a l assujeitando-se ao O u t r o buscando fisgar seu g o z o . P r e t e n d o d a q u i r e t o m a r a c o n s t i t u i ç ã o da fala através dos três t e m p o s p u l s i o n a i s , a f i r m a n d o q u e o a d v e n t o d o sujeito falante só p o d e r á ser t o m a d o c o m o tal q u a n d o estivermos d i a n t e desse terceiro t e m p o em t o r n o do objeto voz. a t i v o — ouvir (o próprio grito e a voz da mãe) Aqui penso que p o d e m o s situar a criança i n d o em direção à v o z d o p r ó x i m o , assim c o m o à sua p r ó p r i a . Se o g r i t o da criança é t o m a d o c o m o a p e l o , e este o u t r o q u e a s o c o r r e n a e x p e r i ê n c i a d e s a t i s f a ç ã o i n t e r p r e t a essa m a n i f e s t a ç ã o c o m s e u s p r ó p r i o s significantes, essa experiência t e m c o n s e q ü ê n c i a s i m p o r t a n t e s sobre a c o m p l e x i f i c a ç ã o d o a p a r e l h o p s í q u i c o , já q u e d e i x a r á t r a ç o s m n é s i c o s d e l e m b r a n ç a s d e várias o r d e n s : d o seu p r ó p r i o c h o r o , da voz do o u t r o que socorre e dos t r i l h a m e n t o s (Bahnungen)^ e n t r e essas d u a s o r d e n s de i m a g e n s - l e m b r a n ç a . Q u a n d o o e s t a d o d e t e n s ã o ressurgir, o i n v e s t i m e n t o vai enc o n t r a r os trilhamentos eficazes p a r a enviá-lo a esse c o n j u n t o de i m a g e n s - l e m b r a n ç a (as r e p r e s e n t a ç õ e s de desejo) e vivificá-las: é a satisfação a l u c i n a t ó r i a p r i m á r i a . Se este p ó l o a l u c i n a t ó r i o for demasiadamente investido haverá u m a decepção, u m desprazer, pois a d e s c a r g a m o t o r a aí a t i v a d a n ã o c o i n c i d i r á c o m a s a t i s f a ç ã o p o r tratar-se d o o b j e t o a l u c i n a t ó r i o . D a í q u e o i n v e s t i m e n t o q u e l h e pertence voltar-se-á ao p ó l o perceptivo, transformar-se-á em atenção psíquica em busca d o objeto de satisfação n o m u n d o exterior. Será necessário julgar as novas percepções t o m a n d o p o r base aquelas q u e p r e v i a m e n t e fizeram m a r c a n o p ó l o a l u c i n a t ó r i o . C o m o o objeto da realidade n ã o será jamais i d ê n t i c o àquele das representações de desejo e pela necessidade de r e e n c o n t r a r s i m i l i t u d e s antes de a u t o r i z a r a resposta m o t o r a específica, n o v o s t r i l h a m e n t o s entre as representações vão se instalar. M a s isso só p o d e r á ter lugar cont a n t o q u e o t r i l h a m e n t o , q u e leva ao c o n j u n t o c o m p l e x o de repres e n t a ç õ e s , f i q u e i n v e s t i d o d e f o r m a d u r a d o u r a , o u seja, c o m a c o n d i ç ã o de q u e seja s u f i c i e n t e m e n t e r e p e t i d a . É nesse s e n t i d o que a voz da mãe assim c o m o o p r ó p r i o grito d o bebê p o d e m tornar-se u m desses t r a ç o s , desses a t r i b u t o s q u e deix a m m a r c a s m n é s i c a s , o q u e sustentará sua atenção psíquica em direção a eles. H a v e r á u m i n v e s t i m e n t o e m d i r e ç ã o à v o z d o p r ó x i m o e às i m a g e n s de p a l a v r a s q u e ele e m p r e gará p a r a t r a d u z i r suas manifestações, i n c l u i n d o - s e aí seus g r i t o s q u e serão objeto de u m g r a n d e investim e n t o de a t e n ç ã o da criança; u m a b u s c a , f u n d a m e n t a l m e n t e , d o invest i m e n t o l i b i d i n a l q u e