Os docentes nas escolas para os alunos surdos e a Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire Camila Guedes Guerra Goes1 Resumo: O objetivo deste artigo é refletir sobre a formação do docente que atua com educandos surdos, conforme as propostas de Paulo Freire, como profissionalizar o ensino para estes sujeitos, nas disciplinas da escola, cursos, pós-graduações e outros. Palavras-Chave: Surdo, educação, LIBRAS, intérprete e pedagogia. Abstract: The aim of this article is to discuss the formation of the teacher who works with deaf students, according to the proposals of Paulo Freire, how to make this education professional to these people, in school subjects, courses, postgraduate courses and others. Keywords: Deaf, education, Libras, interpreter and pedagogy. Justificativa A escolha do livro Pedagogia da Autonomia escrito por Paulo Freire, considerado um dos grandes pedagogos da atualidade e respeitado mundialmente, aconteceu em função de estar cursando uma disciplina do Mestrado em Informática na Educação, onde podemos iniciar o contato com as reflexões deste autor. Ele entrou na faculdade em 1943, Recife, para cursar Direito. Também se dedicou ao estudo da filosofia da linguagem. Trabalhou em escolas de Ensino Médio e na educação de Jovens e Adultos ensinando a língua portuguesa. Publicou várias obras que foram traduzidas e comentadas em muitos países. Neste artigo vamos escrever sobre a educação de surdos e as práticas docentes, principalmente em relação à fluência em LIBRAS. A partir dos cursos de informática que acontecem em dois espaços diferentes na cidade de Porto Alegre, onde participam surdos de diferentes escolas, percebemos que as escolas ou os professores estão com problemas de ensino. Nosso principal objetivo são os alunos surdos jovens e adultos, desenvolvendo pesquisa sobre educação a distancia, e os Ambientes Virtuais de Ensino Aprendizagem. Na minha experiência de trabalho, há sete anos atuando nas aulas presenciais em cursos de informática, tive a oportunidade de pela primeira vez experimentar um curso na modalidade EAD. Constatamos que é totalmente diferente 1 Faculdade Cenecista de Osório (FACOS), [email protected] 72 a modalidade EAD e presencial, sendo um grande desafio de conhecimento e práticas entre estes dois tipos. No livro de Paulo Freire ele descreve como os docentes deveriam se envolver nas atividades no espaço da sala de aula, alguns dos pré-requisitos indispensáveis para a docência no sentido da autonomia de pensamento do aluno, tais como que é preciso gostar a ensinar, ensinar e amar aos alunos, ter paciência, controle e saber ensinar. Para construção dos conceitos é preciso a criança interagir com os adultos. Como o surdo faz este processo se não tem interação com os adultos. Sozinho ele constrói conceitos que muitas vezes são superficiais, simples e até equivocados; falta-lhe o instrumento para a construção do seu pensamento que é a língua, e então seu desenvolvimento fica prejudicado. Se o ambiente for adequado e existir o contato com pessoas que usam Língua de Sinais desde que é pequeno, seu desenvolvimento intelectual é natural. Nem sempre os profissionais que atuam nas escolas de surdos estão qualificados para identificarem as necessidades específicas da comunidade surda. Conhecer a cultura surda, Língua de Sinais e a história do mundo surdo, muitas vezes não é parte dos conhecimentos dos profissionais da Educação que interagem com a comunidade surda. As metodologias de Ensino são basicamente as mesmas dos ouvintes, porém é preciso respeitar a condição de minoria lingüística destes educandos. Também existe o preconceito, a falta de conhecimento da identidade surda, e as pessoas que acreditam que o surdo não tem futuro. Encontramos na citação de QUADROS (1997) aspectos importantes do profissional que trabalha com surdos: Quanto às características de um professor de escola bilíngüe para surdos, DAVIES (1994, p.111-112) descreve três aspectos básicos: a) O professor deve ter habilidade para levar cada criança a identificarse como um adulto