ESCREVOANDO
JET-WRITING
“Meu Deus, meu Deus, que não acabem nunca
a areia e o mar,
o murmurar das águas,
os relâmpagos dos céus,
as orações dos homens”.
Hannah Szenes (1921-1944)
“My God, My God, I pray that these things never end
the sand and the sea,
the rustle of the waters,
lightning of the Heavens,
the prayer of Man.”
Hannah Szenes (1921-1944)
Alça a mala de mão até ao porta-bagagens da cabine, derradeiro esforço, e
senta-se. Olha em redor: a azáfama do costume, os últimos passageiros, o
diligente pessoal de bordo. O eventual leitor desta crónica pode verificar por
si. O voo está completo. Nenhuma hipótese de se poder deitar sobre a cadeira
do lado. A viagem vai ser longa. Quase dez mil quilómetros, em curva, sobre
continentes e oceanos, a trinta e três mil pés de altitude. Sonolenta vigília,
pois; estender de pernas, a cabeça recostada para trás, a memória do fumo.
A trilogia não será possível nas próximas horas: cigarro, livro, café. Só lhe
restará habitar a penumbra quando ela chegar, o grande aparelho já estabilizado nos céus, depois das nuvens, e o ronronar intermitente dos motores,
a esperança de que não haja muitas zonas de turbulência. Está farto dela, a
turbulência, todos os dias nos jornais, com os números sobre os mercados
financeiros e aquele gesticular frenético dos brokers cuja sinalética nunca
perceberá. Há um over nigth transcendental que é privilégio de alguns
insones, obcecados por cotações e futuros, bluechips e outras boas acções.
Não esta viagem.
É quando pega na revista. Não a do free shop que quase já não há, com seus
perfumes, relógios, uísques, canetas, tabaco internacional, mas a outra. Esta.
O eventual leitor desta crónica pode verificar por si. Fotógrafos, escrevinhadores, designers, todos se conjugaram para que possa passear os olhos pelas
páginas lustrosas e coloridas onde avultam features sobre ilhas paradisíacas,
cidades que urge conhecer, rostos e povos em suas danças de vestes e corpos,
uma espécie de precipitação no desconhecido e a reiteração de uma súbita
necessidade de viajar. Ou de chegar, a essa Canaã de leite e de mel.
Não obstante o leitor saber ao que vai, (negócios? turismo? reencontro com
as paisagens da infância? aventura?), dá-se o caso de o mesmo não suceder
a quem redige esta crónica e está aqui, sentado na página que o leitor acabou
de folhear e onde agora se detém, ambos a trinta e três mil pés de altitude.
Pode suspirar fundo. O jantar já foi. A penumbra chegou. O sono falta, não
obstante a posição cansar na cadeira estreita. É nestas alturas que se pensa
em muita coisa. Mas de roldão; à velocidade em que o avião rasga a noite.
Por exemplo: será que vale a pena acabar de ler esta crónica? Posso deter-me
para decidir? – cogita o leitor , indeciso em enveredar por uma espécie de
leitura nómada, isso, o jornal que trouxe mas de cujas parangonas já sabe
o sentido e é um pouco a realidade do sítio de que se está a afastar, a trinta
e três mil pés de altitude.
O Atlântico há muito que ficou para trás, dobrado o golfo da Guiné. Se
pudesse ver, o focinho da aeronave aponta para Leste e sobrevoa o interior
do grande continente africano. Lá em baixo, imersa no escuro, abaixo
das nuvens talvez espessas, respira a floresta tropical. Há gente e bichos
e água e rios e um bestiário metafórico e real de onde nascem todas as
cosmogonias.
O Índico espreita do outro lado. Haverá necessidade de lembrar Lemúria?
Lemúria é o contraponto da Atlântida, esse continente perdido que Platão é
o primeiro a indicar. Enquanto o Atlântico nasce de referências mitológicas
indo-europeias, o Índico deve o seu nome a circunstâncias geográficas, as do
sub-continente indiano. Quanto a Lemúria, a designação é perigosamente
He lifts his suitcase up to the cabin luggage compartment, in a last effort,
and sits down. He looks around: the usual bustle, the last passengers, the
hard-working flight attendants. The casual reader of this chronicle can check
for himself. The flight is full. No chance of lying over the next seat. It will be a
long journey. Almost ten thousand kilometres over continents and oceans, at
thirty-three thousand feet of altitude. And so, a drowsy vigil; legs stretched out,
head reclined backwards, the memory of smoking. During the next few hours,
a trilogy will not be possible: cigarette, book, coffee. All he will be able to do is
dwell in the penumbra when it settles, the big aircraft already cruising the sky,
after the clouds and the sporadic purr of the engines, the hope that zones of
turbulence will be few and far between. He’s fed up with it, that turbulence,
every day in the papers, with financial market figures and that frantic gesture
of brokers whose meaning he will never comprehend. There is a transcendental
overnight that is the privilege of some insomniacs, obsessed with shares and
futures, blue chips and other good stocks. Not this journey.
It is when he picks up the magazine. Not the duty free shop magazine, which is
almost gone, with its perfumes, watches, whiskies, pens, international tobacco.
It’s the other, this one. The casual reader of this chronicle can check for himself.
Photographers, writers, designers all came together to enable one to glance
at the glossy and coloured pages, on which features stand out about paradise
islands, cities that must be seen urgently, faces and peoples in their dances of
garments and bodies, a kind of precipitation in the unknown and a reiteration
of a sudden need to travel or to get there at that Canaan of milk and honey.
