O currículo de História e a sala de aula da escola pública
Thelma C. F. de Oliveira
USP/Cnpq
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O sociólogo François Dubet criou um termo que considera não muito bonito, porém
adequado para diagnosticar as mudanças na sociedade contemporânea, que é o de
desinstitucionalização. Através deste conceito, Dubet (1998) analisa as instituições
modernas mais importantes – a família, a religião e a escola – e as transformações nos
paradigmas de sua constituição nos tempos atuais. Durante a modernidade, os papéis
sociais e institucionais eram bem definidos em torno de um senso de valores tidos como
universais e estáveis. No caso da escola, estes valores forjaram dois tipos de instituição:
aquela na qual seriam educadas as camadas altas para tornarem-se os cidadãos cultos e de
bom nível sócio-econômico, e aquela que formaria a mão-de-obra menos qualificada, cujo
trabalho possui menor prestígio social. Esse panorama foi alterado substancialmente a
partir da escolarização de massas, quando se passou a perseguir a conformação de uma
escola que torne a cultura homogênea, forme a personalidade e o caráter do aluno, assim
como o prepare para o mercado de trabalho.
Dessa forma, a seleção que antes se fazia previamente, pela possibilidade de cursar
um determinado tipo de escola, direcionando as camadas favorecidas para o mundo da
cultura e as camadas baixas para o mundo da mão-de-obra desprestigiada, hoje se faz ao
longo do percurso escolar. Na busca por melhores condições de competir no mercado de
trabalho, acabam por se destacar os alunos de camadas médias e altas, que estão mais
próximos da cultura escolar e, portanto, mais aptos a aproveitá-la na sua formação,
garantindo a capacidade de atingir uma melhor qualificação profissional. A escola – nos
seus conteúdos, métodos, disciplinas e rotinas – se encontra mais próxima desse aluno do
que daquele das camadas baixas, para quem os métodos educacionais e alguns conteúdos
disciplinares chegam, às vezes, a soar como uma violência1.
A escola pública não é mais, então, uma instituição, pois não consegue “administrar
as relações entre o interior e o exterior, entre o mundo escolar e o mundo juvenil”
(DUBET, 1998, p. 28). Os papéis – do aluno, do professor e da escola como instituição –
1
Para o ensino de história, Merchán Iglesias (2005) realiza uma avaliação com base em pesquisas feitas nas
escolas espanholas, na qual detecta a aprendizagem da história como um processo de aculturação na escola
de massas, pois resulta de uma transmissão do conteúdo da disciplina desconectado de sentido para os alunos,
pois em sua maior parte este não apresenta relação com os seus interesses e perspectivas, nem com o acervo
cultural que eles possuem.
1
não oferecem mais guarida, certezas, nem estabilidade. Os papéis hoje são múltiplos e não
há qualquer garantia fixa de uma melhor condição de vida que possa ser conquistada após
a conclusão do tempo escolar ou universitário.
Nesse sentido, para Dubet, a desinstitucionalização é um caminho progressivo
traçado em dois eixos: da escola elementar até a universidade e das camadas sociais altas
até as mais baixas. A escola elementar, tanto pública quanto privada, ainda dá conta de
certa formação básica na alfabetização e socialização de crianças, seguindo seu papel de
instituição. Porém, na medida em que se avança no conhecimento e na idade dos alunos,
mais difícil fica manter o sentido da educação e a motivação para se permanecer na escola
pública. O aluno de camada média e alta segue a sua formação enxergando mais chances
de se colocar profissionalmente através de um diploma universitário. Visão bastante
distanciada da realidade daqueles menos favorecidos que acabam, na sua maioria, por
encontrar o seu modelo de vida em outras atividades não ligadas à educação.
Nesse “contexto social que distribui desigualmente os recursos culturais e sociais”
(DUBET, 1998, p. 29), é notável que a escola pública se encontra dissociada do seu papel
institucional moderno, porém sem encontrar uma nova referência que a oriente. Há, então,
a percepção de uma crise. Contudo, uma crise é sempre estabelecida a partir de uma
situação que seria tida como a ideal. Para Veiga-Neto, essa percepção é sempre relacional,
pois “se notamos que a escola atravessa uma crise é porque há um descompasso entre
como ela está se apresentando (para nós) ou funcionando e como pensamos que ela deve
ser ou como ela foi até pouco tempo atrás” (In: COSTA, 2003, p. 110).
Para o autor, antes de aceitar esta constatação e sair à procura de soluções, é mais
interessante examinar a questão em todas as suas faces e determinar “o percurso histórico
daquilo que está acontecendo, buscando a gênese das situações”. Gênese, no sentido que
Michel Foucault lhe atribui quando trabalha com o conceito de genealogia, não se refere à
origem de algo, mas à trajetória histórica que permeia a sua construção, “isto é, uma forma
de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto,
etc” (FOUCAULT, 1989, p.7).
De certa forma, foi isso que busquei realizar na pesquisa de mestrado em torno do
ensino de História, centrando a análise no currículo dessa disciplina, procurando
compreender as relações que tornam tão complexo o microcosmo presente em uma sala de
aula. Para isso, realizei uma pesquisa de campo qualitativa, baseada na etnografia,
observando as aulas de uma professora de história de uma escola pública da cidade de São
2
Paulo, que permitiu que eu assistisse às suas aulas durante o ano de 2006. As observações
aconteceram em duas salas de aula, uma de 5ª e uma de 7ª séries, com conteúdos de
História Geral (Antiga e Moderna, respectivamente). As anotações das observações foram
feitas em um diário de campo e fotografei quatro cadernos de dois alunos de cada série
observada, assim como alguns de seus trabalhos e os planos de ensino da Professora.
Para a compreensão de como o material coletado na pesquisa de campo foi
analisado, voltemos ao tema da dissociação entre a concepção moderna da educação que
ainda prevalece nos discursos educacionais, com o seu sentido emancipatório e libertador,
e a já assinalada disparidade na sua capacidade de produzir uma significação de mundo
para o aluno na contemporaneidade. Estas questões se tornaram muito vivas ao longo das
observações de campo (e já estavam presentes durante a minha atuação como professora de
história) e foram os pontos que orientaram a proposta teórica do trabalho na direção de
uma perspectiva híbrida, que procurou preservar certo horizonte utópico das teorias críticas
do currículo, porém avançando em uma análise que buscou desnaturalizar os sentidos da
educação contemporânea através do pensamento radical realizado pelo pós-estruturalismo.
Essa opção não se distancia do que está posto no campo de pesquisa em Currículo
no Brasil (cf. MOREIRA, 2004), que se vale de análises realizadas por diferentes vertentes
do pensamento contemporâneo, procurando compreender uma realidade que é marcada
também por ser polissêmica e híbrida. Dessa forma, percebe-se que nos estudos recentes
realizados no campo do Currículo existe uma abertura bastante significativa a teorizações
de vertente crítica, “com base neo-marxista e/ou fenomenológica e interacionista”, que
podem associar-se “a princípios de teorias pós-críticas, vinculadas aos discursos pósmoderno, pós-estrutural e pós-colonial” (LOPES, 2005, p. 51), no que caracteriza o
chamado hibridismo teórico. Nessa perspectiva, há uma tendência a se preservar o
horizonte de mudança social das abordagens críticas, mas com uma ampliação trazida pelo
pensamento pós-crítico, que refina e dilata as fronteiras das possibilidades analíticas de
conceitos como poder, cultura, linguagem. Para Alice Casimiro Lopes, o importante ao
pensarmos em hibridismo teórico é compreender qual é a produtividade dessas
associações. Para a autora:
A análise política em uma perspectiva crítica permite a ancoragem nas idéias de
justiça, igualdade e liberdade individual. O pós-estruturalismo permite o
entendimento de textos e discursos que transitam na produção das instituições e da
cultura, bem como da análise de seus nexos com as relações de poder. Os métodos
etnográficos, por sua vez, permitem a investigação dos efeitos das políticas em
3
contextos locais, favorecendo situar os discursos em táticas e relações de poder
específicas. (LOPES, 2005, p. 56)
Esta definição expressa àquilo que, para muitos que transitam por essas questões
teóricas, é o fundamental. Sem dúvida, a análise pós-estruturalista depura e aprofunda
conceitos, mas ainda não estamos prontos – e tomara nunca estejamos – para abrir mão
completamente das utopias. As relações de poder são capilarizadas, ninguém está fora
delas. Os sentidos estão naturalizados, vivemos como se tudo estivesse desde sempre aí,
sem percebermos o quanto estamos envolvidos em construções históricas da modernidade
que nada tem de natural. Nesse sentido, a opção por uma perspectiva teórica híbrida é,
então, a busca por uma potência analítica que permita historicizar as questões postas no
ensino de História e na área de Currículo, possibilitando obter uma visão desnaturalizada
do tema, seguindo a perspectiva de Thomas Popkewitz (1997; 2002), mas ainda buscando
possibilidades de realizar construções afirmativas em relação à História e o seu ensino.