bilíngüe; b) O professor deve conhecer profundamente as duas línguas, ou seja, deve conhecer aspectos das línguas requeridos para o ensino da escrita, além de ter bom desempenho comunicativo; c) “O professor deve respeitar as duas línguas – reconhecendo o estatuto lingüístico comum a elas e atentando às diferentes funções que cada língua apresenta para criança. (QUADROS e RONICE, 2008, p.33) 73 Portanto o profissional que trabalha com surdos precisa conhecer a história da comunidade surda, a Língua de Sinais, para que não existam conflitos. Não adianta fazer pesquisas de mestrado e doutorado se as pessoas não têm este conhecimento, acham que é fácil, mas faltam conhecimentos mais profundos sobre a comunidade surda e suas características. Tal profissional deve conhecer profundamente a cultura surda a que pertence e também a cultura surda mundial. [...] deve envolver questões relacionadas à LIBRAS, à comunidade surda (aspectos sociais, culturais e políticos) e ao interprete da língua de sinais. (QUADROS e RONICE, p.110) Um dos requisitos que Paulo Freire aponta como importantes para o “ensinar certo” é não ter preconceitos e não só respeitar, mas aproveitar a realidade dos alunos para que a aprendizagem seja facilitada. No profissional que vai atuar com a comunidade surda deve ter estes objetivos, e buscar metodologias que considerem a condição lingüística e cultural dos surdos. Vou mostrar um exemplo de diálogo comparando as duas línguas, língua portuguesa escrita e LIBRAS, que tem estruturas de sintaxe diferentes. As pesquisas sobre Línguas de Sinais a partir da década de 60 comprovaram que estas línguas são sistemas lingüísticos, e não simplesmente gestos ou mímicas. PORTUGUÊS LIBRAS Tudo bom? Você vai viajar nas férias? TUDO BOM? VIAJAR FÉRIAS VOCÊ? Eu não, eu preciso trabalhar na escola. Suas EU NÃO ESCOLA PRECISAR TRABALHAR. férias foram boas? VOCÊ FÉRIAS VIAJAR BOA? Eu viajei para Fortaleza, muito Bom! Lá é EU VIAJAR FORTALEZA, BO@! BONIT@ LÁ! muito bonito! Conheço muitos surdos! CONHECER SURD@ MUIT@! Esta seria uma tradução literal dos sinais para o português. As diferenças de estrutura, as diferenças quanto às concordâncias, as descrições de gênero enfim, toda a estrutura gramatical das duas línguas é diferenciada. Quadros e Karnopp (2001) afirmam: As línguas de sinais são, portanto, consideradas pela lingüística como línguas naturais ou como um sistema lingüístico legítimo e não como um problema do surdo ou como uma patologia da linguagem. Stokoe, em 1960, percebeu e comprovou que a língua de sinais atendia a todos os critérios lingüísticos de uma língua genuína, no léxico,na sintaxe e na capacidade de 74 gerar uma quantidade infinita de sentenças. (QUADROS e KARNOPP, 2004, p. 30) Para Paulo Freire (1996) e preciso evitar o “Ensino Bancário”, isto é uma forma tradicional e é um grande conflito, porque alguns docente costumam fazer isto, que é ensinar várias vezes repetindo os conteúdos, sem contextualizar o conhecimento, sem relacionar a aprendizagem com suas vidas. É preciso evitar estas repetições, em todas as disciplinas, e procurar trabalhar de uma forma interdisciplinar, apresentando o conhecimento como um todo, e não fragmentado. O importante é estimular aos alunos na troca de idéias; buscar seu aprendizado a partir das vivências dos alunos, aprender com os alunos, e estes sendo contemplados nos seus saberes, na troca de experiências novas e bom relacionamento, aumenta a sua curiosidade, material básico para a aprendizagem. Os professores precisam ter um bom conteúdo, sem dúvida, mas observar os alunos no primeiro dia de aula conhecendo cada um, despertando muitos diálogos, atividades e outros tipos de idéias criadas pelo professores. Sendo o profissional de educação um “professor de surdos” deve observar muito, e buscar nos surdos a melhor compreensão de como funciona sua língua, sua cultura, a realidade de cada aluno, pois os surdos não são todos iguais, tem diferenças de histórias de vida e de opções familiares para sua aprendizagem, resultando em identidades distintas e