essa a t r i b u i ção c o m p o r t a . Acho importante marcar que desse p r ó x i m o q u e s o c o r r e p a r t e m dois c o m p o n e n t e s : 1) e s t r u t u r a const a n t e q u e p e r m a n e c e coesa e n q u a n t o c o i s a Das Ding, 2) o u t r a q u e p o d e ser c o m p r e e n d i d a e m u m t r a b a l h o d e r e m e m o r a ç ã o , ela c o m p o r t a o s atributos. Importante para que não sejamos levados a p e n s a r , pelas afirm a ç õ e s a c i m a , q u e falar p o d e r i a ser resultado s i m p l e s m e n t e de i m i t a r a v o z d o o u t r o , assim c o m o efeito de u m t r a b a l h o de r e m e m o r a r . Vale l e m b r a r que e m Lacan a Coisa - Das Ding, t e r m o r e t i r a d o d o t e x t o d o " P r o j e t o " d e F r e u d (1895) - seria o termo estranho em t o r n o do qual circula a p u l s ã o . N ã o é possível p e n s a r q u e falar seria u m t r a b a l h o d e r e m e m o r a ç ã o , p o i s este n ã o c o m p o r t a r i a o f u n d a m e n t a l da o p e r a ç ã o da alienação aos s i g n i f i c a n t e s d o O u t r o , o u seja, o resto dessa o p e r a ç ã o , o o b j e t o a. O s trilhamentos não seriam apenas u m t r a b a l h o de m e m ó r i a d o s traços q u e f i z e r a m m a r c a s . Eles f a z e m u m circ u i t o e m t o r n o d o c o m p o n e n t e es- t r a n h o , d a p a r t e coesa d o o u t r o , e m t o r n o d e Das Ding, pode- m o s dizer, u m c i r c u i t o p u l s i o n a l . P e n s o ser esse o p r i m e i r o t e m p o e m q u e o i n v e s t i m e n t o d a criança irá e m d i r e ç ã o à v o z d a m ã e e às i m a g e n s de palavras que ela e m p r e g a para t r a d u z i r suas manifestações, suas vocalizações. reflexivo — ouvir-se (tomar como objeto do corpo próprio, a própria voz) uma parte A q u i p o d e m o s falar de u m t e m p o a n t e r i o r à p r ó p r i a fala e q u e t e m u m valor f u n d a m e n t a l , q u e é o b a l b u c i a r , q u a n d o o bebê brinca com a própria voz. L a c a n (1962-3) n o Seminário A angústia, e m q u e b u s c a circ u n s c r e v e r a gênese desse o b j e t o a d o l a d o da criança, l e m b r a - n o s os t r a b a l h o s de R o m a n J a k o b s o n c o m bebês e m b e r ç á r i o e m q u e se gravavam seus m o n ó l o g o s . Ele acentua q u e esses m o n ó l o g o s n ã o se p r o d u z e m n a p r e s e n ç a d e o u t r a pessoa, m u i t o p e l o c o n t r á r i o , p o d e m até cessar q u a n d o o u t r a p e s s o a está p r e s e n t e , o q u e n o s a p o n t a q u e neste caso n ã o é e m busca de algo n o o u t r o o que entra e m j o g o nesse t e m p o . P e n s o q u e a q u i a c r i a n ç a b r i n c a c o m sua v o z c o m o às vezes t a m b é m b r i n c a c o m a saliva f a z e n d o b o l h i n h a s , b u s c a n d o s i m b o l i zar a falta q u e possa estar e m j o g o c o m esses objetos. Q u a n d o Lacan refere-se aos m o n ó l o g o s de bebês, é p a r a falar d o s u j e i t o q u e está se constituindo, da c o n s t i t u i ç ã o d o objeto a c o m o r e s t o , d e u m a v o z d e s t a c a d a d e seu s u p o r t e , d o t e m p o d a separação. Se a criança t e n t a reter n o discurso da m ã e algo da voz, se ela t e n t a n ã o p e r d e r isso q u e cai d a b o c a d a sua m ã e , i s t o é, sua v o z , é p o r q u e t e n t a fazer c o m q u e a lei n ã o i n t e r v e n h a . É o q u e Balbo vai falar d o p o d e r