A partir desses referenciais teóricos, os objetivos da pesquisa giraram em torno de
perceber as relações estabelecidas na prática com o currículo de História para
compreender: como este funciona na sala de aula e através de quais mecanismos; que tipo
de conhecimento se produz através desse currículo e quais são as relações que ele instaura;
como ele funciona nos diferentes níveis em que se estabelece; que silêncios e que discursos
são produzidos através dele (OLIVEIRA, 2008). Para que a análise do material que
resultou da observação abarcasse as questões acima, trabalhei com os dados obtidos na
dissertação realizando o mapeamento das diferentes camadas e trajetórias pelas quais
trafega o currículo de História partindo de sua ponta final, o caderno utilizado pelos alunos,
passando pelo livro didático, pelos discursos da sala de aula e chegando até o âmbito
institucional e acadêmico no qual as propostas curriculares são elaboradas e o
conhecimento de referência é produzido.
Para este texto, optei por fazer um recorte e desenvolver o tema do funcionamento
do currículo de História na sala de aula através dos cadernos escolares fotografados,
evitando apresentar um resumo do conjunto dos capítulos que resultasse muito superficial.
O currículo de História no caderno escolar
Por menos que nos demos conta, os cadernos escolares que hoje são utilizados com
tanta naturalidade possuem uma historicidade que determina o sentido e a materialidade
das práticas nele realizadas, práticas essas que se constroem e se modificam em diferentes
tempos e circunstâncias. Das tabuletas de argila mesopotâmicas até a difusão do papel na
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modernidade, a maneira de trabalhar com a escrita e os seus suportes vem se modificando
ao longo do tempo. Da mesma forma, o uso do papel no formato de caderno empregado a
partir da época moderna, possui também uma história que está diretamente vinculada aos
processos de escolarização. Assim, já que aprender a tomar notas, a redigir textos e a
organizar as idéias para dispô-las nesse espaço concreto vem sendo uma atividade
normalizada pela escola, no caderno é que podemos distinguir alguns aspectos do dia-a-dia
escolar e da configuração que o currículo toma nesse cotidiano.
Portanto, o caderno tem uma história que apresenta os entrelaçamentos das
atividades desenvolvidas nos processos de escolarização e da construção das normas que
passaram a regular essas atividades e os conteúdos nelas trabalhados. Seguindo esse
raciocínio, uma abordagem interessante é aquela que possibilita pensar que o caderno não
apenas sofre os efeitos da escolarização, mas igualmente produz efeitos nesse processo.
Entre eles, é possível perceber as relações de poder que são estabelecidas através do
controle da realização das atividades de aula pelo professor e da produção do autocontrole
do aluno através do aprendizado das normas para lidar com esse material. Também é
possível traçar uma analogia entre a normalização do caderno e o conteúdo que se expressa
nele, portanto, do que está sendo produzido em sala de aula a partir do currículo de
História, tema do nosso estudo. Para desenvolver melhor as idéias acima, utilizei as autoras
Silvina Gvirtz e Anne-Marie Chartier, que localizam o caderno como um dispositivo2
escolar, conforme o conceito de Foucault.
Para Gvirtz, o conceito de dispositivo permite que se considere o caderno não como
uma idéia ou representação dos conteúdos e programas seguidos pela escola, mas “como
um conjunto de práticas discursivas escolares que se articulam de um determinado modo
produzindo um efeito” (GVIRTZ, 1999, p.14). Entre os seus efeitos, Gvirtz entende que o
caderno produz o saber de como ocupar o seu espaço, como lidar com as tarefas na
sucessão de folhas, com as margens, com o lugar das datas, dos títulos, das lições, dos
textos – produção que, como vimos, vem se construindo ao longo da história da
escolarização. Nesse sentido, se pode observar como estas idéias se traduzem no corpo dos
2
A acepção mais citada desse conceito pelos autores que o empregam é aquela estabelecida por Foucault em
uma entrevista transcrita no livro Microfísica do Poder, em que ele aborda as questões levantadas pelo
primeiro volume da obra História da Sexualidade. Nessa entrevista esse autor o define como “um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se
pode estabelecer entre estes elementos” (FOUCAULT, 1989, p.244).
5
cadernos analisados neste trabalho, onde a normalização é perceptível e indicativa do
controle exercido sobre as atividades dos alunos.
Já Chartier aponta ainda que outra característica do dispositivo é a sua não autoria.
Esse conceito é tirado das experiências comuns e cotidianas, pois está onde menos se
percebe e só passa a ser um dispositivo quando sua existência está naturalizada: não se
pensa sobre ele a não ser “quando ele é atualizado, reformado ou ‘desmobilizado’”, e essas
mudanças “provocam acontecimento, discursos, resistências, o imprevisto, conflitos”.
(CHARTIER, 2002, p.13). O dispositivo, então, tem de ser assimilado e praticado a ponto
de tornar-se uma realidade tida como atemporal e ahistórica, perene no tempo e no espaço.
E daí vem o seu poder: unir, de forma tida como natural, diferentes realidades, de
diferentes tempos e lugares, como se houvessem estado sempre ali. A sua força vem da sua
transparência. Não os enxergamos com clareza como dispositivos de controle, mas os
sentimos como películas invisíveis que dão forma e sentido às diferentes coisas do mundo.
Este é o caso do caderno escolar, cujas práticas de seu manuseio são assimiladas a
ponto de se tornarem invisíveis, pois tanto professores como alunos operam com as regras
da sua normalização e com as formas de fiscalização desses procedimentos de forma
absolutamente natural. Essas práticas, entre outras, geram efeitos no que é produzido na
disciplina de História e na forma como o currículo é resignificado nessa que é a sua ponta
final, a sala de aula.
Além do seu aspecto normalizador, no caderno circula uma rede onde se cruzam as
diferentes normas estabelecidas pelos currículos das diversas disciplinas, desde o currículo
institucional – os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – ao currículo presente nas
aulas planejadas pelos professores, ou ao que está presente nos conteúdos selecionados
pelos livros didáticos. Do mesmo modo, no caso da disciplina que aqui nos interessa,
podemos perceber a intersecção das diferentes concepções teóricas da História presentes na
academia, nos currículos oficiais, na concepção da Professora, e que acabam por
conformar a visão dos alunos em relação a essa matéria escolar. Dessa forma, tomei os
cadernos analisados como dispositivos curriculares por expressarem os cruzamentos de
diferentes proposições de currículos de História que perpassam muitas camadas até chegar
a eles. E é a partir desses pressupostos que analisei os quatro cadernos de História
fotografados (dois da 5ª e dois da 7ª séries).