necessidades diferenciadas. Como esta interação será possível se o profissional não está instrumentalizado para esta atuação? Ao contrário, se o profissional tem este reconhecimento, os alunos surdos vão encontrar no professor ouvinte uma identificação, vão perceber que ele tem respeito pela sua cultura e língua, e, portanto ele passa a ser modelo para este aluno. Se esta empatia não acontece a relação fica prejudicada. E também o trabalho do professor fica impossível porque como ele vai trabalhar as informações necessárias se não domina a língua de seus alunos? Tenho percebido as enormes dificuldades dos meus alunos nos cursos de informática onde atuo principalmente na escrita do Português que é sua segunda língua, e fico me perguntando se a educação da escola fracassou? Será a falta 75 apoio dos pais, que muitas vezes também não conseguem se comunicar com seus filhos? Ou será que falta de uma formação adequada aos profissionais que atua na área da surdez? Talvez seja um pouco de tudo isto, assim como propõe Paulo Freire, uma série de elementos que são condição para que o docente tenha sucesso em alcançar seus objetivos. Algumas condições importantes para a atuação na área da surdez Quem é o docente que atua com surdos? É um profissional com habilidades e capacitação especializado em comunicação em outros aspectos relacionados com surdo; Os alunos se comunicam com a língua de sinais normalmente com os colegas, e assim deveria ser também com o professor. Estas são algumas das inúmeras estratégias e serviços que podem ser utilizados para atender de maneira efetiva as necessidades educacionais de um aluno surdo: Prover motivação para pessoa surda; Prover uma resposta clara; Prover experiências que forneçam oportunidades para aquisição de conceito de habilidades; Utilizar métodos técnicas que forneçam melhores oportunidades para uma pessoa surda; Conhecimento profundo sobre a cultura surda, história e a libras. Escolas especiais para surdos O professor pode ser surdo ou ouvinte com fluência em LIBRAS; Conhecimento da história do mundo surdo; Responsabilidade básica do educador é a de implementar o programada para criança para dar acesso a informação, materiais e ambientes; 76 O professor deve preparar os materiais sempre pensando nas necessidades e especificidades do aluno surdo, sua visualidade e sua condição de usuário do português escrito como segunda língua, colocando sempre a disposição material nas duas línguas. Universidades (inclusão) o Se o professor for ouvinte e não sabe a LIBRAS, é necessário o uso de intérprete de LIBRAS; o O Intérprete profissional: Experiência e certificação de intérprete de libras ou proficiência em libras; o Ética; Seja profissional; Ser fluente em língua de sinais e tradução oral; Conhecimentos gerais. Se o professor é surdo, e tem alunos ouvintes é necessário intérprete de libras também para fazer a tradução da Libras para o português oral. Cursos de aperfeiçoamento, mestrado e doutorado (especiais ou inclusão) Alunos ouvintes e alunos surdos na mesma sala: o Se o professor é ouvinte ou surdo é necessário ter intérprete de libras dentro da sala de aula; o Se o professor é ouvinte não sabe a LIBRAS, é necessário em uso intérprete de LIBRAS; Alunos Surdos: o Se o professor é ouvinte e não sabe a Língua de sinais, é necessário de intérprete de LIBRAS; o Se o professor é ouvinte e sabe a LIBRAS não é necessário intérprete de LIBRAS; 77 o Se o professor é surdo e sabe a LIBRAS não é necessário intérprete de LIBRAS. Para alunos jovens e adultos é muito importante que os professores utilizem a internet e outras mídias, que estimulem a pesquisa nestes ambientes pois a quantidade de informações é muito grande e pode servir para despertar a curiosidade e o interesse pela pesquisa nos alunos. A sede de conhecimento vem pela curiosidade e só uma informação contextualizada, adequada e importante para a realidade destes alunos é que se tornará eficaz e não uma memorização mecânica, que será esquecida assim que “terminar a prova”. O respeito é fundamental, e isto envolve ausência