O lugar do saber na transferência
Gustavo Héctor Brun1
No presente texto, procuraremos expor as modificações que notamos no conceito de
transferência no decorrer dos artigos técnicos de Freud e também situar alguns dos
principais aportes de Lacan para a compreensão da relação que este conceito nomeia e das
implicações do saber nesta relação.
O termo transferência aparece inicialmente no texto de Freud com um sentido
dinâmico1, designando o deslocamento de intensidades sobre as representações psíquicas,
mas, algum tempo depois, temos uma primeira modificação, na qual se destaca a
importância de certos deslocamentos nos quais estarão incluídas também as repetições,
reproduções de fantasias e experiências passadas que o paciente estende desde sua fantasia
à atualidade do processo analítico2, fazendo, deste modo, com que o analista seja partícipe
da transcrição da sua história, composta em reedições inscritas na cena em que acontece a
análise. Estes primeiros sentidos que o termo transferência vai tomando a partir da
experiência clínica são ilustrados no caso Dora e revisados posteriormente nos escritos de
Freud que expõem as particularidades da técnica analítica.
Encontramos uma segunda modificação importante, quando, nos textos técnicos, a
transferência é pensada como um conceito que surge entre as descrições dinâmicas de
processos afetivos que operam como resistências à análise, permitindo uma distinção entre
a transferência erótica ou positiva, a qual atuaria como um poderoso auxiliar da cura, e a
transferência hostil ou negativa, interpretada como resistência à análise. E, num terceiro
momento, temos o conceito de transferência perdendo um pouco do seu sentido negativo
de deslocamento de investimentos hostis que operam como resistências à análise e
Übertragung ganhará um sentido qualificativo para o amor. O amor de transferência, o que
surge como novo acontecimento na clínica é, para Freud um amor verdadeiro3, tanto como
qualquer outro louco amor. Será ali entendido como o motor da análise, seu auxiliar na
clínica e o espaço onde Freud, como o velho Sócrates, servirá a Eros para se aproveitar dos
seus serviços4.
1
Cf. Freud, S. A interpretação dos sonhos (1900).
Cf. Freud, S. Um caso de histeria (1905)
3
Cf. Freud, S. Observações sobre o amor transferencial (1914)
4
Cf. Lacan. Seminário X. “A Transferência”, 16/11/60.
2
A partir das observações de Nachmansohn e Pfister, a concepção amplificada de
amor que a psicanálise elabora perde parte da sua originalidade, pois anos mais tarde Freud
esclarece que sua teoria da libido encontrou pleno respaldo (vollkommene Deckung) na
teoria platônica do amor5.
Daquelas relações delimitadas entre o sentido platônico de Eros e a teoria da libido
Lacan produz um movimento, colocando uma interessante equivalência entre o Eros (como
desejo) e o amor de transferência, e no transcurso dos seus seminários do ano de 1960,
retornando à análise deste termo mediante um estudo minucioso do diálogo Simposium.
Diferenciado dos outros leitores de Freud, na leitura deste diálogo, Lacan não se
conforma em apenas assinalar a relação do Eros com a teoria da libido freudiana e destaca
que, o amor que se apresenta na clínica, funciona como uma metáfora e que, como tal, pode
ser reconhecida pela substituição, permuta na qual o amante fica no lugar do amado que
algo sustenta. A partir desta inversão o amante ergue seu desejo que é desejo de alguma
coisa no amado. Poucos anos depois Lacan acrescentará que no momento em que o amante
busca em ti mais do que tu6, podemos reconhecer como se evade um objeto enaltecido que
surgirá no entendimento teórico como objeto parcial (a) e causa de transferência.
É deste modo que, compreendida junto à posição socrática, a dinâmica singular do
amor na clínica de Freud fica exposta e compreensível, e a partir deste momento, a
mudança mais significativa que o conceito de transferência sofrerá pelos aportes de Lacan
será depreendida a partir do “não saber” que Sócrates7 expandia, e encontrava seu limite, no
saber acerca do desejo. Estamos nos referindo aos temas tratados por Lacan que, tendo
previamente lembrado a autenticidade do amor de transferência8, introduz a referência a um
sujeito suposto saber (sic. SsS) como representação do interesse a partir do qual se instala o
amor de transferência.
Desde então, a expressão SsS 9 vem tendo um sentido conciso para compreender um
dos pólos da dinâmica clínica e devemos tirar proveito dele sem quebrar a construção do
outro pólo, o sentido erótico do termo transferência que Lacan constrói na sua leitura do
Banquete, pois analisar as transferências tem a finalidade de colocar o Saber em questão.