Portanto, iniciei a análise por um dos efeitos da utilização do caderno, que é a
conformação da escrita na folha. Nesse aspecto, é perceptível a diferença no processo de
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absorção das normas da disposição das datas, dos textos e dos exercícios entre a 5ª e a 7ª
série. Nos cadernos analisados da 5ª série, existe uma mudança na sua organização quando
o professor rubrica as páginas e quando interrompe esse processo. A desordem na
seqüência do conteúdo e na disposição deste na folha torna-se perceptível quando não há
rubrica: os alunos copiam parte de textos que ficam incompletos, em outros momentos o
mesmo texto é copiado duas vezes e, ainda, alguns questionários ficam sem respostas.
Aparentemente, isso não representa uma dificuldade para o aluno, pois o resto do caderno
segue organizado (onde há rubrica), inclusive ganhando um excelente do professor.
Isso nos leva a pensar que esses alunos de 5ª série ainda estão pouco ambientados
com a utilização desse espaço gráfico nas matérias específicas do Ensino Fundamental II.
E a sua organização exige um esforço que só vale a pena se o professor for exercer a sua
prerrogativa de fiscalização. Essa análise encontra um respaldo maior ao se comparar os
cadernos da 5ª com os da 7ª série, onde as normas de como lidar com esse dispositivo
parecem já estar bem assimiladas, pois o aluno está mais independente no seu uso e,
conseqüentemente, a seqüência das atividades apresenta maior regularidade. Fica,
inclusive, mais fácil comparar os dois cadernos de 7ª série, cujas datas das atividades
realizadas e/ou a sua ordem coincidem entre si, ficando pouca coisa destoante entre eles. Já
na 5ª série, são poucos os momentos em que se consegue comparar as atividades nos dois
cadernos, o que passa a impressão de falta de organização dos alunos.
Também se pode pensar em outro sentido da rubrica, muito presente nos dias
atuais, que é o do acompanhamento do trabalho do professor. Não podemos esquecer que
hoje a autonomia do professor se encontra bastante restrita pela burocratização do ensino.
São planejamentos a cumprir, tarefas a solicitar, provas e trabalhos a avaliar e, dessa
forma, o processo de fiscalização que antes se dava somente sobre o aluno, amplia-se
atualmente também sobre o professor. Diretores, coordenadores pedagógicos e pais de
alunos possuem no caderno um importante balizador do que se passa, pelo menos na sua
parte visível, na sala de aula.
Já outras questões, como a aprendizagem dos conteúdos registrados, não são
significativas para a atividade de rubricar, pelo menos na atualidade. O professor, por uma
questão de tempo e número de alunos, apenas verifica se as atividades foram realizadas e
se o caderno está em ordem, de uma maneira geral. A verificação do aprendizado parece se
restringir apenas aos momentos de avaliação escrita, na forma das interpretações de texto
devolvidas para a Professora ou nas provas bimestrais, no caso observado.
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Assim, a rubrica marca – como um dispositivo de controle – que o processo foi
realizado, mas sem se preocupar com os seus fins. E parece-nos, portanto, que a rubrica
normaliza as atividades dos alunos, acostumando-os ao processo de vigilância por um
mecanismo rápido de homogeneização da forma como se deve compor o espaço do
caderno. E mesmo o professor não escapa dessa norma, assim como quem observa as
diferentes atividades de uma sala de aula, todos nós acostumados com essa forma
aparentemente tão banal de controle exercida nas atividades escritas dos alunos, inclusive
por termos passado pelo mesmo processo na escola.
Somando-se esse fato às observações das aulas, parece haver uma desconexão entre
aquilo que a Professora trabalha em sala e aquilo que realmente fica como registro que será
manuseado em algum outro momento, como em uma revisão no período de provas, por
exemplo. O que reforça o argumento da análise sobre o significado da produção e
utilização desse material: o que se torna mais importante é que as regras sejam observadas,
pelo menos quando há a vigilância materializada na rubrica, e que ocorra o autocontrole
por parte do aluno ao incorporá-las. O poder que se estabelece no controle e realização das
atividades de aula e a aprendizagem das normas para lidar com esse dispositivo escolar
acabam por gerar a uniformidade tão desejada, naquilo que denominei efeitos gráficos do
uso do caderno escolar.
Na análise de outro efeito produzido pela utilização do caderno na disciplina, que
denominei de efeito de conteúdo, temos um dado interessante que são as indicações dadas
pela Professora, no quadro de giz, a respeito do número de linhas que devem ser deixadas
para as respostas dos questionários, no caso da 5ª série. Nos seus cadernos, os alunos não
copiam e não seguem a indicação dada pela Professora ao final de cada pergunta. No
entanto, embora o número de linhas que utilizaram para as respostas não tenha variado
muito daquilo que a Professora determinou no quadro, existem alguns pontos interessantes.
Para perguntas simples, como “O que é o papiro?”, é indicado o mesmo número de
linhas que aquele para responder questões mais complexas, como a que fornece uma
explicação importante sobre a composição social e política dos egípcios, que é “Defina o
que é uma monarquia teocrática” (5 linhas). E para a pergunta ainda mais complexa sobre a
caracterização da monarquia egípcia como despotismo oriental são indicadas menos linhas
ainda (4 linhas). Se as linhas são definidoras da quantidade de termos utilizados para
explicar a complexidade de um assunto, seria de se esperar que a Professora indicasse uma
quantidade maior para assuntos mais complexos. Mas não é isso o que ocorre com o tema
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da vinculação entre política e religião no Egito Antigo. Então vemos aí um efeito sobre o
conteúdo trabalhado, pois já há uma predefinição do que os alunos devem responder, a
qual eles parecem estar acostumados, mas nem sempre atendem integralmente, pois
acabam por utilizar os seus próprios parâmetros. Além disso, é perceptível que o número
de linhas para a resposta fornecida pela Professora é feita de forma bastante aleatória, se
pensada em termos da significação das informações.
Ainda em outras partes dos cadernos observei as possibilidades dos alunos de
realizarem um trabalho mais aprofundado com o conteúdo. Em um dos cadernos da 7ª série
há um trabalho no qual é solicitada a escolha de três temas estudados na disciplina como os
mais importantes vistos no ano. O aluno deve definir esses temas e justificar
historicamente por que os escolheu. Justificar uma escolha de conteúdo explicando a sua
importância histórica é uma habilidade bastante sofisticada de raciocínio, pois envolve
capacidade de inferir as conseqüências de determinado acontecimento pelo seu significado
em determinado contexto histórico. E, embora em uma resposta haja repetições de fatos já
citados na pergunta (o que chamamos coloquialmente de “enrolação”), algumas
informações são acrescentadas e formam o sentido daquilo que foi solicitado. Em outras
respostas a aluna não apenas analisa o fato escolhido, como também define a sua
importância em um sentido mais amplo.
Em termos de seleção de conteúdo, embora o trabalho seja em cima do
conhecimento formal presente na maioria dos currículos, a atividade solicitada foge ao
padrão de repetição de informações da maioria das atividades desenvolvidas até então. E é
interessante notar que isso acontece em novembro, sugerindo que tenha sido uma atividade
pensada como um resultado do que foi trabalhado ao longo do ano. E a aluna não se saiu
mal, demonstrando que algo acontece além do caos que não poucas vezes associamos à
escola pública brasileira.