de r e c a l c a m e n t o da voz da mãe. "Ela vai perder-se e n q u a n t o v o z para fazer surgir o s e n t i d o , isto é, para t o r n a r - s e l í n g u a . A l e t r a a q u i v e m d o m o m e n t o e m q u e cai d o b u r a c o q u e representa a b o c a da m ã e algo de seu d i s c u r s o q u e é a sua v o z , v o z d a q u a l a c r i a n ç a t e n t a reter algo p a r a n ã o p e r d e r t u d o dessa voz. Pois n ã o h á o u t r o objeto d o q u a l se faça l u t o , se n ã o a v o z a p e r d e r " (Bergès & B a l b o , 1996). "A v o z r e s p o n d e ao q u e se diz, m a s ela n ã o p o d e r e s p o n d e r . D i t o de o u t r a m a n e i r a , p a r a q u e ela r e s p o n d a , d e v e m o s i n c o r p o r a r a v o z c o m o a l t e r i d a d e d o q u e se diz... U m a v o z p o r t a n t o n ã o se assimila. Ela se i n c o r p o r a {Einverleibung - i n c o r p o r a ç ã o ) , está aí o q u e lhe p o d e d a r u m a função para m o d e l a r n o s s o v a z i o " (Lacan, 1962-3, p.318). Nesse caso o q u e se p e r d e é a voz, esse objeto v o z desprendese desse o u t r o . É nessa d i a l é t i c a e n t r e o O u t r o e o o b j e t o q u e o s u j e i t o g a n h a seu l u g a r . H á a o m e s m o t e m p o a c o n s t i t u i ç ã o do o b j e t o e n q u a n t o p e r d i d o e o a p a r e c i m e n t o d o sujeito. passivo — ee fazer ouvir (a criança ma objeto de um outro) se faz ela mee- É nesse t e m p o q u e p o d e r e m o s falar de s u r g i m e n t o d o sujeito da p u l s ã o , d e n o m i n a d o de novo sujeito e m F r e u d , e m q u e a cria n ç a v a i se fazer ela m e s m a o b j e t o d e u m o u t r o . I s s o a p a r e c e q u a n d o a c r i a n ç a v i e r a p r o d u z i r a l g o , b u s c a n d o c o m isso n ã o a p e n a s fazer i m i t a ç ã o d a q u i l o q u e n o p r i m e i r o t e m p o o u v i u , m a s b u s c a n d o q u e o o u t r o a escute. É q u a n d o a criança b u s c a se fazer o u v i r p o r esse o u t r o , b u s c a n d o a cada vez r e p o r e m j o g o algo d o seu desejo desse o u t r o , de seu g o z o . D a í o f e c h a m e n t o d o c i r c u i t o d a p u l s ã o c o m o u m m o v i m e n t o de a p e l o a esse O u t r o . E m outras palavras, o sujeito aparece sob a forma de u m o u t r o q u e o escuta. A q u e l e q u e é e s c u t a d o só se t o r n a sujeito p o r haver u m sujeito que o escuta. O f e c h a m e n t o d o circuito p u l s i o n a l se dá n o m o m e n t o e m q u e h á algo n o O u t r o q u e se busca atingir, a o m e s m o t e m p o q u e h á algo aí q u e se p e r d e , q u e se s u b t r a i . É preciso esperar pela escuta do O u t r o estando a criança c o m o objeto p a r a q u e o sujeito da fala g a n h e o seu l u g a r É preciso n ã o c o n f u n d i r a q u i o sujeito d o q u a l n o s fala L a c a n c o m o sujeito d a a ç ã o , c o m a t i v i d a d e , p o i s se t o r n a r i a difícil c o m p r e e n der c o m o o sujeito p o d e a p a r e c e r c o m o efeito de se fazer o b j e t o de u m o u t r o . O s u r g i m e n t o desse sujeito n o s c o n d u z i r á p o r t a n t o a o fecham e n t o do circuito pulsional. Falar n ã o p o d e r i a p o r t a n t o ser o a t r i b u t o d e fazer c o i n c i d i r p a l a v r a s c o m o b j e t o s , m a s m u i t o m a i s q u e isso. N a fala h á u m e n d e r e ç a m e n t o ao O u t r o . Q u e m fala n ã o apenas p r o n u n