5
Cf. Freud, S. (1921) Massenpsychologie und Ich-anlyse, IV. Sugesstion und libido. pág. 86. SA.
Cf. Lacan. Seminário XI. “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, 24/06/64.
7
Cf. Lacan. Seminário XI. “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, 10/06/64.
8
Cf. Lacan. Seminário XI. “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, 15/04/64.
6
O que advém o Sujeito suposto Saber?10 Ele cai porque na interpretação está
implicada a sua supressão, e a função do analista é reduzir o SsS à função de (a). Evitar a
interpretação do SsS é construir uma terapia sobre um dogma, e suprimir o dogma deixa um
espaço vazio pronto para reincorporar o objeto que causa desejo.
Desse modo nos encontramos situados novamente ante o agálmata do amor, porque
quando prevalece essa construção imaginaria do SsS, decompor seu brilho deslumbrante, é
situar um plus de valor do objeto (a) que possibilita a contigüidade do semblante.
A suposição do saber que quem associa livremente deposita em quem escuta é o nó
do engano que funda o movimento da transferência e desde o começo opera para ser
interpretado. Por isso, o cálculo analítico produz um ato que esvazia o seu sentido,
produzindo um resto, o lixo, o resíduo no lugar do saber do analista, ou deixa o Sujeito
suposto Saber como uma das caras atribuídas pelos místicos, ou seja, como outro dos
divinos rostos de Deus11, alienando a quem fala num ato de fé. Nestes termos é legítimo
reconhecer que SsS no está do lado da função analítica12 e talvez este seja o impasse que o
produz quando não se conduz sua dialética erótica de modo mais ou menos integral.
Poderíamos dizer, se a análise da transferência não visa decompor o saber
imaginário para colocar no seu lugar uma operação simbólica que a partir da diferença
articule um vazio que permita a circulação de objetos parciais, estaremos ainda nos
aproveitando dos poderes da sugestão. Mas se, no outro caminho, aventuramo-nos a
reconhecer alguma coisa acerca do desejo, deixamos sair do mapa o Sujeito suposto Saber13
para reconstituir o espaço onde o analisante reimprime, reedita, e transcreve os signos da
sua versão.
Para concluir, podemos avaliar os alcances da proposição de Lacan a partir das
fontes platônicas. No texto Protágoras, de Platão, o jovem Hipócrates avisa a Sócrates que
o sábio sofista Protágoras havia chegado à cidade. O jovem ateniense o admira e está
disposto a pagar muito dinheiro para escutar esse sábio que lhe pode dar acesso à virtude.
Mas Sócrates diz que, diferentemente de comprar alimentos ou outras coisas de mercado,
9
Cf. Lacan. Seminário XI. “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, 10/06/64.
Cf. Lacan. Seminário XV. “O ato psicanalítico”, 24/01/68.
11
Cf. Lacan. Seminário XVI. “De um outro ao Outro”, 30/04/69.
12
Cf. Seminário XIII. “O objeto da psicanálise”, 26/01/66.
13
Cf. Lacan. Seminário XIII. “O objeto da psicanálise”, 07/02/68.
10
comprando a fala de Protágoras, ele não poderia escolher o que escutaria, pois quando se
escuta um sofista, a entrega ao discurso do outro é uma condição necessária para sua
apropriação. Nesse sentido, Hipócrates poderia engolir um saber sem saber o que estava
comprando. E assim, todo o diálogo da virtude parece ter como finalidade mostrar a
Hipócrates que o SsS encarnado em Protágoras é uma plenitude de encantos da qual ele se
deve proteger, porque o próprio Protágoras não sabe o que está vendendo.
Se, como nos diz Lacan, podemos pensar em Sócrates como o primeiro analista de
nossa era porque coloca o desejo no lugar de objeto, também poderíamos pensar o mesmo
por ter colocado o saber num lugar execrável, intervindo com uma fala que se balançou
entre a citação e o enigma, repetindo, dialeticamente, aquilo que Protágoras tinha falado e
posteriormente negou, dizendo e contradizendo, Sócrates escolhe uma posição de reserva
na contenda retórica, para revelar com ironia a seu amigo Hipócrates que, naquilo que traz
do SsS, encarnado em Protágoras, deve-se inscrever um vazio. Como Lacan deixa em
evidência, tanto em Freud como em Sócrates, a transferência instala-se em função do
Sujeito suposto Saber e Platão, no diálogo Protágoras, deixa-nos um caminho para pensar
que o SsS se estabelece a partir das virtudes que ordenam o saber para evitar o abjeto do
objeto a.
1
Docente do DFP
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