Nesse mesmo sentido, é possível analisar os apontamentos feitos no final do outro
caderno da 7ª série. É um resumo da matéria, realizado sem a menor preocupação com as
normas aprendidas (espaço para datas, títulos, etc). O que traz um caráter muito especial a
essas folhas, que foram fotografadas com a expressa autorização da sua proprietária, mas
que, nesse momento, é quase como se a expiássemos no seu processo de estudo através de
uma porta entreaberta. O tema é a Revolução Industrial inglesa. A diagramação da página é
pessoal (com partes escritas a lápis, outras a caneta e com divisões feitas à mão livre no
9
meio da página), mas indicativa do raciocínio que ela desenvolve ao longo do conteúdo
trabalhado.
O conteúdo aparece na sua forma tradicional, mas uma coisa foi corrigida. O
Tratado de Methuen, que várias vezes foi escrito nas cópias do caderno como Tratado dos
Panos ficou com uma denominação que esquece que também haviam os vinhos exportados
por Portugal, o que gerava o déficit na balança comercial portuguesa pelo baixo valor
arrecadado com sua venda comparado à compra dos tecidos manufaturados ingleses. Esse
lapso se repete em exercícios propostos sobre as razões do pioneirismo inglês na
Revolução Industrial e na revisão da matéria do caderno e, embora o vinho tenha sido
acrescentado pela aluna no título do tratado (Tratado dos Panos e Vinhos), na sua revisão
pessoal a análise deste tratado não foi aprofundada.
Isso talvez se deva ao fato de que uma explicação mais detalhada sobre o tema
esteja em um capítulo anterior no livro didático, que trata sobre a mineração no Brasil. Mas
a parte do livro que estava sendo trabalhada em aula é o capítulo “A Revolução Industrial”.
E nessa parte a definição do tratado é exatamente a que a aluna copiou no caderno: “De
acordo com esse tratado, os ingleses forneciam tecidos a Portugal, que pagava com o ouro
extraído de Minas Gerais. Todo o lucro obtido com essas exportações foi investido na
indústria.” (VAZ; PANAZZO, 2002, 7ª série, p. 177). Nesse caso, a falta se deve mais a
necessidade de uma explicação ou retomada do assunto pelo professor. E podemos
perceber aí um aligeiramento na maneira de abordar os conteúdos, pois o tema é
importante para a compreensão da dependência econômica de Portugal em relação à
Inglaterra. Da forma como ficou, nada garante que ela conseguiu entender o significado
dessa relação. Apenas se pode inferir, pela estrutura geral do resumo, que ela compreendeu
o texto que copiou – a maior parte do livro didático – até pela seleção das partes
importantes para a composição de um esquema explicativo da matéria.
Outro exemplo que identifica a compreensão do texto por parte da aluna aparece no
mesmo resumo quando ela aborda o tema da origem da mão-de-obra inglesa e da definição
de proletariado e burguesia, assim como o das difíceis condições de trabalho e as
conseqüentes reações dos proletários a essa situação. Há uma boa síntese da matéria,
levantando as principais questões sobre o assunto. Do mesmo modo, o entendimento do
sentido geral do conteúdo pode ser inferido pelo acréscimo de informações que ela fez,
colocando-as no contexto correto. Essas informações podem ter sido obtidas nas
explicações da Professora ou nos próprios textos copiados no caderno. Contudo, nas duas
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situações, não temos como saber se essa compreensão acontece pelo sentido do texto e da
sua lógica intrínseca, ou se chega a atingir o conteúdo histórico nas suas relações e
complexidade.
Sobre a questão do aligeiramento dos conteúdos, visível nas situações apontadas
acima, lançamos mão da análise realizada por Julio Groppa Aquino para pensar mais
amplamente sobre esse tema. Em uma discussão dura, mas consistente, Aquino avalia as
condições do ensino no Brasil demonstrando as tensões que atravessam o meio escolar.
Entre elas, as diferenças entre o ensino público, “de qualidade indigente”, e o “privado de
qualidade farsesca”, mas em ambos os casos um ensino deficiente. Para Aquino, e é o que
interessa para esse trabalho, o ensino público é um “trabalho escolar convertido em
assistencialismo para pobres, por meio de uma oferta pedagógica aligeirada, fracionada e
diluída” (AQUINO, 2007, p.22). Embora eu tenha tido a oportunidade de evidenciar que
existem trabalhos importantes e diferenciados sendo oferecidos por professores da escola
pública, o que está sendo analisado aqui ainda representa a situação geral das aulas de
História3. Esse fato fica bastante evidente nesse caso, ao percebermos que os conteúdos de
História são trabalhados de forma a cumprir etapas mais ligadas à burocracia, como seguir
o livro e realizar as avaliações, que a questões pedagógicas. Afinal o Tratado de Methuen
foi dado em aula, e isso é o que está programado no currículo oficial e é o que fica
registrado em planos de ensino e no caderno de chamada.
Contudo, não estou falando aqui de desinteresse por parte da Professora, mas sim
da estrutura geral na qual o trabalho em sala de aula se insere e se realiza (a situação geral
do ensino público brasileiro, amplamente analisada por vários autores), que conformam as
características de aligeiramento e superficialidade no tratamento do conteúdo – e já
adquiriram um caráter de normalidade em todos os discursos que ouvimos na escola.
A diluição e o fracionamento citados por Aquino, no caso dos conteúdos da
História que observei nas aulas e nas atividades do caderno, não permitem que se
desenvolvam as relações que tornam a disciplina significativa para a compreensão do
presente. Perceber as relações entre diferentes aspectos de um acontecimento histórico é
3
Em um curso que ministrei para professores da rede municipal de São Paulo, tomei contato com projetos
interessantes desenvolvidos pelos professores de História da rede. Já no acompanhamento de relatórios
desenvolvidos pelos alunos da disciplina de Metodologia do Ensino de História da Faculdade de Educação da
USP, dentro do projeto PAE (Programa de Aperfeiçoamento do Ensino) do qual participei, aparece uma
realidade mais diversificada, com uma minoria de professores interessados e preparando boas aulas, dentro
de um universo bem maior de professores desestimulados e realizando o estritamente necessário na sua
atividade profissional.
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um dos fatores que possibilita compreendê-lo de forma mais ampla. Seria através desse
tipo de abordagem que o aluno poderia desenvolver a capacidade de observar o entorno
com maior amplitude na avaliação dos acontecimentos e, conseqüentemente, desenvolver a
visão crítica do presente, tão propagada nos diferentes discursos sobre o conhecimento
histórico escolar. Porém, da forma como foi abordado, há um empobrecimento do
conteúdo que certamente o relegará ao pronto esquecimento terminado o momento da
necessidade da sua memorização.
A partir das duas atividades analisadas, o trabalho de selecionar os três temas mais
importantes do ano e o resumo do conteúdo no final do caderno, há espaço para se inferir
sobre a possibilidade de realização de um trabalho mais aprofundado com os alunos em
cima do conteúdo estabelecido no currículo de História. Independentemente do que está
sendo prescrito pelo currículo oficial, ou pela seqüência do livro didático ou pelo plano
estabelecido pelo professor, é perceptível que, em relação aos alunos, existe um potencial
para ser explorado em uma situação de aprendizagem que fosse mais favorável em todo o
contexto da escolarização.
Porém, a formação do aluno crítico, tão propagada em diversas instâncias, torna-se
uma quimera maior ainda na medida do esvaziamento do potencial explicativo dos
conteúdos da disciplina, assunto que foi recorrente ao longo da pesquisa, na proporção em
que são recorrentes os apelos à possibilidade crítica da História em todas as instâncias
analisadas (PCN, texto para o professor no Apoio Pedagógico do livro didático, discurso
da Professora reproduzido no caderno).