c i a palavras. H á aqueles que fazem isso. U m a fala só p o d e m o s tomá-la c o m o tal q u a n d o h á esse a t r a v e s s a m e n t o d o c a m p o d o O u t r o . O q u e vai fazer c o m q u e a c r i a n ç a fale d e u m m o d o o u d e o u t r o , i s t o é, n a f o r m a d e a g r u p a m e n t o s o u c o m o u m s u j e i t o d i v i d i d o , é o m o d o e m q u e l h e falam. O u seja, q u e fale n u m o u n o u t r o e s t a t u t o vai d e p e n d e r d o m o d o e m q u e é falada, e m q u e a fala lhe é dedicada. a p r o p r i a ç ã o de s i g n o s <— atravessamento do campo do O u t r o E n t r e u m e o u t r o n ã o h á desdobramento cronológico. Ou é um ou outro. Os psicóticos também falam. E n t r e t a n t o , sua fala n ã o é endereçada a u m o u t r o , q u e m a interpreta n ã o é o o u t r o c o m o n o caso d a fala n e u rótica. U m neurótico q u a n d o fala corre o risco da i n t e r p r e t a ç ã o daquele q u e escuta, ele se d e s e m b a r a ç a da voz, o p o n t o de a m a r r a ç ã o reside n o o u t r o . N a psicose, a v o z l h e faz ressonância nos próprios ouvidos. Sua v o z e n q u a n t o o b j e t o p e q u e n o a n ã o p e r c o r r e o c a m p o d o o u t r o , sen ã o q u e fica n o s p r ó p r i o s o u v i d o s , sai e r e t o r n a . N ã o se t r a n s f o r m a (trecho referido a um seminário de Alfredo Jerusalinsky e m 14 de setemb r o de 1998, n a Pré-Escola T e r a p ê u tica Lugar de Vida, n a U S P , e m São Paulo). UM LUGAR PARA FALAR - RELATO DE CASO R e t o m o a q u i u m f r a g m e n t o de caso b u s c a n d o i l u s t r a r este t r a b a l h o a partir d o que p r o p u s estar em jogo n o a t o de falar, e n q u a n t o e n l a ç a m e n t o pulsional a partir de três tempos. N o i n í c i o d o a t e n d i m e n t o de R., u m m e n i n o d e 8 a n o s q u e n ã o falava, n ã o havia n a d a que ele fizesse q u e p u d e s s e m e fazer p e n s a r que h o u v e s s e ali u m s u j e i t o . Seus a t o s p a r e c i a m n a d a significar, e seus pais t a m p o u c o p o d i a m dar s e n t i d o ao que ele fazia o u ao p o u c o que dizia. Restringia-se a a n d a r o u c o r r e r pela sala, r a r a m e n t e m e o l h a v a n o s o l h o s o u m e solicitava. T o m a v a o b jetos n a m ã o b a t e n d o neles e s t e r e o t i p a d a m e n t e c o m a o u t r a m ã o , e n q u a n t o p r o n u n c i a v a " H u m ! H u m ! " c o m a b o c a fechada. Desde o i n í c i o d o t r a b a l h o c o m R. c o m e ç o a a t r i b u i r sentidos ao q u e parecia a i n d a n ã o querer dizer m u i t a coisa. O t r a b a l h o c o m a m ã e c a m i n h a p a r a l e l a m e n t e , e, d i a n t e dela e de sua total impossib i l i d a d e d e d i z e r a l g o s o b r e o f i l h o q u e n ã o fosse c o n t a r s u a s novas " m a n i a s " , sentia-me m u i t a s vezes u m a tola b u s c a n d o ver seus atos c o m o s i m b ó l i c o s . É m u i t o i n t e r e s s a n t e n o t a r q u e u m de seus objetos p r e d i l e t o s sejam revistas, q u e ele a p r i n c í p i o a p e n a s usa p a r a d o b r a r ao m e i o e b a t e r e d e p o i s de u m t e m p o passa a folhear c o m " a l g u m a atenç ã o " . D i g o i n t e r e s s a n t e p o r q u e o p a i t r a b a l h a n u m a e d i t o r a de revistas, e a m ã e dedicava-se a folhear revistas d u r a n t e u m b o m temp o das sessões o u i n d i c a v a ao filho q u e o