de preconceito, de idéias préconcebidas, de conhecimento atualizado sobre o sujeito surdo, de mudança de atitudes e ressignificação de conceitos. Assim se conquista o respeito do aluno, que percebe sua realidade contemplada no espaço de aprendizagens individuais, coletivas e afetivas que é a escola. Paulo Freire diz: “A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem na formação democrática uma prática de real importância.” (Freire, 1996), e mais adiante completa: “No momento em que os seres humanos, intervindo no suporte, foram criando o mundo, inventando a linguagem com que passaram a dar nome às coisas que faziam com a ação sobre o mundo na medida em que se foram habilitando a inteligir o mundo e criaram por conseqüência a necessária comunicabilidade do inteligido, já não foi possível existir a não ser disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e a indignidade, entre a decência e o despudor, entre a boniteza e a feiúra do mundo. Quer dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. E tudo isso nos traz de novo à imperiosidade da prática formadora, de natureza eminentemente ética. E tudo isso nos traz de novo à radicalidade da esperança. Sei que as coisas podem até piorar, mas sei também que é possível intervir para melhorá-las.” (FREIRE, 1996, p. 52.) É preciso identificar as necessidades de cada pessoa surda, nem todos são iguais. Cada um tem seu raciocínio e seu pensamento, que consegue comunicar do seu jeito. O conjunto de ações necessárias para que o surdo desenvolva suas capacidades e habilidades envolve uma rede de pessoas e instituições. Muitas 78 vezes a escola é capacitada, tem profissionais qualificados, mas a família não acredita nas possibilidades de seu filho. É preciso acreditar nas potencialidades, nas possibilidades, nas habilidades, nas idéias, nos sonhos, no futuro da criança surda. Ou se a família, muitas vezes sofrida pela realidade do diagnóstico, não encontra esclarecimento por parte dos profissionais que a atende, se perde freqüentemente a esperança num futuro produtivo, e em igualdade de condições e interação social, para crianças, adolescentes e jovens surdos. Grande parte dos problemas são aqueles que vivem no interior dos estados brasileiros, que convivem longe da capital onde não existem instituições adequadas, e onde não só as idéias mais atualizadas, mas também as tecnologias demoram a chegar. Estes ambientes costumam ser muito tradicionais nas suas metodologias, e não é incomum sabermos de escolas que ainda proibem a língua de sinais. Alguns surdos então passam anos na escola sem que tenham uma aprendizagem efetiva, ficam atrasados e bastante estigmatizados, sendo inclusive considerados com freqüência “deficientes mentais”. Além disso, a exclusão social, a pobreza, a baixa escolaridade, a desinformação enfim, todas as condições que criam os preconceitos e diminuem a dignidade humana perpassam esta comunidade, não separada e não livre das conseqüências desastrosas da falta de estrutura social. As propostas de Paulo Freire falam principalmente aos educadores, questionam desde as metodologias até as posturas éticas e práticas pedagógicas, mas sempre pensando em como estimular no educando a autonomia, não apenas de atitudes autônomas, mas a autonomia de pensamento, uma reflexão sobre as coisas, espaços e pessoas com quem interage. Para o educando surdo é fundamental que sua cultura, condição, especificidade lingüística, enfim sua identidade seja reconhecida e respeitada. Só um profissional de educação instrumentalizado, mas acima de tudo eticamente comprometido com as reais necessidades desta comunidade é que conseguirá melhores resultados na formação integral destes sujeitos. 79 Referências FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Ed. 28. São Paulo: Paz e Terra, 1996. QUADROS, Ronice Müller de. Educação de Surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. QUADROS, Ronice Müller de; KARNOPP, Lodenir Becker. Língua de Sinais Brasileira: Estudos Lingüísticos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. 80