Avançando na direção da percepção que a Professora tem da disciplina e que
aparece na análise do conteúdo nos cadernos, percebe-se uma preocupação nos textos
passados por ela para a 5ª série (nas aulas iniciais em que são trabalhadas questões de
cunho teórico) com a história dos excluídos e em desenvolver a noção de uma História
crítica que se concentra na visão dos vencidos. Essa concepção foi bastante utilizada na
década de 80, no momento pós-ditadura no Brasil, quando se passou a discutir os motivos
pelos quais apenas os personagens ligados ao poder eram tratados pela História, e a quais
interesses esse tipo de abordagem servia. Era um questionamento à História política, dos
heróis nacionais e dos grandes feitos, como as guerras.
Esses debates advinham de uma renovação historiográfica que buscava incorporar
algumas idéias e abordagens teóricas de autores estrangeiros e discutir a produção nacional
aproveitando o momento, propiciado pela abertura política no Brasil, de troca de idéias e
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informações. E foi, igualmente, um momento de reaproximação entre a academia e os
professores das escolas em torno da luta pelo retorno da autonomia das disciplinas de
História e Geografia, unidas como Estudos Sociais durante o período da ditadura militar, e
em torno das reformulações curriculares que estavam sendo propostas em todo o país4.
Contudo, as discussões do período pós-ditadura também representavam certa autocrítica,
pelo tipo de saber histórico que foi veiculado pelos professores durante a ditadura,
obrigatoriamente ou não. Em todos os sentidos, podemos afirmar que foram momentos de
participação intensa por parte dos professores no processo de redemocratização. Daí
provavelmente advém a permanência dessas concepções hoje tão esvaziadas do seu
significado original.
Outro aspecto presente nesses debates, e que permanecem visíveis nos textos
passados pela Professora, é o da renovação do discurso legitimador da História como
disciplina constante dos currículos escolares, que buscava afastar-se de uma visão de
conhecimento enciclopédico e memorialista, e marcar a sua significação e validade para
constar no currículo regular das escolas. A partir de então, com o retorno da História como
uma matéria independente, o discurso da necessidade de superar o ensino dito tradicional e
alcançar um ensino que possibilite formar cidadãos críticos e conscientes, tem sido uma
constante tanto entre professores quanto entre os acadêmicos que pesquisam o Ensino da
História.
E podemos perceber que essas dimensões persistem sem retoques na visão da
História transmitida pela Professora através dos escritos dos cadernos. Provavelmente pelo
fato da sua formação ter ocorrido na época em que essas discussões estavam mais em voga.
E, como comentado acima, pela necessidade contínua por parte de acadêmicos e
professores, de renovar o discurso legitimador sobre a presença da História nos currículos
escolares, tema abordado por Ivor Goodson (1995) e retomado por F. Javier Merchán
Iglesias (2002) e por Rafael Valls (2006).
Contudo, para Merchán Iglesias o discurso não corresponde necessariamente a uma
prática dentro da sala de aula, como se vê a seguir:
4
Discussões sobre esse momento do ensino de História no Brasil e as propostas curriculares daí advindas
podem ser encontradas, entre outros autores, em: ABUD, Kátia Maria. Conhecimento histórico e Ensino de
História: a produção do conhecimento histórico escolar. In: XIV Encontro Regional de História - Sujeitos na
História: práticas e representações. Bauru, SP: EDUSC, 2001. v 2. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes.
Capitalismo e cidadania em propostas curriculares de História. In: Anais do II Encontro Perspectivas do
Ensino de História. São Paulo: 12 a 15 de fevereiro de 1996.
13
el análisis de las declaraciones de profesores y profesoras sobre la importancia,
objetivos y valor formativo de la historia nos permite reseñar los elementos más
significativos de este nuevo discurso y destacar, al mismo tiempo, su carácter
retórico, desvelando la existência de una historia imaginaria que alimenta el ethos
profesional y la literatura oficial sobre la enseñanza de la asignatura, un imaginário
que contrasta fuertemente com la realidad a la que diariamente se enfrentan los
mismos docentes en el interior de las aulas (MERCHÁN IGLESIAS., 2002, p.46).
Esse contraste do discurso com a realidade cotidiana das aulas fica nítido ao se
percorrer o conjunto dos cadernos, onde não se encontra nos conteúdos trabalhados
qualquer abordagem que parta do referencial citado. Claro que a História não é apresentada
como a vida dos heróis e a narração dos grandes feitos, mas segue-se privilegiando os
conteúdos com importância política, econômica e social geral, nos quais pouco ou nada se
fala a partir da visão dos vencidos. Quando se aponta as dificuldades do proletariado e sua
exploração por parte do capital, por exemplo, é uma referência a partir da crítica histórica
formal.
Outro aspecto característico do discurso da validação da disciplina é o que procura
superar a percepção de que a História é o estudo do passado. A homilia é que ela estuda o
passado, mas tem uma utilidade atual, pois serve à compreensão do presente e essa
compreensão auxiliará na modificação do futuro, como vemos nas definições citadas nos
cadernos:
Caderno da 7ª série:
“História é a ciência que estuda os fatos do passado (causas) e suas aplicações no futuro
(conseqüências)”.
Caderno da 5ª série:
“A importância da História [título]
Porque estudar História?
R: Estudando o passado podemos entender melhor o nosso presente e podemos modificar o
nosso futuro.
O que é a História?
R: A história é a ciência que estuda os fatos do passado (causa) e suas implicações no
futuro (conseqüências)”.
Essa é uma concepção bastante difundida em sala de aula e nos livros didáticos. E
demonstra a contradição vivida pelos professores entre as discussões teóricas, as inovações
didáticas e a realidade do seu trabalho. E novamente fica clara a proposição de Merchán
Iglesias sobre a distância entre o imaginário dos professores e a realidade das suas
14
experiências cotidianas, pois nos cadernos os conteúdos não apresentam conexão com os
fatos que nos cercam na atualidade. Seguindo uma linha de análise semelhante à
desenvolvida por Merchán Iglesias, Rafael Valls considera que, além de compreender o
presente, entre os objetivos do ensino dessa disciplina levantados pelos professores, está
“el desarrollo del razonamiento lógico de los alumnos y también la de suministrarles un
saber humanístico válido para la formación de las personas em valores tales como la
tolerancia y la capacidad crítica” (VALLS, 2006, p.257). Seguindo a hipótese levantada
nos cadernos – de que, tratada dessa forma (como estudo do passado para compreender o
presente e modificar o futuro) a História, implicitamente, despertaria o espírito crítico dos
alunos – se deduz que uma das tarefas primordiais da disciplina no currículo escolar não se
concretiza, pois ali não ficou registrado qualquer trabalho que levasse a consolidar a
proposição citada.
Outra questão que é possível levantar é que o discurso de conhecimento do passado
já enfrentou questionamentos nos meios acadêmicos e escolares, chegando-se inclusive a
um uso da História do tempo presente como uma “negação do tempo seqüencial e a
valorização do cotidiano e da participação” dos alunos (ABUD, 2001, p. 134)5. Entretanto,
por mais que tenha havido uma pretensão nas discussões teóricas acadêmicas e entre os
próprios professores para renovar essa visão de “ciência do passado”, nesse caso essa
percepção ainda permanece visível no seu produto final, o registro escrito das atividades.
Nas aulas expositivas a Professora procura fazer algumas conexões com o presente, e são
momentos que despertam a atenção dos alunos e nos quais eles próprios fazem
comentários a respeito do assunto tratado, mas elas não se materializam nas suas
anotações, como já foi observado.
A permanência dos discursos que procuram validar a disciplina encontra ainda
outro aspecto a ser pontuado, que é a procedência dos valores formativos relacionados a
ela, e a apreciação da historicidade desse aspecto talvez auxilie a compreensão a respeito
desse tema. Raimundo Cuesta Fernández, ao estudar as origens do código disciplinar da
História, fornece indicações das raízes dessas concepções, indicando que “recuperar su
gênesis como disciplina escolar equivale a una labor de ‘redescubrimiento’ de los niveles
5
Outra análise a respeito da utilização e da validade dessa abordagem também se encontra em
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez,
2005.