fizesse q u a n d o n ã o queria ser i m p o r t u n a d a p o r seus incessantes p e d i d o s de pegar algo para c o m e r em sua bolsa. A m ã e relata q u e para ela era m u i t o difícil dizer não ao filho, p r i n c i p a l m e n t e q u a n d o este lhe pedia c o m i d a . Oferecer c o m i d a a ele d u r a n t e a sessão era t a m b é m u m a f o r m a de m a n t ê - l o o c u p a d o sem q u e ele pudesse i m p o r t u n á - l a . C e r t o dia d e c i d o dizer aos d o i s q u e ali n a sessão ele n ã o iria c o m e r m a i s . Q u e ele p o d i a esperar t e r m i n a r p a r a c o m e r e q u e só assim ia p o d e r fazer outras coisas c o m a boca e n q u a n t o estivesse ali. Mais o u m e n o s nessa época eu v i n h a n o m e a n d o para ele o que estava nessas páginas que ele talvez n e m p o r u m s e g u n d o se d e t i n h a para o l h a r . U m a delas era u m a p r o p a g a n d a q u e t i n h a várias b a r r a s de c h o c o l a t e , e nesse dia m e l e m b r o de ter d i t o " C h o c o l a t e ? H u m ! Q u e g o s t o s o ! " nas várias vezes e m q u e ele r e t o r n a v a a essa p á g i n a . R. m e ouvia m u i t o a t e n t o e parecia m e s m o b u s c a r q u e eu repetisse a m i n h a fala cada vez q u e voltava ao c h o c o l a t e . Nesse dia a m ã e e n t r a p a r t e d a sessão, e a p r i m e i r a coisa q u e ele faz q u a n d o ela s e n t a é b u s c a r a r e v i s t a a b e r t a n a p á g i n a d o c h o c o l a t e e ao se a p r o x i m a r dela lhe diz " H u m " . Escrevo a q u i sem o p o n t o de exclamação, p o i s aí a i n d a n ã o se p o d i a o u v i r assim, já que ele n ã o enunciava assim. A m ã e n e m sequer o olha, e imediatam e n t e lhe p e d e p a r a se afastar. Aí eu r e t o m o d i z e n d o a ela o q u e t i n h a se p a s s a d o e o q u e ele p o s s i v e l m e n t e buscava lhe c o n t a r . Vários o u t r o s passos i m p o r t a n t e s a p a r e c e r a m entre esse dia e o q u e v o u relatar a q u i , m a s v o u fazer u m salto d i r e t o a o p o n t o e m q u e isso d e p o i s veio fazer s e n t i d o . Meses d e p o i s ele e n t r a n a sessão c o m d u a s b o l a c h a s n a m ã o e n ã o faz m e n ç ã o de querer comê-las. O l h a para a m i n h a agenda, que t e m u m a palavra escrita que começa c o m B, c o m o fazia outras vezes que algo, u m a palavra o u u m a foto, se referisse a algo que começasse c o m B. Digo-lhe q u e "sim, b o l a c h a é c o m B". E m seguida sugir o q u e p e g u e o m a t e r i a l p a r a e s c r e v e r m o s o u d e s e n h a r m o s algo sobre a b o l a c h a . Ele vai até a caixa e pega a revista que t e m a foto c o m os c h o c o l a t e s . Ele diz " H u m , H u m " , m a s n ã o na mesma e n t o n a ç ã o de q u e m está a c h a n d o u m a delícia. E n q u a n t o isso, bate n a revista e s t e r e o t i p a d a m e n t e . Ele agora se a p r o x i m a e solicita m u i t o m a i s d o q u e fazia n o i n í c i o d o t r a b a l h o . E n q u a n t o está c o m a revista, v e m de costas e e n c o s t a e m m i m . O l h o p a r a seu b r a ç o e, v e n d o sua pele, q u e é b e m m o r e n a , eu lhe digo: "Você t e m a cor de chocolate. H u m , que gostoso! V e m cá, q u e v o u te c o m e r ! " Faço d u a s b o q u i n h a s c o m as m i n h a s m ã o s q u e a b r e m e fecham, fazendo-lhe cócegas, brincando de tirar pedaços. E n q u a n t o isso c o l o c o - m e e m seu