Although the reader knows why he is going (business? tourism? a return to
the landscapes from childhood? adventure?), it so happens that this is not the
case with the writer of this chronicle, who sits here on the page that the reader
has just turned and where he now lingers, both at thirty-three thousand feet
of altitude.
Time has come to take a deep breath. Dinner is over. Penumbra has settled.
No sleep, despite the wearying position in the narrow seat. In these moments
one thinks about many things. But helter-skelter, at the same speed the aircraft
tears the night. For example: is this chronicle worth reading to the end? Can I
take some time to decide? - ponders the reader, hesitating to set out on a kind
of nomadic reading, that newspaper he brought, but the meaning of whose
headlines he already knows and which is a piece of reality of the place from
which he is moving away, at thirty-three thousand feet of altitude.
The Atlantic was left behind a long time ago, beyond the Gulf of Guinea. If one
could see, the snout of the airplane is pointing east and overflying the interior
of the great African continent. Down there, immersed in darkness, most likely
under thick clouds, one tropical forest is breathing. There are people and creatures and water and rivers and a metaphorical and real bestiary from where all
cosmogonies are born.
The Indian Ocean is peeking from the other side. Should one be reminded
of Lemuria? Lemuria is the counterpoint of Atlantis, that lost continent first
denoted by Plato. While the Atlantic springs from Indo-European mythological
references, the Indian Ocean owes its name to geographical circumstances, such
as the Indian subcontinent. As for Lemuria, the name is dangerously obscure,
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por / by Luís Carlos Patraquim
obscura, derivada das teorias geológicas do catastrofismo, com relatos
acalentados pelo povo Tamil, do Sri Lanka, a antiga Ceilão ou camoniana
Taprobana. A famosa dama da teosofia, Blavatsky, encordoou-se numa
delirante narração de estágios da evolução do homem, com cinco raças
em estranha cadeia evolutiva.
Deixemo-la. Lemúria não é para esta noite em que o que apetece é ter
trazido o “Vol de Nuit” de Antoine de Saint-Éxupéry, genial autor de “O
Princepezinho”, o poeta do ar ou marinheiro dele, para citar um outro poeta,
moçambicano, Sebastião Alba.
Mas se há um nome misterioso que se adequa aos ademanes afro-orientais
do oceano das monções esse é Madagáscar. Ilha imensa, onde a estória da
evolução da terra e de todos os seus seres ainda mantém um elo com o início
do mundo. No intervalo, quando esta viagem começar a descer e aterrar,
algumas horas depois desta crónica, - e isso será ao amanhecer -, não se
esqueça o leitor de desenhar com os olhos da alma a costa onde o Canal de
Moçambique comprime o oceano das vastas navegações, tantas e de tão
variegadas especiarias, que, dir-se-ia as suas águas ressumarem ao odor dos
deuses brâmanes ou ritmarem as ondas ao som cavo dos tambores africanos.
No corredor do meio, na sinuosa orla marítima, de Maputo a Inhambane,
depois Sofala e Angoche e Muhípiti e Pemba e o arquipélago das Quirimbas
e o que de longilíneos nomes sobe, - de Quíloa a Mombaça e Mogadíscio
até Aden, já depois da terra continental africana -, Swahílis e outros tantos
povos, conferem ao mar o cadinho de culturas de que é feito.
Aproveite agora a pequena turbulência para mudar de leitura. Se não trouxe
Morgana para os feitiços do éter, acolha o que resta do dungongo, esse misterioso e pré-histórico mamífero herbívoro marinho, de onde talvez tenham
nascido as sereias e que Ulisses e Sindbad certamente conheceram.
O sol está a nascer e é a oriente. A terra está próxima. E a ave desce. O sonho
pode agora começar. Chama-se Índico, em Moçambique.
derived from geological theories of catastrophes with lullaby reports from the
Tamil people of Sri Lanka, the former Ceylon or the Taprobana, as Camões wrote.
Blavatsky, the famous lady of theosophy, got entangled in a delirious narration
of the stages of human evolution with five races in a strange evolution chain.
Let’s leave it there. Lemuria is not for this night in which one wishes to have
brought “Vol de Nuit” of Antoine de Saint-Éxupéry, the ingenious author of
“Little Prince”, the poet of the air or his mariner, to quote another poet, Sebastião
Alba, a Mozambican.
But if there is a mysterious name that suits the afro-oriental affectations of the
ocean of monsoons, then that name is Madagascar. A vast island on which
the history of the evolution of earth and all its living beings still maintains a
link with the beginning of the world. Meanwhile, when this journey begins its
descent and landing, some hours after this chronicle - and that will be at dawn
- the reader should not forget to picture with the eyes of the soul the coastline
where the Mozambique Channel compresses the ocean of great voyages, so
many spices and in such varieties that one would say that its waters exude the
scent of brahmanic gods or set the rhythm of the waves to the deep sound of
African drums. In the middle corridor, on the winding edge of the sea, from
Maputo to Inhambane, then Sofala and Angoche and Muhípiti and Pemba
and the archipelago of Quirimbas and that which comes on the top of the long
names - from Kilwa to Mombasa and Mogadishu up to Aden, already beyond
the land of the African continent - Swahilis and so many other peoples bestow
on the sea the melting pot of cultures of which it is made. Take advantage
now of the slight turbulence and read something else. If you have not brought
Morgan le Fay for ether spells, take what is left of the dugong, that mysterious,
pre-historic, herbivore marine mammal, which perhaps gave birth to sirens and
which Ulysses and Sinbad certainly knew.
The sun is rising from the East. The earth is near. And the bird is going down.
The dream can now begin. It is called the Indian Ocean, in Mozambique.
Índico
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