15
más lejanos a nuestra propia conciencia del presente” (CUESTA FERNÁNDEZ, 1997, p.
26).
Nesse sentido, volta até a concepção clássica greco-romana da História, tida como
narrativa da sucessão dos fatos importantes e dos feitos das pessoas ilustres do passado,
feita com elegância e rigor, aproximando-a da oratória e ocupando um lugar junto à
literatura. Na verdade, a História era vista como um gênero literário que permitia
aprendizagens de estilo e recitação, assim como desenvolvia a capacidade de memorização
e o cultivo de qualidades morais. Essas características não se perdem com o tempo, mas
são acrescidas, no medievo, de uma perspectiva universalista cristã e de uma percepção
teleológica da evolução humana, assim como de uma organização cronológica baseada nos
períodos antes e depois do nascimento de Cristo.
Dependente de outras disciplinas como a Teologia e a Retórica, baseada na
memória (faculdade mental secundária) e, pelo seu caráter de resgatar exemplos morais do
passado, sendo a “mestra da vida”, a História seguiu por um longo período como um saber
secundário. Mesmo entre os jesuítas e a sua organização da rotina do ensino como
conhecemos ainda hoje, não se pode situá-la como uma matéria formal, pois seu
conhecimento se fazia através do estudo dos autores clássicos em um espaço mais próximo
à literatura. Portanto, é somente na segunda metade do século XIX que é possível falar da
História como disciplina escolar, de forma mais generalizada e não apenas como educação
dos nobres.
Temos a partir de então, a História como uma construção da revolução burguesa
que a incorporou ao sistema de educação estatal, onde irá servir como uma das bases para
se edificar a idéia de nação. Mas a estrutura “memoria-erudición-literatura, trilogia
asociativa que inexorable e indefectiblemente comparece cuando buscamos la genealogia
de la Historia escolar” permanece bastante audível nos diversos discursos presentes no
caderno escolar (CUESTA FERNÁNDEZ, 1997, p. 72). Esses ecos são ouvidos na
permanência dos discursos sobre os valores da História e a conseqüente necessidade da sua
presença nos currículos escolares, assim como na prática das atividades registradas onde se
continua a trabalhar com a disciplina basicamente no nível da erudição e da memória.
Essas observações trazem uma série de questões relevantes ao voltarmos à nossa
pergunta inicial: o que os cadernos nos revelam sobre o que se produz em sala de aula a
partir do currículo de História? Essa é uma análise que só concluí efetivamente ao fim do
trabalho, após seguir o fio condutor que iniciou nos cadernos escolares e seguiu o currículo
16
até a sua formulação institucional nos PCN. Mas em alguns aspectos há a possibilidade se
fazer uma análise inicial.
Em termos das normas de uso do caderno, voltamos a Silvina Gvirtz que nos traz a
idéia de que essas normas são produtos culturais e, como tal, só podem ser construídas no
aprendizado dentro da escola (GIVIRTZ, 1999). E retomando a idéia de que estas
produzem efeitos, observamos os efeitos gráficos, que determinam para o aluno a forma
como os conteúdos devem aparecer no caderno e cujo controle se materializa no uso da
rubrica pelo professor. O que acaba produzindo uma grande diferenciação nos cadernos
dos alunos menores, entre as partes que são rubricadas pelo professor e as que não o são.
Além disso, os efeitos produzidos pelas normas de uso dos cadernos, como o lugar
dos títulos, a organização das perguntas, ou o número de linhas predeterminado para as
respostas, acabam por influir na formação do texto e na escolha dos conteúdos que devem
ser relevantes para a resposta das atividades. Assim, “el cuaderno que parece operar como
contexto, termina por contribuir a la formación del texto” (GVIRTZ, 1999, p.16), criando
efeitos de conteúdo. Porém, nesse texto-efeito produzido nos cadernos observados não são
incluídas operações que levem o aluno a elaborar um pensamento próprio, estabelecendo
relações ou tirando conclusões a respeito de um assunto da disciplina. Esse fator acaba por
determinar um automatismo onde a habilidade que mais se desenvolve é a de localizar
rapidamente as informações solicitadas e reproduzi-las no espaço determinado para isso.
Temos, então, como apontado na proposição de Gvirtz, o caderno como parte da
“administración de los saberes curriculares”, com o sentido de criar uma padronização que
elimine as ambigüidades, torne homogêneo e estabilize “aún más su universo discursivo”
(GVIRTZ, 1999, p. 136).
Os momentos em que o caderno é trabalhado com autonomia por parte dos alunos
são raros, mas interessantes por indicarem a possibilidade de se realizar um trabalho mais
aprofundado com o conteúdo. Porém, uma interpretação pessoal da História feita pelos
alunos fica mais aparente quando assistimos às aulas, nas suas falas, como foi apontado.
Outra questão sobre a qual podemos pensar, é que a estrutura do caderno se
adequou perfeitamente ao conteúdo de História, pela sua própria configuração espacial. Ao
contrário de um fichário, ou das anotações em folhas costuradas no período moderno, no
caderno atual as folhas são fixas e a sua escrituração se desenrola ao longo do tempo
escolar. Gvirtz coloca que “en el cuaderno se puede llegar a marcar y delimitar de esta
forma también una unidade temporal. Esta última se caracteriza porque señala los tiempos
17
sucesivos de trabajo” (GVIRTZ, 1999, p.31). E esse tempo também corresponde à
sucessão do tempo característico da disciplina de História. E, para Gvirtz, esse dado limita
a geração de produtos diferentes, como se faz no computador ou em um fichário, por
exemplo. Assim, causa estranheza um dos cadernos da 5ª série, quando a aluna copia
conteúdos fora da ordem do tempo histórico e do tempo do caderno. Embora isso pareça
afetar mais quem já está completamente adestrado nessas normalizações (como a
observadora) do que o próprio aluno de uma 5ª série. E esse me pareceu um ponto muito
importante – a capacidade de fugir às normas apresentada pelos alunos menores e
entrevista no resumo da aluna da 7ª série – o que, muitas vezes, é visto como
desorganização, ou até incapacidade de compreender o conteúdo, por quem trabalha com
eles ou os acompanha em uma observação.
Nesse caso, é pertinente pensar: o que aconteceria se eles não fossem exercitados
para cumprir regras? Que tipo de pensamentos, inquietações, perguntas, conclusões ou
deduções poderiam surgir? Que movimentos, que deslocamentos seriam produzidos? Qual
seria a sua relação com o conteúdo expresso no caderno? Que tipo de visão da História
esses alunos construiriam? Seria muito diferente daquela que se apresenta hoje? Essas
possibilidades parecem bastante inquietantes para sistemas normalizados da forma como a
escola como um todo, o currículo de História e os cadernos em particular, se apresentam.
Por isso todas as constrições e esquadrinhamentos. Assim, o produto final é sempre
previsível e não há espaço para dúvidas ou inovações que desacomodem o que está
estabelecido e já se tornou tão natural.
Dessa forma, os alunos correspondem, de forma geral, a uma análise da produção
do autocontrole no uso do caderno e na assimilação das noções básicas da disciplina
trazidas por um currículo regulado pela concepção histórico-crítica acadêmica da década
de 80/90, com uma seleção de fatos vinculados às suas causas e conseqüências no tempo
histórico formal. É um currículo forjado através do cruzamento da seleção de teorias e
temáticas da História, que estão presentes no planejamento e nas aulas da Professora, assim
como nos conteúdos do livro didático.