lugar, d i z e n d o : "Ai, S a n d r a . Isso faz cócegas". Ele se afasta e diz: "Si". Ele se diverte m u i t o c o m o jogo e vem de costas p e g a n d o m i n h a mão p a r a q u e eu c o n t i n u e . E n q u a n t o faço a b o c a q u e abre e fecha c o m a p o n t a d o s d e d o s f a z e n d o cócegas p e l o seu c o r p o , eu l h e d i g o : " M i n h a m , m i n h a m , m i n h a m , m i n h a m , m i n h a m . Q u e g o s t o s o esse chocolate!" C o m o n ã o c o n t i n u o d i r e t o e d o u u m t e m p o p a r a ver o q u e é q u e s u r g e d o l a d o d e l e , ele se afasta e v e m de n o v o d e costas e n c o l h e n d o o p e s c o ç o n o t r o n c o , a n t e c i p a n d o as cócegas q u e estav a m p o r vir. D e p o i s se afasta n o v a m e n t e v i n d o de frente, e, c o m o e s p e r o , ele m e d i z " M a m , m a m " , p o s s i v e l m e n t e r e p r o d u z i n d o o s o m das b o q u i n h a s , e fica de n o v o e s p e r a n d o as cócegas. D a í vira u m a b r i n c a d e i r a de se oferecer c o m o o b j e t o . N a sessão s e g u i n t e , ele pega a revista q u e já está n a p á g i n a d o c h o c o l a t e e n o v a m e n t e d i z " M a m , m a m " , e ri a n t e c i p a n d o as cócegas. M a i s u m a vez fico u m t e m p o sem r e s p o n d e r de i m e d i a t o ao q u e ele d e m a n d a , e s p e r a n d o ver surgir algo m a i s q u e u m simples gesto o u i n d i c a ç ã o d o l a d o dele. Ele pega a m i n h a m ã o , mas, c o m o n a d a d i z , r e s o l v o n ã o r e s p o n d e r . É aí q u e ele r e s o l v e m e fazer cócegas s u b i n d o c o m os dedos pela p a l m a da m i n h a m ã o . Resp o n d o a isso d i z e n d o : "Ai! Q u e cócegas!" Isso parece a p r i n c í p i o remetê-lo a u m t e m p o e m q u e ele agarrava m e u cabelo c o m m u i t a força, e eu d i z i a " A i " t e n t a n d o fazê-lo p a r a r , p o i s ele vai d i r e t o a g a r r a r m e u c a b e l o . D i g o - l h e q u e esse Ai de agora é d i f e r e n t e d o Ai d o c a b e l o . U m a s e m a n a d e p o i s ele e n t r a n a sessão e diz " M a m , m a m " , p e g a n d o as m i n h a s m ã o s , e, antes m e s m o q u e eu chegue a tocá-lo, ele diz r i n d o : "Ai, ai". Foi t a m b é m esse o p r i m e i r o dia q u e vi sua m ã e p o d e r a t r i b u i r a l g u m s e n t i d o a u m a t o dele. E n q u a n t o falava c o m i g o sobre a escola em que está p r e t e n d e n d o matriculá-lo, ele me o l h a c o m a m ã o n o queixo. Ela p á r a de falar, o l h a p a r a ele e diz: " O l h a c o m o ele está interessado!" Essa b r i n c a d e i r a depois v i r o u aquela da f o r m i g u i n h a q u e sobe p e l o b r a ç o , q u e ele p e d i a q u e fizesse n e l e , a s s i m c o m o fazia e m m i m . E t a m b é m u m a o u t r a de esconder seus o l h o s atrás d a p a l m a da m ã o para q u e eu c h a m a s s e p o r ele. É possível ver surgir u m sujeito a l i e n a d o n o s significantes d o o u t r o , assim c o m o os t e m p o s p u l s i o n a i s necessários p a r a q u e u m a inscrição ocorra e o esticamento simbólico do objeto que entra em jogo aí. Várias substituições o p e r a r a m (chocolate q u e ele c o m i a nas sessões, chocolate n a revista, sua pele cor de chocolate e ele u m c h o c o l a t e ) . Talvez isso só t e n h a s i d o possível a p a r t i r de u m a das p o u c a s l e m b r a n ç a s que a m ã e traz de q u a n