Em se tratando dos conteúdos curriculares da História, estes são apresentados aos
alunos, em muitos momentos, de forma aligeirada e empobrecida, impossibilitando a
aquisição de um conhecimento histórico pleno das relações que o tornariam passível de
suscitar questões que fossem significativas para a compreensão do presente, o que é tido
como um dos objetivos da disciplina. O que é um acontecimento limitado e, por
18
conseguinte, um desperdício de energia e material humano por parte de todos os
envolvidos no processo. Pois é possível entrever possibilidades muito ricas de trabalho nos
momentos em que os alunos se manifestam em aula, quando respondem questões de
acordo com a sua percepção do significado do conteúdo, ou quando realizam atividades
com maior autonomia, como um resumo de estudos.
Assinalei também a permanência dos discursos legitimadores da História. A
justificativa para a permanência da História nos currículos escolares é uma questão
bastante incômoda por não ser clara nem para os próprios protagonistas do ofício, os
professores. É tão incômoda que os alunos dela muito usufruem como último recurso para
atormentar o professor e desviar o tema da aula, e se resume na pergunta sobre a finalidade
da História. Analisei brevemente a conjuntura histórica brasileira onde esses discursos
legitimadores se produziram e cabe agora pensar na situação atual.
Após as mudanças históricas da década de 90 e suas conseqüentes transformações
socioeconômicas, como a globalização, a derrocada do Estado como promotor de bemestar social e a reorganização neoliberal da economia houve um reordenamento dos
caminhos da educação. Esta foi direcionada para a inserção de mão-de-obra no mercado de
trabalho, atuando no treinamento do uso de novas tecnologias e possibilitando uma
formação mais flexível dos futuros profissionais. O aluno deve sair da escola treinado em
múltiplas habilidades e com capacidade de adaptação a diferentes situações de vida e de
trabalho. Para Abud, “objetivos como transformar a sociedade, fazer do aluno agente da
história, foram substituídos por verbos como reconhecer, identificar, respeitar, analisar
conhecer” (ABUD, 2001, p. 138). E o professor participativo do processo de
redemocratização, se vê hoje completamente afastado das discussões sobre o seu campo de
conhecimento e de trabalho. A ele cabe o cumprimento de inúmeras tarefas burocráticas,
como suprir carências afetivas e formativas dos alunos, identificar e encaminhar alunos
“problema”, entre tantas outras atribuições que entraram perniciosamente no lugar do
trabalho com o conhecimento.
Assim, só resta ao professor repetir o discurso de uma época na qual,
provavelmente, se sentia mais alinhado com as questões que ainda lhe diziam respeito em
termos de atuação pessoal e profissional. Voltamos à análise de Abud, para quem:
o sistema educativo descarta a importância dos valores regionais e da participação
dos excluídos no processo de transformação social. Concebe a idéia de uma
sociedade pronta, na qual devem ser inclusos aqueles que estão excluídos. A
inclusão do aluno na sociedade é concebida como inclusão como força de trabalho,
19
não como agente transformador, pois a idéia de transformação desapareceu
(ABUD, 2001, p. 137).
Nesse sentido, pensar a disciplina na sua acepção de formadora de valores e do
espírito crítico dos alunos encontra problemas. Se os alunos não são mais colocados como
agentes transformadores da História, para quê desenvolver neles a capacidade crítica?
Assim, há um esvaziamento do sentido desses discursos nos tempos que vivemos. E como
ficou claro nos textos passados pela Professora, nenhuma outra reflexão foi realizada que
superasse essa anterior. E os alunos poderão usufruir por mais tempo ainda deste tema tão
precioso no seu catálogo de idéias sobre “Perguntas para Desestruturar o seu Professor” –
para que devemos estudar História?
Outro ponto importante é o valor retórico dos discursos em prol da disciplina, como
trata Mérchan Iglesias, que pouca ligação apresenta com a prática vivida pelos professores,
pois se está discutindo uma situação que nem se concretiza no material analisado. O
aspecto crítico da História está colocado em termos de uma formulação acadêmica que não
necessariamente produz uma visão crítica por parte dos alunos. Ao chegar ao caderno de
forma que o aluno copie o tema proposto, faça o exercício com perguntas cujas respostas
são diretamente encontradas no texto e com número de linhas predeterminadas, o aspecto
crítico, que muitas vezes já se perdeu em um desses cruzamentos – proposta do PCN, livro
didático, planos de aula, aulas expositivas – não é perceptível para qualquer um dos
envolvidos no processo educativo. Fica apenas o aprendizado das normas relativas ao trato
com a disciplina.
No sentido de auxiliar a elaborar melhor essas idéias, Ivo Mattozzi aborda questões
interessantes na discussão sobre os valores formativos da História. Para ele, a História só
educaria em valores se houvesse uma continuidade entre àquela praticada pelos
historiadores e a escolar. Entre os pontos que ele levanta para fundamentar o seu
pensamento, está que a História ensinada “não possui a riqueza de referências, de
conceptualizações, de teorias, de argumentações que poderiam favorecer aquelas funções
educativas” (MATTOZZI, 1998, p.23). O nível de aprofundamento e a quantidade de obras
historiográficas sobre um mesmo tema são muito maiores na área de referência do que os
desenvolvidos em um livro escolar, e permitem a ampliação de concepções formativas.
Para ele, é necessário admitirmos que a História ensinada possa não causar qualquer efeito
na promoção de uma visão crítica ou compreensão dos fatos do presente ou mesmo na
formação de valores éticos. Pelo contrário, a História ensinada pode contribuir para formar
20
idéias indesejadas e fornecer a base para pensamentos autoritários, preconceituosos,
nacionalistas, entre outros, como já se viu acontecer.
Se não estiver profundamente vinculada à formação cognitiva em relação ao
conhecimento histórico, a disciplina pode servir a qualquer tipo de apropriação de seus
conteúdos. Se estes estiverem afastados da sua inserção teórica e conceitual, que os situam
como um conhecimento que tem um arcabouço interpretativo, tudo pode passar a ser
História, e daí advém tantas aberrações na redução de conteúdos e teorias acadêmicas.
Mattozzi reivindica uma retomada do sentido da disciplina, menos ingênua, como se vê:
Estamos, pois, empenhados em estabelecer uma forte coerência entre os valores
afirmados nas finalidades e nos objetivos, o sistema de conhecimentos históricos, a
qualidade dos textos historiográficos escolares, a formação de estruturas cognitivas
e as formas de mediação didáctica e dos processos de aprendizagem.
Tentei descobrir na formação cognitiva a gênese dessa coerência. Mas seja qual for
o critério fundador dessa coerência, considero-o capaz de formar não só cidadãos
democráticos esclarecidos como também um número cada vez maior de bons
conhecedores da História, o que pode contribuir para o progresso dos estudos
históricos, numa ligação virtuosa de história erudita e história escolar (MATTOZZI,
1998, p.48).
Para Mattozzi, não há garantias nem que a História seja a melhor disciplina para
formar valores. Temos outras dentro das ciências humanas, como a Antropologia e a
Filosofia, por exemplo, que cumpririam muito bem essa função, talvez até com mais
sucesso. Porém, colocado esse papel para a História, pensar um currículo que atinja
realmente os objetivos formadores da disciplina é uma atividade que se faz necessária,
mediante o esvaziamento das propostas colocadas até aqui. Partindo do pressuposto de que
é preciso usar as capacidades cognitivas para fazer escolhas entre as diferentes maneiras de
encarar o mundo posta pelos vários conteúdos disciplinares, penso que uma opção
interessante é fazer uma retomada do conhecimento histórico e da sua validade por si
mesmo. E só então, a partir e através do conhecimento dos conteúdos e fundamentos da
História, traçar o que é possível construir em termos de perspectivas éticas para o presente,
em um currículo formulado através de uma visão mais próxima da sala de aula.