d o ele era bebê: q u e era g o r d i n h o e r i s o n h o . Isto é, q u e algo r e l a t i v o a c o m e r , c o m i d a já p u d e s s e e m a l g u m m o m e n t o ter feito p a r t e d e a l g u m a inscrição f u n d a m e n t a l . E n t ã o , o que se passa n a sessão p o d e ter sido mais o efeito de fazer f u n c i o n a r u m a i n s c r i ç ã o d o q u e de fazer u m a primeira inscrição. O que a i n d a n ã o é possível saber é se esse início de c o n s t i t u i ção poderá ter d o lado dos pais u m a sustentação, pois n ã o basta que u m a inscrição ocorra. É necessário que essas experiências sejam suficientemente repetidas e que possam constituir-se em redes, possibilitand o surgir para este l i n d o m o r e n i n h o um lugar para falar... REFERÊNCIAS • BIBLIOGRÁFICAS Bergès, J. & Balbo, B. (1996). D o corpo à letra (palestra proferida em Poitiers, 1994) (trad, livre de A. Vorcaro). La Psychanalyse de 1'Enfant, 20, p p . 181- 208. Freud, S. (1895). Projeto para u m a psicologia científica. In Edição brasileira das obras completas de Sigmund standard Freud (J. S a l o m ã o , trad.) (Vol. 1, pp.315-409). Rio de J a n e i r o , RJ: Imago, 1972. (1915). As pulsões e suas vicissitudes. In Edição das obras completas de Sigmund Freud standard brasileira (J. S a l o m ã o , t r a d . ) ( V o l . 14, pp.137-62). Rio de J a n e i r o , RJ: Imago, 1972. Garcia-Rosa, L. A. (1991). Introdução à metapsicologia freudiana. Vol. 1. Rio de J a n e i r o , RJ: Jorge Zahar. Jerusalinsky, A. (1997). A escolarização de crianças psicóticas. Estilos nica: Revista sobre a Infância Lacan, J. (1953-4). O seminário, com Problemas, livro I, Os escritos da Clí- 2 (2), 72-95. técnicos de Freud (B. Mi- llan, trad.). Rio de J a n e i r o , RJ: Jorge Zahar, 1979. (1962-3). Seminário A angústia (L. Fonseca, trad.). Recife, PE: C e n t r o de E s t u d o s F r e u d i a n o s , p u b l i c a ç ã o n ã o comercial, 1997. (1964). O seminário; psicanálise livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da (M. D . M a g n o , trad.). Rio de J a n e i r o , RJ: Jorge Zahar, 1979. Laznik-Penot, M. C. (1994). D o fracasso da i n s t a u r a ç ã o da imagem d o c o r p o ao fracasso da i n s t a u r a ç ã o d o c i r c u i t o p u l s i o n a l : q u a n d o a alienação faz falta. In M. C. Laznik-Penot (org.). O que a clínica nar aos psicanalistas. do autismo pode ensi- Salvador, BA: Ágalma, pp.31-48. (1997). Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise. São P a u l o , SP: Escuta. NOTAS T r a b a l h o a p r e s e n t a d o c o m o m o n o g r a f i a final d o c u r s o de e s p e c i a l i z a ç ã o (latu sensu) da Pré-Escola T e r a p ê u t i c a Lugar de Vida, I n s t i t u t o de Psicologia da U n i v e r s i d a d e de São P a u l o ; o r i e n t a d o r a : Gislene J a r d i m . ^ Neste p o n t o , i n t r o d u z o alguns aportes m e t a p s i c o l ó g i c o s desenvolvidos p o r M. C. Laznik-Penot sobre a c o n s t i t u i ç ã o d o c i r c u i t o p u l s i o n a l e o funcionam e n t o das representações inconscientes que serão objeto de u m t r a b a l h o ainda n ã o p u b l i c a d o , La psychanalyse Arcanes conforme Laznik-Penot, à 1'épreuve de la clinique de Tautisme. 1997. ^ C o m o se p o d e n o t a r , a p a r e c e m a q u i n o v a s a r t i c u l a ç õ e s e n t r e essas d u a s z o n a s de b o r d a - o u v i d o e boca - que n ã o p r e t e n d o desenvolver n o presente artigo.