Considerações finais
Essas foram as primeiras apreciações em relação ao currículo de História praticado
em uma escola pública, que analisei através do caderno escolar. Porém, de acordo com a
perspectiva teórica proposta para orientar o estudo como um todo, a consideração que deve
resultar das observações é a de como o currículo de História funciona na sala de aula e
através de que mecanismos, quais são as relações que ele instaura, como ele funciona nos
21
diferentes níveis em que se estabelece, que silêncios e que discursos são produzidos através
dele.
A percepção final é de que há vários currículos presentes em uma sala de aula de
História, que buscam atender às muitas demandas que estão postas no ensino público na
atualidade. No entanto, essa idéia só se desenvolve ao longo de toda a pesquisa e, embora
tenha centrado esta análise nos cadernos, gostaria de nesse momento final apontar para
alguns dos aspectos mais amplos do estudo, para indicar alguns pontos que respondam as
indagações levantadas no seu início. Portanto, farei uma breve apreciação das aulas
assistidas, do livro didático e da esfera acadêmica e institucional, para dar um sentido
conclusivo mais abrangente ao texto.
No conjunto das análises realizadas, foi possível perceber a heterogeneidade das
formulações curriculares e dos usos feitos nas diferentes instâncias avaliadas. Na
academia, há os currículos pensados tanto na área de Currículo quanto na de História. Em
termos de legislação, existe um currículo proposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) em torno dos temas transversais e outro que está no programa das disciplinas, com a
proposição de ensino temático. Ainda na legislação, existem as diretrizes de currículo
colocadas nas normas do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que geram
direções nas quais os livros didáticos terminam por se encaixar. No livro didático existem
vários currículos que buscam atender a demandas do PNLD, de um ensino tradicional mais
acessível ao professor nos textos de conteúdo e das inovações teóricas presentes nos box e
nas leituras complementares.
Nas aulas da Professora, o currículo é selecionado de acordo com inúmeras
situações ligadas ao aspecto do gerenciamento imediato das demandas trazidas pelas novas
acepções profissionais do professor/funcionário burocrático e do professor/administrador
da conduta e dos problemas cognitivos/afetivos dos alunos. Assim, as aulas situam-se em
torno da explicação dos fatos, com a inclusão de exemplos explicativos da atualidade com
abordagens às vezes superficiais. Já nos cadernos, existe o currículo fruto das escolhas e
seleções possíveis realizadas pela Professora, com a abordagem de alguns temas mais
teóricos desenvolvidos na década de 80/90, enquanto os conteúdos formais são
desenvolvidos em torno do aspecto político e socioeconômico, seguindo a cronologia, com
uma abordagem aligeirada.
Em todos esses currículos o único discurso que é recorrente é aquele ligado ao
caráter formativo da disciplina, trazido pela necessidade de legitimar a presença desta nos
22
currículos escolares. A História forma tanto os aspectos humanísticos do caráter dos
alunos, quanto os instrumentais para o desenvolvimento do seu raciocínio lógico. É um
discurso que aparece nos textos da área de História dos PCN, na seção de Apoio
Pedagógico escrito pelas autoras do livro didático, nos textos do caderno passados pela
Professora, numa tal quantidade de vezes que leva a pensar se a repetição é para o
convencimento de todos. O consenso é que a disciplina desenvolve o espírito de cidadania,
através da construção do conhecimento histórico, estuda o passado para compreender o
presente e desenvolver o raciocínio crítico e preventivo de erros futuros, desenvolve a
capacidade reflexiva, comparativa e relacional. Com um tema tão propagado, seria de se
esperar que o currículo da disciplina fosse construído em cima desses aportes, o que não
acontece na prática, como foi observado.
Esses discursos realizados em espaços formais são incompatíveis com o que se
houve e se vê no dia a dia escolar, onde o corrente é aquele do aluno desinteressado e sem
capacidade ou vontade de aprender. Entre uma fala e outra, se observa que existe tanto a
capacidade quanto a vontade de vários alunos em se envolver com a escola e com o que ela
tem a oferecer. Eles fazem perguntas nas aulas, se interessam pelos temas desenvolvidos
quando estes se vinculam a eles de alguma forma, e apresentam as suas opiniões
eventualmente. O problema maior, considero, é o que a escola tem a oferecer. E aí são
muitos os trabalhos realizados que procuram dar conta desse assunto sem, entretanto,
lograr que a prática se modifique.
Na prática, ao contrário dos valores apregoados sobre a capacidade da escola em
desenvolver a autonomia, a independência e a responsabilidade, os alunos são formados
nas regras de adaptação e funcionamento das normas, como acontece com os cadernos.
Mais importante que o conhecimento ali estabelecido, é o aprendizado das normas de como
lidar com aquele material, produzindo um sujeito particular dentro de uma média aceitável,
num processo de homogeneização tão acentuado que nos permite estudar poucos cadernos
como indicativo do que acontece com a maioria deles. Essas normas são produções
culturais que visam estabelecer um lugar social para esse aluno, remetendo-o a uma
estrutura moral. Ele deve se encaixar no padrão exigido, senão passa a ser o aluno
problema, desorganizado, desinteressado, que não tem capacidade.
Quanto aos professores, esses foram completamente deslocados do seu
protagonismo da década de 80/90, período de retomada das funções democráticas no
Brasil. Esse protagonismo foi interessante no momento em que era necessário acreditar que
23
a participação traria as mudanças sociais tão almejadas e esperadas por um longo tempo.
Contudo, os novos ventos da ordem econômica já não precisam mais desse tipo de atitude
com a democracia consolidada, pois hoje a grande inovação é a produtividade e as
mudanças sociais se dão pela capacidade que o cidadão tem, em sendo produtivo, de
alcançar o consumo daquilo que não necessita.
Os professores foram, então, afastados das discussões sobre o seu campo de
trabalho, a ponto de não validarem mais o seu próprio conhecimento. As verdades sobre o
seu ofício estão em outros lugares: no MEC, na academia, nas inúmeras tarefas
burocráticas de relatórios a preencher e planos a entregar, na psicologia para lidar com os
problemas dos inúmeros alunos-problemas, na exigência da afetividade como padrão
profissional. Os professores estão desautorizados como sabedores do seu ofício em todas
as instâncias. Assim, algumas possibilidades de desenvolver um trabalho mais pessoal e
efetivo, que foi entrevisto em alguns poucos momentos das observações, não são sequer
cogitadas pela Professora como recursos que ela poderia empregar em sala para alcançar
um trabalho mais efetivo com o conhecimento. A Professora não consegue validar aquilo
que sabe e se engessa atrás de práticas rotineiras e esvaziadas, nada desafiadoras para ela
muito menos para os alunos.
Vemos as conseqüências de todos esses fatores no aligeiramento dos conteúdos,
pois estes acabam fazendo parte dos discursos dispersos da sala de aula. Há um
encadeamento de assuntos tratados de forma mecânica em alguns momentos, sem
considerar o potencial tanto da disciplina quanto dos alunos. Além disso, há ainda os
problemas de disciplina e da estrutura da escola sobrepondo-se muitas vezes àquilo que
poderia ser efetivado na aula de História.
Assim sendo, as escolhas curriculares que a Professora realizou no uso que fez do
livro didático, nos textos que passou para os alunos na lousa (copiados nos cadernos) e nas
suas aulas expositivas, determinam um novo plano de análise que desloca as previsões a
respeito da sua adesão às diferentes propostas curriculares, oficiais ou pedagógicas. O
currículo de História se apresenta, então, bastante poroso e aberto na sua pulverização e
nas várias instâncias que percorre até chegar ao caderno escolar, permitindo todo o tipo de
uso do seu conteúdo heterogêneo, mas permanece impermeável a modificações na prática
da sala de aula.
24
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O currículo de História e a sala de aula da escola pública